Nós - Artes e Culturas

Page 1

www.facebook.com/NosArteseCultura

A literatura não veio para salvar o mundo Letras

07

RONALDO CAGIANO ESCRITOR BRASILEIRO EM ENTREVISTA FEVEREIRO- 2014 | Nº06 | DIRECTOR: EDUARDO QUIVE

Ensaio sobre Nós, os do Macurungo

de Adelino Timónio ensaio 12

UM MAKONDE CHAMADO

CASIMIRO NHUSSI

Fundação Ilha de Moçambique artes

19

artes

23


Í

www.facebook.com/NosArteseCultura FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

02

NDICE

04/05 - Efeméride

18 - Artista do Mês 17 - Música

A festa do Canhú

Rahima

DIVULGAÇÃO

Mondlane Arquitecto da Unidade Nacional

07/14 - Letras 07

Entrevista a Ronaldo Cagiano

A busca e o paradoxo, os alicerces da construção 12 identitária em Nós, os do Macurungo

15/17 - Galeria

18

Nuances de Marcos Vieira

Escultura

Seja um de Nós. Escreva-nos pelo e-mail: nosmocambique@gmail.com


E

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

03

ditorial

20 ANOS SEM UM GRANDE MESTRE

F

DIRECTOR Eduardo Quive Edição Mensal n.º 06 Matola — Fevereiro 2014 Distribuição electrónica

oi no dia 19 de

de Mandlakaze, província de Gaza

mente, a conviver com o detalhe

Fevereiro

que

onde nasceu a 25 de Fevereiro de

de Chissano.

um dos emble-

1934 foi educado pela mãe e pelos

Alberto Chissano era um

máticos esculto-

avós. A avó, uma curandeira

homem versátil. De guardador de

res do País morreu quando falta-

famosa, ensinou-lhe um vasto

rebanhos, aprendiz de alfaiate,

vam apenas seis adias para cele-

mundo simbólico que, de certa

empregado doméstico, mineiro,

brar seu aniversário, que se assi-

forma, influenciou a sua arte.

militar e empregado do Núcleo de

nala a 25 de Fevereiro. Um mes-

Outra das influências marcantes

Arte de Maputo terminou com o

tre. O quintal onde Chissano

no seu trabalho é a cultura tradi-

título de mestre em escultura,

esculpiu muitas das suas obras

cional changana que conheceu de

essa arte para qual entrou nos

logo após seu desaparecimento

perto.

anos 60, a conselho do pintor

físico transformou-se num museu ENDEREÇO Av. Mártires da Machava, 904 Bairro Patrice Lumumba - Matola E-mail: nosmocambique@gmail.com Celular: +258 82 27 17 645

COLABORADORES António Joaquim Marques (Angola) Carlos dos Santos José dos Remédios Palmira Marques (Timor Leste) Tito Selemane FOTOGRAFIA Bantus Imagem Marcos Vieira (Brasil) PROJECTO GRÁFICO Bantus Imagem

nasceu

Malangatana e fez a sua primeira

e ainda mantém-se a Galeria em

destinado a mestre. Em 2012,

exposição 1966. A sua obra conti-

que

mesmo depois da sua morte, foi

nua cuidadosamente tratada e

condecorado com Doutor Honores

cuidada pela família.

Ainda hoje a obra do mestre

Causa pela primeira instituição de

Chissano

Chissano gera uma nostalgia. Há

ensino superior de artes da Mato-

como sua matéria-prima. Algu-

uma triste razão de Ser e Estar

la, o Instituto Superior de Artes e

mas das suas obras atingem cerca

com que o Mestre assinava inde-

Cultura.

de três metros de altura.

Chissano

recebia

visitas

daqueles que amam sua arte.

Alberto

Chissano

tinha

madeira

levelmente as suas obras. Ora é o

É importante manter a obra

povo, ora as críticas ao poder.

A tristeza está estampada

do mestre e levar a mais pessoas.

Chissano

dos

em muitos detalhes da sua obra.

20 anos sem o mestre, a ideia é

pobres‖. E a sua obra faz jus ao

Mais do que a sua, era a angústia

fazer com que o Museu e Galeria

seu palavreado. Porque os artistas

do povo afectado por muitos

Chissano seja um recanto sagrado

não morrem, e para o caso deste,

males. E essa angústia até hoje

da vida e obra de Alberto Chissa-

os seus ensinamentos ficaram.

reina, quando sempre que faltar

no bem como um ponto de fuga da

Hoje Chissano ainda tem uma

seis dias para se celebrar seu ani-

sua experiência para outras mar-

legião de discípulos que alastram

versário ter que antes se celebrar

gens. No município da Matola,

as suas ideias e utopias.

a sua morte. Nasce a 25 de Feve-

cidade privilegiada desse acervo, o

reiro, mas antes morre a 19 do

Órfão de pai desde nasci-

Governo já incute aos estudantes

mesmo mês…

mento, Alberto Chissano natural

do ensino secundário, particular-

dizia-se

―deus


E

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

04

feméride

UKANYI – UM PRETEXTO PARA AMIZADE

Q

uando o ano começa os habitantes de Marracuene tem muito que celebrar, mas a maior razão para que o ano se inicie é a chegada de um presente da natureza cujas atenções e repercussão atinge até os menos atentos. Em Fevereiro o distrito de Marracuene é o centro das atenções porque os canhueiros que originam um fruto doce chamado canhú trazem a oportunidade de se produzir uma bebida afrodisíaca: o Ukanyi, ou a bebida feita a partir do Canhú. Depois de um longo intervalo em que as pessoas foram se ocupando de produzir nos campos agrícolas é preciso que chegue meses como Janeiro e Fevereiro para os canhueiros darem ao homem o fruto pelo qual se pode produzir o Ukanyi. E é na companhia de Ukanyi que o povo agradece a Deus, ou aos deuses, descendentes familiares que

foram generosos no final da época agrícola, trazendo muito amendoim, milho, mandioca, feijão entre outros alimentos que vem do cultivo da terra. E nessa época, até a visita é também bem-vinda, afinal não há fome nem sede. Percorremos alguns quilómetros da capital do país para o portão de entrada ao distrito de Marracuene, fronteira sul com a cidade de Maputo, uma extensão de terra de 666 Km quadrados e uma população de 157.642 habitantes de acordo com o CENSO de 2007. Entramos pelo bairro Kumbeza, onde em língua ronga encontramos um dos homens famosos produtores desta bebida, Armando Zimba, ou Ndzimba, como nessa língua se transformam os nomes e os homens tratados pelos seus apelidos. Ndzimba é um conhecedor da tradição do Ukanyu e nas suas capacidades tenta preservar. Mas este ano a angústia é que tomou o espaço da alegria que a bebida feita com o fruto do

canhueiro poderia trazer. Tatana Ndzimba conta-nos que não produziu o Ukanyu nesta época, tudo por culpa do desenvolvimento: ―os canhueiros foram destruídos dando espaço a construção de casas‖. Ndzimba conta que em anos passados, aquelas terras – Marracuene – eram ricas em canhueiros e por conta disso, a tradição de Ukanyi era uma certeza em todas suas épocas. Agora o espaço é tomado pela angústia quando chega a vez de se tomar essa bebida porque muitos produtores não têm mais acesso, não obstante os poucos que ainda resistem. A outra angústia do ancião é o facto do Ukanyi ser ultimamente um produto comercial, violando a grande regra dos antepassados. Ele explica aquele que era o uso correcto da bebida: ―Antigamente o Ukanyi era um pretexto para festejo, união, solidariedade e reconciliação. Toda a população juntavase no círculo do bairro ou na casa do líder tradicional cada um, com a sua quantida-

de de Canhú comidas e potes para que todas as festividades se façam sob tutela do líder. Ali na presença de todos, o mukhulo – líder tradicional, régulo – faz a cerimónia do Kupahla, esse acto no qual invocam-se os nomes dos antepassados da zona e de outros espíritos confiados, agradecendo as conquistas durante o ano e renovando os pedidos para os próximos dias.‖ Depois disso a festa, os tambores acompanham a alegria que vem nos corações de cada um, os cânticos tradicionais e as respectivas danças. Aí as mulheres e os homens com as crianças a volta, reafirmam a unidade e, para o caso concreto, a moçambicanidade celebrase. O Unkanyi torna-se, desse modo, numa tradição que consolida a harmonia e bem-estar sociais. Todas as mágoas são esquecidas e perspectivam-se novas acções, de acordo com Ndzimba, que apesar de temer a sede este ano, não deixa de esperar dias melhores.


E

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

05

feméride

Dr. Eduardo Mondlane

ARQUITECTO DA UNIDADE NACIONAL

E

du ardo Ch iv amb o Mondlane, com o prestígio inigualável de ser chamado ―arquitecto da Unidade Nacional‖ dos moçambicanos, nasceu em Manjacaze, província de Gaza a 20 de Junho de 1920. Foi um dos fundadores e primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), a organização que lutou pela independência de Moçambique do domínio colonial português. A sua morte ―prematura‖ foi a 3 de Fevereiro de 1969 em Dar es-Salaam, Tanzânia. O dia da sua morte, assassinado por uma encomenda-bomba, é celebrado em Moçambique como o Dia dos Heróis Moçambicanos Filho de um chefe tradicional, Mondlane estudou inicialmente numa missão presbiteriana suíça próxima de Manjacaze, mas viria a terminar os seus estudos secundários numa escola da mesma igreja na África do Sul. Após ter sido expulso, na sequência da subida ao poder do Partido Nacional, da Universidade de Witwatersrand, onde cursava Antropologia e Sociologia, seguiu estudos, usufruindo de uma bolsa, na Universidade de Lisboa. Aí conheceu outros estudantes que viriam a ser os líderes dos movimentos nacionalistas e anticoloniais de vários países africanos, como Amílcar Cabral e Agostinho Neto. Termi-

naria os estudos nos Estados Unidos, frequentando o Oberlin College (Ohio) e a Northwestem University (Evaston, Illinois) e vindo a obter o doutoramento em Sociologia.

se, em Nova Iorque. Em 1961, visitou convite da Missão Suíça, com vários nacionalistas, ceu de que as condições

Trabalhou para as Nações Unidas, no Departamento de Curadoria, como investigador dos acontecimentos que levavam à independência dos países africanos e foi também professor de história e sociologia na Universidade de Syracu-

para o estabelecimento de um movimento de libertação. Por essa altura e independentemente, formaram-se três organizações com o mesmo objectivo: a UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), a MANU (Mozambique African National Union, à maneira da

Moçambique, a e teve contactos onde se convenestavam criadas

KANU do Quénia e de tantas outras) e a UNAMI (União Nacional Africana para Moçambique Independente). Estas organizações tinham sede em países diferentes e uma base social e étnica também diferentes, mas Mondlane tentou uni-las, o que conseguiu, com o apoio do presidente da Tanzânia, Julius Nyerere – a FRELIMO foi de facto criada na Tanzânia, com base naqueles três movimentos, em 25 de Junho de 1962, e Mondlane foi eleito seu primeiro presidente, com Uria Simango como VicePresidente. Eduardo Mondlane morreu a 3 de Fevereiro de 1969 ao abrir uma encomenda que continha uma bomba, na casa de uma exsecretária sua, Betty King. Suspeita-se que a encomenda teria sido preparada em Lourenço Marques, pela PIDE, a polícia secreta portuguesa, mas como chegou às suas mãos e por que foi ele a abri-la nunca ficou esclarecido. Mondlane deixou viúva, Janet Mondlane e três filhos. Mais importante, deixou um livro, "Lutar por Moçambique", que só foi publicado alguns meses depois da sua morte, onde detalha como funcionava o sistema colonial em Moçambique e o que seria necessário para desenvolver o país.


B

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

06

reViDAdeS

Morreu poeta Virgílio de Lemos

C

onhecido pela sua poesia de intervenção social, Virgílio de Lemos foi um escritor de combate que lutou através das letras, contra a opressão colonial. Da geração de José Craveirinha e Noémia de Sousa, o poeta moçambicano publicou seus primeiros poemas em 1947, cujo conteúdo foi censurado pelo regime português, tendo sido preso pela PIDE. Foi também incriminado porque mandava informações sobre Moçambique para o exterior. Lemos perdeu a vida na região de Nantes, Oeste da França, vítima de paragem cardíaca após meio ano em coma e nos últimos dias em estado vegetativo.

A família conta que Lemos esteve durante muito tempo hospitalizado e chegou a dizer a esposa que preferia morrer porque já estava cansado da vida que levava. O poeta moçambicano teve AVC e, à posterior, foi submetido a uma intervenção cirúrgica e veio a perder a fala. Na madrugada de sexta-feira, Lemos perdeu a vida vítima de paragem cardíaca. A família Lemos avança ainda que aguarda informações concretas relativas ao seu funeral, mas adianta que o poeta será cremado e deixou algumas orientações sobre a forma como quer que a cerimónia decorra.

Estudantes do ISArC levam a cabo festival Kulimar

É preciso humanizar o ensino, é preciso tornar o ensino um processo de interacção, liberdade e democracia. Quando isso acontece, o contacto é mais real e verdadeiro. Não se pode pensar na educação colocando à parte a questão humana‖ Enterraram-se os tempos em que o homem moçambicano era escravizado pelo vazio artístico cultural apregoado pelas mentes ignorantes e agarradas ao conceito de que a cultura só serve para divertimento. Engana-se quem um dia assim pensou, aliás, não é preciso justificar com palavras essa falsidade, é só buscar o grandioso acto que veio provar uma vez mais que as artes e cultura podem ser o ponto de partida para se constituir uma sociedade sólida, cultural e economicamente - O Festival Kulimar realizado pelo Instituto Superior de Artes e Cultura. Será esta uma revolução cultural? Isaú Meneses nega e repudia a ideia cega de que a cultura é brincadeira. O músico moçambicano falava na inauguração de uma exposição mista, aberta por ocasião do Kulimar. O artista disse que a qualidade da produção actual significa que as artes não são brincadeira como já foram intituladas. ―É preciso que o estudante das artes e cultura se empenhe na contínua busca de qualidade para sustentar de forma concreta a importância das artes e cultura na sociedade‖. António Sarmento, docente de Artes no ISArC e peça chave no comando de todas as manifestações artísticas que marcaram o Festival Kulimar, refere que toda a produção exibida no mesmo é fruto, de algum modo, do que ele chama de humanização do ensino.

