Relatório Situação Atual- Proibição de aplicação de castigos corporais a crianças. Portugal

Relatório Situação Atual Proibição de aplicação de castigos corporais a crianças

PORTUGAL

APDES - Agência Piaget para o Desenvolvimento Universidade Católica Portuguesa | Escola de Direito

la de Direito

This publication has been produced with the financial support of the Rights, Equality and Citizenship (REC) Programme (2014-2020) of the European Union. The contents of this publication are the sole responsibility of HandsUp Project and can in no way be taken to reflect the views of the European Commission

Título Relatório Situação Atual- Proibição de aplicação de castigos corporais a crianças Portugal

Conceção e produção APDES - Agência Piaget para o Desenvolvimento Universidade Católica Portuguesa | Escola de Direito

Autoria Inês Nunes de Freitas [APDES] Conceição Cunha [UCP] Paula Ribeiro Faria [UCP] Elisabete Ferreira [UCP]

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José Taborda [UCP]

Contributos Elvira Lopes [APDES] Joana Antão [APDES, RECI]

Projeto “HandsUp - Promoting the Effective Elimination of Corporal Punishment Against Children”.

Project JUST/2015/RDAP/AG/CORP/9182 www.handsupchildren.org

Este documento foi produzido com o apoio financeiro do Programa Direitos, Igualdade e Cidadania da União Europeia (2014-2020). Os conteúdos deste documento são da exclusiva responsabilidade da APDES e UCP, e não refletem os pontos de vista da Comissão Europeia.

Porto, janeiro de 2017

Índice I. Análise da legislação nacional e internacional e identificação de problemas na implementação da proibição de aplicação de castigos corporais a menores. a)

Quais os mecanismos legais para punir a aplicação de castigos corporais?

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b) Existe uma lei específica ou tipo de crime que puna os castigos corporais, ou a incriminação insere-se disposição geral contra ofensas corporais?

8 c) Se não há uma lei específica, a regra geral é capaz de excluir o uso da punição corporal / física? A lei é ambígua?

8

d) Outros diplomas nacionais e internacionais relevantes para a proteção da Criança:

8

II.

Análise crítica da jurisprudência nacional.

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a)

Metodologia adotada:

9

B)

Os casos de aplicação de castigos corporais a crianças chegam a Tribunal?

10

c) Existe uma diferença se a aplicação de castigos corporais for empregue por um terceiro? Elabore tendo como referência a definição de castigo corporal dada pela ONU. 11 d)

A jurisprudência é contrária à lei e às recomendações internacionais?

A jurisprudência refere-se à aplicação de mecanismos de procedimentos favoráveis às crianças?

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E)

III.

Análise da literatura Nacional.

16 17

2

I.

Análise da legislação nacional e internacional e identificação de problemas na implementação da proibição de aplicação de castigos corporais a menores. a) Quais os mecanismos legais para punir a aplicação de castigos corporais?

Antes porém de nos debruçarmos sobre esta primeira questão, impõe-se uma breve explicação legal do poder-dever detido pelos pais à luz da lei portuguesa. encontrando-se tal temática regulada pelos seguintes artigos do Código Civil português: Artigo 1874.º - (Deveres de pais e filhos): 1. Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência. 2. O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar.

ARTIGO 1877.º - (Duração das responsabilidades parentais): Os filhos estão sujeitos às responsabilidades parentais até à maioridade ou emancipação.

ARTIGO 1878.º - (Conteúdo das responsabilidades parentais): 1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens. 2. Os filhos devem obediência aos pais; estes, porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida.

De igual poder-dever gozam os tutores ARTIGO 1935.º - (Princípios Gerais): 1. O tutor tem os mesmos direitos e obrigações dos pais, com as modificações e restrições constantes dos artigos seguintes. 2. O tutor deve exercer a tutela com a diligência de um bom pai de família.

Pela análise dos normativos transcritos resulta que a relação entre pais e filhos deverá pautar-se pelo respeito mútuo. Não obstante, compete aos pais, no interesse dos filhos, dirigir a sua educação cabendo aos filhos obedecerem.

Contudo, nem o poder corretivo dos pais é absoluto nem a obediência dos filhos deverá ser cega.

Isto dito, não só o n.º 2 do artigo 1878.º do Código Civil estabelece que os pais devem conceder uma autonomia aos filhos adequada à sua idade e correspondente estádio de desenvolvimento, como a própria Constituição Portuguesa consagra o direito das crianças à proteção contra o exercício abusivo da autoridade no seio familiar: Artigo 69º - (Infância): 1. As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições. 2. O Estado assegura especial protecção às crianças órfãs,

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abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal. 3. É proibido, nos termos da lei, o trabalho de menores em idade escolar.

Em Portugal a

aplicação de

castigos corporais pode originar

responsabilidade penal e civil para o infrator. Isto dito, temos duas tutelas paralelas que poderão ser cumulativas ou, eventualmente, alternativas.

DIREITO PENAL

Principiando pela tutela penal, verifica-se que em Portugal a aplicação de castigos corporais encontra-se, especificamente, prevista e punida pelos artigos 152.º e 152.º-A e do Código Penal segundo os quais: Artigo 152.º - Violência doméstica: 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.

Artigo 152.º-A - Maus tratos: 1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

O artigo 152.º do Código Penal, que consagra o crime de violência doméstica (Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro), criminalizou os castigos

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corporais, tratando-os como maus-tratos. Esta solução faz todo o sentido, em resultado da ratificação pelo Estado português da Convenção dos Direitos da Criança 1 e de outros compromissos internacionais que o vinculam 2 , muito embora da anterior formulação do artigo 152.º do Código Penal já decorresse esta criminalização; o legislador apenas clarificou o conceito de maus tratos, introduzindo no tipo legal a menção expressa aos castigos corporais. Por outro lado, e onde os maus tratos tenham lugar fora do âmbito doméstico e familiar, por conseguinte, no domínio de relações institucionais (castigo físico aplicado por um funcionário, por exemplo), entende-se que tem lugar a aplicação do artigo 152º-A do Código Penal, que prevê o crime de maus tratos. O crime de violência doméstica quando cometido em relação a menores, exige a coabitação com o agente dentro de um contexto de violência.

Resulta assim que, resulta que a legislação criminal portuguesa não contempla um normativo legal que puna exclusivamente a aplicação de castigos corporais a menores, mas sim, o conceito mais amplo de maus tratos onde se inserem os castigos corporais a menores e pessoas particularmente indefesas.

