

[AMOSTRA]
A todos os meus colegas, em especial à ‘Patrulha do Chai’, e professores da escola mais antiga do mundo e aos que por esse mundo fora vão-se dedicando a uma prática consciente do yoga, seja ele físico ou apenas do conhecimento.


1
MÊS
NA ES COLA DEYOGA
MAIS ANTIGA DO MUNDO c/ vegetais q.b.

PREÂMBULO
Jaipur, 24 de Fevereiro de 2019
A HISTÓRIA COMEÇA EM FINAIS DE NOVEMBRO de 2017. Estava há quase um mês na Índia, também aqui em Jaipur, e tinha mais trinta dias de sobra no visto antes de voltar para casa, então na Tailândia, mas sem qualquer propósito definido para eles - nem sequer tinha pensado nisso. Voltar para casa não, claro. O primeiro mês tinha sido dedicado ao trabalho e a um curto período de lazer, mas para o segundo apenas comecei a conjecturar possibilidades quando o senti aproximar. No momento não tinha nenhuma ideia precisa, mas sentia que deveria fazer bom proveito desses dias vindouros que ali me contemplavam expectantes. Tinha cinquenta e um anos e uns trinta sem algo remotamente aparentado a actividade física digna desse nome no currículo, por isso o ‘corporal’ teria entrar na equação, mas não só. Tinha a ideia de ter lido algures precisarmos de um mínimo de trinta dias para mudarmos hábitos de vida - deixar de fumar, mexer mais, comer melhor, pensar melhor, enfim, as vulgaridades do costume. Como já coleccionava várias tentativas anteriores frustradas na tentativa de lidar com uma, ou várias, dessas bagatelas mas nunca me tinha deparado com a possibilidade de ter um mês escancarado para dedicar ao combate, apeteceu-me experimentar algo mais intenso. Tudo parecia alinharse de feição para eu finalmente dobrar o Bojador da inactividade e de outros maus hábitos companheiros, como fumar. Foi assim que a ideia de “internamento” numa qualquer instituição promotora de hábitos saudáveis começou a tomar forma. Não era um desejo hipster de retiro, massagens e ‘aum chanti chanti’ a atrair-me mas algo mais real, onde realmente aprendesse e evoluísse alguma coisa.
Não fazia ideia do quê, claro.
Durante o curto período de lazer tive a sorte de ficar alojado numa encantadora propriedade, com um passado não muito remoto como residência de marajás e uns proprietários muito especiais, e de efectuar uma visita relâmpago a Pushkar. Neste triângulo geográfico-emocional, o plano começou a tomar forma e prolonguei o aluguer da Enfield em que cavalgava há já uns dias mas apenas nos limites de Jaipur, onde aprendi, entre muitas outras coisas, que nunca devemos parar num cruzamento atrás de um camelo. Sim, dos genuínos não como os que pululam pelas estradas portuguesas. Mas isso seria outra história, lamento.
Como bom ignorante, nunca tinha ouvido falar de Pushkar mas o nome soava-me a terra fora do normal e a requerer máxima atenção. Teria sido, quiçá, diria eu depois, influência de Brahma. Consultados os oráculos do viajante, leiam-se mapas pois muito raramente investigo um destino preferindo deixar a descoberta para a chegada, apercebi-me de um lago, extremamente bem vindo naquelas terras secas de ar seco, de ficar a apenas a cento e cinquenta quilómetros de distância, e da possibilidade de retornar por outra estrada, pois detesto fazer caminhos inversos, e não quis saber de mais nada. ‘Para quê? Ia para lá, nem que a vaca (sagrada, claro) da vizinha tossisse’. O meu interesse é sempre mais geográfico: se tem árvores ou não, se é perto do mar, ou não, se há rios, se é quente, frio, seco ou húmido, ou se fica na rota que me é mais interessante no momento e Pushkar validava diversos intentos. Hoje, proclamo-a como terra a visitar, lugar de peregrinação das mais variadas índoles e proveniências e último “refúgio” de Brahma, após a maldição da ciumenta Savitri. Mas isso é hoje, na altura o grande catalisador da viagem não era a peregrinação (apesar de todas as viagens o serem) mas a necessidade de estrada e de vento na venta, essa sim a peregrinação que me arregimenta, desejo sempre muito superior ao destino, esse lugar trivial que encontramos por todo o lado. Ainda conjecturei Agra e a sua casa branca dita por amor erigida apesar de soar mais a ego e ostentação, mas partir as costas para
basbaque de um mausoléu, Mahal1 ou não, com mais ou menos Taj, alegadamente a cair para o lado, quiçá por ironia dos deuses para os quais o amor não se mede às pedras, ou pela mais do que provável dissolução da paixão aos pés, bafos e flashes dos visitantes, não era atracção comparável à ideia de uma terra com lago, mais perto, de nome bem soante e misteriosa. Além disso, Agra ficava a trezentos quilómetros por estradas escaldantes e a minha depauperada condição física não me entusiasmava a planos para lá dos cento e cinquenta, até porque o regresso teria de acontecer um dia depois e aí já estariam os trezentos nas costas em menos de vinte e quatro horas. Seiscentos quilómetros iriam ser dose e, para aventura e reflexão, naquela altura chegava. Como se sabe, andar de mota não é apenas ir sentado e na Índia, com estradas novas ou não como são as do Rajastão, muito menos. Por tudo isso, a viagem ‘Pushkar, Rajastão afora’, mais camião menos camião, mais camelo menos vaca, soava muito melhor quando comparada com a ida para norte onde encontraria a mesma “fauna” rodoviária e uma “Meca” de selfishers, mais o regresso à poluição de Deli que se estende muito para além fronteiras, e que é literalmente sufocante. Um mês antes tinha-a experimentado ao vivo e a cor (apenas matizes de castanho) e dela a custo fugido, pois só cerca de uma hora depois o táxi saiu finalmente da tenebrosa nuvem da capital indiana, produzida pela poluição inerente da urbe mas profusamente adensada pelas imensas queimadas a norte, no Punjab, recurso utilizado pelos agricultores como forma mais barata de limpar as terras para uma nova sementeira - um terror! Pela distância e localização geográfica, Agra podia perfeitamente estar sob o mesmo manto e não valia a pena mais esse risco. Udaipur era uma possibilidade credível, lago bem maior do que o de Pushkar, mas também ficava localizada na marca dos trezentos quilómetros. Pushkar! Comprei o ‘livro’ pela capa mas a história não desiludiu. “Flor-de-lótus-azul”, é esse o significado do sânscrito - essa língua de tantas e inspiradoras fantasias até à altura, pois desconhecia como dali a poucos dias, 1 Taj Mahal significa Palácio (Mahal) da Coroa (Taj)
‘irritação’ também faria parte das minhas associações ao remoto idioma - Pushkar, atraiu-me e para ela peregrinei a cavalo na ‘minha’ Interceptor.
Se o aliciamento foi bem sucedido pela beatitude da minha ignorância, Pushkar não cometeu a desfaçatez de apresentar-se como mera sereia a lançar cânticos aos mares de areia. Antes pelo contrário, recebeu-me afavelmente e com cortejos de camelos fazendo jus às suas nobres origens, garantidas pela lenda, de uma pétala de um lótus azul tal como os incontáveis sinos dos incontáveis templos nos recordam constantemente. O lago, bem o lago… Em resumo, foi uma viagem a merecer um capítulo muito seu, não fosse outro o propósito desta escrita. Porém, durante o ir e vir a Pushkar a ideia para o mês de ‘internato e cura’ começou a tomar forma. Desconheço se por inspiração de Brahma, se por via das muitas outras divindades à solta no local, algures no meu sotão acendeu-se uma luz e decidi investir o mês restante a fazer yoga. Poderia ter sido Shiva, também, dito Adi Yogi (primeiro yogi) e já na altura no meu encalço - lá iremos. Certo era a luz parecer ter a frequência e intensidade correctas pois o ático estava mais iluminado e yoga seria então a aposta. Apenas restava saber onde. Estar na terra onde a prática surgiu há milénios pode sugerir facilidades, mas desiludase quem assim pensar: é a batalha da destrinça entre o trigo e o joio, entre gémeos idênticos, entre gato e lebre esfolados e decepados no gancho do açougueiro, entre notas chinesas verdadeiras e falsas, nas trevas de uma tulha gigante, sem instrumentos e durante a monção. A questão principal era não fazer ideia ao que ia, nem qual experiência me aguardava, nem se era uma boa ideia. Não sendo mau por si só, era o que era e não era grande coisa.
Também não me detive muito em hesitações e considerandos.