Os ventos letreiros de centro…

E

les foram respeitosos, pediram licença, portanto, é justo que se lhes receba. Entrem poetas, cronistas e escritores da chamada terra do Chiveve. É da Beira, o leito de muitos nomes sonantes das nossas literaturas. Eles denominaram-se sopradores de letras através da revista que deram nome de Soletras. Uma instigante embarcação cheia de palavras que percorre os megabytes do Índico para nos chegar pelos correios electrónicos. Não surpreende-nos tal atitude, Moçambique é um país de pensantes, o escritor aqui, deve procurar o meio pelo qual se deve afirmar. Tal aconteceu em quase todas gerações literárias, tome-se o exemplo de Charrua – a mais propalada – como a ideal excitação. São provocativos com os seus ―compadres‖ de Maputo e a própria complexidade do país ―literário‖: ―Foi a pensar em tudo isso que decidimos avançar com a presente proposta. Ela não é nova, vem juntar-se à Literatas em (hibernação?) e espaços como associações de jovens, seminários e colóquios, jornais, revistas, todos eles com fins literários‖ disse Cremildo da Cruz em editorial. O editor vai em frente na sua escrita, definindo a Soletras como aquela que vem ―responder a essa falta de espaços e órgãos de que os jovens escritores principiantes e aspirantes há muito precisavam como forma de continuarem a alimentar o seu vício de escrita‖. Nós, concordamos com o tal intento dos escribas da Beira que já se definiram como os ―sem território‖. Dany Wambire, o sempre actual cronista é quem comanda esse barco. Para quem já esteve em Maputo e fez a travessia do centro da cidade para Katembe, saberia justificar esse barco com o nome de Bagamoyo. Resta-nos que se cumpra a promessa de que nos chegue regularmente esse novo lugar de letras, a Soletras, Sopradora de Letras.

Portugal condecora Ungulani e Paulina Chiziane

O

s escritores moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa e Paulina Chiziane foram recentemente condecorados com o grau Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. O Presidente da República Portuguesa, Cavaco e Silva, na mensagem sobre as Ordens Honoríficas, afirma: ―a distinção, sob a forma de condecorações, do serviço prestado no exercício de cargos públicos, do mérito artístico, científico ou empresarial, é uma tradição que devemos cultivar, pelo prestígio que as Ordens Honoríficas possuem para os agraciados e, acima de tudo, pela circunstância de permitirem destacar personalidades e instituições verdadeiramente notáveis, que devem servir de modelo à nossa sociedade.‖ A atribuição destas condecora-

ções é sinal inequívoco do apreço e do reconhecimento, ao mais alto nível do Estado português, por estes dois escritores e intelectuais moçambicanos, que se destacam pelo grande contributo que têm dado para o enriquecimento das letras moçambicanas e para a divulgação de Moçambique e das suas culturas a nível internacional.


L

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

07

etras

A LITERATURA NÃO VEIO PARA SALVAR O MUNDO RONALDO CAGIANO, ESCRITOR BRASILEIRO

Eduardo Quive eduardoquive@gmail.com

U

m tal de Ronaldo Cagiano, brasileiro, mandou-me um livro. A obra que me chegou em Maputo tinha como título “O SOL NAS FERIDAS”. Devorei o livro na mesma tarde que o correio alertoume da encomenda que atravessou oceanos. Só depois conheci o perfil do escritor. Mineiro de Cataguases, Ronaldo Cagiano, residiu em Brasília e está já em São Paulo - lê-se na biografia do homem. Uma poesia escrita com veia e sangue. Há pessoas, há lugares, há dores, odores e frustrações, uma espécie de outra versão de “Stress” de Lília Momplé. Li e reli a obra e tudo acabou no reconhecimento. Aqui me está “o” poeta. De seguida chegou-me outro livro com título “Dicionário de Pequenas Solidões”, dessa vez era conto. E fui navegando sem medo de me decepcionar na fúria desse escritor cujo primeiro contacto geroume a fidelidade à sua escrita. Aos 52 anos de idade Cagiano só tem estórias de vida a contar, a veia é a mesma, há um escritor que persiste, há um cronista de binóculos acesos à uma sociedade incendiada. As chamas estão hasteadas, agora, resta a fumaça… E a sua escrita é capaz de criar um espaço desconhecido no leitor. Aqui o poeta, o contista, e suas histórias nesta incursão pelo discurso directo.


l

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

08

etras

NÓS - Da sua produção literária apenas conheço dois livros, o suficiente para a minha viagem na sua poesia e prosa. Livros afora, porque não sei quem é o autor dessa escrita enxuta. Comece por definir-se. Quem é Ronaldo Cagiano? RONALDO CAGIANO - Creio que aquilo que disse Fernando Pessoa, possa traduzir de certa maneira o espírito e a essência que percorrem o ser e o escritor que simbioticamente

guases é teu útero. Fale-me desse lugar e das lembranças que guarda dele. - Às margens do rio Pomba, essa hidrografia sentimental que serpenteia pelos contrafortes das montanhas de Minas Gerais, há essa cidade com sua história, sua mitologia, suas tradições e seu povo permeado de contradições. É ela o berço do menino e o território das primeiras e marcantes experiências do homem, tanto no campo afectivo, quanto no psicológico e no intelectual. A cidade

sonância do movimento modernista de 1922, que ocorreu em São Paulo e revolucionaria as artes no Brasil. Alguns jovens estudantes da cidade, entre eles Rosário Fusco, Francisco Inácio Peixoto, Enrique de Resende, Guilhermino César e Ascânio Lopes criaram essa revista, com ousadia e independência, recebendo colaboração dos principais nomes do modernismo paulista e carioca e também do exterior, a ponto de o escritor Ribeiro Couto exclamar: "Todo o Brasil está surpreso: existe Cataguases!" Depois, nos

A noite revelou-se aqui como escuridão impiedosa, uma nódoa obscura que não tinha hora nem tempo para eclodir, matéria purulenta e vil da carne violada, de um espírito conflagrado no território da pior das madrugadas: a impossibilidade do grito ou da denúncia. É das ruínas dessa escuridão abissal, é do

me povoam: "A literatura como toda arte é a confissão de que a vida não basta." RC é esse inquilino das palavras que, desde cedo, anterior mesmo ao útero, já tinha uma ligação placentária com a literatura, pois é ancestral a minha disposição de tentar estabelecer um diálogo com o mundo por meio da expressão poética ou ficcional. Desde a mais tenra idade, sentime um estrangeiro nesse "mondo cane", tentando sempre decodificar as angústias e as urgências que tanto nos atormentam. Sou movido pela literatura, a percebo em todos as circunstâncias, talvez esse exílio permanente que só os livros me possibilitam tornaram a existência possível, algo além da fugacidade de todos os instantes. Literatura para mim é chão, teto, pulmão, farol e evangelho. Sou movido pelas dúvidas e só a palavra me suscita o verdadeiro salto dialético sobre os escombros de tudo que somos e vivemos.

Pelo menos sei que Cata-

guarda desde os primórdios de sua formação uma certa atmosfera vanguardista. Foi fundada por um militar francês, Guido Marliére, desertor das tropas de Napoleão, que às margens do Pomba e do Meia Pataca encontrou seus primeiros habitantes, os índios Cataguás e que durante seu processo de instalação, consolidação e civilização recebeu a herança portuguesa de famílias que se radicaram na cidade e construíram as bases de sua economia, centrada na indústria têxtil. Talvez essa herança ibérica tenha também influenciado na instauração de uma certa consciência cultural e intelectual, pois nos primeiros anos do século XX, Cataguases foi palco de movimentos estéticos renovadores, que chamaram a atenção do Brasil e até do exterior. Na década de 20 o cinema brasileiro surge na cidade, pelas mãos pioneiras de Humberto Mauro, que inaugurou o famoso "Ciclo de Cataguases, com a primeira película, "Valadião, o cratera", seguido de "Ganga Bruta e "Thezouro Perdido", os primeiros filmes produzidos no País. Na mesma década, entre os anos 1927-1929, surge a revista "Verde", res-

anos 50 e 60, uma onda de renovação se manifesta também na arquitectura e nas artes plásticas, tendo no escritor e intelectual comunista Francisco Inácio Peixoto a grande alavanca para esse processo, um homem aglutinador, que atraiu para a cidade obras de arquitectos e pintores importantes, entre os quais Oscar Niemeyer, Cândido Portinari, Bruno Giorgi, Jan Zach, Emeric Mercier, Djanira etc. Então, nasci e fui criado numa cidade que trazia em sua gênese toda a efervescência cultural e intelectual, que foram marcantes na minha formação como sujeito e também serviram de estímulo e catapulta para uma busca também da arte em minha vida. Na esteira desse clima de profunda inquietação criadora, surge meu interesse pela literatura, primeiramente como leitor, depois como escritor.

Na sua poesia encontro os lugares. Qual é a sua relação com os lugares, não Cataguases em si que pouco já vi nos seus livros, mas Brasília e São Paulo, em particular, parecem os territórios do

ventre dessa madrugada que insistia em abusar da personagem, que extraí a luz que trouxesse à tona o tumor, rasgasse a placenta de uma indignação, que ficção adoptou e implodiu sem complacência.


L

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

etras

poeta. Quer comentar sobre isso? - Vivi em Cataguases até os dezoito anos, quando me mudei para Brasília, capital do País, uma cidade que em tudo guarda semelhança com o mesmo clima artístico que povoou meu berço, ainda que nos últimos trinta anos Cataguases tenha vivido um certo ostracismo nesse campo, por culpa e obra de administrações totalmente alienadas de sua verdadeira vocação. Brasília e Cataguases comportam uma similaridade quando penso que a capital do País é fruto de um sonho e de uma ousadia nascidas de um visionário, Juscelino Kubitschek, que vencendo toda a oposição hepática daquele momento ergueu uma cidade em pleno (e desértico) coração, fazendo despertar o Brasil, um gigante adormecido, que sempre esteve de costas para o interior e de frente para o Atlântico. E Cataguases também, a seu tempo e seu modo, foi uma cidade que ultrapassou os limites do provincianismo e da mediocridade reinantes em qualquer cidade do interior brasileiro, e num tempo de poucos recursos e valores e costumes tradicionais e arraigados, soube fazer suas rupturas através da arte, principalmente da literatura e do cinema e mostrar que havia vida inteligente e pulsante onde muita gente só reconhecia uma vocação mediana para a economia agrária ou industrial. Vivi 28 anos em Brasilia e tomando emprestado uma frase de Gilberto Gil, Brasília me deu régua e compasso, mas foi Cataguases que me concedeu as raízes do que sou hoje. Toda minha construção literária tem como respaldo os referenciais de minha formação inicial e de minhas descobertas e experiências, que remontam à meninice à beira dos córregos, aos dias passados na barbearia do meu pai (em cujo salão engraxei sapatos dos 8 aos 14 anos, e onde recolhi histórias da cidade e de seu povo), às primeiras leituras nos livros emprestados da biblioteca do Colégio Estadual. Esses são os alicerces que me sustentam até hoje. Se em meus poemas, há momentos em que dialogo com Brasília e com São Paulo (onde moro há 7 anos), é em Cataguases que busco refúgio, repouso e sustentação, onde retiro matéria e circunstância para a confecção literária, ainda que um poema ou um conto nasçam em outros sítios, no íntimo percebo que essa ancestralidade e dependência são fortíssimas. Enquanto Brasília e São Paulo são territórios físicos e geográficos contemporâneos, são ambiência factual de minha escritura, Cataguases é a coordenada afectiva que não me deixe perder o rumo, é a bússola que me conduz.

Um escritor aos 52 anos de idade o que lhe cabe dizer sobre a leitura? - A leitura é fundamental em qualquer tempo e lugar, em qualquer país. Seja qual for seu estágio de desen-

volvimento, uma verdadeira nação só se emancipa pela educação e pala cultura, ainda que na maior parte não há como defender a leitura como primordial ou essencial na vida das pessoas, enquanto encontramos populações inteiras que precisam se alimentar, vivem na completa pobreza e indigência, sofrem criminoso apartheid provocado pela miséria e opressão política. Mas um país sem leitores é um país catatônico, que não consegue caminhar porque não forma massa crítica. A leitura liberta, porque transforma o homem num ser inquieto e que não aceita verdades prontas e certezas definitivas, sejam elas as políticas, as filosóficas, as religiosas ou ideológicas. O Brasil continental, com seus quase 202 milhões de habitantes, ainda não é um País de leitores, infelizmente. Ainda carecemos de uma política permanente de estado, que trate o livro e a leitura como essenciais, como produtos de uma cesta básica. Sim, o livro deveria ser incluído na cesta básica da população, pois ao lado da comida barata deve haver o alimento espiritual e intelectual também acessível, o livro. No Brasil lê-se pouco e quando o homem mal lê, lê mal, porque nossos leitores, em sua maioria são vítimas do analfabetismo funcional, produto de uma escola pública de má qualidade; por outro lado, o mercado acaba por impor goela abaixo da população o lixo literário que vem de fora, que aqui chega com status de excelência e ao invés de formar, deforma. Além do mais, o hábito de leitura ainda não está totalmente consolidado, porque antes de fazer parte de um projecto didáctico e pedagógico, deve ser estimulado no seio da família. O que ainda compromete a difusão do livro é o elevado preço de capa, um dos mais caros do mundo e a carência de bibliotecas na maioria das cidades brasileiras. Somos a sétima economia do mundo, mas vivemos uma contradição: abrem-se mais igrejas evangélicas, arenas de rodeio, celas de presídio ao invés de bibliotecas, livrarias ou salas de aulas. Há mais pastores que professores. Enquanto essa lógica permanecer, seremos um país empobrecido intelectual e culturalmente, bestializado pelo pentecostalismo que avança feito beldroega e dominado pela avidez de um sistema editorial avassalador, que pensa no lucro, em detrimento da própria formação de seus leitores, que são obrigados e engolir obras de quinta categoria, enquanto a verdadeira literatura está hibernada e os autores de qualidade padecem pela falta de espaço.