Nas restantes situações em que um menor seja vítima de castigos corporais e a situação, em concreto, não se insira em nenhum dos normativos transcritos, sempre se poderá equacionar a aplicação do crime fundamental de ofensas à integridade física: Artigo 143.º - Ofensa à integridade física simples: 1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 - O procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra 1

Que no seu artigo 19.º impunha aos Estados-Partes a obrigação de tomarem todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à proteção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente; maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais, ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada.

2 Recorde-se a Decisão do Comité Europeu dos Direitos Sociais de 5 de dezembro de 2006, que na sequência da queixa apresentada pela OMCT, a propósito do Acórdão do STJ, de 5 de abril do mesmo ano, concluiu pela violação do artigo 17.º da Carta Social Europeia revista, relativo ao direito das crianças e jovens à proteção social, legal e económica, designadamente pelo desenvolvimento de medidas adequadas à proteção destas contra a violência, negligência e exploração. O Comité considerou que para respeitar o artigo 17.º, a legislação interna dos Estados tinha que proibir e penalizar todas as formas de violência contra as crianças, isto é, todos os atos capazes de afetar a integridade física, a dignidade, o desenvolvimento ou o bemestar psicológico das crianças, devendo as previsões em causa ser suficientemente claras e precisas, de modo a evitar que os Tribunais se recusem a aplicá-las no contexto da violência contra as crianças. (Cfr. os §19., 20. e 21 da Decisão, disponível em www.coe.int).

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agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas. 3 - O tribunal pode dispensar de pena quando: a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.

Concretizando a distinção entre o crime de violência doméstica e o de ofensas à integridade física: uma palmada isolada a um filho não seria considerada violência doméstica, mas um crime de ofensas corporais simples, a não ser que surgisse como manifestação de um relacionamento doméstico violento, cabendo indagar da possibilidade de exclusão da sua relevância penal, no âmbito de um direito/dever de educação/correção.

Ainda no que respeita às ofensas à integridade física, este crime comporta uma forma qualificada prevista no artigo 145.º do Código Penal: Artigo 145.º - Ofensa à integridade física qualificada: 1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º; b) Com pena de prisão de 1 a 5 anos no caso do n.º 2 do artigo 144.º-A; c) Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do artigo 144.º e do n.º 1 do artigo 144.º-A. 2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º.

Ora, para que haja lugar à verificação da qualificação é necessário que as ofensas sejam produzidas em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade. Nesse sentido, o legislador português procurando auxiliar na densificação do conceito de especial censurabilidade ou perversidade, estabeleceu um conjunto de exemplos-padrão contidos no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. Porém, a mera verificação destas circunstâncias-exemplo não basta para que o crime seja qualificado. Em bom rigor estes exemplos-padrão mais não são que indicadores de uma culpa grave. Assim, ainda que verificada uma destas situações no caso concreto, terá sempre de ser provado que aquelas circunstâncias demonstram uma especial censurabilidade ou perversidade.

Isto dito, uma destas situações-padrão prende-se com o facto de o perpetrador ser ascendente da vítima.

DIREITO CIVIL

Como mencionado supra, também o direito civil comporta mecanismos tutelares das vítimas de castigos corporais, ainda que de natureza

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eminentemente compensatória. Referimo-nos aqui aos diferentes modos de indemnização da vítima. Porém, nesta sede as indemnizações servem o propósito primeiro de compensar a vítima, ou seja, procuram minorar os danos sofridos através do recebimento de uma soma pecuniária. Não obstante, não podemos ignorar que tal pagamento comportará, ainda que indiretamente, um cariz punitivo.

Por forma a efetivar o seu direito a uma indemnização a vítima pode, no correr do processo-crime, deduzir um pedido de indemnização cível.

A não dedução implica em determinados casos a preclusão de tal direito.

Não obstante, e como será fácil de compreender, raramente, os menores ou quem os representa requerem o pagamento de qualquer soma para lá da condenação do infrator.

Nesse sentido, e procurando acautelar a posição das vítimas no processo penal, nomeadamente das especialmente vulneráveis como são as crianças, uma Lei recente (Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro) veio criar um mecanismo automático de ressarcimento que aqui se transcreve: 7 Artigo 16.º - Direito a uma decisão relativa a indemnização e a restituição de bens: 1 À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2 - Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser. 3 - Os bens pertencentes à vítima que sejam apreendidos em processo penal devem ser de imediato examinados e restituídos, salvo quando assumam relevância probatória ou sejam suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado.

Ora, quer isto dizer que, atualmente, tratando-se de vítima especialmente vulnerável, a não solicitação da condenação do infrator no pagamento de uma indemnização cível durante o processo-crime não obsta a que, a final, a vítima se veja ressarcida. A menos que, claro está, renuncie expressamente a esse direito.

b) Existe uma lei específica ou tipo de crime que puna os castigos corporais, ou a incriminação insere-se disposição geral contra ofensas corporais?

A Lei portuguesa prevê a incriminação da aplicação castigos corporais nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal. Porém e como resulta claro, estes normativos não foram criados especialmente para tutelar menores, nem tãopouco, com o fito de obstar ao recurso a castigos corporais com fito educativo.

c) Se não há uma lei específica, a regra geral é capaz de excluir o uso da punição corporal / física? A lei é ambígua?

A Lei portuguesa é bastante clara ao proibir a aplicação de castigos corporais, quer no crime de violência doméstica (art. 152.º), quer no crime de maus-tratos (art. 152.º-A). Pelo que, somos levados a concluir que não se verifica qualquer ambiguidade no que respeita ao articulado.

Acontece porém que a clareza na aplicação destes preceitos vê-se mitigada por duas circunstâncias. Primeiramente, pelo facto de que a incriminação não foi criada com o objetivo cimeiro de proibir a aplicação de castigos corporais com fito educativo; em segundo lugar pelo poder-dever de correção de que os pais das crianças são titulares. Temática a tratar nas secções seguintes respeitantes à jurisprudência e doutrina nacionais.

d) Outros diplomas nacionais e internacionais relevantes para a proteção da Criança: Nacional:

● Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro - Lei tutelar educativa ● Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro - Lei de proteção de crianças e jovens em perigo Internacional: ● Declaração dos Direitos da Criança

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● Diretrizes sobre Justiça para crianças vítimas e testemunhas de crimes ● Convenção sobre os Direitos da Criança ● Convenção europeia sobre o exercício dos Direitos das Crianças ● Convenção Relativa à Competência das Autoridades e à Lei Aplicável em Matéria de Protecção de Menores ● Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças

II.

