SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE ALAGOAS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E INOVAÇÃO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DE ALAGOAS
MEMÓRIA HISTÓRICO/CULTURAL NAS ARTESANIAS DE MARAGOGI: PRÁTICAS DE SIGNIFICAÇÃO IDENTITÁRIA
ELENICE NOGUEIRA SANTOS
Maceió – AL 02/04/2023
INTRODUÇÃO
O interesse por este estudo começou com algumas observações feitas por mim, na qualidade de moradora do município de Maragogi e Professora do Ensino Médio da rede Estadual, a partir de 2016. Dentre as observações, podemos destacar reclamações diversas, desde a falta de emprego, passando por condições de subsistência relatadas por moradores de comunidades rurais e da cidade, até a falta de perspectiva relatada por estudantes da escola Batista Acioli para permanecer no município depois de terminar o ensino médio, além do alto número de evadidos da Escola. Nesta ocasião, tive a oportunidade de conhecer as manifestações culturais, a luta diária dos maragogienses na agricultura e nas artesanias como reflexos dessa situação e da sua identidade histórico-cultural.
As experiências vivenciadas por mim, sendo artista plástica e artesã, possibilitaram as inquietações necessárias para os levantamentos realizados no trabalho em questão. Os conhecimentos acadêmicos juntamente com o da realidade vivenciada por mim e relatada por alguns moradores sobre as dificuldades de manter o seu sustento, suscitou a necessidade de resolução das questões dentro de uma pesquisa mais aprofundada Daí surgiram algumas questões que me levaram a pensar a história cultural, o artesanato e a identidade local.
Este trabalho, parte de um levantamento de bibliografia histórica, além da observação do convívio social, religioso e político, das práticas de atuação da comunidade norte alagoana. Seu propósito é investigar essas práticas – a partir da história cultural – na construção da identidade dessa comunidade e na conformação dos objetos artesanais. Para tanto, faremos uso do método que articula a análise de dados empíricos (observação participante) com as qualidades dos artesanatos observados no cotidiano do lugar.
Trata-se de um estudo de caso que tem uma perspectiva de pesquisa qualitativa, pois apreende e compreende o comportamento humano e as mudanças circunstanciais que ocorrem para transformações históricas das pessoas envolvidas. No qual deve se levar em conta que o ser humano na sociedade não é um ser passivo e as transformações da cultura estão em constante mudança e interação construindo sentidos. O desafio de pesquisar a cultura regional nordestina requer do pesquisador perspicácia e habilidade para atirar-se em um campo desafiador de um patrimônio bastante diversificado ao mesmo tempo peculiar. Atento a estas particularidades, este trabalho traz a objetos da cultura como ponto de expansão da história regional. Para tanto, tomaremos como base a cultura cabana, pois entendemos que apesar da política de extermínio promovida pelas autoridades desde a Guerra dos Cabanos (LINDOSO, 1983, 2008), ela permanece viva no cotidiano do povo.
Breve consideração sobre a cultura cabana
Para analisar a história de Maragogi, tomaremos como ponto de partida as contribuições do historiador Luiz Sávio de Almeida “A formação histórica de Alagoas (I): rotas de acumulação do açúcar” e Dirceu Lindoso nas quais pode ser encontrada uma análise sobre a história ágrafa com a retratação das memórias sociais, das insurreições populares, da cultura oral, O autor Lindoso “A formação de Alagoas Boreal” (2015) e “Interpretação da Província: Estudo da cultura Alagoana” (2008) descreve especialmente sobre a religiosidade, as festas culturais e a retratação da sua cidade natal, Maragogi .
A obra intitulada Interpretação da Província: Estudo da cultura Alagoana (2008) traz uma reflexão sobre o processo histórico do estado de Alagoas em que se discute a conjuntura estrutural do estado sem amarras ao passado, mas com repulsa a desmemória e ao “esquecimento”. Esquecimento este que Lindoso pontua ser de interesse das oligarquias em apagar os feitos destes povos ou então colocando-os como “facínoras e bandidos fora da lei” quando estes buscavam através de suas artesanias a integração social.