Em O Sol nas Feridas a lírica amorosa converge com toda a degradação social. Qual é o motivo dessa relação? - Tento fazer um contraponto

entre o sentimento amoroso, a percepção lírica e a expressão crítica diante do mundo que aí está e tudo o que o torna desumano, desagregador e injusto. A literatura não veio para salvar o mundo, quando muito resgatar o autor por meio de suas catarses, quando exorciza seus fantasmas, enfrenta suas obsessões e digladia contra os inimigos visíveis ou ocultos. Nesse livro, como num poema de Nicolás Guillen,"venho com minhas lembranças./ Venho com minhas feridas/e meus versos." Penso na poesia como instância de enfrentamento de nossas angústias, de nossa insularidade nesse tempo de coisificação e etiqueta, de nosso desconforto e deslugar num tempo em que fazer poesia pode ser entendido como um

09


l

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

10

etras

luxo enquanto o lixo universal nos atola e sufoca. Mas é contra esse "status quo" que a(s)cendemos a chama e o libelo da palavra poética. "O sol nas feridas" tenta iluminar essas cicatrizes, para que as feridas expostas, de nossas dores de amores ou de nosso sofrimento diante do caos e da desorganização que aí vicejam sejam sacudidos pelo nosso susto e a luta a(r)mada de toda palavra.

Que grau de labor poético exigiu de ti esse livro? Me parece que a preocupação com o tempo e espaço causou o delírio do poeta? - Como em Drummond, que trouxe à sua construção todo o sentimento do mundo, procurei também nesse livro falar do "tempo presente/do homem presente/ da vida presente." Ou como Bandeira, "da vida que poderia/ter sido/ e não foi." Falo a partir de um olhar que me exigiu, ao longo de anos, uma certa depuração, para perceber, sem cair no panfletarismo (quando trato de temas sociais) nem na exacerbação do eu lírico (quando repasso o território afectivo) e tentar (re)colher

das lutas e lutos diários (como também nos diz o poeta paraibano Leo Barbosa em um volume que fala desse movimento constante de perdas que inventariamos ao longo da vida), o que é fundamental para sobrevivermos aos escombros da caminhada. A passagem do tempo, o absolutismo da morte, o silêncio dos outros, os espaços geográficos e psicológicos sempre me interessaram como matéria literária, são fontes permanentes de preocupação, por-

que acredito que estamos aqui para vencer isso, viver é uma luta permanente contra tudo isso que nos escapa, que se esfarinha pela moenda de Chronos, porque somos nada num pomar de bactérias.

Vejo ainda nessa obra que a sua relação com o campo urbano é inflamada. O ambiente urbano é uma fonte de inspiração? - Sem dúvida, dentro de cada cidade há uma cidade que não sabemos. Dentro de cada habitante, há um homem que desconhecemos. A minha poesia, ao contemplar essas geografias, mergulha nesses meandros, tanto da metrópole quanto dos seres que (sobre)vivem a ela. A urbe é um permanente campo de conflitos, de confrontos, sítio onde pululam todos os contrastes e em que se percebe mais fortemente o individualismo, o alheamento e a passividade. Essas condições me interessam como matéria poética, como fonte de inquirição permanente e isso me remete a uma fala de Walter Benjamin: "Nenhum rosto é tão surrealista como o verdadeiro rosto de uma

cidade." Minha poesia se invagina nesse cenário, com uma mirada ao mesmo tempo cirúrgica e terna, na expectativa de desvendar a cidade por trás da cidade, esse espaço que nos ilude com seus labirintos.

E as pessoas, a vida em si. Isso recorre-me ao conto todas as estações. Uma autêntica loucura. A vida ganha outra dimensão e conto ganha o estilo de crónica. Quem é o

escritor nesse lugar? Quais são as suas exigências? - Esse é um conto que metaforiza de forma caleidoscópica a capital da república, Brasília, que apesar de ser uma cidade nova, já apresenta suas rugas e sua vida pulsante é povoada de dicotomias, é espelho do próprio Brasil, com sua heterogeneidade e seus problemas. O conto é escrito a partir de observação durante uma viagem de metrô, num curto espaço geográfico e temporal em que situações, vidas, ocorrências desfilaram velozmente como numa película. Ali está um pequeno extracto das contradições vividas pelo homem e a cidade em seu enfrentamento quotidiano com a realidade, em que tudo parece (o)correr numa dimensão onírica, como se fosse "tudo ao mesmo tempo agora".O escritor também é um protagonista, porque passageiro desse trânsito difuso de tipos, corpos e olhares que reflectem a impessoalidade da vida nos grandes centros. Quis fotografar instantes de uma babel urbana, flagrantes que certamente nunca se repetirão da mesma forma, mas que a cada dia vão ocorrer com a mesma forma tensa e densa, porque o hibridismo de tantas existências anónimas e a urgência que tudo dilacera e insula-

riza é que conduzem essas existências & almas em desalinho, esses espíritos desassossegados, esse rebanho que viaja todos os dias em busca de um porto seguro ou de uma utopia. Essa realidade registrada por mim num conto passageiro (sobre passageiros do imponderável) é um olhar crítico e reflexivo sobre esse brutal enfrentamento quotidiano de muitas metrópoles, a solidão e o individualismo marcando o (des) compasso de existências. Essa experiência narrativa que nasceu de uma observação mais detida, desnudou-me um mundo

repleto de significação, antes não havia percebido esse mosaico humano de profunda riqueza e ao mesmo tempo de inegável sofrimento, justamente onde reside a beleza trágica da vida. Essa experiência me remete a um poema de Drummond: "Há uma cidade em ti que não sabemos." Esse mundo submerso, mas que todo dia passa diante de nós, muitas vezes nos escapa, mas a literatura vem com seu aparato para nos escandalizar, para nos tornar mais suscetíveis ao que é urgente observar, com lentes críticas que nos permitem panoramizar o homem em seu eterno movimento para vencer a poeira do tempo e se comunicar.

A frustração e metas inalcançáveis não faltam nos seus textos. Tanto em poesia, como em prosa. Parece que os seus personagens estão condenados ao sofrimento e a miséria. De onde vem esses seres tão sôfregas? - Meu projecto literário abarca a tentativa de compreender a miséria que nos cerca e não me refiro somente àquela mais indecente e plausível, a material,

financeira e social. Falo dos dramas e misérias, das pequenas tragédias que cada vida carrega, do homem perdido no labirinto de suas próprias insatisfações, do ser apequenado pela falta de espaço e oportunidade num mundo globalizado, em que a competição revela o pior de cada um; do sujeito que vive seus passivos afectivos e não encontra resposta para suas angústias, enfim tangencio questões existenciais que percorrem a humanidade desde os primórdios. Procu-


l

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

11

etras

ro reflectir sobre o lugar do homem num tempo em que há um veloz escalonamento de valores e que demandas nos transformam em máquinas e os sentimentos são substituídos pelo pragmatismo e pela violência de metas a serem perseguidas,

No poema Escamas: ―A vida, em suas estranhas latitudes,/ território lisérgico onde dormiam meus fantasmas/ já não é mais o cemitério onde cultivo desilusões/hoje, planeta do qual não me escondo, catapulta -me sobre os abismos‖. Qual é na verdade o abismo que te catapulta? - É toda a sorte de desencantos, é todo o caos que nos rodeia. A catástrofe que mais oprime é o sensação de deslugar, de nãopertencimento, de apartheid e de crescente isolamento a que o ser vai sendo empurrado, encurralando-se no cipoal de uma civilização que, apesar das conquistas da modernidade e dos benefícios da tecnologia, ainda é capaz de actos de reprovável medievalismo, como um país invadir outro em nome da democracia, ou o terrorismo ser utilizado para justificar uma fé delirante e inabalável. O abismo é um conjunto brutal de comportamentos, sejam eles humanos ou políticos, no cerne das pessoas ou no bojo das instituições, que culminam no apequenamento e no aviltamento da civilização e da própria convivência dos homens e dos povos entre si.

Ao encontro do livro ―dicionário de pequenas solidões‖: atenta-me a serenidade com que relata a tragédia a personagem. Há uma calma fria com que é contada a história, como se de uma violação sexual não se tratasse. Entendo esse cinismo como um acto vingativo ao próprio acto macabro. Comente essa minha observação contandome as razões desse conto. - A tragédia está exposta não com as tintas estereotipadas de um abuso, mas subrepticiamente por meio do fluxo de consciência em que a personagem vai deslindando, num processo vertiginoso de lembranças e analogias com o próprio passado histórico do país e do mundo, um momento crucial de sua infância, em que a violação que sofreu também é uma metáfora dos tantos abusos por que passa o próprio mundo em suas mutações e mutilações. Ao passar em revista à sua dor, a catarse também funciona como uma pá de cal, a tentativa de exorcizar um velho fantasma que a agredia e mesmo sem nomear o lugar e o algoz, a vingança subtil se estabelece e exerce um papel apaziguardor, na medida em que a personagem excrementa o que ela carrega como uma sujeira moral, cuja culpa é retirada

de seus ombros, com o mesmo cinismo e violência com que lhe impuseram tamanho peso um dia. Esse conto foi escrito a partir de um relato, um acontecimento real na vida de uma pessoa e aqui o autor incorporou toda a carga miserável e dolorosa de um crime silencioso e impune, para fazer "justiça", em que a condenação não será a perpetração de uma

caso, sofreu o abuso antecipado de uma condenação moral, execrado em praça pública por um político recém-eleito e empossado, mas inescrupuloso. O homem ultrajado pela bile de um vereador faminto de revanchismo contra a corrente política que havia sido derrotada numa eleição municipal, toma as rédeas de uma vingança privada para

o homem incurável em seus instintos de sobrevicência, que carece de uma nova mentalidade civilizatória que procuro reproduzir nessas histórias, (re)colhidas dos meus espantos.

Aliás, tratando-se dos melhores momentos para a criação, qual é para si o lugar e a hora propícia para que saia um poema ou um conto? - Em qualquer hora, tempo ou lugar. No trabalho ou em casa; sob o chuveiro ou numa viagem, a história pode nascer ou um poema irrompe diante de si, inapelavelmente. Uma observação, um detalhe de uma conversa, um flerte de um cenário, um acontecimento, uma notícia de jornal, um imprevisto no meio da multidão ou uma lembrança qualquer, de repente há um insight e o verso ou a história se impõem e o autor é instrumento de sua arquitectura e é dominado por essa pulsação, por esse fluxo que penetra e procura espaço, como água de um rio, que se insurge contra todos os obstáculos até ganhar o oceano, alargando as margens por onde passa.

pena, mas o juízo da recompensa punitiva estabelecido por meio da ficção.

Se existe o mito de que a noite é o melhor momento para a criação, poderíamos ter esse conto como surgido no colo da escuridão? - À noite credita-se o aparecimento de todos os fantasmas, mas essa assombração que atormentava a protagonista desde remota idade proclamava uma angústia insone. A noite revelou-se aqui como escuridão impiedosa, uma nódoa obscura que não tinha hora nem tempo para eclodir, matéria purulenta e vil da carne violada, de um espírito conflagrado no território da pior das madrugadas: a impossibilidade do grito ou da denúncia. É das ruínas dessa escuridão abissal, é do ventre dessa madrugada que insistia em abusar da personagem, que extraí a luz que trouxesse à tona o tumor, rasgasse a placenta de uma indignação, que ficção adoptou e implodiu sem complacência.

O mesmo cenário de chacina e terror se vive no conto dies irae. Qual o retrato de uma vingança fria vindo de quem um vereador não podia esperar? - Nesse pequeno texto, baseado numa história real acontecida em Cataguases, dei vez e voz ao assassino que, no

colocar fim a uma humilhação pública e desfere os tiros fatais contra um político que ascendia naquela hora como uma espécie de macartismo municipal, numa torpe caça às bruxas de uma administração que havia sido vencida nas urnas. Aqui assassino e assassinado protagonizam o auge trágico de uma disputa mesquinha, num cenário mediocrizado pelas paixões que sempre dominaram as campanhas eleitorais nos rincões brasileiros, onde o exercício político sempre foi conduzido por oligarquias, em que a racionalidade era vencida pelo personalismo opressor.

Vejo nesse texto alguma reacção insana. Na verdade os contos desse livro mostram-nos uma sociedade doente. O fundamental intento dessa abordagem do quotidiano? - Nos contos desse livro há um espelho de uma sociedade que oscila entre a passividade e a reacção, numa demonstração cabal do desequilíbrio e das contradições vividas pelo próprio homem, principalmente quando colocado frente a frente com suas crises, com seus dilemas ou qualquer tipo de pressão, seja ela de ordem familiar, política ou laboral. É o homem, sem mistificação, que procuro retratar nesses personagens, muitos deles enfrentando situações-limite, tantos andando no fio da navalha. Não é a sociedade doente, mas

Tem uma opinião sobre a actual literatura brasileira? - Vivemos um período de intensa produção literária em todos os géneros, diria um verdadeiro "boom" criativo, que tem proporcionado o surgimento de muitos novos e bons autores de ficção e poesia e a consolidação de outros nomes já estabelecidos. A internet, por meio de blogs e revistas electrónicas, é um exemplo desse painel multifacético da literatura brasileira contemporânea, tem sido um instrumento preponderante para a difusão e termómetro das novas correntes criativas. Porém, em meio à profusão de tanta novidade, há que ser ter uma consciência estética e discernimento capazes de nos fazer perceber que nem tudo que cai na rede é peixe e separarmos o joio do trigo. Mas o que tem valor e qualidade, fatalmente resistirá à poeira do tempo, à exigência dos leitores, aos apetites do mercado e ao funil da crítica.