As linhas mestras do plano estavam bem definidas: “yoga - um mês - internado”. Como dizia o outro na anedota “o plano é bom, não muda o plano”, mas tal como o sujeito na história teimava em não acertar nas escolhas, eu via-me em palpos de artrópode com a disparidade da oferta. Na Índia, escolher uma escola de yoga sem
qualquer tipo de referências ou conhecimento da área, pode ser dantesco, frustrante, ou então segue-se para os Rishikesh e Goas da vida a preços ‘ocidente premium’, onde a maioria dos estrangeiros acabam por desaguar ou, melhor dito, esparramar. Livrai-nos de tais sítios onde a autenticidade é frequentemente feita ao reverso, ou seja, para cumprir expectativas ficcionais e não desígnios funcionais, estes porventura menos sedutores mas essenciais, não necessariamente ‘incensiais’. Há muita escolha, muito mestre, muito guru, muita ratoeira, muito ashram, muita barba, muitos imbecis e, com certeza, muitas coisas boas e, esperava eu, alguma paz e conhecimento para serem obtidos. Vá lá saber-se onde... Encolhi imaginariamente os ombros e insisti na busca. Cheguei a um núcleo duro de escolas candidatas, umas três ou quatro em terras completamente diferentes. Uma delas, pela filosofia proclamada, aportava mais peso na minha avaliação pois destacava a importância do equilíbrio da mente em detrimento do yoga como um mero exercício físico. Só tinha um senão: ficava numa mega cidade não sugerindo, por isso, qualquer tipo de paz associada. Ainda assim a ideia daquela escola agradava-me mas a dúvida persistia. Também era a mais barata e, tal como o pobre minimamente alerta suspeita, este precisado estava razoavelmente desconfiado pois de esmola pensei tratar-se, mas tal suspeição verificar-se-ia uma convicção espúria de ignorante. De regresso a Jaipur o sotão iluminou-se um pouco mais e atalho aqui para explicar o porquê de antes ter adjectivado de ‘especiais’ os proprietários da tal casa de marajás, se permitido me for o parêntesis que se segue. (...)
( )( Cheguei tarde à propriedade em fria e escura noite de Novembro após uma “fuga” mais ou menos ordenada de um suposto hotel patrimonial, arrogando-se este de constituir orgulhoso exemplo do património cultural local mas era, mais precisamente, um logro à beira da estrada plantado, não longe da linha férrea, a julgar pela cacofonia ferroviária que a espaços se infiltrava pelo tecto ‘lono-vinílico’ do bungalow de pedra, transportada pelas correntes de ar frio congeminadas na noite do deserto. Com algum esforço vim a perceber tratar-se uma interpretação livre do património cultural do Rajastão, do acampamento no deserto. ‘Aldeia cultural’, apregoava ufana a gerência do estabelecimento, onde seguramente nenhum cameleiro se abrigaria, consciente de estar mais protegido das rajadas invernosas, ou das descargas sanitárias, enroscado na areia e aconchegado ao seu camelo. A verdade é que o infame estabelecimento de patrimonial teria apenas a terra onde assentava e ali não acampava eu, desse lá por onde desse. Após várias tentativas e telefonemas à procura de novo abrigo enquanto discutia com a estimada gerência da “Aldeia Cultural” sobre a validade do pagamento de uma noite não dormida em acampamento de má catadura, consegui, enfim, descobrir uma outra casa, esta sim de aparência verdadeiramente patrimonial, ou assim julguei - na Índia, fui aprendendo com a experiência, os hotéis dividem-se em dois grupos: os maus e os bons e nada de permeio, sendo que os bons são quase todos o triplo ou muito mais do que os outros todos e, frequentemente, muito mais puxados do que em qualquer outro lado, cidades onerosas incluídas. Esta nova aposta, pelo preço, pelas críticas e mais uns quantos sinais parecia-me dos hotéis bons e
não era assim tão longe, uns 20 quilómetros apenas. Após vários telefonemas sem resposta, pois o sistema informático não aceitava a reserva tão em cima da hora, o dono atendeu-me finalmente. Era tarde, fez-me logo notar isso e da raridade de atender telefonemas àquela hora, mas, apesar das reticências, lá aceitou o novo hóspede. Eu já estava de moto, pois a ida a Pushkar aconteceria no dia seguinte, e a mala seguiu à frente num táxi. Como disse, não era cedo e mais tarde ficou pois, para além de alguns enganos nas escuras estradas secundárias por onde ia, numa ainda mais escura encruzilhada num perfeito descampado o Google Maps começou a ter sérias dúvidas, eu a ter dúvidas sobre o Google Maps e sobre as opções expostas à minha frente, e o proprietário mais dúvidas parecia ter mas sobre a minha condição mental, algo que me ia sendo claro nas poucas vezes em que conseguia voltar ao contacto por falta de todo o tipo de redes, e as dúvidas que com ele tentava desfazer. A páginas tantas chegou mesmo a sugerir-me cancelar a reserva. Não quis acreditar em tamanha condenação, preguei a minha candidez e roguei compreensão, mas entendia bem o alvoroto do meu interlocutor. Afinal de contas, um suposto hóspede desconhecido e sem referências, tardio, estrangeiro, de mota (!) a ligar-lhe para se orientar, a enviar malas de táxi (entretanto chegadas há uma meia hora), não seria uma situação corrente e de cozimento fácil. Alfim, tudo se resolveu e fui pescado a uns meros cem metros da estrada de acesso à propriedade (um trilho de areia, daí as minhas dúvidas), por um empregado enviado para salvar o viajante sem abrigo e, por aquela altura, apropriadamente gelado como um rajá, dos fresquinhos e não dos soberanos. Enfim, tudo isto para dizer ter a estadia neste maravilhoso local sido tudo menos planeada mas, pelos vistos, também na Índia as divindades aparentam escrever direito por linhas tortas. Chegado, sou acolhido por um casal em idade de reforma e excelente trato, primeiro com alguma reserva (quem seria o louco?), mas rapidamente a situação veio a transformar-se num perfeito acolhimento indiano com chai e tudo! A casa, uma majestosa construção Haveli tinha sido
erigida num quadrado em torno de um espaçoso pátio onde uma piscina de águas convidativas apesar do frio da época assumia figura central, tudo rodeado por um misto de jardim e paisagem natural não deixando o complexo dúvidas quanto às suas aristocráticas origens apesar da noite escura que nos envolvia. Já no acolhedor (e quente!) quarto deparo com uma brochura onde a história da casa e da família são reveladas notando-se no relato grande preocupação com a desigualdade social, para mim o tópico principal de discussão política em qualquer lado, senão o único a valer a pena. Achei feliz a coincidência e, mais tarde, a dona da casa, pessoa gentil e de fino trato de quem fiquei amigo até hoje, e conhecedora das coisas e da vida veio a dizer-me ter sido esse o tópico principal da vidas académicas tanto dela como do marido, ela em ciências sociais, ele em economia - quiçá também um dos motivos a concorrer para o encontro de ambos, mas tal não me atrevi a perguntar. Confessoume ela, isso sim, ser a propriedade muito menor hoje pois o sogro, e também o marido, foram doando terra aos camponeses da região. Não equitativamente, mas em função do número de filhos em cada lar, entendendo essa como a forma mais correcta de aplicar a ideia de redistribuição de riqueza. “Muitos camponeses hoje têm mais terra do que o meu marido”, garantiu-me a senhora, notando-se um ar de orgulho e mesmo algum gozo ao dizê-lo.)