Trazendo o entendimento de Dirceu Lindoso é possível entender um pouco mais as marcas de luta historicamente construída por estes povos. Lindoso assevera que “A sociedade alagoana se revela estruturada em práticas econômicas que lhe marcam uma fisionomia específica” (LINDOSO p. 35-36, 2015). Dirceu Lindoso (2008) coloca luz nas contribuições culturais de costumes e tradição local comungada por negros, indígenas e brancos tais como a religiosidade, as danças, a gastronomia e ainda a maneira de lidar com a agricultura. O autor traz ainda uma reflexão sobre o processo histórico do estado de Alagoas em que se discute a conjuntura estrutural do estado que transformou o vilão em herói e vice versa
Sobre a escrita Dirceu Lindoso assinala que “que a função dos primeiros historiadores de nossa província foi a de elaboração de uma ideologia estamental”. (LINDOSO, p. 89, 2015), porém pela observação feita posteriormente pode-se avaliar que alguns historiadores do presente ainda elaboram seus trabalhos naquelas mesmas convicções. A história cultural de Maragogi vem tentando colocar os cabanos em lugar de destaque, no entanto pode ser percebido que a construção da imagem ainda está arraigada na história construída no passado descrita pelos primeiros historiadores que compactuam com a ideologia de dominantes e colocavam os cabanos no lugar de bandidos criminosos.
O atrelamento a história oficial do passado pode ser compreendido ao se visualizar o monumento em homenagem aos Cabanos em Maragogi (FIGURA 1), que traz a representação do homem indígena em ponto de atacar ou de ameaçar, enquanto o homem com as fisionomias
afrodescendentes aparece estar conformado, a esperar o mando com a arma que lhe é inerente a sua condição, a enxada para o laboro. A imagem da escultura pouco revela sobre a incansável busca pela liberdade e pela integração social dos povos negros nem tão pouco dos indígenas e mestiços.
O historiador Luiz Sávio de Almeida apresenta em “A formação histórica de Alagoas (I): rotas de acumulação do açúcar” uma Alagoas explorada pelo colonizador, na qual a cultura alagoana como pode ser observada hoje foi “urdida” no passado, segundo o autor, pelas “tramas” e pelo “pacto de geração e manutenção da pobreza” (ALMEIDA, p.35, 2018). Neste ponto é possível começar a compreender a marginalização da identidade cultural do norte alagoano. Na região, observa-se os interesses dos acumuladores de capital, tendo em vista que os engenhos de açúcar de outrora são hoje os resorts, inclusive alguns das mesmas famílias dos engenhos de açúcar passado, e os cabanos seriam então são os moradores das grotas que prestam os serviços similares ao do passado nas rede de hotelaria e os agricultores dos assentamentos.
Com a “derrota cabana”1, prevaleceu a história cultural dos brancos católicos, que pode ser vista através da presença dos monumentos, dos ritos e do artesanato na região e no município
1 Dirceu Lindoso explica que no primeiro momento da Guerra dos Cabanos houve uma agrupamento organizado entre donos de terras e os cabanos com um objetivo comum, no entanto com o decorrer da história, a violação de terras pelos cabanos poderia ter causado a ruptura dessa associação e o objetivo acabou se invertendo. O autor salienta que com a morte e prisão de lideranças populares da guerrilha, a elite toma a liderança e vira o jogo impondo a derrota dos cabanos (1983).
pode ser observada desde as ruínas do Mosteiro no Povoado de São Bento e suas festas religiosa e tradicional como o Festival da Mariscada, a Procissão da Bandeira na sede do município, a festa do Bumba-Meu-Boi no povoado de Barra Grande, chegando até a festa de São Benedito no povoado de Peroba. Embora a museóloga Carmem Lúcia Dantas em entrevista a Educativa TV (2017) salienta que estas manifestações no passado eram uma maneira de manutenção do mando dos senhores de engenho, hoje percebe-se que estas manifestações possuem um rico repertório de múltiplos significados.
O folguedo do Bumba meu Boi, por exemplo, trata da integração dos camponeses branco, com o indigena e com o negro, uma mestiçagem, uma mistura de elementos de diferentes etnias, religiões, arte, muito propria do Brasil e especialmente da região de Maragogi. A ressurreição do boi é o ponto alto do folguedo, que para alguns seria milagre do catolicismo é um milagre da pajelança indigena.