Acredita em momentos de inconsciência no acto da escrita? - Sim, há momentos de completa apatia ou bloqueio criativo. Essas crises também são fundamentais à vida e à obra de qualquer artista. Elas nos sinalizam para a necessidade de retomar o fôlego, rever caminhos, apontar novas direcções e se ter a humildade e a autocrítica para perceber deficiências e corrigir o que não está a altura. Às vezes é preciso ser como a Fênix: renascer das próprias cinzas.


l

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

12

etras

A busca e o paradoxo, os alicerces da construção identitária em Nós, os do Macurungo

José dos Remédios mirettemuzi@gmail.com

I

N

ão aprendi, como B a l za c . M as , falando em nomes, chamome José dos Remédios. José significa ―aquele que acrescenta‖, ―o acréscimo do Senhor‖ ou mesmo ―Deus multiplica‖. O nome provém do hebraico, YOSEF, e, originalmente, significa ―Ele [referindo-se a Deus] acrescenta‖¹ – dos Remédios já se sabe. Fazendo jus ao meu primeiro nome, nesta reflexão irei – ficando

Aos três… Aurélio Cuna, as lágrimas… Aurélio Furdela, a confiança… Aurélio Ginja, a oportunidade…

com o primeiro significado, ―aquele que acrescenta‖ – acrescentar alguns parágrafos ao que está muito bem escrito em Nós, os do Macurungo, um dos livros de Adelino Timóteo. Não aprendi, como Balzac. Mas, à semelhança de Adelino e de todos que fazem da escrita uma vida, percebi que ―tinha de aprender, e não tardei aprender, que um homem tinha de desistir de tudo e não fazer mais nada senão escrever, que tinha de escrever, e escrever, e escrever, mesmo que toda a gente o desaconselhasse, mesmo que ninguém acreditasse nas suas potencialidades‖ (Miller,

Tinha de aprender, como Balzac aprendera, que um homem devia escrever colunas e volumes antes de assinar com o seu verdadeiro nome. Henry Miller

2000: 33). Consciente disso, antes de mergulhar nesse universo fantástico – não entendamos o fantástico numa perspectiva todoroviana, mas naquela a que o senso comum atribui a alguma coisa sublime – que se projecta através de uma escrita verosímil, o nosso autor, se (não) “respeita a Deus”, e este é o significado de ―Timóteo‖, através da narrativa, parece pretender fazer parte de uma linhagem nobre, como se a condizer com o significado do seu primeiro nome, ―Adelino‖, ―aquele de linhagem

nobre‖. Aliás, Nós, os do Macurundo integra perfeitamente nessa linhagem se tivermos em conta que alguns livros lançados pela Alcance este ano, Entre Memórias Silenciadas, de Ungulani ba ka Khosa e A Legítima Dor da Dona Sebastião, de Lucílio Manjate ou, no ano passado, Nghamula: o homem do Tchova (ou o Eclipse de um Cidadão), de Aldino Muianga, apresentam universos diegéticos construídos sobre os mesmos alicerces conducentes a construção de uma imagem identitária²: a busca e o paradoxo. Nesta

intervenção

procuro

¹Ver http://www.dicionariodenomesproprios.com.br. ²Segundo Claude Lévi-Strauss (1997), citado por Bernd (2003: 16), identidade é uma entidade abstracta, sem existência real, mas indispensável como ponto de referência. Assim, como dirá Bernd (2003: 12), a identidade nacional é um “meio” importante para entrar em relação com o outro e não um “fim” em si. Matusse (1998) parece apologista da ideia de a identidade ser uma entidade abstracta, um ―meio‖ e não um ―fim‖, quando se refere aos factores intangíveis que concorrem para a construção da imagem de moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani ba ka Khosa. ³Refiro-me à obra Os Molwenes, de Isaac Zita. Nesta colectânea de onze (11) contos, se por um lado as histórias que envolvem personagens infantis são contadas por um narrador heterodiegético, aquele que não participa na história que narra como personagem (Reis e Lopes, 2000: 262 – 265), (―Os Molwenes‖, ―Tika‖ ou ―A Menina de Dez Anos‖), por outro as histórias são contadas por um narrador autodiegético infantil (―O Areal‖, ―Bátegas de Chuva‖) e adulto (―Diário de um Professor Estagiário‖). Refiro-me ainda à obra Nós Matamos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Houwana, com sete (7) contos, os quais apresentam personagens e narradores autodiegéticos infantis com grande protagonismo (―Nós Matamos o Cão Tinhoso‖, ―Inventário de Imóveis e Jacentes‖ ou Papá, Cobra e Eu‖.


l

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

13

etras

mostrar que [Nós, os do] Macurungo funciona como um lugar propenso à construção identitária das personagens e, consequentemente, dos moçambicanos no geral.

II

Na verdade, à semelhança do que se passa com a escrita de Isaac Zita, Luís Bernardo Houwana³ ou Elcídio Bila – um jovem que ainda percorre os labirintos da publicação – Nós, os do Macurungo é a história enunciada por uma voz jovial que se adivinha pertencer a um narrador de meia-idade⁴. No caso, um narrador autodiegético, por integrar nas histórias que conta como personagem principal (Reis e Lopes, 2000: 259 – 262). Entretanto, se em autores como Zita e Houwana é possível usar os conceitos atinentes aos estatutos dos narradores com muita lucidez devido aos nítidos protagonismos das personagens, em Timóteo essa nitidez permanece difusa, pois o protagonismo do narrador autodiegético é intermitente: em alguns casos o narrador da história assume o protagonismo diegético ao desenrolar as funções cardinais⁵, noutros casos esse protagonismo é partilhado com personagens excepcionais como pai de Khawenda ou

com espaços diegéticos como Macurungo. Falando em Macurungo, termo bantu que deriva de ―marungo‖, nome para batata-doce – esta é a convicção do nosso autor – é uma região da Beira que mais do que isso, na obra funciona como um lugar propenso à construção identitária das entidades textuais e de uma nação que a cada alvorecer busca conhecerse melhor do ponto de vista histórico e sociopolítico. Ajuda-nos a enfatizar esta ideia a concepção de ―Estado‖ que o professor Mucote passa aos

seus alunos:

Estado quer dizer ‗nós‘, ‗o partido que nos une e dinamiza

o povo‘, bem a nossa ‗colectividade, onde estamos todos inclusos: crianças, velhos, adultos, proletários e operários, aliados encabeçados pelo nosso camarada Presidente.‘ (p. 60).

Porque sou céptico em relação a existência de uma colectividade em que todos os indivíduos estão integrados, e mais céptico ainda em relação à existência de um partido que une e dinamiza o povo, fiquemos com a primeira afirmação daquele professor, a qual sou apologista:

―Estado quer dizer ‗nós‘‖ – ou deveria dizer. A partir daqui tudo se explica, ou melhor, se ―Estado quer

dizer ‗nós‘‖, neste contexto, com o título Nós, os do Macurungo Adelino eleva aquela região da Beira quase ao patamar do ―Estado‖, pois é com o cronótopo de Macurungo e o seu folclore que se robustece a construção de uma imagem de moçambicanidade6. Para o efeito, como se a acentuar o nome e o imaginário circundante, nesta narrativa de Timóteo passa-se o mesmo fenómeno que nas já citadas obras de Khosa, Manjate e Muianga, a busca pela compreensão dos fenómenos sociais a partir do passado e a recuperação dos paradoxos identitários em ebulição nessa época. Como exemplo desses paradoxos, consequência do processo da formação do ―eu‖ e do ―nós‖, é introduzido na narrativa o pai de Khawenda, uma personagem que ao se dedicar a abandonar a sua matriz bantu, perde-se ao tentar forjar em si e nos seus conterrâneos uma personalidade singular. Com efeito, é assim que o escritor, o poeta, o artista plástico, o jornalista revela a sua preocupação com os aspectos profícuos à edificação da identidade artística de um país novo, com um passado inesgotável e, por isso, uma literatura e cultura ainda por descobrir⁶. Almejando enaltecer esse espaço, no qual as personagens se conectam com as suas histórias individuais, Adelino intitula a sua décima

⁴Parece-me que ao se activarem personagens infantis para falarem de assuntos sociais embaraçosos pretende-se disfarçar o azedum daí resultante, porque ―no meio daquelas carências, a nossa fértil imaginação, nós os do Macurungo inventamos sistemáticos modos de celebrar, transformando tristezas comuns em alegrias gerais‖ (p. 112). ⁵“As funções cardinais são unidades-charneiras da narrativa: representam as acções que constituem os momentos fulcrais da história, garantindo a sua progressão numa ou noutra direcção‖ (Reis e Lopes, 2000: 186).

6Ver Matusse (1998). ⁷Ver o artigo “Moçambique: uma cultura e literatura por descobrir”, de Adelino Timóteo.

⁸João Xilim é protagonista de Portagem, de Orlando Mendes. É mulato filho de mãe negra (Kati) e pai branco (Campos), cuja paternidade lhe recusou. Por isso, em ambientes degradados como o Marandal, rejeitando a sua origem europeia, Xilim tenta aproximar-se às suas raízes negras.


l

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

14

etras

terceira (13ª) exposição de artes plásticas Mussicanas de Macurungo, traduzindo, Donzelas de Macurungo. Melhor dizendo, este artista multifacetado recorre a vários artifícios à sua disposição para fazer da terra onde passou a infância, uma região privilegiada, por ecoar aos ouvidos do país e do mundo uma cultura em permanente redescoberta. Macurungo, portanto, funciona simbolicamente como um espaço através do qual a escrita de Adelino Timóteo se projecta rumo à (trans) nacionalidade literária. Deve ser por isso que a certa altura a narrativa activa no gato da dona Tina um perfil idêntico ao do Cão-Tinhoso e nas personagens Dino, Dinis, Bai e Maria, um perfil idêntico ao das personagens Ginho, Quim, Gulamo e Isaura, de Nós Matamos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Houwana. Deve ser por isso que a certa altura a obra interage com Portagem, de Orlando Mendes, quando nos apresenta um personagem à imagem de João Xilim.⁷ Refiro-me ao mulato Jowane,

Mulato bom de coração. Mulato que de mulato só tinha a pele clara e os cabelos desfrisados. Mulato que não ligava nenhuma às suas raízes europeias. Nasceu e cresceu no subúrbio da Xipangara. E o seu mundo era aquele: um homem de tez clara e cabelos desfrisados convivendo no meio indígena. Era o protótipo de mulatos de mãe negra e pai incógnito. Mulato rejeitado pelo pai branco e a quem nada resta senão a opção de ser leal às suas raízes africanas (p. 104).

Deve ser por isso que o título desta obra de Adelino Timóteo lembra-nos um outro, de um escritor cuja escrita preocupa-se muito com os musseques e em projectar histórias incríveis que neles acontecem – também encontramos esta particularidade no nosso autor. Refiro-me à obra Nós, os do Makulusu, do escritor angolano José Luandino Viera, cuja preocupação pelos contextos sociais e políticos em cruzamento com a história (angolana, logo se vê) que se configura nos anos da luta armada de libertação nacional é igualmente axiomática. Esta aparente apropriação é realmente interessante, pois revela-nos que Timóteo e a literatura moçambicana constroem-se através dos contactos que se estabelecem entre os escritores de cá e de outras

literaturas. Nós, os do Macurungo é uma narrativa de trajectórias em que uns partem e outros chegam para ocuparem os espaços dos que partem sem perspectivas de regresso. O camarada Tchitcho é atento a este fenómeno e as suas consequências: Mas parece-me que há aqui duas classes de ocupantes dos imóveis: os que saíram do cimento para o cimento e os que saíram do subúrbio para o cimento. Só na província de Sofala o parque imobiliário é de catorze mil imóveis e mais da metade destes estão danificados, porque muitos dos que saíram do subúrbio para cimento não sabem utilizar os imóveis, praticam abortos e colocam fetos no autoclismo, assam castanhas nas banheiras das casas, tiram o parquet do chão para fazer lenha, quando partem vidros substituem-nos por contraplacados ou por nada. (p. 43).

Este excerto vem mesmo a propósito porque nos conduz à ―quarta escrita do narrador‖ da obra Os Narradores da Sobrevivência, de Nelson Saúte, com a qual, de forma muito evidente, estabelece um intenso dialogismo textual: quer ao nível dos enredos em si quer ao nível da consciência das entidades enunciadoras dos discursos. Vejamos:

Os inquilinos acendiam fogões a carvão nos andares, punham a lenha em chamas nas flats, as paredes escureciam ocultando o branco que haviam tido antes. Os homens, nas suas horas de lazer, plantavam pequenas hortas nas banheiras. Eles ignoravam a utilidade dos pequenos objectos que se atulhavam nas casas de banho da revolução. Os prédios caiam aos bocados – como podiam resistir? (p. 71).

De modo algum: nem os prédios de Os Narradores da Sobrevivência resistiriam aos maus tratos e tãopouco Nós, Os do Macurungo resistiria à necessidade de incorporar no seu universo todas estas situações que nos livram do aspecto grave com que lemos um livro para, em compensação, nos proporcionar razões que nos levam a interromper momentanea-

mente a leitura para rir euforicamente. Todas estas trajectórias, dos que vão, dos chegam, dos que voltam, dos ficam, dos que nunca chegam e nunca voltam a Macurungo, na verdade, fazem parte dessa busca incessante e paradoxa pela construção identitária das personagens, do narrador e do narratário (ou leitor) enquanto ouvinte e memória dos eventos contados. Ora, nesta narrativa do autor de obras como Os Segredos da Arte de Amar (1999), A Fronteira do Sublime (2007), A Virgem da Babilónia (2009) e Nação Pária (2010), a evasão é uma outra componente diegética sobre a qual a personalidade das personagens se alicerça. Se por um lado uma personagem consome álcool na tentativa de fugir da realidade, por outro, essa evasão e satisfação à mistura é feita com recurso à uma máquina de escrever, relíquia da família do narrador, fonte de conhecimento, de liberdade, de força anímica, e importante artefacto na projecção do passado e do presente. Por isso os ―macurunguesses‖ a disputam sem cessar, fazendo com que a mãe do narrador proteste:

Houwana, L. B. (2008) Nós Matamos o Cão Tinhoso. Lisboa: Edições Cotovia. Khosa, U. (2013) Entre Memórias Silenciadas. Maputo: Alcance Editores. Manjate, L. (2013) A Legítima Dor da Dona Sebastião. Maputo: Alcance Editores. Matusse, G. (1998) A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani ba ka Khosa. Maputo: Livraria Universitária. Mendes, O. (1981) Portagem. Maputo: Instituto Nacional do Livro e do Disco. Miller, H. (2000) Trópico de Capricórnio. Largo da Lagoa: Biblioteca Visão. Muianga, A. (2012) Nghamula, o homem do Tchova (ou o Eclipse de um Cidadão). Maputo: Alcance Editores. Reis, C. e Lopes, A. (2000) Dicionário de Narratologia, 7ª Edição. Coimbra: Livraria Almedina. Saúte, N. (2000) Os Narradores da Sobrevivência. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

Deixem a máquina de meu marido repousar! [não se confunda a máquina do marido da mãe do narrador com a ―máquina‖ do marido da mãe do narrador. Isso seria um caos] Há seis meses que está saltando de quintal em quintal. Apesar de ser de ferro, ela também reclama descanso‖ (145).