(...) Foi então no regresso a este oásis rajasthani de seu nome Savista, quando as minhas dúvidas foram quase todas dissipadas. Após regressar de Pushkar confessei o meu plano de internamento à dona da casa, por sua vez promotora de aulas de yoga ad-hoc na propriedade e, para meu espanto, disse-me ter crescido e passado quase toda a sua vida activa na vizinhança da escola a atrair-me mais. Conhecia a família proprietária, garantindo-me ainda trataremse de pessoas sérias a proporcionarem cursos muito respeitáveis. “Humilde mas genuína”, assegurou-me. Estava decidido. No dia seguinte partiria para Bombaim. Só havia um problema: o único programa de um mês disponível - como mais tarde perceberia ser prática geral - era o Teachers Training Course, normalmente conhecido pela sigla TTC. Ou seja, eu com uma história de yoga de meia dúzia de dias de actividade na remota celebração do aniversário de um qualquer rei obscuro, e flexível como um tijolo azul chinês, ia agora tirar um curso onde as possibilidades, formais e factuais de me ver autorizado a ensinar pessoas - e crianças! - trinta dias passados existia. Eu... professor de yoga! Ia para uma escola que proclamava a mente ter importância igual, ou maior, do que o corpo, é certo, mas ainda assim... Hoje continuo a achar uma boa piada mas na altura achava-a tremenda. Valeu uma amiga de Bombaim, pessoa razoável e bem informada, ao afiançar-me da normalidade do TTC, para não me preocupar, confirmou o prestígio da escola e até lhes telefonou para assegurar a dignidade do tratamento, pois na Índia, como já tinha percebido, nunca é demais assegurarmonos das coisas serem pelo menos próximo do prometido e o conhecimento dela sobre a escola não vinha da experiência pessoal. Tanto como, apesar disso, a hospitalidade ser um assunto sério para os indianos - sim, a lógica, a nossa lógica se é que tem alguma lógica não é propriamente um prato popular na Índia. Mas tudo parecia bater certo. A ‘papelada’ foi electronicamente despachada em cima do prazo, surpreenderam-me ao aceitarem a inscrição sem me avaliarem o estado mental e inscrevi-me na versão internato. O plano estava em marcha: um mês - yoga - internado, ‘Não muda
o plano!’. Tinha agora uma camarata à minha espera algures em Bombaim, a perspectiva de me transformar num monitor de yoga e duzentas horas a fazer sabe-se lá o quê, de segunda a sábado e durante um mês. Entretanto, recebo a notícia de uma amiga vinda de Portugal a chegar mais ou menos nos mesmos dias à cidade para uma meditação Vipassana. Eu iria estar em Santa Cruz - português, entendi como mais uma coincidência recreativa - e ela no bairro do lado. Desengane-se, todavia, quem julgar que ‘bairro do lado’, em Bombaim, significa ‘já ali’ - Nada disso! Geograficamente pode até ser perto, mas na prática é sempre longe por graça dos inomináveis engarrafamentos da cidade - mas os sincronismos pareciam estar todos em alta. Não poderia dar raia, ou podia?...
Já tinha estado na Índia antes, estava no país há um mês, mas em Bombaim era a primeira vez. Localizei a escola no Bairro de Santa Cruz e só aí percebi ficar ao lado, mesmo ao lado (!), do aeroporto internacional, o único da cidade. Lá se ia o descanso. “Não muda o plano...”, suspirei mas a ‘asneira’ estava feita. Agora restava-me abraçar a situação e deixar-me de “ses”. Como chegava à cidade dois dias antes do início das aulas escolhi um Airbnb a cerca de quatro quilómetros da escola - uma distância, entendia eu, razoavelmente curta, simples a pé, um pulo num qualquer táxi e assim aproveitava para apreciar as vistas de outra zona, pois em breve estaria internado com os dias repletos de ciência yóguica, ou assim parecia. Mas foi puro equívoco a ideia da simplicidade em chegar, seja onde for em Bombaim, utilizando qualquer meio com rodas ou mesmo a pé, perto ou menos perto. Foi aí que rapidamente percebi como o tal trajecto simples e rápido poderia levar um tempo muito superior à previsão de um pessimista. Quatro quilómetros em Bombaim é como quarenta noutro sítio qualquer! Fui a pé. Não foi propriamente mais fácil, mas em duração talvez tenha conseguido bater algum recorde de ‘riquexás’ (assim designados no lingo local, ‘xás’ e não ‘xós’) e valeu - como sempre - pelo prazer de caminhar por uma cidade a estrear. Um par de chais e um périplo fluido e animado depois, ao sair do dédalo de ruas onde me vinha a entreter há um
bocado e prestes a entrar no Bairro de Santa Cruz e da zona onde a escola se encontraria, a cena mudou radicalmente de figura. Na altura vertia o sol - que na Índia parece sempre maior - a pique e desaguei na berma de uma circular com umas quatro faixas para cada lado repleta de veículos histéricos, estridentes, a materializaremse nas mais variadas formas e sítios. Imediatamente a seguir, vislumbro do outro lado, mesmo ali do outro lado das faixas todas, a vedação do aeroporto. Não muito longe, para além da rede, vislumbrava-se o final da pista, e o da ‘picada’ também’, diriam no Brasil e pensei eu em Bombaim. O mapa não tinha enganado e aí estavam os passarões esgargalados a confirmarem a presença tenebrosa do aeroporto, abanando tudo e todos possuidores do mínimo de massa susceptível de chacoalhamento, motores esganados gritando bem alto a convicção de do chão irem libertarse - pesem as naturais dúvidas a assaltarem quem os vê de baixouma convicção, a dos sentados no bichorro, quiçá de intensidade idêntica ao meu desejo de não os ver estatelar-se aos meus pés. Deve ser isso a manter os aviões no ar: a convicção das almas sentadas lá dentro de irem voar versus a dos aterrados cá em baixo de não irem levar com o aparelho na mona. Essa oposição de forças deve gerar algum efeito de suspensão e será mais o equilíbrio daí gerado do que qualquer outra teoria de levitação a permitir àquelas manilhas metálicas sofisticadas voarem. Não vejo outra possibilidade. À sua passagem, nem o bruaá descontrolado e genial de uma via rápida de Bombaim associada a vozes humanas, de animais, motores, buzinas, mais buzinas, cortejos nupciais e religiosos, cornetas, trombones, tambores, música de bollywood, mais umas quantas buzinas e de tantos outros sons a necessitarem de infinitos canais na mesa do sonoplasta excêntrico dedicado a formular uma composição diferente para o som urbano da capital de Maharashtra; mas nem essa cacofonia isenta de grilhetas consegue superar em decibéis as invenções dos engenheiros da Rolls, ou da GE ou do ‘raio c’os parta a todos’, o meu firme desejo naquela altura. ‘O estado mental é a maior preocupação da escola’,
pespegavam eles no website. ‘Pois sim’, pensei, adivinhando já a neura de trinta dias à beira do inominável Chhatrapati Shivaji International, o qual cinco escassos minutos após as apresentações já ameaçava tomar o posto de némesis de estimação. Iniciava-se com gala o mês de cura, ou seja, comigo, qual capitão Haddock do Seixal, a lançar inúmeras pragas sobre uma quantidade infindável de desconhecidos, onde se incluíam não apenas os engenheiros responsáveis pelos motores daquelas banheiras de alumínio, mas toda a gente sequer remotamente ligada à existência de aviões a motor, gajos do catering, “follow me’s”, todos! Enfim --- Atravessada a zona de conflito lá fui pacificando a mente - quiçá influência da escola pois até emprestava o nome à própria rua onde se erguia - e, em pouco tempo, a alucinante circular e o rabo do aeroporto deram lugar a um bairro antigo, o lado este do Bairro de Santa Cruz junto à estação, a baixa do bairro. Em Bombaim, ‘Oeste’ - mais perto do mar - é fino, ‘Este’ não é fino. Como em todo o lado, variando os cardeais, assim varie a localização mar, que não só para nós portugueses é sinónimo de fuga e êxtase. Mas comparando a zona mesmo ali à babugem de onde acabava de chegar com esta à qual me aproprinquava, era tudo muito mais ameno, quiçá paradisíaco tendo em conta o contexto, percepção seguramente inflaccionada pelo basto arvoredo agora a espraiar-se em várias direcções, seguindo as ruas rectilíneas do bairro. Assim chegava à boca da rua procurada. Era ligeiramente a subir e a placa toponímica ali estava com o nome da escola para onde me dirigia. ‘Prestígio terão’, pensei. O inferno sonoro dava agora lugar a uma sinfonia mais organizada, onde os pássaros de muitas famílias já se faziam ouvir por entre o rumor de uma outra cidade feita de comércio de rua e pregões, de chinelas e motoretas. A rua seguia por dois quarteirões simétricos de casas baixas - uma ou outra abandonada, um ou outro lote vazio de casas mas não de flora, com a rua ladeada de árvores progressivamente mais densas, quase luxuriante lá para o cimo, para os lados onde supunha a escola. A rua terminava num ‘T’ com outra rua; ao cimo, à direita, seria a escola, ou assim pregava o mapa.