Análise crítica da jurisprudência nacional.

a) Metodologia adotada: No que à amostra selecionada respeita optamos por analisar todas as decisões judiciais que versassem sobre a aplicação de castigos corporais a crianças com fito educativo. A escolha prendeu-se fundamentalmente com duas premissas: a) As bases de dados jurisprudenciais digitais em Portugal apenas contêm as decisões de Tribunais de recurso e não as decisões de 1.ª Instância.

Ou seja e dito por outra forma, apenas temos acesso às decisões que são objeto de recurso.

b) Por questões práticas atento que não existe, atualmente, um número demasiado elevado de decisões sobre esta temática e só assim seria possível aferir da existência, ou não, de padrões decisórios.

Isto dito, analisamos 23 acórdãos distribuídos por 8 Tribunais.

Esclareça-se também que em Portugal a discussão em torno da incriminação da aplicação de castigos corporais a menores é relativamente recente. Como tal, não será de espantar que a problemática, durante largos anos, não se tenha colocado ao nível jurisprudencial, inserindo-se a aplicação de castigos corporais no âmbito do poder correcional dos pais. Ilustrando, dos 23 acórdãos analisados somente 2,3% são anteriores a 2000, sendo a esmagadora maioria posteriores a 2004, em concreto, 91,3%.

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b) Os casos de aplicação de castigos corporais a crianças chegam a Tribunal?

Sim, estes casos são julgados em Tribunal e, em sede de recurso, raras vezes o infrator não é condenado em pena de multa ou de prisão. Alertamos no entanto que, amiúde, a prisão será suspensa na sua execução.

Ora, verifica-se, assim, uma sensibilidade por parte dos Tribunais Portugueses a esta questão independentemente da gravidade da ofensa como agora se ilustrará com alguns casos reais: A 26

DE

OUTUBRO

DE

2004

O

TRIBUNAL

DA

RELAÇÃO

DE

ÉVORA foi condenado um pai que,

frequentemente agredia a sua filha menor com paus, ferros, pontapés, referindo, ainda, que a menina não era sua filha, mas de um cigano. Como resultado, a criançar ficou com cicatrizes nas zonas afetadas. Segundo o Arguido, as ofensas de caráter, pretensamente, educativo por si empreendidas tinham como fundamento o mau desempenho escolar da menor e o facto de se interessar por rapazes. Pelos factos praticados, o Arguido foi condenado a 14 meses de prisão efetiva. Mais foi dito pelo Tribunal que “Torna-se necessário salientar, perante a sociedade, a impropriedade de condutas como a do arguido. Vive-se uma época em que o simples castigo corporal exercido sobre os filhos é posto em causa quer no domínio do Direito quer no campo da Psicologia.”.3

A 9

DE

DEZEMBRO

DE

2010

O

TRIBUNAL

DA

RELAÇÃO

DE

ÉVORA foi condenado um pai que

desferiu duas chapadas ao seu filho menor na via pública. Em concreto foi dado como provado pelo Tribunal que o infrator, embriagado, desferiu duas chapadas na face do seu filho de 12 anos causando-lhe hematomas. os factos ocorreram após o ir buscar a casa de um amigo. Em sua defesa, o Arguido veio alegar que apenas bateu no seu filho porque este oferecia resistência em retornar a casa, não obstante ter aulas no dia seguinte de manhã.

Em suma, arguiu o Agente que as chapadas foram desferidas ao abrigo do seu poder-dever de correção. A argumentação apresentada pelo Arguido não colheu, tendo sido condenado a dois anos de pena de prisão suspensa na sua execução mediante pagamento da quantia de 1.500,00 Euros a uma instituição social pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada em virtude da relação de ascendente e da severidade das lesões.4 A 12 DE OUTUBRO DE 2016 O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA condenou um pai que desferiu, com um cinto dobrado, uma pancada nas pernas da sua filha menor de 7 anos, causandolhe dores e equimoses nessa área, pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada em virtude de ser ascendente e de se tratar de vítima particularmente indefesa e devido ao meio empregue. É necessário no entanto esclarecer que a criança vivia com os avós e não com o Arguido. Prosseguindo, foi dado como provado que o Arguido pretendia

3 4

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora 26/10/2004.

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9/12/2010.

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dissuadir a sua filha de voltar a sair de casa sem autorização e, em geral, de desobedecer à avó. Pese embora o pretenso fito educativo da conduta, o Tribunal qualificou-a de uma “violação inaceitável da integridade física da menor uma demonstração intolerável de força física intencionalmente dirigida à lesão do corpo e da saúde de uma criança indefesa com apenas 7 anos de idade”. Pelo exposto, foi o pai da menor condenado a 10 meses de pena de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano mediante a apresentação de comprovativos de procura de emprego, frequência de formações parentais e sujeição a consultas atinentes ao consumo de substâncias aditivas.5

Pelo exposto, verifica-se que os nossos Tribunais decidem sobre um amplo espectro de condutas, desde simples palmadas a situações de violência extrema. Não sendo estes casos meras bagatelas jurídicas, mas sim, verdadeiros problemas sociais carentes de tutela judicial.

c) Existe uma diferença se a aplicação de castigos corporais for empregue por um terceiro? Elabore tendo como referência a definição de castigo corporal dada pela ONU. Destarte será necessário distinguir entre se quem aplica os castigos corporais é um membro da família ou um terceiro à relação familiar (p. ex. educadoras, auxiliares de educação ou professoras). No que respeita à primeira das situações mencionadas, os Tribunais superiores portugueses já foram chamados a tomar uma posição em duas ocasiões 6 . Ambas as decisões admitiram a legitimidade dos avós em aplicarem castigos corporais com fito educativo aos netos desde que proporcionais, adequados e com fito educativo. Estamos perante uma transmissão plena do poder corretivo que apenas é possível por se tratar de pessoas próximas das crianças e de especial confiança dos pais.

Já no que respeita aos terceiros à estrutura familiar, a jurisprudência, de forma quase unânime, não lhes reconhece o exercício do poder de correção através do recurso a castigos corporais. Em bom rigor, estas pessoas ainda que titulares de um poder-dever de correção transmitido pelos pais dos menores a seu cargo, não podem, em momento algum, aplicar punições físicas. Quer isto dizer que, não só estes terceiros são titulares de um poder-

5

Acórdão do Tribunal de Lisboa de 12/10/2016.

Referimo-nos aqui ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15/01/2007 e ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/06/2013.