Timóteo, A. (2013) Nós, os do Macurungo. Maputo: Alcance Editores.

Depois disto, nada mais a

Zita, I. (1988) Os Molwenes. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos.

dizer. Leia-se o livro e diga-se alguma coisa, porque ―a vida é tão pequena para se estar em silêncio!‖ (p. 76).

José dos Remédios Infulene, 19 de Setembro de 2013, 11:51h

————————— Bibliografia Bernd, Z. (2003) Literatura e Identidade Nacional, 2ª Edição. Porto Alegre: Editora da UFRGS.

Vieira, J. L. (1985) Nós, os do Makulusu, 4ª Edição. Lisboa: Edições 70.

Outra fonte: h t t p : / / www.dicionariodenome sproprios.com.br [acessed on Setembro 2013]. Timóteo, A. (s/d) Moçambique: uma cultura e literatura por descobrir. Online document: Adelino Timóteo Publications site, [Acessed on September, 1].


g

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

aleria

NUANCES Marcos Vieira marcosvieira2002@gmail.com

15


g

FEVEREIRO 2014

aleria

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

16


g

FEVEREIRO 2014

aleria

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

17


JANEIRO 2014

Artes Artista do Mês

POESIA | MÚSICA

Tânia Tomé: música, poesia e corpo

T

ânia Tomé já é conhecida, não só como poetisa, compositora e cantora, mas pelo movimento por si levado a cabo desde 2008, denominado ―showesia‖. De acordo com a poesia, showesia são as várias artes em intercâmbio simultâneo no mesmo palco tornando a poesia viva. Esse conceito já é conhecido e através do qual, Tânia Tomé tem se feito presente em vários fóruns. Numa ponte com esse conceito aliamos o primeiro livro da autora, intitulado ―Agarra-me o sol por trás‖ onde encontramos essa mistura que se tornou necessária para a expressão poética da Tânia. Em ―Agarra-me o sol por trás‖ a poesia converge com as outras artes como a dança, a música tornando o corpo um elemento indispensável. Aliás, o grau erótico dessa poesia, primeiro, é o

que leva-nos ao corpo. O corpo como essa forma de dizer palavras, produzir efeitos melódicos e atiçar a sensibilidade. O corpo, esse elemento de expressar o que a alma sente. Tânia Tomé faz-se mulher através dessa expressão ao mesmo tempo que faz-se o país ou o continente: ―Minha África suburbana./ Eu sei -me Moçambique,/ cisterna no pecúlio dos deuses. /Um Zambeze inteiro escala a língua/ escorre-me pelas pernas/ ramifica nos canhoeiros,/ laça os peixes inquietos nas sementes/ engolfa-se nos mpipis bêbados nas timbilas(…)‖ (Meu Moçambique, p.57). Os afectos e os ritmos dessa poesia levam à celebração no sabor da pátria, seus géneros musicais, batuques, timbilas, apitos e gentes que dançam. Tânia Tomé canta e dança numa linguagem verbal cheia de metáforas para com o corpo. Tudo isso será uma mistura

nostálgica, das suas notáveis leituras de poesia de José Craverinha, de quem herdou a utilização dos ritmos tradicionais, desde os nomes e a aproximação à oralidade nos seus textos. Seja por isso ainda erótica, como a maioria das mensagens das músicas no estilo tradicional, onde o conflito humano é elemento necessário. O título ―Agarra-me o sol por trás‖ submete-nos a uma reflexão para dimensões subjectivas da personificação do sol, aquele que agarra. Portanto, os raios solares, são tratados por Tânia Tomé, como um elemento de afecto, carícia, em fim, o amor. Logo, sugere-nos ainda, o sol como um ponto de êxtase e de prazer. O clímax atinge-se no cruzar do verbo e na poesia musicalizada. As imagens que acompanham os versos, no livro, têm o mesmo sentido das palavras, uma combinação versátil da poesia em foto e em papel.

Já disse o prefaciador da obra, o conhecido escritor brasileiro Floriano Martins que abraçado com António Cabrita, credenciaram essa poesiamúsica. Floriano reage à essa expressão em jeito de estreia de Tânia Tomé como uma presença que demarca-se das outras no fluir do verso. É um facto que até nos seus mais dois livros, a poetisa prova o percurso que quer tomar na reservada tradição da poesia feita por mulheres em Moçambique. Talvez seja do factor feminino, a iminência da ―terra‖ nas palavras que fazem o ―Agarra-me o sol por trás‖. Não se precisa inventar caminhos para chegar que essa poesia é de Moçambique. É como disse também o poeta angolano, José Luís Mendonça ao afirmar ―Esse País Chamado Corpo de Mulher‖. De resto é só lendo que se pode provar as águas desse rio imparável que se chama poesia.


a

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

19

rtes

UM MAKONDE CHAMADO

CASIMIRO NHUSSI

C

om a sua dança já é um “enigma”. Agora com a mistura de sua voz fazendo música, este homem torna-se uma espécie africana de “one man show” lá nas terras canadianas onde está radicado sem esquecer dos chãos da sua terra de onde nos vem o mistério, a arte exclusiva genuína. Chama-se Casimiro Nhussi e está vivo a quase meio século. Foi um dos primeiros jovens bailarinos e coreógrafos da Companhia Nacional de Canto e Dança e quis ir para além da dança, descobriu outros mistérios do corpo e vai içando as cores da bandeira moçambicana no seu trabalho. É sobre ele que falamos a seguir a propósito de uma conversa que teve com a Nós, aqui em Maputo.

Casimiro Nhussi nasce no planalto de Moeda na província nortenha de Cabo Delgado, em 1964. Nasce com a história do sonho da pátria moçambicana independente. Aliás, foi em Moeda que se desencadeou a luta armada de libertação de Moçambique exactamente no ano em que nasce o que agora é tido como um dos melhores coreógrafos do país, actualmente a residir lá para as terras canadianas.

ras e esculturas em madeira, que reflectem a sua estética e cultura ricas.

Só para entender o poder do povo a que pertence o artista, os Makondes, são originários da África oriental e habitam três planaltos do norte de Moçambique e sul da Tanzânia. Têm como actividades principais, a agricultura e a escultura. Evidentemente um povo artístico, os Makondes são apreciados mundialmente pelas suas belas másca-

Nascendo de um povo que tem sua história centrada nas artes, Casimiro Nhussi não podia sair diferente do que lhe vaticinaram seus ancestrais, embora filho de um antigo combatente de libertação nacional. A guerra colonial que durou dez anos, o afectou indirectamente. Vibrou com independência, mas não escapou das marcas da guerra civil,

entre o governo e a Renamo. No meio de tilintar de obuses e AKM‘s, um artista se fazia e, inclusive, desceu o planalto e se tornou num dos destacados bailarinos, inspirado nas máscaras do seu povo e nas coreografias dos seus avós e seu pai que também era grande bailarino de Mapiko e escultor de pau-preto e máscaras. Por outro lado, sua mãe era cantora dos ritmos que acompanham os bailarinos de Mapiko.

Portanto, o canto e a dança eram prato principal da família Casimiro Nhussi ainda procurou ser jogador de futebol no Matchedje ao lado de um dos nomes que hoje fazem parte da lista de treinadores de futebol, Nacir Armando. Mas não se deixou enganar e justifica-se assim, hoje, o bailarino, coreógrafo, músico e instrutor de dança profissional dos mais proeminentes da cultura moçambicana.


a

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

20

rtes

DANÇA E MÚSICA TUDO JUNTO Em 1992, foi celebrada a paz, findos 16 anos de uma guerra que tornou todo o país num verdadeiro cemitério. Essa guerra está na memória do artista que foi entrevistado pela Nós durante sua estadia em Maputo em que fez grandes concertos para lançar seu trabalho discográfico ―Gweka‖. Recordamos uma dos seus maiores trabalhos como coreógrafo intitulado ―Ode a Paz‖ que mereceu um digressão por todo o país para celebrar o fim da guerra, a reconciliação e o futuro, um futuro que começava pelas primeiras eleições gerais em Moçambique. A sensibilização para esse escrutínio coube à companhia Nacional de Canto e Dança onde fazia parte Casimiro Nhussi. A representação da peça ―Ode a Paz‖, de acordo com Nhussi, foi o espelho da guerra que o artista presenciou e era preciso expressar sua opinião como artista. ―Estávamos cansados da guerra. Nós viajamos pela companhia e víamos países que estavam em paz. Ai nós descobrimos o quão estávamos atrasados. Então quando a paz chegou foi um alívio para todos. O povo estava cansado da guerra. A paz foi resultado também da reacção dos artistas contra a guerra. Nós gritamos querendo a paz. Essa peça não levou muito tempo para se montar porque todos sabíamos do que estávamos a falar. Foi um inspiração não somente minha, também de todos os bailarinos‖.

Hoje com a faceta de músico, já tem dois trabalhos publicados em discos. O primeiro, intitulado ―Makonde‖, Nhussi conta que surgiu por acaso, queria apenas um disco através do qual pudesse mostrar a sua tradição no Canadá ―Makonde sou eu, é meu pai, minha família e, em Moçambique, makonde é a minha identidade‖ disse. E foi essa identidade premiada com o Western Canadian Music Award, na categoria do World Music. Bastante animado com o sucesso do primeiro trabalho, seguiu-se este ―Gweka‖ lançado em Novembro em Maputo e Pemba, capital da província em que nasceu, Cabo Delgado. Estando agora nas duas facetas, a de músico e bailarino, Casimiro Nhussi justifica que no continente africano não se pode deixar enganar pelas academias ocidentais que separam a música da dança e vice versa. ―Ou estudas música ou danças, mas, na verdade, elas são um casal. Quando faço a coreografia, escuto a música na minha mente e vou ao movimento. Quando levanto o pé, tenho o acompanhamento do tambor. existe um diálogo agradável entre a música e o movimento. O mapiko tem música, teatro, dança, sem separação. É difícil separar a música do teatro e da dança‖. ―Gweka‖ contém 13 temas, que cantam o amor, o respeito pela tradição e a esperança de um amanhã melhor, por isso que no espectáculo do Centro Cultural Franco-Moçambicano foi sob o lema ―Cas´Gweka - presente, passado e futuro‖. O artista faz a combinação perfeita de ritmos tradicionais do norte de Moçambique, com maior destaque ao Mapiko e Limbondo.


a

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

21

rtes

HÁ VÁRIAS VOZES QUE CANTAM BEM NO PAÍS, E ACHO QUE SOU UMA DELAS

Eduardo Quive eduardoquive@gmail.com

C

anta profissionalmente há cerca de 13 anos e foi em Quelimane, província de Zambézia que descobriu o embrião da música, sob o berço de uma das bandas simbólicas do país, Garimpeiros. Com o evoluir da carreira, Rahima, de quem nos referimos, regressa para Maputo onde se encontra com o produtor Roland através da já falecida cantora Chonil. Foi um percurso inesquecível que o levou até à integração na banda chefiada pelo saxofonista José Maria. E foi na Pazede que aprendeu verdadeiramente a caminhar na música. Aliás, terá sido aí que se delimitaram os estilos que quisera seguir. Agora é uma das vozes de ouro em processo do verdadeiro reconhecimento no estilo afro-jazz. Mesmo assim, já pisa palcos grandiosos, dentro e fora do país. A sua música é relevante e bastante notável pela abordagem existencial que faz. Numa das mais conhecidas, “buyissa nwananga”, o mesmo que devolva meu filho, tem foco em um conflito doméstico, típico da sociedade moçambicana. Importa perceber o seu processo de criação, a sua trajectória e os planos da sua carreira que, a depender da voz e do estilo, terá sucesso.

A música ―buyissa nwananga‖ tem a ver com a sua vida? Nem sei. Quando fiz aquela música não pensei na minha história, foi tudo por cima. Mas acredito que na vida não vem ao acaso e calhou. Mas não tem a ver com a minha história, no entanto calhou ser similar.

E as suas outras composições vêm daquilo que lhe acontece ou do que vê nos outros? Depende, tudo que fazemos tem a

ver com o que nos rodeia. Os factos da vida e uma parte das minhas músicas têm a ver com isso. Vivo num meio e procuro transmiti-lo.

Da música ―Buyissa Nwananga‖, foi única que tem o vídeo. E as outras? Ainda não fiz vídeos de outras músicas porque não é só fazer. Ainda não arranjei financiamentos para fazer. Eu sou a gerente da minha própria carreira. E tudo que eu faço e lanço é do meu bolso, não tem patrocinador tudo tem que

vir de mim.

Como é que consegues fazer a sua carreira assim? Consigo. Toda gente tem que conseguir algo na vida.

O que é que isso exige de ti? Muito esforço. Muita procura, muito gasto da sola do sapato.

Qual é o melhor momento

para compor uma canção? Não existe o melhor momento. Componho sempre que me vem a vontade e claro, quando chega a hora de organizar os conteúdos, aí exige mais concentração um tempo livre. Quanto as ideias, elas, aparecem a qualquer hora e qualquer lugar. Mas para trabalhá-la é preciso concentração.

Tem já em vista um álbum? Não. Estou com esse plano, mas tudo exige dinheiro. A fé é a última esperança, por isso sei que vou conseguir.


a

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

22

rtes

Pareceu-me que você se tornou mais popular com a música que participou no Ngoma… Tenho estado sempre no Ngoma e sempre votada porque as pessoas se apaixonam com a minha música. Mas não concorro pelo prémio, faço-o porque é um espaço para exibir o que faço e até de forma que a minha música seja conhecida.

Mas por causa de muitas frustrações nas áreas dos mais radicais da música, há alguns que acabam pautando por aquilo que se chama música comercial. E tu, já pensaste

Não. Não vou até ai… há outros estilos se calhar que sejam também comerciais, menos isso. Não quero dizer que desprezo o estilo, mas ainda não me veio a ideia de fazer. Mas pos-

diferente, mas vou gravar sim com a minha banda e envolverei outros artistas.