Para além desse ponto, do cruzamento, já conseguia distinguir um muro alto, alaranjado, atrás de uma linha de árvores. Um ou outro carro ou riquexá abandonado polvilhavam as bermas onde poucos automóveis estacionavam àquela hora. Menos mal. Mais umas centenas de metros e no final descubro finalmente a minha nova morada no local esperado, no cimo à esquerda, na esquina do ‘T’. Andei mais um pouco para além da esquina, atravessei a rua cruzada mais por gente a pé do que outra coisa, parei e virei-me. À minha frente, a escola. Para trás adivinhava-se agora a linha de comboio vedada da vista e dos ouvidos por outra linha de árvores altas e frondosas, seguida por outra de casas e o tal muro alto. A escola vivia num pequeno mas frondoso jardim em três módulos edificados, independentes e pintados em tons de cor-de-laranja como o muro. No espaço, que exalava tranquilidade, algumas pessoas andavam, sentavam ou falavam e os esquilos corriam livremente, espantando a numerosa passarada. Uma boa impressão. Mais tarde vim a saber ter a família decidido ali ficar por ser uma zona onde poderiam fazer bom negócio nomeadamente na venda de boletins sobre as suas investigações de yoga aos passageiros dos comboios ali chegados ou por ali passantes, nos tempos que aqueles eram escassos, o muro ainda não projectado e os aviões inexistentes. Era objectivo do fundador demonstrar à população que o yoga não era apenas coisa de barbudos encerrados em ashrams nos confins da Índia mas sim um conhecimento que poderia ser acessível ao mais vulgar de lineu e mesmo de prática utilização, especialmente para os residentes na urbe. Por momentos, quase esqueci os malfadados aeroplanos embevecido que estava com a bonomia do lugar por contraste da cidade furibunda onde me encontrava. Em destaque, a sobrevoar a vedação de rede e verdura, um placard de tamanho regular, em fundo branco com letras em negrito azul dizia, sem disfarces: “The Yoga Institute”, designação que, admito, repetiria em baixo, num corpo menor, em devanāgarī, o alfabeto das escritas hindi e sânscrito. Fiquei por ali um bocado a sentir o local e a apreciar o momento, e o movimento. Decidi não entrar logo, não
tanto por receio da escola mas por curiosidade da minha futura nova vizinhança. A rua, no topo do ‘T’, estendia-se curta para um lado desfazendo-se perto e abruptamente numa ruela onde se ramificava para formar um bairro menos favorecido. Para o outro lado seguia orgulhosa, ladeada de árvores altivas, mais longa, mais abonada e mais larga. Para esse lado, à esquerda, algumas villas e prédios de poucos andares. As lojas térreas começavam a surgir lá mais para o fundo; do lado da ferrovia, um espaço da companhia ferroviária vedado por altos muros que simultaneamente providenciavam abrigo a uma pluralidade de vendilhões de rua, uns móveis, outros fixos, estes albergados em mínimos quiosques espalmados contra o muro altivo, como lapas numa rocha. A uns trezentos metros, ao fundo, onde a via parecia acabar ou fazer algum ângulo muito recto para o lado esquerdo, o oposto ao do caminho de ferro, imaginei pelos sons e corropio, encontrar-se a estação de comboios. Para lá me dirigi e a rua premiou-me com uma panóplia de ofertas. Um sem número de vendas, da fruta ao sumo de cana de açúcar, das sandes grelhadas de Bombaim a produtos farmacêuticos, em lojas ainda designadas por “chemists” nome claramente mais apropriado do que farmácia pois, em boa verdade, é com a química do corpo que os medicamentos lidam. Mas havia mais nesta rua de Santa Cruz, designação de facto dada pelos portugueses, vim a saber, ofertas que continuavam do leiteiro ao pasteleiro, num sem número de ‘venderes’ e as inevitáveis bancas de chai. Uma vida fervilhante de bairro, uma rua viva mas, apesar de tudo, tranquila quando comparada com a efervescência de Bombaim, pese o corropio de riquexás, motos, pessoas - poucos carros - e mais que houver para rolar ou deslocar, onde o sol filtrado pelas múltiplas espécies arbóreas maximizava os vários encantos fotogénicos do local. Sentia-me bem.
Voltei em passo de lazer à escola e entrei pelo estreito portão de serviço onde um segurança me indicou a recepção ali mesmo à frente. Esta encontrava-se no piso térreo do primeiro dos três edifícios, uma mansão clássica do género que os indianos designam
por bungalow. À entrada, uma ardósia num cavalete com uma frase motivacional escrita à mão, agora afastada da memória mas que mais tarde percebi mudar todos os dias - às vezes surgia apenas uma piada. Três passos e outros quantos degraus levaram-me a uma saleta onde outros supostos alunos tratavam de assuntos seus e duas senhoras enroupadas em coloridos saris nos iam dando vazão, num claro ambiente pré-início de aulas. Entrei, informei as duas senhoras presentes dos meus propósitos, fui convidado a sentar-me e ali fiquei na saleta, também ela em matizes de laranja, a trocar dados, a observar futuros colegas e a contar aviões. Nos dez ou quinze minutos da sessão, foram pelo menos dois os mosquitões de Shivaji a ensurdecerem o estabelecimento. Estranhamente, apenas eu, e nenhuma das várias pessoas presentes ou das muitas a gravitarem dentro e fora da escola, transeuntes da mais diferente espécie, professores, alunos, curiosos e outros quem sabe, parecia ligar-lhes alguma importância. Na rua, o ambiente era de trânsito frequente e apressado de bicicletas, motoretas pessoas a pé e alguns riquexás, mas razoavelmente calmo; na escola o ambiente geral era de serenidade e jovialidade. Comecei a não desgostar da ideia, ‘os aviões é que…’ A meio das minhas deambulações aeronáuticas, sou informado para chegar no dia seguinte não depois das nove da manhã para me instalar, pois as aulas teriam início às dez. Aí estavam os trinta dias de internato a caírem-me em cima.
Um mês na escola de Yoga mais antiga do mundo a qual, sem o saber na altura (que sabia eu, em boa verdade?), celebrava o seu 100º aniversário no final desse preciso mês. Mais uma coincidência. Isto seria, como diz um velho amigo a propósito de outros ambientes, o ‘Jardim da Celeste ou o Júlio de Matos’. As “casas de apostas” geridas por familiares e amigos conhecedores desta ‘peça’ que agora vos relata a experiência, davam como certa a minha auto-exclusão, quiçá expulsão, em menos de uma semana. O meu lado de corretor temia em fazer apostas. Não era pessimismo nem dúvida, nem algo extra sensorial, mas apenas a tarimba de viver comigo há demasiado tempo a inibir-me de apostar forte como até me apetecia; para fora,
o bravado estava em alta e não deixava ninguém convencer-me de não ser capaz de ali malhar os trinta dias. Todos! A verdade foi que todas as possibilidades vieram a estar em cima da mesa. Mais de uma vez. Mas isso foi depois, naquela altura, como sempre em circunstâncias parecidas, ‘ouvi’ a minha mãe dizer: “é aguentar e cara alegre”.
Antes, quando estava encostado na rua a olhar para a escola decidi escrever este diário. Nunca tinha produzido semelhante tipo de escrita. Recordo, talvez, uns dias durante o período da escola preparatória por influência de alguém, ou de algum filme, mas mais nada. Falharam dois dias, acreditei sempre em recuperá-los mas até hoje não o fiz. Pode ser agora na revisão pois ao texto não mais voltei até este dia, mas não garanto1. É assim o diário, é diário. É o acontecimento do dia, se não for usado na hora perde qualidades como o Porto vintage - foi há bastante tempo mas ainda oiço sem esforço de memória a voz nasalada do professor António Barreto, especialista neste vinho da sua terra, a revelar-me a novidade quando dele me socorri para uma investigação a propósito: “Se é Vintage, junte os amigos e beba a garrafa toda na hora, homem! porque amanhã já não sabe ao mesmo!”, e não! Os acontecimentos têm um prazo semelhante, e se acontecem coisas num dia!... Antes de me sentar a fazer este exercício não tinha noção da quantidade de eventos, pensamentos, mudanças de ideias e tantas outras coisas passíveis de serem contidas e geradas em apenas um dia. De como a mente flutua e de como iria aprender sobre isso no próximo mês. Segue-se o diário desses meus trinta dias em Dezembro de 2017 no Instituto de Yoga de Bombaim, sem (muitos) filtros.
1 A verdade é que a revisão não foi efectuada como pensava à data da escrita desta introdução mas apenas em Julho de 2022, pois até então não tive vontade de voltar ao texto. As emoções ainda estavam demasiado presentes e não me permitiam uma visão menos apaixonada como nesta altura em que finalmente “voltei” decidi voltar ao Bairro de Santa Cruz. E sim, os dois dias não foram possíveis de recuperar como esperava.