Outro significado integrado a comunidade de Maragogi é a Festa de São Benedito que trata de um santo negro padroeiro da hospitalidade, duas coisas bem próprias de Maragogi. Um santo negro africano, pobre, que não era padre e que ajudava as pessoas. Ao que parece, essa apropriação em Maragogi está no inconsciente coletivo com um santo negro defensor dos pobres e da hospitalidade. Sendo assim liga o turismo à fé e ao povo preto.
A mariscada é um prato da culinária Afro Litorânea, considerada artesanal pois é produzida por técnicas manuais. A Mariscada é também o nome de um tradicional festival praticado em Maragogi. A festa integra toda a população e visitantes, é produzida pelo poder público local e por marisqueiros que muitas vezes não são profissionais, no entanto catam mariscos pela diversão e interação para participar da festa no povoado de São Bento.
As manifestações acima citadas, são festas religiosas, tradicionais e folclóricas importantes para a construção da identidade e algumas vezes a uma afirmação da mesma. A partir delas, algumas comunidades produzem artefatos artesanais, como é o caso da festa do boi de Barra Grande e outras, mesmo tendo potencial para tal, este não é reconhecido.
A identificação com o local
Embora tenha todas estas celebrações culturais e as outras históricas, os jovens maragogienses não têm reconhecido este território como seu e a sua Identidade. Isto é notado ou percebido com a rejeição em participar das festas como brincantes, por exemplo, o Bumba-meuboi do Mestre Eurico de Barra Grande no qual a participante mais jovem tem mais de 60 anos de idade. e recusa de continuar os trabalhos ligados às questões artesanais agrárias, agropecuárias,
aquiculturas e piscicultura os jovens dão preferência de trabalhar na rede hoteleira e na falta de perspectiva para os trabalhos no futuro dentro do próprio município, é comum conhecer famílias que têm filhos e sobrinhos “morando fora”.
Algumas vezes, em conversas em sala de aula com alunos ou em reuniões informais com familiares destes, como é o caso de Chris Maria e Rozana Santos, elas relatam que “assim que terminar os estudos vai embora procurar as melhoras”. As melhoras podem ser entendidas como inserção no mercado de trabalho. Muitos jovens não terminam os estudos fundamental ou médio e saem de Maragogi para trabalhar, inclusive, na agricultura em outros estados. Muitos dos trabalhadores rurais e dependentes para o mantenimento das famílias, são cooptados a trabalhar na rede hoteleira e derivadas da região.
Grande parte da população que vive nos povoados, favelas/grotas e nos mais de 30 assentamentos rurais, segundo o Secretário de Assistência social de Maragogi Enildes Barboza (2019) e naquele mesmo ano, dependiam dos programas de transferências de renda do Governo Federal somando 17.47% da população que recebem benefícios. Sendo que o Seguro Defeso (Auxílio Desemprego de Pescador Artesanal) em Maragogi / AL “são 256 pessoas, já o Bolsa Família são 5211 pessoas”. (IBGE. 2019). Embora a política de assentamento rural tenha sido implantada para permitir às famílias a reconstrução e integração de um modo de vida rural, ainda constata muita pobreza.
Maragogi é a 2a cidade a receber o maior número de turistas no estado de Alagoas, sendo assim, juntamente com toda essa gente que vem de fora vem também influências culturais diversas que é natural do próprio movimento da cultura. No entanto, neste caso o poder econômico, na maioria das vezes age de forma a suplantar as culturas locais contribuindo com a invisibilização da cultura maragogiense que é rica e diversa.
Ao observar e analisar as práticas de produção de artefatos em oficinas e ateliês, as artesanias elaboradas em comunidades tradicionais agrícolas e urbanas, percebe-se a carga de significação que estes artefatos e comportamento possuem, e que traz em si o reconhecimento da Identidade Cultural regional como fator de integração.
A invisibilidade da Identidade cultural no contexto social vem apresentando problemas de discriminação e exclusão social deixando um conjunto de pessoas às margens dos sistemas convencionais. A invisibilidade envolve a falta de atenção pública, a má distribuição de recursos materiais e simbólicos.