Tem acompanhado o evoluir das artes, como vê a nossa música? Agora a música virou de um ângulo para outro. Tomou uma direcção muito diferente do tempo que começo a cantar até antes dos últimos oito anos. Desses oito anos para cá está tudo mudado.

A tua música é diferente das apostas dos outros músicos jovens. O que te faz pautar por esse rumo?

Mas é uma boa ou má mudança que ocorreu? Acho que é uma diversificação. Hoje em dia não há má nem boa, feia ou bonita voz. Há no entanto boa ou má música, com estilos diferentes. É possível gostar de uma música hoje e amanhã gostar de uma outra. Mas nos tempos passados, nos apegávamos a alguém porque durante um tempo ela fazia um único estilo de música. E eu venho desses tempos. De um tempo para cá as coisas mudaram. Há várias qualidades e quantidades. Não me acho única há várias vozes que cantam bem aqui no país, e acho que sou uma delas.

Comecei a cantar com os Garimpeiros, depois o Roland e por acaso, conheci o José Maria e ele faz um estilo de música mais para o Jazz. Então não tinha outras influências e referências. Apaixonei -me mais pelo Afro-Jazz. Por que é a linha que já vinha fazendo, mas abro excepção para outra coisa. Actualmente faço trabalho com outros artistas fazendo outros estilos de músicas. Até para mim tenho vindo a gravar outros estilos que não tem a ver com o que habitualmente faço. Sou diversificada.

Há em andamento a nova lei de espectáculos tem algum conhecimento sobre ela?

O que é que a música te dá? Dá-me esperança, amor, satisfação pessoal. Dinheiro a música ainda não me dá, eu dou dinheiro à música agora. Mas vai me dar, tenho a máxima certeza e o dia vai chegar.

O conhecimento da lei dos espectáculos tenho por alto. Mas é bom que exista algo palpável que tenha algum censo para os músicos. Porque pelo que ouvi dizer é que há uma obrigatoriedade, por lei, em que cada espectáculo que se faça com um músico estrangeiro é obrigatório que esteja um nacional. Antes isso não era obrigatório, isso já é bom é só se fazer jus a aquilo que está escrito. Vamos ver se isso vai acontecer.

Essa certeza implica ter alguma estratégia… Claro é sempre bom ter estratégias. Alvos a atingir. Para tudo temos que ter uma certeza.

em rumar para esse estilo? Acho-me atraída sim para esse lado. Os ouvidos são diversificados e também é bom colhermos experiências de cada estilo musical e é também bom, poder fazer cada um desses estilos. Não vejo mal nenhum nisso, temos que ser músicos para vários mundos e não nos prendermos em apenas um.

Estás a dizer que, por exemplo, que um dia te ouviremos a cantar Pandza ou Dzukuta?

so fazer outros estilos populares, não vejo mal nenhum.

Fale-nos do processo de criação de uma música sua. A música é muito interior. É uma paixão e tenho muito prazer em fazê-la. Não me acho uma boa compositora, mas componho ideias que depois entrego a minha banda (Nyanga Project) para que desenvolvam e estruturarem. A parte da gravação quando tem a ver com estudo é


a

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

23

rtes

A CULTURA É UM RECURSO INESGOTÁVEL

S

heik Hafiz Jamú é uma das mais respeitadas personalidades da Ilha de Moçambique. Trata-se de um “expert” em matéria de conservação de património cultural, é líder de uma confraria religiosa (Sajadi), assessor de negócios numa empresa privada e tem a nobre tarefa de presidir a Fundação Ilha de Moçambique.

Jessemusse Cancinda - em Nampula jessecacinda@hotmail.com

Defende que a cultura é um recurso inesgotável que deve ser capitalizado para a melhoria das condições de vida da população, por isso todo e qualquer tipo de património deve beneficiar os nativos, neste sentido, a população da Ilha de Moçambique que se depara com problemas sérios de falta de emprego pode aproveitar o património cultural daquela que é considerada a primeira capital de Moçambique para ganhar rendimento. Hafiz Jamú entende que as pessoas não podem iludir-se com os recursos naturais porque um dia poderão acabar e nem pensar que a riqueza está longe enquanto convive connosco.

- O que é fundação Ilha de Moçambique? – Fundação Ilha de Moçambique é uma organização local com base nas associações de representatividade da sociedade civil e de base comunitária que assegura a existência e persistência das agremiações da Ilha de Moçambique.

– A quanto tempo existe esta

fundação? – É difícil responder esta pergunta, porque quando se fala da existência de uma organização há quem olha pelo reconhecimento jurídico e que esta em processo, mas já temos uma autorização para agir, diria que temos um reconhecimento precário, mas em tanto que existência, a fundação vem a doze anos.

– Que actividades estão a ser desenvolvidas por esta agremiação? – Neste momento estamos virados para o desenvolvimento comunitário baseado na conservação do património da Ilha de Moçambique e criação de oportunidades de negócios a partir desse património. Estamos a falar que a Ilha de Moçambique tem agregados três tipos de património, o edificado, o subaquático e o imaterial.

– Como é que se pode distinguir estes tipos de património que a Ilha de Moçambique agrega? – Quando falamos de património edificado referimo-nos as casas e outros tipos de construções que se encontram na

cidade de Pedra e Cal e na cidade de Macuti que devem ser reabilitadas mantendo o estilo original e que iniciamos a reabilitar o edifício onde funcionam os escritórios da fundação. Temos o património subaquático, reza a história que a volta da ilha afundaram muitas naus por razoes de tempo e guerras, estas naus afundaram com instrumentos que podem nos revelar a história da interacção do povo moçambicano, particularmente o macua-nahara com o resto do mundo. E temos o património imaterial que resulta dessa interacção havida ao longo de mais de dois mil anos, onde a Ilha de Moçambique foi paragem obrigatória do comércio do ouro, marfim e mais que foi moldando o modo de ser do homem da ilha.

– Como é que estão a utilizar esse património todo, no sentido de melhorar as condições de vida da população local? – De uns tempos para cá os edifícios da Ilha de Moçambique começaram a ser comprados por pessoas que não tem a ver com a ilha e muito menos com a conservação do património cultural,

para além disso, por causa do desaparecimento do Macuti, as populações estão a substituir o Macuti com chapas de zinco. Esta realidade fez com que identificássemos na cidade de Macuti que é onde vive maior parte da população, algumas casas com o intuito de museologicar. Como exemplo, identificamos uma senhora que tem talento de cozinhar, investimos na reabilitação da sua casa e o local será um restaurante com comida local, esta iniciativa poderá ajudar a conservar a casa que é um património, se olharmos a ilha toda como um museu e as ruas como corredores e que será uma forma de ganhar dinheiro. Assim a senhora não precisa de destruir a sua casa porque é uma fonte de rendimento e nós gostaríamos que as pessoas usassem o fundo de desenvolvimento distrital para reabilitar as suas casas seguindo os padrões de conservação do património e transformar isso num local de hospedagem, restaurante, enfim, porque a riqueza não está fora está dentro da Ilha de Moçambique, o importante é saber aproveitar.

– Como é que olha o património imaterial da Ilha de Moçambi-


a

FEVEREIRO 2014

NOSMOCAMBIQUE@GMAIL.COM

24

rtes

que num mundo em constante globalização?

– O património imaterial muda com o tempo, as tecnologias influenciam a nossa cultura e dentro de 20 anos a identidade cultural vai mudar. Agora, se conservamos a nossa forma de ser, a nossa cultura, pode significar uma oportunidade de negócios para o futuro. Poderemos através do turismo vender este património, desde o saber cozinhar, vestir, dançar. Portanto, ficamos tristes em notar que os nossos jovens acabam imitando um turista que circula por tudo quanto é canto de calções sem notar que é um viajante. É preciso perceber que há uma obrigação da nossa parte em conservar os nossos traços culturais para garantir a inesgotabilidade de um recurso que é

a cultura. A cultura é uma oportunidade de negócio e emprego para o futuro. O carvão, o gás, o petróleo, tudo isto acaba, mas a cultura não, ela é um recurso inesgotável. Por isso, os mais velhos devem garantir que este recurso não desapareça.

– Por falar em desaparecimento de traços culturais, tirando o Tufo que foi bastante divulgado, há danças da Ilha de Moçambique que estão a entrar numa letargia? – O lugar do Tufo que é uma dança de origem árabe é mais político, foi utilizado depois de 1975 pelos políticos nos eventos públicos e mais tarde foi patenteado pelo turismo quando passa a ser apresentado nos hotéis e ganhou o espaço que ganhou. A mesma sorte não teve as danças genuinamente locais como Ephive, Namahantja e Morro, cujos executores

acabaram abandonando por falta de rendimento e que são usadas de quando em vez nos eventos tradicionais.

– Há uma dança aqui na Ilha de Moçambique cujos executores não estão agrupados, mas quando os turistas pagam, reúnem-se e praticam. Até que ponto estas pessoas podem se organizar melhor para ganhar com esta dança? – Esta dança chama-se Ephive e é verdade que há necessidade de usá-la como nosso cartão-de-visita. Alias, o objectivo da fundação é valorizar este património, não queremos valorizar o tufo que já está valorizado e exposto. É preciso resgatar aquilo que está ser perdido e como viu, os turistas mesmo sem ter sido divulgada, procuram pelos praticantes desta dança, então a fundação pretende

trabalhar em questões do género.

– Para terminar, quais são os horizontes desta fundação? – Queremos criar uma harmonia entre o sector privado e as comunidades, estamos a programar a construção de um centro cultural onde poderão se cruzar os praticantes de diferentes expressões culturais, tendo em conta que a Ilha de Moçambique é património cultural da humanidade e estamos a nos deparar com uma situação em que as associações da Ilha de Moçambique perdem voz depois de perder um financiador e pretendemos criar uma âncora para estas agremiações no sentido de se tornarem visíveis, activas e sobreviventes.


m’saho

Caderno de Prosa, Verso & Crítica

POESIA POESIA

LOUCURAS

TRADIÇÃO Escritor Carlos dos Santos discursa sobre o contexto “moderno” da sociedade actual

POESIA

ELOGIO DA

LOUCURAS LOUCURAS CONTO

CONTO CONTO


M’saho

FEVEREIRO 2014

02

PROSA

TIÃO

Alexandre Staut nosmocambique@gmail.com

W

ould you like to buy a leather belt? You don‘t speak in English? Brasil? De tão longe? Fala brasileiro, então? Ah, português. Um cinto de couro, molunga. Junto ouro. Me arrastei, fronteira inteira, mapa afora, desci uma estrada rente à linha do mar, atravessei dois rios, sem perder o horizonte dos olhos, as águas da Índia, esse oceano à nossa frente, pastoso, que brilha quando o dia é de sol. Sou só, não sei você. Onde estão todos os meus, não sei mais, por isso vim para o estrangeiro, Durban, cidade que desemboca nas águas barrentas desse mar aqui, aqui na sua frente. No pequeno comércio, na junção do espelho de mar com a cidade grande, vim vender coisas. Capulanas indianos, cofres chineses. Sabia que essa cidade é a maior comuna indiana fora da Índia? Pois então. Já os chineses, veja, fazem fortuna por aqui. Vendem ovos de avestruz de resina, imitações, mulanga. Não são caros como os ovos reais. Os ovos do país dos bilhões são todos falsos, mas o povo compra. É brinquedo de criança, é lembrança da South Africa, país de tantas fazendas de avestruzes, ave rara de carne saborosa. Eu comera quando tinha mais dentes na boca. Hoje, me sobram apenas alguns. Por isso, sou mais dos manjares. Não sou da China, não sou da Índia, sou dali, ali de cima, vim, queria ver com os meus olhos, tinha de vir um dia. Em Maputo, na Beira, falam de Durban. Afortunada vila, essa esquina do mundo, molunga, onde todos se encontram um dia, gente do norte, do sul, do leste e do oeste. Esses prédios na sua frente encerram fortunas. Desde que cheguei, eu os miro. Estou aqui há umas

dezenas de luas. De início, vendi ovos de avestruz coloridos, uns com haste, outros com fichário, que usam como se fossem cofres. Mas eu mesmo nunca usei o objeto para guardar os randes que junto. A moeda local. Não pesa no meu bolso. Tenho furos pelas pernas, a calça, a mesma do dia que em cheguei, luas atrás. Foi um chinês falso que vende coisas à beira-mar a me apresentar o pequeno comércio na ponta dessa terra. Combinamos. Ele me passava os ovos coloridos, verdes, amarelos, uns com o mapa da África, todos conforme os ovos verdadeiros. Eu armava uma palha pelo chão e oferecia ovos, como se fossem de verdade, saídos dos avestruzes. As crianças gostam, molunga. Você tem crianças lá no Brasil? Mas isso tudo foi antes. Arrumava a esteira aos meus pés, nas pedras da faixa de areia, e, o corpo parte deitado, outra sentado pelo chão, via passarem pés e pernas, mulheres, homens, crianças, via também passarem pneus, rápidos. O transito aqui é do lado contrario, falam que é assim também nas Europas. Em seu país é dessa forma também? Mas, o que dizia é que via os passantes pelas pernas, gente apressada, poucos tinham tempo para as palavras. Inglês aprendi para necessidades, inglês ensinado pelo chinês dos cofres. Com ele soube da arte de criar frases, tudo para atrair olhares às mercadorias, aos ovos. Meu inglês melhora a cada dia, molunga. Hoje falo quase como se fosse gente daqui, mas somente as frases aprendidas, certo? A maioria começa com Would you like to buy e depois falo o nome da coisa de ocasião. Vendi alguns ovos, menos de uma centena, acredito. Dos tantos passantes, algumas crianças paravam. Eu deixava os pequenos se servirem. São ovos de verdade, os únicos verdadeiros de toda a África, não pode derrubar no chão, senão quebra, são frágeis, escuta o barulho. Aproximava o ovo do ouvido da criança e dava uma batida rápida no objeto, com o verso dos dedos. Barulho de ovo de verdade, ouviu? Repetia a história dez ,