Nota Introdutória
Para melhor percepção do espaço onde os acontecimentos principais se desenrolam, entendi fazer uma breve descrição em jeito de introdução para melhor situar o leitor pois o espaço é frequentemente importante para se entenderem partes do relato e a sensação geral. A escrita do diário é demasiado directa, impulsiva e sem grande espaço para descrições espaciais. Como na revisão pretendi não alterar esse carácter “borbotântico”, incluo ab anteriori uma descrição que tenho por neutra do espaço. No entanto, à data em que escrevo esta nota (Jul 2022), também já é possível fazer uma visita virtual à escola através do ‘Google Maps’ caso o leitor prefira a imagem ao palanfrório.
O complexo tem menos de 4.000 metros quadrados e aí pontuam três estruturas distribuídas pelo jardim, todas elas de três andares, sendo a estrutura central encimada por um terraço. Logo à entrada um típico bungalow indiano, habitação do casal de mestres1 que dobra como recepção e, à esquerda, o edifício da administração e de alojamento para alguns professores. No rés do chão desse edifício podemos descobrir uma loja com livros de yoga e merchandising diverso, antecedida e confrontada por um pequeno pátio ladeado por bancos de jardim. Em frente, ao fundo, para além de uma enorme árvore cercada por um banco, o edifício principal. Entre este e o edifício da administração, um telheiro circular a cobrir um piso marmorizado de forma idêntica onde muitos de nós nos sentávamos a tomar as refeições ou a tirar dúvidas sobre a prática de algum asana mais complexo. Logo à sua frente ergue-se a ala do edifício central onde cabem os dormitórios, à esquerda, ficando no rés do chão o refeitório e a cozinha. Ainda cá fora, no topo esquerdo
1 Assim era na altura, mas pouco tempo mais tarde, em Fevereiro de 2018, Jayadeva Yogendra viria a falecer sendo sobrevivido pela mulher, Hansaji, a directora da escola.
do edifício há um longo lavatório onde encontramos cafeteiras eléctricas e sal e que muitos de nós utilizávamos de manhã para congeminar uma solução de água salina morna para desentupir as narinas (que excelente hábito diário!). A ala direita do edifício é dedicada a salas de estudos, biblioteca no último andar e salas mais pequenas para classes reduzidas ou exames. No bloco central é onde o mais importante acontece, pois abrigadouro das salas maiores onde decorrem as principais classes. Áreas amplas com os seus 200 metros quadrados e profusamente arejadas com janelas de correr de lés a lés, à excepção do espaço do rés do chão onde o lado da entrada é absolutamente vazado permitindo aos excedentes das conferências mais atendidas verterem para o jardim. Aí, paralelo à sala, encontrase uma longa sapateira para que ninguém se atreva a entrar calçado no edifício, e naquele salão, que entendo chamar de Nobre pois também aí ocorrem as principais celebrações, contando-se as as cerimónias de graduação entre elas. Todas estas salas até ao terceiro andar são encimadas por um pequeno palco onde os professores, ou palestrantes, sentam-se em padmasana2. Não existem cadeiras. Todas as sessões, desde os satsangs3 regularmente protagonizados pela directora da escola ou por alguns convidados de prestígio, às aulas, são participadas com gente sentada em padmasana sobre os tapetes de uma espécie de ráfia entrançada que podemos encontrar em armários altos estrategicamente colocados em cada salão.
Lá fora, mesmo em frente à porta de serviço da escola há um passeio útil pois de curto trajecto, cerca de quatro metros, numa rua onde toda a gente anda pelo meio da estrada, e ladeado por uma baia, fornecendo um posto de observação ideal para as demandas da rua. Dez metros mais para a esquerda, se voltados para a escola, os edifícios recuam e surge mais um curto tracto de outro passeio inútil onde se ergue uma frondosa árvore, local mais recôndito e assim mais recatado dos olhares dos transeuntes e dos frequentadores da escola.

Bombaim,1 de Dezembro de 2017

DIA 01
21:30
Já fumei duas ganzas.
HA bonomia de ontem tem vindo a esvair-se vertiginosamente. Sinto-me enjaulado. Recolher obrigatório às 10 da noite!!
Foi o diabo aguentar o dia todo a tentar sentir-me confortável na simples e “nada complicada” posição flor de lótus para quem está nas lonas do físico como eu. Passei mais tempo encostado às paredes ou numa cadeirinha para fracos dos costados, como eu, do que em qualquer posição com nome de flor. “Yoga é a libertação da alma” dizem-nos logo para início de hostilidades, porque eu estou hostil a tudo e mais um bocado com a sensação precisamente inversa no que à alma diz respeito.
Fumei uma durante o dia. Outra há bocado, depois do jantar, lá fora, frente ao portão.
A vontade de ir embora, de me portar mal, de embirrar com alguém, de me armar em esperto, assaltou-me diversas vezes hoje.
Recolher obrigatório às nove da noite?! E o almoço! Uma papa laranja pespegada à concha numa travessa redonda de metal, mais umas pazadas de arroz “unidos venceremos” e uma panqueca seca com o pomposo nome de chapati. Duas. Um caldo de caril (por falta de melhor definição) e um localmente cobiçado buttermilk (só dá direito a uma dose) e que ainda não sei muito bem o que é mas que parece leite a meio caminho de iogurte, e ainda umas rodelas de cenoura pois pepino… não!
Mas há coisas boas. Eesha, indiana de Bombaim a viver em Boston é, seguramente, uma delas. Sorriso lindo, corpo de formas
generosas, linda! Exuda doçura, mas aposto em como também tem génio, como todos queremos. E quem não quer é parvo. Eesha, um dos nomes de Parvati, a eleita de Shiva, sinónimo de pureza e de uma prenda dos deuses. Ora aí está, Brahma às vezes é bom. Já não estou tão seguro é de Shiva esse número um do yoga.
Depois das aulas fui comprar roupa indiana. O pijama, para nossa fonética é estranhamente chamado de khurta pois é bem longa a fralda, como se sabe. Comprei duas. Uma branca, outra beige que o vendedor apresentou como cinzenta, pois era essa a cor que procurava. Sim deixei-me enrolar com plena consciência disso pois não me apetecia transtornar mais a mente. A beige, que talvez fosse cinzenta numa realidade alternativa, tinha colarinho de golas, a outra sem golas. Gostei da diversificação pois ainda não sabia que com com gola é o feitio muçulmano e sem golas o hindu… A compra deveu-se ao facto de ter passado o dia em cuecas, literalmente pois são muito mais práticas que os calções à explorador do mato que vieram na bagagem, que os tailandeses garantiam serem desenhados para policias. Excelentes mas não para aulas de yoga com o cu no chão. Ninguém parece ter notado as cuecas, muito. Vivam as Jockey made in India!
Escrevo estas palavras após regressar de uma viagem de ida e volta até aos arrabaldes a sul de Bombaim onde acompanhei a amiga portuguesa, entretanto chegada, ao retiro de Vipassana. Precisava de zerar a mona e matei dois coelhos com dois táxis.
No quarto tenho um indiano, rechonchudo, barbudo, aparentemente prazenteiro mas que não fala inglês. Está num curso de três anos.
Com ele um fulano de olhar penetrante, cabelos longos e uma careca a aflorar no topo, ar de malandro, de “artista” de subúrbio, mas simpático. Resolvi chamar-lhe “Águia” pois tudo na sua expressão e morfologia facial faz-me lembrar a dita ave. Há pouco garantiu que daqui a dois dias tanto ele como o barbudo migram para outras paragens. Mas outros dois virão, claro, pois esta ‘pensão’ é concorrida. Pareceu-me sincero no querer saber se estes processos
me perturbavam. Soube bem. Vivo numa camarata com três camas. Entra-se e estão duas à direita alinhadas junto à parede, uma a seguir à outra. Nessa parede corre uma janela até ao fundo. À entrada, do lado direito junto à porta, três altos cacifos alinhados com ar mais de guarda fatos do que cacifos. À esquerda, contra a parede, uma pequena secretária com cadeira; segue-se a porta para a casa de banho, espaço amplo, e ao fundo, à esquerda, a cama que ficou para mim encimada por uma janela de parede a parede que vai juntar-se na quina com a outra janela que corre na lateral proporcionado basta luz e arejo ao local. Na parede, ao longo da minha cama, existe um nicho na parede com duas prateleiras e, por cima, os interruptores das ventoinha de tecto, o quarto tem duas. Ao todo o espaço terá uns quatro metros de largura por uns sete ou oito de comprimento sem contar com a casa de banho.
As aulas. A parte da manhã. Para além dos inúmeros impressos, falou-se da história do centro, como o fundador era um fulano especial e depois seguiu-se uma aula a três mãos sobre como ensinar. Aí, depois de nas apresentações ter dito que fazia filmes, vi-me obrigado a intervir no trabalho de grupo pois estávamos encarregues de organizar uma peça para explicar um conceito. Saiu-nos “confiança”.