6

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dever corretivo limitado, como qualquer ação educativo que ofenda a integridade física da criança, poderá originar responsabilidade criminal e civil.

Resulta assim uma conclusão prévia. Segundo as Nações Unidas, integra o conceito de castigo corporal todo o castigo em que é usada força física com o objetivo de causar dor ou desconforto ainda que leve. Ora, aqui chegados temos então dois planos subjetivos distintos, a saber, quando os castigos corporais são exercidos pelos progenitores e familiares próximos e quando são exercidos por terceiros.

No primeiro destes planos a nossa jurisprudência e doutrina (como se verá infra) consagram um claro desvio à definição avançada pelas Nações Unidas ao reconhecerem aos pais o poder de infligir determinadas ofensas à integridade física das crianças. Para tanto, estas ofensas terão que ser adequadas, proporcionais e com fito educativo. A título de exemplo como tantas vezes é mencionado, pense-se no puxão de orelhas. Refira-se ainda que é posição generalizada da nossa jurisprudência que com o evoluir dos estádios de desenvolvimento cada vez menos se demonstra necessário ou adequado recorrer a castigos físicos.

Já no que concerne ao segundo plano abordado, a jurisprudência não reconhece, na esmagadora maioria das análises coligidas, qualquer inflexão à definição avançada pelas Nações Unidas. No entanto é necessário esclarecer que dificilmente o conceito de castigo corporal adotado pelas Nações Unidas pesará aquando de uma decisão portuguesa. Em boa verdade, os nossos Tribunais não reconhecem a terceiros o poder corretivo por questões legislativas internas. Explicando e remetendo para a Secção 1 deste relatório, a lei civil portuguesa apenas atribui o poder-dever de correção aos pais e familiares próximos da criança.

Pelo exposto, veja-se a seguinte transcrição de uma decisão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO DE 2 DE JULHO DE 2008: “Tem-se entendido que a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção. Colocam-se a este nível dúvidas sobre a proporcionalidade pedagógica dos castigos físicos e da sua compatibilidade com a dignidade humana do ser humano em desenvolvimento. Faz-se normalmente uma distinção dentro do direito de castigo consoante este seja exercido sobre crianças próprias ou de outrem. Os pais estarão em

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princípio legitimados ao castigo por força do poder paternal. Dado que o direito de correcção resulta da relação familiar entre pais e filhos, a transferência desse direito apenas poderá ocorrer relativamente a pessoas próximas da criança ou que gozem da confiança pessoal dos encarregados de educação. Considera-se, ainda, que o direito ao castigo nunca será exercido na presença dos verdadeiros encarregados de educação, uma vez que o direito destes últimos prevalece.”7

Prosseguindo, dos 23 Acórdãos analisados, 56,5% versaram sobre a aplicação de castigos corporais a menores por terceiro à relação familiar.

A 5 DE ABRIL DE 2006 O SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA condenou uma encarregada de um lar para crianças com deficiências mentais na pena de prisão de 18 meses suspensa na sua execução por um ano. Foi dado como provado que a Arguida amarrou, em duas ocasiões distintas, uma das crianças à cama por forma a evitar que esta acordasse os restantes ou perturbasse o seu descanso matinal. Além do constrangimento físico, deu-se também como provado que a Arguida dava palmadas a esta criança, bem como, a outras duas. Esclareçase ainda que o desferimento de uma das palmadas ocorreu em resposta a um dos menores ter arremessado contra a Arguida uma faca. Traçada a base factual, o Tribunal, distanciandose da corrente preponderante, aborda a possibilidade de neste caso estarmos perante uma manifestação lícita do direito de correção. Nesse sentido menciona o acórdão que: “Qual é o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola, que não dá uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que não manda um filho de castigo para o quarto quando ele não quer comer? Quanto às duas primeiras, pode-se mesmo dizer que a abstenção do educador constituiria, ela sim, um negligenciar educativo. Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem - pela sua primacial importância - que ser imposta com alguma veemência. Claro que, se se tratar de fobia escolar reiterada, será aconselhável indagar os motivos e até o aconselhamento por profissionais. Mas, perante uma ou duas recusas, umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educação. Do mesmo modo, o arremessar duma faca para mais a quem o educa, justifica, numa educação sã, o realçar perante o menor do mal que foi feito e das suas possíveis consequências. Uma bofetada a quente não se pode considerar excessiva.

Quanto à imposição de ida para o quarto por o EE não querer comer a salada, pode-se considerar alguma discutibilidade. As crianças geralmente não gostam de salada e não havia aqui que marcar perante elas a diferença. Ainda assim, entendemos que a reacção da arguida também não foi duma severidade inaceitável. No fundo, tratou-se dum vulgar caso de relacionamento entre criança e educador, duma situação que acontece, com vulgaridade, na melhor das famílias.”. Pese embora a decisão tenha ido no sentido de condenar a Arguida pelo crime de maus tratos face à malvadez demonstrada e inexistência de qualquer propósito educativo das punições. Em suma, deparamo-nos com o reconhecimento por parte do Tribunal que terceiros à relação familiar podem exercer o poder corretivo na sua vertente de aplicação de castigos corporais.8

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Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02/07/2008, veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/01/2009 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/10/2009.

8 Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 05/04/2006.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/01/2009.

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A 28

DE

JANEIRO

DE

2009

O

TRIBUNAL

DA

RELAÇÃO

DE

COIMBRA condenou uma auxiliar de

educação pela prática de três crimes de maus tratos a menor, a dois anos de prisão suspensa na sua execução por igual período. A Arguida foi ainda condenada ao pagamento de três indemnizações, respetivamente, 2.500,00 Euros, 2.000,00 Euros e 1.500,00 Euros, acrescidos de juros de mora vincendos. Foi dado como provado que a Arguida desferiu palmadas na boca às crianças, com cerca de um ano, que tinha ao seu cuidado procurando dessa forma obrigá-las a comer as refeições. Quando estas se recusavam ou expeliam/vomitavam a comida, eram obrigadas a comer o expelido, ou então, era a própria Arguida que, pelo uso da força, as obrigava a comer metendo-lhes a comida na boca com uma colher. É ainda referenciado no acórdão que algumas crianças apresentavam escoriações pelo corpo, sendo que, sempre que questionadas quanto à sua origem, imputavam as lesões à Arguida. Por seu turno, veio a Arguida alegar que as condutas adotadas serviam um fim educativo e que por isso seriam lícitas. Em concreto referiu a Arguida que: “10.0s actos imputados à recorrente devem ser tidos como lícitos, já que na educação do ser humano se justifica uma correcção moderada que poderá incluir castigos corporais ou outros.”. Tal tese não só não colheu como o Tribunal afirmou, perentoriamente, que a aplicação de castigos corporais em estabelecimentos de ensino consubstancia uma conduta reprovável.9

Questão mais tortuosa prende-se com a licitude dos castigos corporais aplicados por padrastos, sendo a tónica colocada na presença ou ausência do progenitor(a) aquando da aplicação da punição.