Um olhar mais atento pode se perceber as peculiaridades de Maragogi, na qual a cidade pode se reconhecer e como é reconhecida. Existe uma Maragogi que é de “cartão postal” uma Maragogi para turista ver, que tem grande incentivo do poder público e de empresários,
chamando a atenção para o turismo o que favorece ser reconhecida por parte do mundo e desejada por aqueles que gostam de natureza, praias e passeios diversos, seja no mar ou nas trilhas pela mata. Maragogi ainda tem resorts que para quem tem poder aquisitivo diferenciado pode usufruir de mordomia. Esta é a “Maragogi de fora”.
Entendo que esta Maragogi seja a cidade construída e incentivada com o PRODETUR/NE2, para favorecer os mandatários tanto os vindo de fora quanto os da mesma região. Isto ainda pode ser exemplificado por parte das famílias donas dos resorts e de grandes empreendimentos no municípios, que são as mesmas que foram os senhores de engenho no passado.
Mas há uma Maragogi a qual podemos identificar como a “Maragogi de dentro”, aquela atrelada à cultura cabana encoberta nas matas que tenta através da política agrária, assentamentos com vista à melhoria na qualidade de vida do trabalhador rural e artesanal. Maragogi, com relação ao estado de Alagoas segundo Almeida (p. 31, 2010) tem o maior número de unidades de assentamentos rurais promovidos ou autorizados pelo INCRA. A Reforma Agrária apresenta pontos positivos e relevantes quando se observa as vantagens econômicas para a produção agrícola, a integração social e políticas para os trabalhadores da terra.
Embora a política de assentamento rural tenha sido implantada para permitir às famílias a reconstrução e integração de um modo de vida rural, constata-se que por causas estruturais, famílias ainda vivenciam o tocante do êxodo rural. As dificuldades financeiras são empecilho para tocar a terra, empurrando o agricultor para o trabalho na zona urbana. A despeito do êxodo local em que os trabalhadores deixam as propriedades rurais rumo ao trabalho com turismo, tem a ver como Programa para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste - Prodetur/NE que foi implementado na década de 1990.
Maragogi de fora é considerada como o Caribe brasileiro por causa das belezas naturais. O município de Maragogi é um dos mais requisitados destinos turísticos do Brasil. As praias e os passeios às piscinas naturais, que são os principais atrativos, trouxeram redes hoteleiras com famosos resorts. esta pode ser entendida como produto de venda ou de visita na perspectiva do turismo.
Sendo assim, acredito que existe uma Maragogi dual: a de dentro que tem uma história cultural alinhada às artesanias cabanas com luta e resistência; e outra Maragogi de fora ligada ao modo exploratório do aparato turístico – atrelada ao poder local –, construída pela cultura do
2 O PRODETUR/NE foi implantado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso no ano de 1992, através do Ministério dos Esportes e Turismo e elaborado em parceria com o BNDES, o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) entre outros. O BNB (2005) informa que o intuito do programa foi o investimento público para fomentar o turismo regional, explorando as potencialidades em conjunto com governos estaduais e municipais.
extermínio e do apagamento da história cabana.
Para a Maragogi de dentro ser compreendida é necessário ver pelos olhos dos que vivem Maragogi no dia a dia, e muitos deles vivem as marcas da história dos seus antepassados cabanos. Para compreender essa “Maragogi de dentro”, vamos destacar a formação do bairro Adélia Lira, pois entendemos ser uma forma de “vida cabana” atual. Esse bairro surgiu a partir do bairro do Carvão, que é marcado pela presença de pessoas pretas herdeiras dos negros papaméis.
A fama de Caribe Brasileiro fez Maragogi receber um grande número de turistas, com isto muitos dos moradores começaram a desfazer temporariamente alugar suas casas de início, e por força da especulação imobiliária passaram a vender as suas moradias. Depois não conseguem adquirir outro imóvel de qualidade e valor acessível, acabam sendo empurradas para as grotas ou áreas invadidas. Ao observar o processo de urbanização, o planejamento, ou a falta dele, apresento o conjunto Adélia Lira do Município de Maragogi, um bairro relativamente novo que fica localizado em uma elevação, no morro.