vinte vezes por dia. A língua cansava. Às vezes um pai resolvia agradar o pequeno, somente às vezes. Um dia me enrolei ao tentar dizer que, com um ovo de avestruz é possível fazer uma batida para uma dezena de pessoas. Basta colocar óleo de capivara na caçarola. Sabia disso, molunga? Às vezes, quando o inglês saía sem erros, tentava sorrir para os fregueses, mas me faltam os dentes. Então não sorria. Para você que diz a mesma língua, eu mostro. Olha. É por isso que eu estou aqui, molunga. Os dentes. Já percebeu o quanto exibem belos dentes de ouro nessa terra? Dentes reluzentes, como brilham. Pois então. Problema é que vendia, no máximo, cinco, seis ovos, numa tarde. Um ovo, cem randes, dos quais eu tocava em 15 moedinhas. Isso dava para o álcool, no fim do dia, mais um pedaço de pão mole. E isso me enchia a barriga. Ovo mesmo, naquela época, minha boca não viu, nem o estômago. Quando percebi que não pagaria nem o tempo de ficar na fila do dentista, resolvi mudar de profissão, molunga. De início, acreditei em adestrar leões-marinhos. Quem deu a ideia foi um turista. Vira, na outra ponta da praia, um velho a colocar sardinha na própria boca e depois incitar o bichão a pegar o almocinho. Fui lá, vi com os meus olhos. Era bonito de se ver. Sentado, ele passava a mão no bicho gordo, como se fosse seu próprio filho. Antes de meter o peixinho na boca, falava para os turistas: quando Monda arrastar o corpão para perto de mim, quer dizer que vai pular, então, senhores, sejam rápidos, batam a foto! Mas, antes, coloquem uns randes dentro do meu chapéu. O velho me olhou feio. Deve ter percebido que eu não tinha cara de turista, portanto não ia encher o seu chapéu com meus poucos randes. De olhar atravessado, falou bem alto, fez questão, disse que tinha permissão, na orla, para fazer o trabalho. Cuidava sozinho dos bichos de toda a South Africa. Todos os dias, há vinte anos, passa pela beira do mar a chamar leões -marinhos. Resolvi não perturbar o negócio do velho. Ele ia arrumar conversa para o meu lado, caso fosse balançar sardinha na orla, no intuito

de chamar os bichos, de dentro da água. Também não saberia adestrar bicho nenhum. Não tenho nem mesmo sorriso para a foto. Como faria quando os turistas armassem suas câmeras, para o beijo com o bichão? Mesmo assim, me despedi do chinês dos ovos. Não aguentava contar a mesma história tantas vezes. Saí por aí, no intuito de encontrar outra profissão, guardador de bicicletas, guardador de cadeiras, guardador do que fosse. Foi quando caíram nos meus braços capulanas indianos, que poderiam ser usados para cozer roupas, calças, camisas. Eu próprio cheguei a pensar em ter novas vestes, me vestir como um indiano, colorido, dourado. Amanhecia e eu estendia os capulanas no chão, artigo fino, todos verdadeiros, fios de ouro, vindos da Índia, de navio. Inclusive, aquele navio que passa, lá no fundo do mar, deve vir da Índia, deve trazer mercadorias variadas, não somente capulanas. Vendia, vendia, vendia. Falava que eram sedas. Depois, quando os negócios não iam tão bem, passei a desfazer as sedas, para juntar os fios dourados. Quem sabe poderia amalgamar tudo em formato de dentes, os malditos dentes. Cheguei a perguntar pelas ruas onde poderia ver um dentista, mas o dinheiro que entrava pelo bolso das calças, continuava a escorrer pernas abaixo. Os fios dourados não me eram suficientes. Não consegui nem mesmo vestir novas camisas, coloridas. Muito menos arrumei sorriso novo. Quando decidi mudar de ramo, me apareceu um vendedor de cintos. Deixei um de lado para o meu próprio uso, molunga. Este que agora tenho na altura da barriga, cada vez mais seca. São os melhores de toda a África, cintos feitos em couro de tatu. Sinta na mão, como é firme. Duram uma vida. Sugiro que leve uma maleta cheia para o seu país. Fale por lá que comprou de um sujeito que, se ainda não ri por aí, é porque faltam dentes na sua boca, os dentes que faz questão de, um dia, conseguir.


M’saho

FEVEREIRO 2014

03

PROSA

BAIRRO BAIXO (III)

Tito Selemane

M

uito rapidamente, Tó pensou no caso do jovem ardina, na reportagem daquele jornalista que acompanhara a precoce eterna transferência para o céu do filho único da coitada velha senhora, reflectiu e tentou entender – "…bem trajado, óculos de ouro, Martini… –," onde haverá problema nisso? Só podem ser marginais, macacos dementes nas fileiras policiais, não? Indagou e depois respondeu: - Tenho aqui comigo os documentos que o senhor me exige, mas só os exibirei se o senhor disser primeiro porque é que mos exige. Mais ainda, usei essas garrafas para trazer água para as flores que o senhor vê ai nesse vaso. Não se trata, nada, de álcool, ou melhor, Martini como a autoridade pensa e docemente pronuncia. Está resposta embaraçou e não agradou o polícia que visivelmente começava a enervar-se. - O senhor quer desafiar a Lei? Ou pensa que sou assim muito parvo a ponto de aceitar facilmente o que me diz. - Lamento que não sei, mas digo -lhe a pés firmes e sem hesitação alguma, como pode ver, que a lei aqui só verá os meus documentos se primeiro souber dizer porque é que mos exige. E lamento ainda que não tenho mínimas qualidades para afirmar, discutir consigo sobre o seu grau de parvoíce. Digo lamento, porque parece-me que é mesmo o senhor que acaba de dizer que não é assim muito parvo, podendo, querendo bondosamente ou não, significar, por outras palavras, que talvez o seja em qualquer outro grau e que não "muito". Perdoe-me, se lhe tiver feito lembrar esse lado da gramática, não foi minha intenção. Perdoe-me do fundo do coração, senhor, se o tiver feito! Muito ofendido e meio envergonhado, mas ainda resistente num tom de voz menos arrogante, disse o polícia: - Tudo bem. A minha psicologia diz-me que o caro cidadão deve não

estar assim tão bem da cabeça, portanto está perdoado. Entretanto como não quer Baste a quem baste o que lhe basta exibir os documentos que lhe exijo, levo a O bastante de lhe bastar! garrafa que ainda está cheia. E meio A vida é breve, a alma é vasta: medroso daquele corpo visivelmente Ter é tardar. demolidor de Tó-Carocho ordenou: e não se mexe quando eu me inclinar para levar Agora basta somente carregaa garrafa do chão, porque se não... rem nos gatilhos, autoridade! … Não é Assunto encerrado. bom morrer sem medo do inferno, não, Antes que ele o fizesse, em silênsenhores? cio vibrou o telemóvel de Tó no bolso Um estúpido nervosismo humiesquerdo das suas calças. Não tendo se lhado e inevitavelmente expresso pelas apercebido o polícia, quando Tó quis suas caras, retirou-lhes os indicadores imediatamente tirá-lo do bolso, os dois dos gatilhos: polícias puseram os dedos indicados nos - Sonâmbulo diurno, filho de gatilhos e em simultâneo disseram: uma coitada não pouco, pensa que - Atreva-se e verá! Quer sujartemos mais tempo para ouvir a porcaria nos mesmo as mãos?! Tó não desistiu de tirar o telemóvel do bolso e embora a sua calma dissesse-lhes que não tinha medo, não queria tirar arma alguma que não tinha e nem queria trocar forças com uns agentes fisicamente não fortes que tinham os lábios de garganta seca, estômago vazio e olhos amantes de sangue por amor a Pátria. Tirou o telemóvel do bolso e enquanto respondia a uma mensagem que tinha recebido, de quem não se sabe, disse ironicamente sorridente: Sujar-vos as mãos?!... - Você ousa irritarnos ainda mais? Desafiar uma faca de dois gumes da lei bem afiada assim, só pode ser coisa de um louco que não sabe o que faz como o senhor! Disse um dos polícias. Tó, como daqueles homens que têm a vida como seu único maior vicio e refúgio, mentalmente perturbado momentaneamente, as duas mãos nos bolsos da gabardina pôs e depois de ter dito: - Pessoa; Pessoa, FOTO: Marcos Vieira que grande Mensagem, ó Génio!...pareceu a sós consigo mesmo, e, sem totalmente se entreda tua boca! Disse um deles pegando na gar à emoção, com um olhar tímido na garrafa de Martini ainda cheia de água forma, resistente e irreversível de homem e foram-se em direcção, à saída, ao porde acção no fundo, tristemente alegre, em tão principal. voz baixa, recitou: Instantes depois, Tó com os seus ouvidos apuradíssimos ouviu uma Os Deuses vendem quando dão. voz muito feminina gritando por socorCompra-se a glória com desgraça. ro. Era da mesma direcção do portal Aí dos felizes, porque são principal, aonde os dois gumes da faca Só o que passa! da lei bem afiada tinham seguido, de

onde vinham os gritos. Porque será? Tenho que ir para casa. Pensou. Decidiu. Com as mãos nos bolsos da gabardina foi caminhando em direcção ao portão principal. De repente, Tó viu uma jovem de aparentemente dezoito anos de idade e 1.60 m de altura, escura, de uma pele da cor de café, sentada no chão entre dois jazigos, com o tronco meio inclinado para trás, apoiando-se com os braços naquele chão de terra batida, um vestido verde-claro de linho sem mangas até aos joelhos, um casaco leve também verde claro de linho, sapatos de salto altíssimo, pernas meio afastadas, a voz já toda esgotada de tanto ter gritado por socorro, calcinha branca toda empoeirada no seu pé direito, dois Índicos transbordando-lhe furiosamente pelas faces a partir dos olhos; TóCarocho ficou a uns poucos metros, examinou a cena e tendo concluído tratar-se de uma desgraça, qualquer coisa triste e não de um filme, aproximou-se da jovem: - O que é que se passa contigo, menina? Estás doente? Perguntou Tó. - Não, não! Fui sexualmente violada, malmente mal usada. Vivo no Bairro Luís Cabral e por aqui passo sempre quando vou a cidade, esta é a minha via mais rápida de casa para a paragem e vice-versa. - Está, estas a referir-te ao Bairro Baixo, que é a tua via rápida? Perguntou Tó-Caracho. - Claro, meu irmão! Permitame que te trate por irmão, mesmo que não o sejas de sangue. Sinto que de coração o és. Foste o único que se preocupou comigo até agora. Veja que mal consigo falar, gritei o quanto pude enquanto várias pessoas, até dois polícias, por aqui passavam, como vês até agora, pessoas a passarem ainda por aqui, e não houve alguém como tu, que pelo menos me ajudasse a gritar por socorro. Afinal, também os dois gumes da faca da lei por ali perto tinham passado e quando se aperceberam de tudo conversaram: - Vamos molhar a garganta com essa coisinha, meu. Não perca tempo com coisas sem interesse. Vamos lá beber logo este luxo, mano. Sabe que eu só via está platina na televisão? Eu nunca tinha tomado isto em toda a minha vida. Isto pode ser dois nossos salários… - É verdade. Você pensa bem e rápido, mais velho! Quem mandou ser bonita, meu avô ou nós? Vamos deixar a gaja ser comida. Do romance Inéditto: Doroth


M’saho

FEVEREIRO 2014

CRÍTICA

04

ELOGIO DA TRADIÇÃO(*) Carlos dos Santos carlossantos@tvcabo.co.mz

A

presenta-se hoje, mais um conto desta colecção que escolheu resgatar contos tradicionais Moçambicanos e recontá-los através das artes e das manhas de pessoas que esculpem o meio à sua volta com o cinzel da palavra, da mesma maneira que outros o fazem à madeira com o gume afiado do formão. Neste conto de hoje cruzaram-se ambos estes artesãos para tentarem engalanar com mais melodia esta história tradicional já de si colorida. E este é o resultado.

...nestes últimos anos quase que de

As histórias são uma das formas mais perspicazes e eficazes de promover as atitudes desejadas e de transmitir valores positivos às crianças. Por isso, este é um conto que tem como principal destinatário as crianças. Mas (muitas d) elas não estão aqui presentes! Onde estão (ess)as crianças? Muitas estão neste momento em suas casas, plantadas atrás de aparelhos de TV, a ingurgitarem sem sequer mastigarem, novelas obscenas e desenhos animados aterradores. Outras, estão à frente de computadores, a jogarem, como autómatos, vídeo games violentos ou a desnudarem publicamente as suas intimidades, sem pejo algum, no Facebook, em Blogs e outros que tais. Outras ainda, estão acorrentadas aos seus celulares a trocarem mensagens indecifráveis para o comum dos mortais. Mas há ainda outras crianças. São as crianças que estão na rua. Não têm nem televisão, nem computador, nem celular. Nem habitação. Nem sequer alimentação! Competem em cada semáforo por uma esmola escanifrada, com outros pedintes de várias idades e condições: deficientes, uns, anciãos outros, mas todos eles abandonados. Anciãos que não deviam estar ali, a disputar esmolas com aquelas crianças, que também não deviam estar ali. Anciãos que deviam estar, em vez disso, no aconchego dos seus lares, a contarem histórias àquelas crianças. As velhas histórias tradicionais, como esta que aqui se lança hoje. Mas não estão.

cada vez que se

Esta é só uma, do vasto leque de maleitas de que enferma hoje o nosso tecido social e que são o reflexo do banimento intempestivo e do abandono inopinado de diversas tradições, ocorrido nas últimas 3 décadas, que provocou uma hemorragia que nunca mais foi estancada e que a todos nos ameaça de anemia social.

nos de equilíbrio

As tradições não são mandamen-

mudou uma coisa, a sociedade se tornou um pouco pior. Temos de rever com urgência o nosso “modernismo” e repensar as tradições e, talvez, repor muitas delas. Para, com isso, repormos os mecanismos inter-

da malha social que foram esfarrapados...

tos divinos nem criações humanas abstractas. Elas são procedimentos dinâmicos que a sociedade foi estabelecendo ao longo dos tempos para, nas circunstâncias vigentes, manter unido, equilibrado e estável o tecido social. São mecanismos de defesa e de resposta em relação às circunstâncias do meio ambiente, em cada lugar e em cada tempo. Quer isto dizer que essas tradições eram inteiramente benéficas, e que não comportavam quaisquer males? Com certeza que não. Tudo tem um custo. Tal como qualquer outro, também o tecido social é vulnerável à traça. E a traça tem de ser eliminada. Mas é preciso ter o cuidado e o saber para ao tentar fazê-lo, não rasgar o tecido e deixar que a traça se evada e se espalhe incólume. Nos combates é preciso evitar o voluntarismo, que leva a deitar -se fora a criança com a água do banho. Para que não seja pior a emenda que o soneto. As tradições para produzirem os

resultados positivos para que foram criadas, comportavam, sim, facetas negativas. Que era preciso combater. No entanto, elas foram erradicadas apenas pelas suas facetas negativas, descurando -se os impactos positivos que elas produziam. E que, nas circunstâncias vigentes não se conseguiam obter de outro modo. E foram banidas sem terem sido substituídas por outras que fossem melhores. Por consequência, bastas vezes o resultado desta abolição abrupta foi o agravamento dos efeitos negativos que essas tradições possuíam, e de forma mais perniciosa, porque velada, tendo, ademais, o vazio criado, libertando os efeitos negativos que elas estancavam. Como estes meninos e estes anciãos despojados e abandonados por todo o lado. Porque, uma vez que as tradições são a linguagem arquitectada para mediar a interacção social com o meio, o combate não deve ser dirigido a essas práticas entanto que tal, que são meras consequências, e sim às circunstâncias


M’saho que motivaram o seu estabelecimento, que são a sua causa. São as circunstâncias que têm de ser combatidas. Só assim se conseguirá que estas tradições deixem de ―ser necessárias‖, se tornem mesmo obsoletas e, por isso, sejam repudiadas por quem as pratica – e não por quem as observa à distância. E que sejam substituídas por outras práticas, por novas tradições, que produzam os mesmos resultados positivos, sem comportarem os mesmos efeitos negativos. Comportarão outros, certamente. Tudo tem um custo.