Nesse sentido se expressou o ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA DE 16 DE JANEIRO DE

2007 ao sufragar que “jamais funcionaria [o direito do padrasto a aplicar castigos

corporais de natureza educativa] no presente caso, por duas ordens de razões: em primeiro lugar, porque no momento estava presente a mãe e aquele direito, a assistir ao arguido, só poderia ser exercido na ausência da verdadeira detentora do poder paternal”. Em concreto o Arguido foi condenado pelo crime de ofensas à integridade física qualificados a pagar uma multa no valor 1.440,00 Euros. Nestes autos deu-se como provado que a ofendida foi agredida com um safanão e bofetadas pela Mãe e com murros na cabeça, face, tronco, pernas e, ainda empurrões, pelo seu padrasto. Quanto à ação da Arguida esta foi motivada pela insubordinação da filha que, inclusive, a insultou, tendo o Tribunal classificado o recurso ao safanão e à chapada como legítimo e integrável no seu poder/dever de correção. Já no que respeita ao Arguido foi dado como provado que agiu com o propósito único de lesar fisicamente a enteada.

Existe um padrão unânime de decisões sobre este assunto ou as decisões diferem entre os Tribunais. Explique como e porquê.

A esmagadora maioria da jurisprudência nacional reconhece aos detentores do poder dever de correção legitimidade para aplicarem

14

castigos corporais com fito educativo a crianças a seu cargo. Dito por outra forma, para o nossos Tribunais, os encarregados de educação podem recorrer a punições físicas para educar, em bom rigor, 82,6% dos acórdãos analisados sufragam esta posição. No entanto faça-se a devida ressalva que, paulatinamente, assistimos à mudança do paradigma, conquanto cada vez mais é mencionado pelos Tribunais portugueses as virtualidades de uma parentalidade positiva assente na palavra e no exemplo e não na palmada ou no puxão de orelhas. Dito por outra forma e citando uma decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de junho de 2013 “Actualmente, urge pôr o acento tónico no poder correctivo da persuasão, do exemplo e da palavra e na desnecessidade de causar dor física para corrigir, de forma a poder dar uma resposta satisfatória a este problema social tão disseminado.”10.

Face ao exposto e atento esta função pedagógica que os Tribunais portugueses vão demonstrando, as decisões do TRIBUNAL COIMBRA

DE

7

DE OUTUBRO DE

2009, bem assim, do TRIBUNAL

DA DA

RELAÇÃO

DE

RELAÇÃO

DE

LISBOA DE 12 DE OUTUBRO DE 2016 não configurarão uma exceção à regra, mas sim o culminar do que parece ser o trilho decisório que a nossa jurisprudência vem apresentando. Referem as mencionadas decisões: “O poder de correcção (e não direito de correcção) deve ser entendido como inserido no direito à educação nunca abrangendo o direito de agredir e de ofender a integridade física e psíquica dos filhos neste sentido, inequivocamente Cristina Dias, «A Criança como sujeito de direitos e o poder de correcção», revista JULGAR, n.º 4, 2008, p. 95 e 101. O direito à educação por parte dos filhos e o dever de educação, por parte dos pais não permite qualquer entendimento que passe pela admissibilidade de qualquer comportamento violento dos pais ou de quem exerce as responsabilidades parentais. Educar não significa punir mas sim ensinar e corrigir sem violência física ou psíquica. Por outro lado é preciso diferenciar o que será um eventual e legítimo poder correctivo em determinadas fases de crescimento, nomeadamente na infância ou em fases precoces da adolescência e a difícil compreensibilidade (senão mesmo inadmissibilidade) desse poder nas fases tardias da adolescência ou na juventude.”.11

“Entendemos igualmente, conforme plasmado em muitos documentos produzido no âmbito da Unicef, que, ante as práticas ainda massivas de castigos corporais no âmbito dos deveres de educação, e para mudar este estado de coisas, urge criar uma cultura de não violência para com as crianças, e de construção de uma barreira de consciencialização social e individual que afirme ser totalmente inaceitável em qualquer circunstância os adultos expressarem a sua vontade ou as suas frustrações na linguagem da violência.”12 10

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/06/2013.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/10/2009.

12 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/10/2016.

11

15

d) A jurisprudência é contrária à lei e às recomendações internacionais?

Se a questão for colocada de forma binomial, a resposta terá de ser afirmativa, no que concerne aos titulares do poder paternal, conquanto podem legitimamente recorrer a castigos corporais como instrumento educativo, respeitando as condicionantes já abordadas. A resposta já será em sentido diferente quando falamos de terceiros à relação familiar a quem esse poder é transferido.

Não obstante denota-se uma clara convergência entre as decisões dos Tribunais nacionais e as preocupações expressadas pela Comissão Europeia, Comité Europeu dos Direitos Sociais, bem assim, pelo Comité dos Direitos das Crianças no que concerne à aplicação de castigos corporais.

e) A jurisprudência refere-se à aplicação de mecanismos de procedimentos favoráveis às crianças?

Não.

16

III.

Análise da literatura Nacional.

A Constituição da República Portuguesa de 1976 acolheu expressamente

o direito das crianças à proteção contra o exercício abusivo da autoridade na família13.

A reforma de 1977 do Código Civil suprimiu do artigo 1884.º a expressão “pais com poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas”, consagrando neste artigo apenas o dever de obediência dos filhos em relação aos pais14. Tem havido uma evolução no sentido de um maior respeito pelos direitos do menor a par de um controlo mais apertado do exercício das responsabilidades parentais.

Nos termos do artigo 1885.º cabe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos.

Contido no poder-dever de educar parece continuar a subsistir um poder de correção como “poder de segundo grau que deve encarar-se sem caráter punitivo, dentro dos limites da autoridade amiga e responsável que a lei atribui aos pais e que, por isso, só pode ser exercido sem abusos, no interesse dos filhos e com respeito pela sua saúde, segurança, formação moral, grau de maturidade e de autonomia”15. “Tradicionalmente, são apontadas como medidas lícitas de correção as repreensões, a privação de um divertimento e os castigos corporais moderados”16, muito embora vários países europeus tenham proibido todos os castigos corporais infligidos pelos pais17.