O desenvolvimento turístico traz junto consigo a supervalorização de casas e terrenos da orla e próximos à praia. Kaspary afirma que estas ações têm acarretado “novas práticas socioeconômicas e o uso seletivo do território, contexto que coloca em questão o descompasso entre o desenvolvimento do turismo e o desenvolvimento social” (KASPARY, p. 103-104). De acordo com a observação do autor, o descompasso faz com que os moradores vão morar em região mais afastada, sem condições de manter-se dignamente na zona urbana pelo alto custo das moradias, o que contribui para o aumento das sub-moradias em locais que constituem bairros de ocupação espontânea onde faltam serviços básicos.
A formação do bairro Adélia Lira, também conhecido popularmente por Grota é o que se conhece por aglomerados subnormais3, aconteceu ligada às questões acima citadas observando ainda a questão da invasão de 3 terrenos. As construções das casas foram acontecendo de maneira não ordenada, as pessoas não começaram a construir e pensar, no primeiro momento na infraestrutura e no planejamento do lugar, foram apenas construindo. Os moradores da Grota têm perspectivas diferentes para abordar a comunidade que vai desde a infraestrutura ao orgulho de fazer parte.
A primeira perspectiva é quando vão identificar onde mora, o próprio endereço. A identificação acontece apontando pontos de referências, e não por ruas como é mais comum: “moro perto da antena, da de ferro, a grande”; “moro perto da antena, da de ferro, a pequena”;
3Aglomerado Subnormal é uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação (IBGE, 2019).
“moro perto da antena de pedra”; ou “moro perto do cemitério”; ou ainda moro na rua do cemitério que não é especificamente a Rua do Cemitério, mas as ruas adjacentes a este local. Seria uma forma de herança dos cabanos que não tinham um endereço nominal uma vez que se escondiam nas matas, revelando a forma como foram marginalizados pela sociedade e buscaram algumas formas de resistência.
Em outra perspectiva, os moradores quando falam do Adélia Lira, sobre o que é o bairro o que é Grota, eles começam a contar os problemas que tem a ver com a questão da urbanização ou da falta dela. São apontadas as questões da infraestrutura tais como escadaria danificada, acúmulo de lixo e o descaso do poder público com a comunidade. Soma-se a isso o aumento da criminalidade e da marginalização dos moradores, pois sempre que são noticiados crimes ocorridos na comunidade, justificam dizendo “ah sim... foi na Grota”. Inclusive os moradores têm que identificar o lugar porque tem local dentro dela que é mais complicado com relação à criminalidade, os moradores sempre tomam “enquadro” da polícia por ser morador da Grota. Seria este ainda um rescaldo do tratamento dado aos cabanos chamados de “facínoras” na descrição de Lindoso (2008) de como eram vistos e recomendados pelos mandatários. Em outras palavras, seria uma “história de longa duração” de marginalização dos cabanos e seus descendentes.
As questões são relacionadas à urbanização, trazidas pela especulação imobiliária tem causado aquilo que pode se chamar de “apartheid entre as classes sociais”. Pessoas, que muitas vezes não são moradores da cidade de Maragogi, mas que tem um poder aquisitivo maior usufrui das localidades mais confortáveis e com melhor qualidade, enquanto os moradores do município com baixo poder aquisitivo são afastados para localidades que estão relacionadas à perda da qualidade ambiental e humana.
Há, ainda, uma luta de resistência herdada dos cabanos no conjunto Adélia Lira, no entanto essa luta e resistência acontece de maneira modificada. Se por um lado a luta pelo direito à Terra com a invasão naquele primeiro momento ocasionou a derrota dos cabanos, na atualidade houve a conquista da moradia cedida pelo poder público na construção do conjunto. Por outro lado, a luta no modo de vida urbana é contínua. Os moradores do Adélia Lira reivindicam melhorias na infraestrutura do conjunto denunciando abandono do poder público e buscando maneiras de integrá-los socialmente de fato.