Intervi com prazer o que, confesso, quebrou um pouco o meu isolamento típico do início e, especialmente, as minhas ruminações. Inventei uma rábula de passarinhos a aprenderem a voar e o pessoal riu-se. Acho que perceberam. Recebi cumprimentos depois. Menos mal.
Acho que a Eesha gostou. Riu-se várias vezes para mim depois disso. Um amor.
Há também a bifa esticadinha e aparentemente jeitosa. Não deve ter mais de 23/24 anos. É, ou foi, modelo, parece-me o género. Afirma ser uma “alma simples”. Pff…
Fui passear no jardim e apareceu o guarda para me dizer que tenho de recolher ao quarto pois são 10 da noite. Voltou a sensação de revolução e de mandar tudo para o c…

HDIA 02 22:43
Fumei outra ganza. Metade na rua e a outra metade antes de escrever, na casa de banho do quarto, com o freak a fingir que dormia depois de ter meditado algumas quinhentas horas. Parece que estava à espera que eu fosse lá fumá-la para “acordar” e ir mijar. Ai dele que diga alguma coisa. Armo-me em cabrão e apronto-lhe alguma. Ou bato-lhe o que me daria mais gozo. Não curto o gajo, mas na volta é fixe. Duvido.
O freak é o novo companheiro de quarto. Barbudo, arruivado, careca, magricela. “Tree hugger” type. Tem uma namorada igualmente freak e de aspecto pouco lavado. Falam uma língua estranha. Talvez israelita, tantos que há por aí que debandam pelo oriente depois do serviço militar cumprido fartos da guerra constante. Mas ela, há pouco, ouvi-lhe umas palavras que lembravam português - Talvez romena.
A Eesha tem namorado, claro, mas continua um encanto. Vive em Boston, EUA, e escreve coisas institucionais para uma empresa de tecnologia ou algo assim. “Tenho os meus amigos e o meu namorado lá”, explicou a justificar a permanência. “Mas sou uma rapariga dos trópicos”, assegurou. Menos mal. Fui com ela até à estação. A Eesha é um amor. E lá foi sem aparente entusiasmo passar o domingo com a família.
O dia começou mal, portanto. Antes, ao pequeno almoço, não tinha sido melhor - o refeitório é uma sala com uma ilha central formada por uma bancada de alumínio em quadrado onde
funcionários1 nos vão servindo a comida do dia. Não existem cadeiras nem mesas. As pessoas sentam-se à volta, no chão, encostados à parede. A cozinha é uma sala contígua onde os cozinheiros também fazem a maior parte dos preparativos sentados no chão. - umas mini panquecas deprimentes com vegetais coloridos embutidos e regadas com uma molhenga leitosa pró lado do iogurte ralo, mas que nem sei bem o que era. Valia o chá de erva príncipe mas depois, porque estava quente e andava a passá-lo de caneca para o esfriar, entornei um pouco na bancada, pedi um pano na cozinha várias vezes, não me entenderam e, visivelmente, a sua linguagem corporal indicava quererem-me dali para fora. Guardanapos é coisa não vista por aqui e, andava eu nisto quando chega o velho hindu de pinta na testa que já antes tinha topado à entrada do refeitório em clara missão de vigilância da etiqueta no local e se os sapatos ficam na rua. Chegou com ares de sargento, mas de poucas falas, vestido com cara de poucos amigos - acho que ele não me grama como eu não o gramo a ele - mandar-me limpar o balcão como se não fosse isso que eu estava a tentar fazer! Expliquei, irado, ou apenas tentei, pelo ar de enfado do demónio e raspei-me a espumar directo ao restaurante da rua de baixo, repartição de um hotel que se diz fino mas não é, mas é simpático e tinha ovos, e torradas, e chá massala e corn flakes. Menos mal.
Vesti a túnica adquirida ontem, a branca sem gola que na loja de estacionário, onde fui comprar canetas e cadernos, disseram-me ter pago o dobro do que devia por ela (4,800 rupias). Que devia ter negociado. Pois devia.
As aulas começaram com uma seca monstruosa da directora do curso a arengar sobre a história do yoga e a pedir às meninas para não usarem alças ‘esparguete’ nem ninguém usar calções… (vá lá não ter falado de cuecas! Viva as Jockey!)
A “pura alma” com ar de pita pateta foi, seguramente, o alvo do remoque do ‘esparguete’ pois assim se apresenta, uns fiozinhos dentais a emoldurar uns marmelos saltitões. A professora viu
como eu vi. Tínhamos um ângulo semelhante como se perceberá. Concordo que distrai.
Definiu-se yoga e, para além da noção de equilíbrio entre corpo e mente, gostei particularmente da ideia que “Yoga é excelência na acção”- e falou-se dos Vedas, de como apareceram e do que falam.
A seguir melhorou. Não só por ser físico, mas por aprendermos as primeiras asanas. Especialmente interessante perceber que devemos beber água sentados, caso contrário o líquido reparador não chega às zonas baixas do corpo o que pode dar origem a má lubrificação das articulações, por exemplo dos joelhos, e consequentes lesões.
Reparei que hoje não usei a cadeirinha para me amparar. Nem sempre em lótus, ou Padmasana como aqui se diz, com algumas variantes mais ou menos torcidas, mas lá me fui aguentando.
A meio da manhã fumava eu de forma prazerosa o cachimbo no meu posto fixo do lado de lá da rua, frente ao instituto, quando o “Águia” que dormia no meu quarto (hoje não) me pediu para não fumar ali porque os indianos são muito espertos e topam que não sou daqui, logo estou no instituto, e há pessoas a quererem mudar estilos de vida (“como eu”, disse-lhe) e que dava má imagem e que etc.
Acedi.
Agora fumo dez metros mais para a esquerda num recesso da rua mais resguardado.
Voltou a velha directora para mais uma arenga e ficamos a saber mais dos Vedas, como apareceram e de que tratam, o que só me fazia lembrar uma versão local da bíblia. Todos têm uma… Falou também sobre o poder da reza, do Shiva e restante família, tratados como se não fossem uma ficção... Fiquei com a desconfortável sensação de estar numa aula de catecismo.
Falou-se de condicionamento. Yamas e Nyamas, o código de conduta do Yoga para recondicionamento, os mandamentos, o que se deve e não se deve fazer. Ou seja, limpar os condicionamentos actuais para depois re-condicionar. ‘Sair de uma prisão para outra’
diz o meu lado céptico.
A propósito disso falou-se da importância da atitude, do yoga como forma de vida, da necessidade de meditar e no poder que o processo tem de nos revelar o universo quando chegarmos ao fundo de nós. “É o que está para lá”, garantem.
Falou-se também da necessidade de parar o fluxo de pensamentos para meditação e de truques para o fazer como ir contando enquanto nos focamos na respiração até deixarmos de precisar da muleta.
Embirro com a velha. Pronúncia macarrónica, beata, fala que se desunha. À moda antiga. Parece-me ter voltado a uma escola portuguesa nos anos 70 antes do 4. A velha fala, fala, e continua a falar. Diz que vai tentar lembrar-se dos nomes de todos mas não promete. Somos muitos, alega. Apesar disso confesso que ela diz coisas interessantes sobre as quais bastas vezes vale a pena reflectir. “Aquietar a mente…”, e reforçava a ideia de que o corpo contém o conhecimento de todo o universo. “É no fundo de nós que tudo reside”, reforçou.
Não gosta que os alunos façam muita coisa, mas detesta especialmente que se sentem com os pés virados para ela. “Uma falta de respeito”, diz. ‘Na Índia, sê indiano’, pensei e tomei a devida nota mental.
Cheguei atrasado à aula e fui mandado para o lado do plateau onde ela se encontra. À direita, na perpendicular, paralelo à classe. Mesmo no meu plano de visão, ali, à babugem, a “alma pura” com a sua oferta de esparguete e marmelos. A determinada altura mandou-nos meditar na posição que nos fosse mais confortável. Deitei-me. Pés para ela mas foi sem querer. A verdade é que, digase, os asanas, nos quais a posição flor de lótus se inclui, fazem-me doer várias coisas. De músculos a articulações passando por aqueles proverbiais músculos que só sabemos pertencerem-nos quando doem, e isso torna a concentração difícil.