13

Cfr. o artigo 69.º, n.º 2, da CRP de 1976.

GUILHERME DE OLIVEIRA e ROSA MARTINS, National Report on parental responsibilities: Portugal, CEFL, S. D., disponível em ceflonline.net/wp-content/uploads/Portugal-ParentalResponsibilities.pdf, p. 5-6.

15 JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, Lisboa: AAFDL, 2008, p.

301, e ARMANDO LEANDRO, Poder paternal…, cit., p. 126-127. Em sentido próximo, vide Idem, A Problemática da Criança Maltratada em Portugal, Aspetos Jurídicos e Judiciários, RMP, ano 9º, 1988, n.º 35-36, p. 62-63.

16 JORGE DUARTE PINHEIRO, ob. cit., p. 301.

17 SÓNIA MOREIRA, A autonomia do menor no exercício dos seus direitos, in Scientia Iuridica, nº 291, Tomo L, Set-Dez. 2001, p. 169.

14

17

O problema fundamental refere-se ao exato conteúdo de um direito de correção ou dever de educação no domínio dos castigos físicos18. A doutrina discute se a proibição de castigos corporais é absoluta, ou em que termos é admissível. A concluir-se pela admissibilidade dos castigos corporais com finalidade educativa, cumpre delimitar a fronteira entre aquelas condutas que ainda se podem ter como legítimas e as que constituirão ilícito e, mesmo, ilícito penal.

O artigo 31.º, n.º 1, do Código Penal, determina que o facto não será punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica, considerada na sua totalidade. De acordo com o n.º 2, será justificado o facto praticado no exercício de um direito. Existirá, nos dias de hoje, um direito de correção/dever educação dos pais em relação ao filho, que permita afastar a tipicidade ou a ilicitude dos castigos corporais moderados?

RECUSA ABSOLUTA DA LEGITIMIDADE DE QUALQUER TIPO DE CASTIGO FÍSICO. 18

Uma parte (minoritária) da doutrina portuguesa recusa a legitimidade de qualquer castigo corporal, mesmo que seja aplicado com finalidade educativa.

CLARA SOTTOMAYOR considera que o dever de educação dos pais veio substituir o direito de correção, esbatendo-se a distinção tradicional entre o adulto e a criança19. A autora critica a tolerância da nossa cultura em relação a certo tipo de castigos físicos 20 . Para alguns Tribunais o poder de correção constitui uma causa de exclusão da ilicitude dos castigos corporais, posição que a autora refuta: “O direito dos pais educarem os filhos não abrange o direito de os agredir, de ofender a sua dignidade, integridade física, psíquica e liberdade.

Se nós, os adultos, não temos o direito de nos castigar uns aos outros, quando 18

No sentido de que a doutrina continua a aceitá-los, GUILHERME DE OLIVEIRA, A criança maltratada, in Temas de Direito da Família, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 219.

19 MARIA CLARA SOTTOMAYOR, “Aquele que poupa a vara, estraga a criança”..., disponível em http://www.sindicatodascriancas.weblog.com.pt.

20 MARIA CLARA SOTTOMAYOR considera que “A convicção dos Tribunais em considerar este direito uma causa de exclusão da ilicitude, mais não significa do que um vestígio cultural da antiga patria potestas do Direito Romano, que criou um entendimento das relações pais-filhos, como relações de domínio” (“Aquele que poupa a vara, estraga a criança”, cit.).

erramos, e qualquer adulto erra e precisa de aprender, porque haveremos de ter o direito de castigar as crianças? Se comportamentos praticados entre adultos integram tipos legais de crime de ofensa à integridade física, ou de injúria, porque é que os mesmos factos são considerados lícitos, quando praticados pelos pais em relação aos filhos menores?”21.

A autora refere vários exemplos: castigos como fechar a criança num quarto, por recusar uma refeição, aplicar uma bofetada, ou um puxão de orelhas, dar um croque na cabeça, porque a criança não obedece às regras de etiqueta às refeições, representam uma lesão da integridade física das crianças, causando dor e humilhação22. A autora critica também a palmada “que os pais normalmente reclamam como um direito”, considerando que, “aplicada a crianças muito pequenas, por exemplo, na idade de 1 a 3 anos, sistematicamente, só porque se mexem e fazem barulho, como é normal nesta idade, não é socialmente adequada, nem beneficia de exclusão da ilicitude, porque não tem qualquer finalidade educativa, sendo apenas um sinal da impaciência dos pais”23.

Para esta autora, “o âmbito da licitude ou da adequação social deve ser restringido às situações em que o recurso à força serve para proteger a criança de si própria, como uma medida preventiva de um perigo ou de um dano concreto, e desde que os pais tenham tentado outras medidas alternativas e expliquem à criança os motivos da sua atitude.”24.

Assim, admite que os pais utilizem a força física para proteger a criança de si própria, colocando as hipóteses da criança que se recusa a pôr o cinto de segurança no automóvel, da que coloca os dedos nas tomadas, ou da que está em risco de cair de uma janela ou varanda. Sustenta, contudo, que o recurso à força física só será lícito se não exceder a proporção necessária para afastar a criança do perigo. Não estaremos aqui perante um castigo, mas antes perante uma medida protetora ou preventiva de danos25.

21 22

MARIA CLARA SOTTOMAYOR, “Aquele que poupa a vara, estraga a criança”, cit., loc. cit..

Existe um poder de correção dos pais? Lex Familiae, ano 4, nº 7, 2007, p.123-124.

Existe um poder de correção dos pais?..., cit., p.124.

24 Existe um poder de correção dos pais?..., cit., p.126.

25 Existe um poder de correção dos pais?..., cit., p.124.

23

19

Faz sentido esta distinção entre a contenção da criança, ou a sua proteção de um perigo, através do uso da força, e o castigo26. Em ambos os casos se recorre à força física, subsumível ao conceito de violência, lato sensu.

Mas na hipótese de o pai conter a criança, de modo a impedir que a mesma corra para a rua, ou coloque a mão num fogão em brasa, não se trata de um castigo corporal.