Aqui, pode-se fazer um paralelo com a questão da terra e do espaço da cidade. Na época dos cabanos, a terra da mata norte era uma das mais férteis e disputadas pelo complexo de mando senhorial. na atualidade a disputa pelas terras ainda vem dos poderosos “espremendo” as famílias sem poder aquisitivo das localidades de maior interesse para o turismo, jogando os maragogenses
para as moradias em locais menos favorecidos seja pela topografia, pelos empresários ou pelo poder público.
Ainda sobre a “Maragogi de dentro”
Em Maragogi, Alguns assentamentos, que é chamado ainda de Engenho, são afastados da sede do município e a parte na qual os assentados laboram é chamada de parcela. Nas parcelas agrícolas produzem hortifrútis, café e frutas como graviola, acerola, caju, jaca. De modo artesanal, das frutas são feitas polpas que são comercializadas no mercado local. Este trabalho é desenvolvido quase que exclusivamente por mulheres. Além destes trabalhos muitas delas ainda trabalham no trato da terra, plantio e colheita, ou seja, as mulheres agricultoras cuidam da produção agrícola e do beneficiamento dos produtos advindos de lá.
O artesanato como artefato pode ser considerado como uma das mais importantes manifestações de resistência dessa comunidade, representado pela Associação Mulheres de Fibra, no qual as mulheres associadas produzem peças de decoração e utilitárias utilizando a fibra de bananeira como matéria-prima. A associação fica localizada na zona rural no Assentamento Água Fria, mas conta com a colaboração de mulheres de outros assentamentos, isso reforça nossa ideia de que há uma “vida cabana” ressignificada no artesanato e na forma de organização política desse povo. Isso também é uma forma de identidade histórica do lugar, a identidade cabana.
A associação começou a desenvolver os trabalhos entre os anos de 2008 e 2009 quando reuniram mulheres que enfrentavam algumas dificuldades, oferecendo capacitação e direcionando-as à produção artesanal de um fazer ancestral remanescente de comunidades indígenas, mas que hoje é elaborada pelas mulheres dos assentamentos rurais. muitas delas além do trabalho com a fibra (FIGURA 2), desenvolve o trabalho do lar e na agricultura.
FONTE: (Foto: Jonathan Lins/G1)
Embora enredadas pelas fibras, as mulheres ainda encontram dificuldades de comercializar os artefatos (FIGURA 3) desenvolvidos por elas, tendo em vista que a comunidade rural fica distante da praia, o que é o foco dos turistas (público alvo) o grupo ainda não tem condições de financiar o transporte. Existe ainda apoio ao desenvolvimento do trabalho das Mulheres de Fibra, o Movimento de Mulheres Rurais e a Coopeagro que busca o intercurso entre as mulheres dos assentamentos que são distantes, a exposição e a vendas dos produtos.
Alagoas feito a mão. 2019
Quando se aborda as Mulheres de Fibra é necessário fazer uma relação com as mulheres cabanas. Ismélia Tavares, em sua dissertação de mestrado, resgata a importância dessas mulheres que foram invisibilizadas pela “escrita oficial”. A autora (2021) desenrola o papel da mulher na Guerra dos Cabanos: 1832 a 1850” mostrando que a história oficial colocou a mulher no papel de figurante. Ou seja, as mulheres Cabanas são subjugadas como mulheres submissas aos seus senhores, aos seus donos e aos seus companheiros. Pela história oficial, as mulheres nunca tiveram um passo de ação determinado por elas mesmas, e sim sempre por ordem de mando de outros.
No entanto, Tavares (2021) consegue resgatar o papel de protagonista desenvolvido por aquelas mulheres, e traz ainda o modo de vida cultural e de luta, seja intelectualmente articulando o ataque e embate, ou ainda na retaguarda cuidando dos feridos, seja pegando em armas dando o sangue e a vida literalmente, seja na agricultura abastecendo com alimentos na fronte de guerra atuante e significando a identidade feminina voltada a luta, o que repara bem nas Mulheres de Fibra, as cabanas da atualidade tanto na organização social e política quando interagem para a melhoria de vida em suas comunidades através do artesanato.