Passada a meditação deixei-me ficar mais um pouco. Comecei a ouvi-la chamar um tal de Éon. A conversa metia pés e aí toquei-
me percebendo a interpelação ser dirigida a mim. Apesar da minha falta, ainda aproveitei para resmungar que não era Éon mas Eloy. Mais vedas menos vedas a velha anuncia-nos a próxima estrela a subir ao palco. “Alguém que normalmente detestam ao princípio e adoram no final”, anunciou. “Até me admiro como ainda é solteiro”, disse ainda. Provavelmente é gay mas isso não lhe ocorre na terra onde a homossexualidade é proibida2 (!). Há muitos gays na Índia porque com tesão, já se sabe, não se brinca e os palhaços dos ingleses transformaram a terra que escreveu o Kama Sutra e tem estátuas a fornicarem nos mais variados monumentos num ninho de conservadores, panhonhas e bafientos. “Sabes que foram os ingleses a introduzirem a moda da camisinha de algodão debaixo dos saris?” Perguntava-me noutro dia a minha anfitriã airbnb, Shipra, rapariga nos seus trintas, viva, bonita, escritora de dramas para televisão. “Uma forma de lhes vender o seu próprio algodão, era o slogan deles”, disse ainda. “Antes não era assim, era tudo muito mais sensual”. De facto. Provavelmente, a moda inglesa das camisolinhas debaixo do sari pode mesmo ser considerada como um dos mais violentos ataques contra os direitos humanos! A conversa tinha começado por a ver vestida de saia. Por baixo do joelho, é certo, mas foi a segunda em quase um mês na Índia. A primeira tinha sido em Jaipur, há umas semanas, mas o namorado/marido conduzia um Jaguar. Diferente espécie, portanto.
De volta à aula. Intervalo para passagem de testemunho e cruzome com a velha. “So... you’re Eloy, right?”. “Yes, that guy”, respondilhe sem grande entusiasmo. Riu-se com vontade. Fiquei a gostar mais dela. Ou deveria dizer detestar menos?
O novo professor, o tal que era para admirar ainda estar solteiro, vinha tratar-nos da elasticidade, e se tratou! Era o professor de técnicas de asanas, o homem que nos veio explicar como diabo vergamos o que não verga num ser humano comum. A sua missão é, portanto, preparar-nos para as asanas. Não dá quartel. Dispara a torto e a direito e tem razão em praticamente tudo o que diz.
2 Deixou de ser pouco depois da escrita deste texto, praticamente um ano depois, a 6 de Setembro de 2018
Meteu-se com um culturista que apareceu hoje, caído vá lá saber-se de onde. Um caparro de ‘He Man’ (como o profe lhe chamou para escândalo de vários colegas, vim a saber depois, como a querida Eesha que teve pena do marmanjo) mas a verdade é que o cabrão dobra-se menos do que eu, algo difícil de imaginar, e tem mesmo ar de super herói da treta. “Wokismo” é claramente algo que não passa pela cabeça deste novo professor e ainda bem. Enquanto vários iam torcendo o nariz à sua eloquência eu ia-o confirmando na minha lista de favoritos, apesar de não me ocorrer casar com ele. “Andaram a fazer-te tomar e comer toda a espécie de porcarias, não foi?” perguntou-lhe em jeito de retórica. Azar do gajo. Serviu de exemplo vivo para a loucura das modas que vivemos e foi atacado sem dó nem piedade. Talvez consiga resumir numa das suas frases o sentido do discurso: “se temos tão boas frutas na Terra para fazermos sumos, porque nos dão Coca Cola?”
Gostei também da definição para yoga que nos trouxe: “Ver o mundo como ele é”.
E esticámos, e respirámos, e voltámos a esticar e voltámos a respirar.
Hoje percebi o que significa Samadhi3, o sítio onde todos querem ir mas poucos chegam. A definição encontra-se nos Sutras de Patanjali, o livro seminal do yoga composto por apenas 195 frases divididas em quatro capítulos. Para além de Samadhi, Sadhana, as técnicas de libertação para principiantes, Vibhuti, os poderes que ganhamos através de uma prática longa e Kaivalya, samadhi em acção, o que se passa na mente do yogui liberto, o que isolou o ego da consciência e conhece a essência pura. ‘Samadhi é o nome do yoga’, dizem-nos.
No final das contas do dia o primeiro trabalho de casa é um
3 Samadhi é o estado onde o controle da mente é total, o objectivo dos estudantes de yoga. Podemos dizer que chegámos a Samadhi no dia em que nos libertarmos dos ciclos de dor e prazer. Assim está escrito nos Sutras de Yvoga de Patanjali, o livro dos livros de yoga, organizado de acordo com a filosofia Sankhya, na sua visão dualista da realidade. Nesta filosofia, a realidade e a experiência humana são dois princípios finais independentes: purusha (consciência ou espírito) e prakriti (cognição, mente e emoções, e natureza ou matéria).
relatório a entregar no final do curso com a anotação das nossas experiências à medida que vamos praticando as diferentes asanas. [suspiro]
Hoje tolerei melhor a comida. Estou a encará-la como medicamento.
Saímos mais cedo. Fui à pedicure. Recuso-me a cortar as unhas dos pés. Não é a elasticidade (apenas) é mesmo lixar aquela merda toda e acabar com dedos em sangue e chatices. Untaram-me os pés de chocolate, “Faz muito bem”, asseguraram, mandei umas larachas natalícias a propósito que ajudaram a criar um ambiente descontraído e deliciei-me com o chá massala comprado ali perto, conforme me explicaram sem quererem ficar com os louros da autoria da magnífica beberagem. Agora já sei onde há bom massala porque tenho encontrado muito chai a la Bombaim, um xarope meloso e repugnantemente doce feito de leite condensado e chá, habituado que estava aos sabores apurados do chai do Rajastão onde tamanha afronta açucarada não é permitida - O massala tem sempre especiarias, açúcar, leite e gengibre, pois é esse o significado do termo massala: uma composição de especiarias. Bem fervido. Isso é um chai, o resto são bebidas abusadoras sem sentido!
Hoje, como era sábado, deixaram-nos ficar no jardim até muito mais tarde... 22:30! Veio um avisar-me para recolher e logo quase a seguir outro. Rosnei ao segundo.
Amanhã é folga. Vou ao Forte ver o mar mas acima de tudo comprar tabaco pois só em Colaba tenho a certeza de encontrar o necessário para o meu cachimbo aborrecido pela seca e restantes apetrechos necessários para um bom “fumício”. Alguma hora de caminho apesar de ficar apenas a vinte e poucos quilómetros daqui - o trânsito em Bombaim é foda com muita rua estreita e muito caos natural. Mas foi lá que a descobri, uma loja que a muito propósito cita Jack Nicholson quando este alegadamente um dia disse que “The best way to solve an addiction is to replace it for a better one” referindo-se a trocar os cigarros por charutos. Eu também os troquei por cachimbo.
PS: o “Águia” afinal voltou para dormir aqui na camarata. Pediume para não me importar por antes ter-me pedido para não fumar em frente à escola. Para fazer valer o ponto, assegurou-me que também ele fuma. “Mas longe daqui onde ninguém me conhece”, disse. OK. É mesmo “pintas do bairro”, confirma-se. Mas boa pinta, amigável, homem de valores vou-me apercebendo.
DIA 03 22:06 H
Domingo. Dia de folga. A manhã começou cedo pois hoje o trânsito do Chhatrapati Shivaji parecia passar-nos mais próximo da tola do que o habitual. O vento devia estar a soprar para oeste. Eram umas sete da manhã e o troar de um bimotor entrava por uma janela e saía por outra. Segundo informou a directora da escola, quando o centro foi construído nos anos quarenta, este agora bairro de Santa Cruz era selva e apenas aqui passavam dois comboios por dia. Foi bem mais tarde quando o aeroporto chegou, mas o fundador, Shri Yogendra, à época ainda vivo, decidiu resistir a mudar de local argumentando que se o desafio era encontrar a paz interior, os aviões só serviriam para provar que o método era eficaz. Dizia ele que apenas tinha de lidar com hélices… Mas, de facto… quem conseguir abstrair-se do som rasgativo dos Rolls Royce, ou mesmo das hélices como provei hoje, chegará, pelo menos, à estrada para Samadhi. Estremunhado, percebi que o freak mexeu-se e foi mijar. Terá voltado e, passado pouco tempo, começo a sentir um calor fora do normal. A contragosto, abri os olhos e olhei para a ventoinha do tecto: parada. Atribuí o inconveniente a alguma falta de electricidade e virei-me, podia ser que voltasse. Nada. Levantei-me. Vi os telefones à carga e percebi que havia electricidade. Testei a minha ventoinha e não é que o caralho do freak tinha-se debruçado por cima de mim para desligar a coisa?... - com a saída do indiano suave, fiquei com a cama que “controla” as electricidades daquela zona - e estou a religar a ventosga quando o “Águia” salta da cama
e olha para mim, incrédulo, pensando que tinha sido eu o autor do ‘desliganço’. Argumentava com “mosquitos”. Claro! Só o freak parecia não saber que ventoinha off é igual a melgas on. Eu estava tão indignado como o Águia e apontei para o freak em puro libelo acusatório, mas ele por esta altura já estava em posição de flor. O “Águia” indiferente à meditação do espantalho abanou-o e faloulhe de mosquitos. A contragosto, o anormal lá voltou dos paraísos freaks por onde andava, balbuciou umas desculpas esfarrapadas e voltou a disfarçar-se de flor aquática. Ventoinhas ligadas e mais uns momentos de sossego. ‘Dissimulado dum cabrão!’...