Porém, como qualificar a conduta do pai que dá uma palmada na mão da criança de três anos, que se prepara para meter os dedos numa tomada? Não poderá considerar-se um castigo físico, na medida em que não se verifica a mera contenção da criança? Será forçoso reconhecer, neste caso concreto, que a explicação não surtirá qualquer efeito, enquanto a associação do “sofrimento, puro e simples” à tentativa de exploração da tomada será eficaz. E, por outro lado, a contenção da criança (por exemplo, prender-lhe os braços para evitar que insista e meta os dedos na tomada) poderá implicar maior força física (com a correspondente dor física) do que a pequena palmada nas mãos... Poderá considerar-se ilegítima esta conduta do progenitor? Nem mesmo CLARA SOTTOMAYOR

a considera ilegítima, embora não a designe como

castigo 27 . Todavia, teremos de considerar esta conduta ao abrigo de um direito/dever de correção/educação/proteção dos progenitores em relação aos filhos.

CLARA SOTTOMAYOR acaba por reconhecer que “as perspectivas colocadas no extremo, todos os castigos são ilícitos penalmente ou todos são lícitos, devem ser rejeitadas, devendo aceitar-se uma concepção que admita a graduação entre a ilicitude civil e a ilicitude penal, conforme a gravidade, a proporcionalidade, e o contexto em que ocorrem os castigos, de acordo com a ideia segundo a qual irrelevância em termos penais não significa irrelevância jurídica”28.

Podemos então concluir que, apesar de esta autora sustentar que o dever de educação dos pais não abrange quaisquer castigos corporais, admite o uso de força física para proteção da criança (incluindo neste âmbito condutas

26

Existe um poder de correção dos pais?..., cit., p.124.

Existe um poder de correção dos pais?..., cit., p.126.

28 Existe um poder de correção dos pais?..., cit., p.126.

27

20

próximas do castigo físico). Por outro lado, reconhece que há uma graduação entre ilicitude civil e ilicitude penal, devendo assim certos castigos ser considerados ilícitos, mas não crimes - reservando-se esta qualificação para os casos mais graves.

Também CRISTINA DIAS sustenta que o dever de obediência dos filhos, previsto no artigo 1878.º, n.º 2, não implica a possibilidade de recurso à violência por parte dos pais e que este dever de obediência é mais moral que jurídico, não podendo

o

seu

cumprimento

obter-se

coercivamente

29

.

Para

esta

autora, educar não significa punir, mas ensinar e corrigir sem violência física ou psíquica.

Admissibilidade da justificação de certos castigos físicos através do exercício de um direito de correção.

Para TAIPA DE CARVALHO os castigos corporais, mesmo quando aplicados a menores com uma finalidade educativa/corretiva podem constituir violência doméstica (artigo 152º CP) se forem graves ou reiterados 30. Porém, admite expressamente a possibilidade de exclusão da ilicitude dos castigos corporais e outros, tais como as privações de liberdade31, desde que, em relação a cada situação concreta, possamos afirmar que tais castigos são necessários, adequados, proporcionais e razoáveis, nunca podendo tratarse de castigos graves.

FIGUEIREDO DIAS sustenta também a tese da justificação dos castigos aplicados com finalidade educativa, criteriosos, proporcionais e moderados32. Este autor não concorda com a aplicação, neste contexto, do princípio da adequação social, por entender que toda a ação educativa deve processar-se através de condutas formalmente atípicas e que as condutas em causa atingem bens jurídicos do menor, nomeadamente a sua integridade física, não promovendo, assim, a sua realização: “a situação com que aqui se depara 29

A Criança como sujeito de direitos , cit., p. 99.

TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, Coimbra EDitora, 2º edição, 2012, anotação ao artigo 152º, p. 516.

31 TAIPA DE CARVALHO, Comentário…, 2ª edição, cit., p. 520-521.

32 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.

506-507.

30

CRISTINA DIAS,

21

é eminentemente conflitual e deve ser solucionada, por conseguinte, no domínio de uma eventual justificação.”33.

Para alguns autores a questão não se coloca no plano da justificação, mas da irrelevância penal da conduta dos pais.

Esta tem sido a posição sustentada por PAULA RIBEIRO DE FARIA 34.

Em relação ao uso de determinados meios de correção (cinto, vergastadas, objetos cortantes), à aplicação de castigos por quem não detém o poder paternal, e a castigos físicos que ultrapassem a fronteira das ofensas à integridade física simples, o juízo de ilegitimidade é absoluto, não sendo possível a sua justificação em nome de uma finalidade educativa, ou a exclusão da tipicidade.

No entanto, estando em causa “intervenções táticas” de reduzida intensidade, aplicadas com finalidade corretiva, a valoração jurídico-penal pode ser outra, sendo de admitir a exclusão dos tipos legais de crime de ofensas à integridade física simples (artigo 143º), e de violência doméstica (artigo 152º) 35.

Sob o ponto de vista do crime de violência doméstica, a pequena palmada aplicada pelos pais não se deixa configurar como forma de violência. Ao nível das ofensas à integridade física simples, entende que não se pode admitir o direito de correção como uma causa de justificação, mas que muitos castigos aplicados pelos pais às crianças com finalidade educativa não traduzem sequer uma ofensa à integridade física no sentido pretendido pelo legislador.

Esta conclusão, que decorre do funcionamento de um critério de adequação social36, dependerá da análise das circunstâncias concretas do caso, e terá que ser feito pelo Ministério Público, ou pelo juiz, tendo em conta os seguintes critérios subjetivos e objetivos de valoração: 1. O castigo só pode ser aplicado por quem detém o dever de educar de acordo com o Código Civil.

Estamos a falar dos detentores das responsabilidades parentais e, em FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal…, cit., p. 506-507.

A adequação social da conduta no Direito Penal, Porto, Publicações Universidade Católica, 2005, cit., p. 595.

35 RIBEIRO DE FARIA, PAULA, A lesão da integridade física e o direito de educar…, cit., p. 913 e 921.

36 Sobre a teoria da adequação social, vide, por todos, RIBEIRO DE FARIA, PAULA, A adequação social da conduta no Direito Penal ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da lei penal, cit..

33 34

RIBEIRO DE FARIA, PAULA,

22

casos excecionais, dos tutores; 2. É necessário que se deixe apurar uma intenção educativa ou corretiva associada ao castigo que represente o inverso do dolo de ofensa ao corpo ou à saúde do menor. Os pais não podem atuar com base em raiva, descontrolo, ou vingança, mas com o objetivo da formação da personalidade do menor. 3. O castigo deverá ser objetivamente dirigido ao cumprimento de uma finalidade educativa. 4.