Outra prática artesanal ancestral relacionada ao povo afro-alagoano pode ser observada na culinária, a utilização do coco, que existe em grande quantidade na região de Maragogi, os coqueiros são encontrados na orla das praias e adentrando para as matas, o fruto se faz presente na culinária alagoana. Em Maragogi é comum encontrar vendedores de cocada ao longo da Al101 do povoado de São Bento ao povoado de Peroba. A cocada é um doce cheio de marcas culturais e segundo Correia (2009. p.41 apud FREYRE, 1976. p. 59.) está relacionada aos povos afro-brasileiros dos tempos da colonização dado a abundância dos cocais e ao cultivo da cana e produção do açúcar na região nordeste. Este doce feito de maneira artesanal na maioria das vezes, é responsável pela ocupação laboral de muitas famílias, seja na feitura, ou nas vendas, ou mesmo na feitura e vendas.
Diante do que foi apresentado até aqui, percebe-se que do há uma luta e resistência de um modo cabano reformulado uma vez que o direito à terra foi garantido quando houve conquista com a regulamentação dos assentamentos para o modo de vida rural. da mesma maneira há a resistência das Mulheres de Fibra com o artesanato de fibra como forma de integração da produção cultural a comercialização de peças de artesanato junto ao turismo, Há uma resistência por parte dos moradores do conjunto Adélia Lira em busca de melhores condições nesse modo de vida urbana considerando serem integrados pelo trabalho a rede hoteleira e turística em busca de uma identidade de fazerparte.
Grande parte da população de Maragogi, inclusive dos assentamentos, é de origem afrodescendente e indígena. Seriam estes, segundo Lindoso (2008) “remanescentes daqueles que fugiram da matança do Quilombo de Palmares e da Cabanada para se esconder na mata norte”. Por esta população é manifestada a cultura de tradição também centenária, relacionadas diretamente ao ritual do plantio e corte da cana e a cultura afro, como é o caso da dança do boi, o samba de matuto e outras manifestações da cultura popular de Maragogi.
Além do artesanato, podemos identificar uma cultura cabana nas manifestações folclóricas, a exemplo do maracatu, do samba de matuto e do Coco alagoano. O Coco Alagoano, por exemplo, para a Secretaria de Estado da Cultura (2021), “Talvez tenha surgido na zona fronteiriça de Alagoas e Pernambuco, no cordão de serras ocupadas no século XVIII pelo célebre Quilombo dos Palmares”. Carmen Lúcia Dantas salienta que na região de Porto Calvo, a qual faz parte Maragogi, as manifestações culturais foram tecidas referenciadas pela capital da província, ou seja, as manifestações deste lugar são peculiares e mais próximas das desenvolvidas no Recife.
O samba-de-matuto, por exemplo, é um folguedo praticado em algumas regiões do estado de Alagoas e é uma tradição cultural importante de Maragogi, durante muito tempo teve como
mestre de cerimônia o Sebastião Amaro dos Santos, o Mestre Tião do Samba de Matuto Leão da Primavera. O mestre Tião, falecido em 2014, deixou um legado artístico-cultural muito importante para o estado de Alagoas. Ismélia Tavares (2020) pondera que “O mestre nunca teve a oportunidade de estudar, como a maioria da população do interior, mas na sua cabeça recebe mensagens divinas que o tornou (sic) Patrimônio Vivo da Cultura Alagoana, prêmio merecido por manter as nossas raízes culturais”. O Samba-de-Matuto teria surgido nos engenhos de cana de açúcar e ganhando no decorrer do tempo adaptações de outras danças de origem africana como Coco e maracatu.
No caso do maracatu em Alagoas temos peculiaridades que demonstram os quatro pontos de vista no que se refere ao campo de lutas para a validação dos significados. Segundo a museóloga Carmem Lúcia Dantas, o maracatu foi uma dança e uma manifestaçao tecida pelos negros e que se tem nessa manifestação a crítica social do sistema vigente da época.
o maracatu nasceu na senzala. Ao contrário dos outros folguedos, mas naqueles folguedos que brincavam para Casa Grande esses não, pelo contrário, era sempre um endeusamento do sistema social vigente na época. Eles, os reisados, os guerreiros sempre cantavam os donos da casa e o clero e eram financiados pelo dono da casa porque eles representavam o lazer da família senhorial. no próprio cântico, na sua própria música, Eles criavam a letra da música, sempre endeusando aquele sistema, aquelas brincadeiras.