Uns quantos maduros da turma tinham marcado uma sessão de treino de asanas para as 07:30 no redondel. Ainda pensei em juntar-me a eles mas soou-me a loucura e refastelei-me mais um bocado.
Voltei a acordar e desta vez esfaimado. Ontem, porque hoje era domingo havia menos gente para alimentar e o quartel precisava de reserva prévia para os pequenos almoços e eu tinha marcado uma, vá lá saber-se porquê. Duche tomado, ao refeitório me dirigi para investigar os quitutes propostos, diga-se mais por preguiça de marchar até ao ‘fino’ do que por fé, ou sequer preocupado com a reserva pois a verdade é que há sempre gente disponível para sorver mais um buttermilk e umas papas coloridas, esbanjamento não é algo que por aqui aconteça, já deu para perceber e ainda bem. O velho da pinta não se vislumbrava, mas claro que saí para o jardim e depositei os chinelos cá fora e voltei a entrar seguindo para o refeitório. No hotel “fino” repeti a dose de ontem.
Entretanto fumei o resto da ganza e preparava-me para seguir para Colaba quando descubro estar a loja de tabaco fechada ao domingo. Irra! Voltei ao quartel e à camarata, para refazer planos e, para minha irritação, ainda lá estava o freak disfarçado de flor dos pântanos a flutuar sobre a cama. Vegetei um bocado na minha cama até que o danado volta a transformar-se em gente (a esta hora que escrevo voltou à condição florida) e foi tomar banho - afinal lava-se! Ou finge que se lava, sei lá. Sei é que saiu da casa de banho
empestado numa colónia barata de tirar o sossego a qualquer ser vivo com narinas. A cama dele é paralela à minha e uma das duas ventoinhas está mesmo por cima de ambas. Liguei-a no máximo e o fedor lá se desvaneceu empurrado para os confins do jardim e, esperava eu, para o confins de Santa Cruz, mesmo para fora da Índia mar adentro. Ele deve ter secado mais depressa, ou percebeu a insinuação, porque lá se foi passado pouco tempo. Com tanta meditação, pensei, já deve ter passado o universo conhecido. Panhonha!
Passado um bocado também o “águia” ‘ablucionou’ e bazou, e passado outro bocado voltou o indiano suave. Vive agora na ala dos professores, disse-me a mim o orgulhoso herdeiro da sua cama, a melhor posicionada do estabelecimento. Foi para outro lado mas continua a fazer sala no nosso quarto. Por mim tudo bem.
Também ele ‘ablucionou’, depois falou interminavelmente ao telefone e também acabou por dar de frosques.
Sozinho, fiquei um bocado a ruminar no freak e pensei dizerlhe três coisas:
Coisa 1 - Se voltas a desligar as ventoinhas, parto-te as trombas.
Coisa 2 - Se continuas a usar esse perfume de merda dentro do quarto, parto-te as trombas.
Coisa 3 - Se continuas a fazer do quarto centro de meditação e a condicionar o espaço, parto-te as trombas.
Acabei por não dizer nada. Mas está em agenda.
Passado um bocado, também me fiz à vida. Apanhei um táxi para norte e, logo à saída do quartel, pum! Um carro a sair em marcha atrás de um edifício dá um toque, coisa pouca, no nosso. Esbaforido, o condutor do meu táxi salta aos gritos do volante, clamando que o patrão só lhe tinha entregue o carro há uma semana, e todo direitinho (coisa rara na Índia), e vai de começar a empurrar o agressor da sua traseira. Este era, nem mais nem menos, um empregado do restaurante do hotel “fino”, lerdo como os mais lerdos mas boa praça. Tremia sem conseguir falar, provavelmente a pensar na merda em que se tinha metido e atordoado com a atitude
agressiva do outro. O meu motorista, aproveitando a passividade do moço, ia insistindo na empurração e na gritaria como bom fanfarrão licenciado no motejo que revelava ser. Tive de intervir e dizer ao gajo para parar de empurrar o miúdo e resolver aquilo a bem, e rápido, ou eu chamava outro táxi. Amanhã talvez tenha ainda mais benesses ao pequeno almoço, pensei eu mais tarde que nem vendilhão do templo.
Depois andei. Comprei umas chinelas confortáveis e o WeChat garantiu-me que hoje foram cerca de 11 km a pé. A túnica Indiana não só é uma excelente peça de design que nos mantém frescos e confortáveis como me faz desaparecer mais na paisagem. E como é branca, de bom corte e bom pano (valham-nos as rúpias não discutidas) dá-me um certo ar nobre, quiçá até santificado na alvura, que se nota em certos olhares pois, associada à minha cor restaurada nos sóis da Tailândia e a cavalo da Enfield na Índia ajuda à confusão étnica. Ou então é tudo ao contrário e o que os transeuntes vêm é um papalvo de branco vestido a pensar que é distinto. Mas anda-se e anda-se sem que os calores nos incomodem demasiado e isso é o que importa realmente.
Às horas de almoço conheci alguém que me disse onde se compra erva pois o stock de haxixe de Pushkar estava a finar-se. Fumei outra e pensei comprar mais. Mudei de ideias. Nem tabaco iria comprar. Afinal de contas ou yogo ou não yogo.
Em Bandra Oeste, o bairro contíguo ao sul, vi tabaco de enrolar à venda e comprei. Pensei arrancar de volta para o quartel para comer o jantar-medicamento que tinha marcado mas enrolei outra ganza e decidi esperar pela abertura de um restaurante que já tinha percebido tratar a galinha tikka como um assunto muito sério, para nós frango no churrasco. Little Punjab, chama-se a manjedoura e o meu instinto não se enganou. Um deleite. Meia galinha depois, uma travessa de arroz frito à chinesa por questões de harmonia transfronteiriça e mais arroz, mas doce e à indiana e muito parecido com o nosso (as sobremesas deles ou são copiadas das nossas ou vice-versa) e senti-me devidamente consolado. Fumei mais meia
ganza para não perder o jazz, nem o hábito.
‘Riquexei-me’ de volta ao quartel, descobri um belo chá massala na rua à conta de uma vendedora de bananas (os munchies) que sorvia um, o que me deixou particularmente satisfeito, e fumei mais um bocado da meia ganza restante nas imediações da porta de armas (dez metros para o lado) que cruzei três minutos antes da hora. Namasté para cá e para lá e encontrei um grupo de colegas. Trocámos um papo animado e chego ao quarto para encontrar o “águia” preocupado com o freak pois acha que ele respira mal - ‘na volta julga que é ele quem ressona’… pensei com laivos de culpa.
Dava-lhe um frasquinho para inalar. O freak ia saltando dizendo que parecia wasabi e o “águia” dizia-lhe para inalar devagarinho. Enternecedor. Mas o freak pareceu ficar a respirar muito melhor com os vapores de “wasabi” que ele diligentemente explicava ao Águia que era “uma cena japonesa”… um iluminado.
Fumei o resto da ganza entre a casa de banho do quarto e a pública do andar baixo.

DIA 04 23:50 H
Penso em aviões. Mas literalmente. Nas máquinas cujos motores trucidam os ares e sem as quais, aparentemente, já não podemos viver. Mas com os quais também não é fácil conviver. Especialmente não quando se vive junto a aeroportos internacionais de cidades do tamanho de Bombaim. Hoje os aviões meteram-se em todas as conversas de jeito, em todas as palestras que valiam a pena e ainda não pararam a esta hora. Provavelmente o velho Shri Yogendraji tinha razão na recusa em mudar a escola de lugar pois para lidar com isto precisamos mesmo de uma mente Niruddha (conceito aprendido hoje) caso contrário é o degredo. Algo a ter em conta, ou a prestar atenção. Será que vou disciplinar a mente ao ponto de os ignorar?...