Deverá ser proporcional ao objetivo pretendido, o que obriga a ter em conta a idade da criança, a sua maturidade, o motivo que determinou a aplicação do castigo, e a própria constituição física do menor. Nunca se pode prescindir da valoração global das circunstâncias do caso em ordem a concluir pela adequação social do castigo e pela atipicidade do comportamento do educador. Sendo esta a solução da autora no plano penal, dadas as exigências de dignidade e necessidade penal dirigidas à sua intervenção, não deixa de admitir que outra possa ser a resposta de outros ramos do ordenamento jurídico, designadamente do direito civil em sede de defesa dos direitos de personalidade do menor37.

Além disso, sublinha que a preocupação com a proteção da criança contra os riscos envolvidos na aplicação de castigos físicos deve estender-se a outro tipo de castigos: privativos da liberdade, lesivos da honra, e outros, que podem ter efeitos tão ou mais nocivos que os castigos físicos sobre a saúde, o bemestar psicológico e o desenvolvimento global do menor.

Em sentido próximo ELISABETE FERREIRA sustenta que os pais detêm um poder-dever de educação, considerando que, embora esta educação se deva basear no

respeito pela integridade física e psíquica da

criança, permite o recurso ao castigo corporal leve 38 . Não vale aqui o argumento de que entre adultos tal comportamento seria sempre considerado típico (criminoso). De facto, se aplicado entre cônjuges, o castigo corporal seria sempre formal e materialmente típico, pois inexiste entre cônjuges qualquer poder-dever de educação, que a ordem jurídica reconhece aos pais, em relação

37

RIBEIRO DE FARIA, PAULA, A adequação social da conduta, ob.cit., págs. 596 e ss..

ELISABETE FERREIRA, Violência parental e intervenção do Estado: a questão à luz do direito português, Porto: Universidade Católica Editora, 2016, p. 222.

38

23

aos filhos. A mesma conduta, do ponto de vista material, assume aqui diverso significado social e jurídico.

Porém, só serão socialmente adequados castigos muito leves, nos estritos limites propostos por PAULA RIBEIRO DE FARIA, através da análise de todas as circunstâncias do caso concreto, em especial: a finalidade do castigo, a sua indispensabilidade, adequação e proporcionalidade para a educação do menor, a sua não reiteração, a idade do menor, e a sua constituição física e maturidade, entre outras.

Assim, esta autora conclui pela adequação social de alguns castigos corporais, salientando que a solução depende, decisivamente, do contexto sócio evolucional. Quando se adere à ideia de adequação social fazemo-lo num determinado tempo e lugar. Hoje, consideramos razoável o apelo a este princípio, neste contexto do direito/dever de educação dos pais, apesar do receio de subjetividade na sua interpretação/concretização. “Desconhecemos, porém, o sentido exato e a velocidade com que se fará o curso da evolução social no nosso país, a que o Direito não poderá ficar alheio, o que poderá significar, a breve, médio, ou longo prazo, afirmação diversa39.

CONCLUSÕES: i.

No conteúdo das responsabilidades parentais encontra-se um poderdever de educação dos progenitores em relação aos filhos, que abrange também a correção, interpretada no sentido de favorecimento da repreensão não física (advertência, explicação, limitação de diversões, etc) em relação aos castigos corporais, que deverão ser, cada vez mais, um recurso extremo, não habitual, e de intensidade diminuta.

ii.

Assim, há consenso em relação à ilegitimidade de castigos graves (considerando os meios usados, as consequências da conduta, o contexto em que é aplicado e o grau de reiteração da conduta) e de castigos sem finalidade educativa.

39

Elisabete Ferreira, Violência parental…, cit. p. 253.

24

iii.

Também há consenso quanto à legitimidade do uso de força (de modo proporcional, adequado e limitado ao estritamente necessário) para proteção da criança face a perigos, não existindo nestes casos um castigo.

iv.

A maioria da doutrina aceita a não responsabilização jurídico-penal do progenitor que aplique um castigo leve, proporcional e razoável, com finalidade educativa, embora baseando-se em fundamentos diversos: justificação, por apelo ao direito de correção (inscrevendo-o no exercício de um direito do artigo 31º, nº 2 b), do CP) ou irrelevância penal da conduta em nome de um princípio de adequação social, considerando a tolerância social deste tipo de comportamentos.

v.

Na verdade, se todos os castigos corporais (aplicados pelos pais a menores que consigo coabitem) se encontram formalmente a coberto da tipificação do

artigo 152.º,

nem

todos se

poderão

considerar

materialmente típicos (criminosos). Este entendimento não parece contrário aos compromissos internacionais a que o Estado português se encontra vinculado, pela simples razão de que aqueles castigos que se considera não serem materialmente abrangidos por este crime não poderão ser entendidos como atos de violência, maus tratos, não correspondendo à ratio do crime de violência doméstica.

vi.

Já se poderia questionar se tais comportamentos seriam enquadráveis no crime de ofensas corporais simples (artigo 143º), por se tratar de crime menos grave. Há, na verdade, castigos corporais que, não preenchendo materialmente o artigo 152º, são enquadráveis no artigo 143º (ofensas corporais simples) ou no artigo 145º (ofensas qualificadas por uma culpa agravada tendo em conta a relação parental). Porém, no caso de se verificarem todos os critérios enunciados (lesão muito leve, finalidade educativa, proporcionalidade) a maioria da doutrina considera não haver crime de ofensas corporais - apelando à exclusão da ilicitude (justificação) ou à adequação social.

25

vii.

Alguns autores admitem, porém, que apesar de não haver ilicitude penal, possa subsistir uma ilicitude de outra índole - designadamente civil - tendo em consideração a gravidade do crime e o princípio da subsidiariedade da intervenção penal (Direito penal como a ultima ratio da intervenção do Estado).

viii.

No fundamental parece existir um consenso relativamente generalizado nesta matéria, embora o seu enquadramento varie consoante os autores.

Existe de igual forma consenso sobre a necessidade de promover uma parentalidade positiva, baseada na confiança, no diálogo, na advertência e na aplicação de castigos e proibições que não impliquem o uso de força física (privação de certos divertimentos, por exemplo). Por outro lado, deve também advertir-se para a gravidade de castigos que não implicam o uso de força física, mas que podem ter consequências psicológicas muito negativas: v.g. humilhações repetidas, privações de liberdade duradouras.

26

ix.

A doutrina portuguesa tem-se debruçado muito pouco sobre a problemática da inflição de castigos fora do domínio familiar, mas é, no essencial,

convergente

ilegitimidade.

no

sentido

do

reconhecimento

da

sua

27