A museóloga salienta que o maracatu alem de ter nascido na senzala, no patio dos engenhos foi uma maneira de resistência formulada pelos negros que brincavam e dançavam livremente e que estes teriam deixado com essas manifestaçoes a liberdade do dançar como herança. No entanto, essas manifestações não eram de agrado dos senhores e houve então o cerceamento dos brincantes os quais foram presos, havendo desta forma a aplicação da distorção como ponto de validação cultural.
Carmem Lúcia salienta ainda que houve um agravamento ainda maior em Alagoas com a quebra do Xangô no início do Século XX , essa quebra cabe ao ponto de vista da distorção. no entanto a museóloga salienta que após este acontecimento da quebra, as manifestações do maracatu enfraqueceram “arrefeceu dentro dos terreiros”. No decorrer dos anos o poder dominante é ser notado com a incorporação, quando, ainda segundo a museóloga “os maracatus voltaram timidamente e com outra roupagem, como um folguedo natalino, como um folguedo cristão sendo brincado por branco(...) e que não progrediu”, podendo ser este um ponto de resistência. Na atualidade o maracatu é celebrado com a participação de pessoas bastante diversas, havendo assim uma negociação na validação dos significados que foram assimilados por brancos e católicos.
Considerações finais
O conhecimento da cultura norte alagoana é imprescindível para o reconhecimento da identidade desse povo. Por este motivo, não podemos deixar o nosso passado de luta que nos moldou até aqui ser suplantado pelo comércio de bens culturais que não nos afirma em nosso território. A negação da nossa cultura ou da maneira como ela foi tecida contribui para o apagamento da nossa história e para a manutenção do mando que sempre foi ponto de luta.
Todos os tipos de manifestações culturais, sejam elas as do passado, as reformuladas, as de tradição ou as novas, têm uma importância indispensável para a qualidade cultural e formulação das identidades. As culturas nutrem os povos e ajudam a se reconhecer, ao produzir e reproduzir, seja pela resistência ou reformular pela negociação os elementos simbólicos. O olhar para o passado, serve como “adubos para a terra” e tornam a cultura rica e viva.
Neste ínterim, nota-se que a Maragogi de fora utiliza as ações de cunho social para ampliar seu poder, tanto na dimensão interna com a exploração da mão de obra como ponto de serviços para a hotelaria, na compra de imóveis, quanto na dimensão externa no serviço de turismo explorando as belezas naturais como cartão postal e na inserção de artefatos industriais como souvenires. A Maragogi de fora tem se tornado o principal ator social, ditando as normas de conduta, de cultura e de exclusão, tendo com isto o poder ampliando.
Já a Maragogi de dentro é a forma de ligação histórica do povo da periferia com os cabanos, embora ressignificada, atualizada, e esta resistência deve figurar com destaque na construção da identidade local. As Mulheres de Fibra, por exemplo, com a produção de artesanato têm enfrentado desafios de reconhecimneto do espaço e do território, inserção no mercado e de recursos sem precedentes, no entanto, têm conquistado espaço e o reconhecimento do trabalho desenvolvido com características peculiares de mulheres maragogienses. Ou seja, o Território dessas mulheres tem sido reconfigurado por essa identidade de luta.
Os moradores do Adélia Lira tem a luta diária no modo de vida urbano buscando o direito pelo acesso à moradia adequada em um ambiente livre de discriminação, moradia digna e salubre, à proteção contra arbitrariedades do poder público, além de buscar ainda atualizar-se na formação profissional para a inserção no mercado de trabalho e no enfrentamento da concorrência desleal, no que diz respeito a preferência ou de serem preterido para algumas funções e cargos desse mercado.
REFERÊNCIAS
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Boibumbarte Alagoas Nossa Terra - Dvd2 - Artesanato- Folguedos: Carmen Lúcia Dantas 28 de mai. de 2014 disponivel em https://youtu.be/ySnHYpBMHhw acesso em 09/03/2023
Boibumbarte Alagoas Nossa Terra - Dvd3 - Artes Visuais: Carmen Lúcia Dantas 28 de mai. de 2014. disponível em https://youtu.be/QI68EqnIUFk acesso em 09/03/2023
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