FEVEREIRO 2014 atirá-los para o colo dos filhos, embrulhados num discurso monocórdico e estéril sobre a importância da leitura – coisa que, porém, apesar de a dizerem assim tão importante, os filhos nunca vêem os pais a fazerem! Um exemplo vale por mil imagens! Mas, as histórias não são para serem lidas pelas crianças. As histórias são para serem contadas. As histórias são para serem interpretadas. Por pais e filhos juntos.

divertida. E podem, depois, partir da história escrita e porem-se todos a inventar. E, assim, as histórias nunca mais vão acabar.

nos está a conduzir à loucura e ao naufrágio sociais. Há que estancar este ciclo alucinado de mudança em que caímos.

Mas o mais importante neste acto de contar histórias não são, porém, as histórias em si. As histórias não são um fim. São apenas um meio. O acto de contar uma história, é um momento privilegiado do forjar de vínculos inquebrantáveis, vínculos de confiança, de partilha, de amor, entre pais e filhos,

O novo não é sinónimo garantido de melhor. E se não der provas de sê-lo, é melhor deixar as coisas como estão, para não as piorar. Para sempre? Não! Até que se encontre um novo que seja melhor. E, ―melhores‖, serão apenas aquelas práticas que dêem provas de conseguirem produzir os mesmos resultados positivos, ou mais ainda, com menores custos colaterais nefastos.

As leis que regem o nosso modo de vida urbano moderno são tradições, elas também! Não têm os defeitos de aqueloutras. Mas em nada estão isentas de efeitos nefastos, seja sobre os indivíduos, seja sobre a sociedade. Tantos, que não conseguem sequer manter a sociedade unida e educada, solidária e harmoniosa, permitindo, em vez disso, que se abandonem impunemente viúvas, filhos, pais e avós: esses mesmos que pululam por esta cidade ao relento, como fantasmas ensimesmados! Por ora. A economia de mercado, tão elogiada, tem inúmeras facetas negativas. Afinal, ela é o ventre fértil gerador e, ao mesmo tempo, o seio em que se nutrem estas ervas daninhas do social. Mas apesar disso não foi condenada e banida sumariamente. A democracia vigente, tão prendada que é, está cheia de defeitos, entre eles a perpetuação de inúmeras desigualdades e injustiças e da mais tenaz das formas de ditadura – a das maiorias. Mas não é por isso que foi liminarmente suspensa. Como se fez com muitas tradições no nosso país. Uma destas tradições que foi varrida pelo tsunami do modernismo, com todas as consequências que nos sufocam hoje, foi a prática de outrora de contar histórias às crianças. Os contos tradicionais eram o meio através do qual, tocando o sentimento com mestria, e levando à identificação com uns, e à rejeição de outros dos comportamentos contados, se ensinava às crianças, e se relembrava aos adultos, como respeitar os outros e o meio ambiente, ou seja, a saber - ser e a saber estar, construindo assim, noite sobre noite, a personalidade dos futuros adultos da família e da comunidade, educando, desse modo, história sobre história, filhos em quem os pais se orgulhavam: nós. Belos tempos esses, em que os pais não se tinham demitido das suas responsabilidades parentais e não passavam a vida a lamentar-se e a acusar a nova geração de todos os males sociais – como nós fazemos hoje. Não é porque nós fomos melhores filhos… É porque eles foram bons pais. Os ――melhores‖‖pais de agora limitam-se a comprar uns livritos e a

05

CRÍTICA

Mas a verdade é que nestes últimos anos quase que de cada vez que se mudou uma coisa, a sociedade se tornou um pouco pior. Temos de rever com urgência o nosso―modernismo‖ e repensar as tradições e, talvez, repor muitas delas. Para, com isso, repormos os mecanismos internos de equilíbrio da malha social que foram esfarrapados, até que outros, comprovadamente melhores, se desenvolvam e afirmem e vão sendo adoptados, em substituição. Desenvolvidos por dentro, progressivamente, fruto da alteração das circunstâncias, a qual produz níveis mais elevados de consciência social, sem os quais nenhuma mudança perdura, e com bases de sustentação, em sinergia com outros factores, sem os quais não resultam.

Contar uma história não é falá-la, como quem a lê. É encená-la. É dar um tom de voz e uma musicalidade diferentes a cada personagem. É fazer gestos e caretas, para dar vida e sentimento a cada passagem da história. É trocar as palavras escritas por sinónimos falados, porque mais bonitos, ou porque mais compreensíveis por parte daqueles que ouvem a história. O papel dos pais é, por isso, indispensável. Seja a contá-las, seja a saberem ouvir para responderem às perguntas das crianças. Ou seja a investigarem para poderem fazê-lo, porque também para nós não é vergonha nenhuma não sabermos tudo. Só é vergonha não procurar aprender. Os contos e as histórias não têm dono. Ou melhor, têm muitos donos: elas são propriedade de quem as conta e de quem as ouve. Todos nós estamos autorizados a alterar, a mudar as histórias que lemos, ao contá-las. Este livro intenta precisamente esse exercício de acrescentar sempre vozes e sons, imagens e acontecimentos ao contar de um conto, acrescentando-lhe de cada vez um ponto. Pais e avós, tios e professores e as crianças podem, assim, fazer de cada livro um momento de aprendizagem mútua

netos e avós, tios e sobrinhos, laços que são fundamentais para o desenvolvimento são e equilibrado das crianças sob os pontos de vista psíquico, emocional e social. E também dos adultos! Mas, nesse momento mágico, grande parte de nós está ausente. Estamos ocupados, quando não a praticá-los mesmo, a condenar todos à nossa volta, incluindo os nossos próprios filhos, que nós não soubemos educar, por todos os males que nos rodeiam nesta malafortunada época em que vivemos, recordando, cheios de saudade, os nossos bons velhos tempos. É verdade. Os tempos de antigamente eram melhores em muitas coisas: quase todas aquelas coisas que nós combatemos e mudámos. Esta sociedade de hoje, de que tanto nos queixamos, com todos os males que arrasta, é produto nosso, das mudanças que nós instituímos. Renovação, inovação, reestruturação, revisão, reforma…Mudar tornou-se moda. Muda -se por mudar. Porque mudar é uma forma de afirmação do poder pessoal. Cada um muda o que o outro mudou, numa maré infernal de mudança, que

É preciso que paremos de nos lamentar como carpideiras inconsoladas, e que, em vez disso, ajamos.Contar histórias é uma potente forma de acção. É um acto de intervenção social. Pode mesmo ser um acto de rebeldia e revolta contra o estado actual das coisas. Ninguém o virá fazer para nós. O remoto controlo está nas nossas próprias mãos. Não podemos alterar o presente, porque já o escrevemos com as escolhas que fizemos no passado. Mas podemos alterar o futuro, com aquilo que escolhermos fazer no presente. Temos esse dever, porque como disse J.J. Audubom, o nosso planeta “não é uma herança que recebemos dos nossos pais, mas sim um empréstimo que recebemos dos nossos filhos‖. Termino aqui, para não vos tomar mais tempo, e impedir que saiam já. Passem ali e comprem livros. Sigam directos daqui para casa. Reúnam a família, peguem no remoto e desliguem a televisão, o computador e os celulares, e depois ponham-se a contar histórias. Esta, que neste livro recontei e outras. Não se esqueçam: não se limitem a contá-las. Podem, à vontade, reinventá-las. E inventar outras. Mas contem histórias, agora e sempre. Contar histórias é preciso.


M’saho

FEVEREIRO 2014

06

POESIA

Poesia de António Joaquim Marques

Angola

(Kiba-Mwenyu)

Kimbundu

NGI LULUTA MU JINJILA

Português

VAGUEIO PELAS RUAS

Eme ngi luluta mu jinjila ku jisanzala jina Ni ngi wana mikumbi y’ami ku mabata mana Ngi wana mikumbi ya kulenduka kw’ami Yene i londokesa ku muxima wa ukwenze O kuzediwa mu kizuwa kia hadya

Vagueio pelas ruas das sanzalas Oferecendo de porta em porta meus poemas Ofereço meus poemas humildes Que revelam do coração valente A prosperidade dum futuro próximo

O mikumbi y’ami ya biluka mulombe O mikumbi y’ami ya kala nduwa we O mikumbi y’ami mabuku ku malunda Nda kulongolola ukatelu wa akwetu

Meus poemas são sombrios Meus poemas são vermelhos também Meus poemas são vagas da história Que interpretam dores do meu povo

Eme ngi luluta mu jinjila ku jisanzala jina Ni ngi wana mikumbi y’ami ku mabata oso Ngi wana ngo mikumbi ya kuxixima kw’ami Ngi wana mikumbi ya manyinga mami

Vagueio pelas ruas das sanzalas Oferecendo de porta em porta meus poemas Ofereço meus poemas sôfregos Ofereço meus poemas sangrentos

Ngi wana mikumbi yiyi ni akwa-nzala Ngi wana ni atu a saluka ni an’a humbuluka ze Mukonda nga tokala oso mu malamba mama

Ofereço meus poemas aos esfomeados Ofereço aos enlouquecidos e mutilados Porque também pertenço-os na desgraça

O mikumbi y’ami, kiluminu kia dikumbi dyo-swenye Anga mikumbi y’ami i dila ukatelu wa atudi oso Ni jinjinda ja mudyelelu wene u suka muxima

Meus poemas são ecos do sol afogado Meus poemas choram dores de viúvas E amarguras de esperanças desesperadas

Mikumbi y’ami, jinjila ja ukwame mu dimbinza Mikumbi yiyi i tena kwimbila henda yo-jimbidile Mukonda ngala anji ni imoma moxi di’ami Eme ngala ni imoma ya kitangana kia wima

Meus poemas são pássaros feridos no espaço Meus poemas cantam amor extraviado Porque em mim permanecem ainda Cicatrizes de todos tempos trágicos

Maza o kuwaba kwa mukumbu Kwa kulundumukile mu kitombe kina Anga mikumbi y’ami ya bulukile ze

Ontem a beleza da música Morreu ingloriamente na escuridão Mas os meus poemas não morreram

Eme ngi luluta mu jinjila ku jisanzala jina Ni ngi wana mikumbi y’ami ku mabata oso Mu madimi ma ixi

Vagueio pelas ruas das sanzalas Oferecendo de porta em porta meus poemas Em línguas indígenas

Mukonda o mikumbi ya kuxixima kw’ami Undundu wa jindunge ni mwenyu Mu kidi kia kizuwa kia hadya ina Yene i songesa jinzoji mu nzumbi ya ixi y’etu!

Porque estes poemas apesar de serem humildes São heranças nobres da vida Que pertence a verdade dum futuro Reivindicando sonhos na alma da terra!

Do livro “Difuta” (Poemas feitos entre 1985 – 1995) - Edição bilingue: Kimbundu/Português


M’saho

FEVEREIRO 2014

CARTAS AO MUNDO Carta do Oriente

POESIA

Poesia de Pedro Afo

“As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente e encaram o futuro sem medo.” Epicuro

Palmira Marques, Díli

SERENA

palmiramarques@hotmail.com

Caro Zé: Uma vez mais me encontro pela Ásia, aquela muito a Oriente da qual conheces alguns locais. As cores e os contrastes são uma constante. Nas paragens por onde moro, não tenho o alvejar da branca neve da nossa serra nem o frio copioso e rijo! O calor torna-nos otimistas e soltos. Aqui o ―inferno não são os outros‖ mas antes, esta canícula indomável, duma Ásia que cresce em desalinho e plena de poluição. Dou muita vez a pensar comigo mesmo, que seria de Manteigas com um décimo da poluição de Jakarta, quase sempre envolvida numa nuvem de fumo…ou com o rio Zêzere atafulhado de lixo da pior espécie como o que acontece, neste charco imundo que corta a capital indonésia e que é meio de subsistência de muitos pobres! Também o (des) governo destas paragens quase sempre avilta os sonhos de quem nasce pobre, pobre vive e pobre morre. Nesta viragem de ano, pede-se sempre o que desejamos, porque o pedido, por si só, é o descrédito de que o não realiza!

Encanto saqueador da minha bondade, Tu sim, és minha metade, Causadora do meu sorriso rasgado, Dádiva do meu presente; Actriz principal do meu alegre semblante. Seu calor preenche o meu vazio; Doce, suave e verdadeiramente meiga; Sua imperfeição faz de ti , mulher perfeita. O teu não no meu sim, encaixa-se perfeitamente, Minha adorável Afrodite. De serena tens tudo e mais um pouco, Quem mal te diz, pensa que te conhece. Tu és: O adorno dos meus escombros, O sonho dos meus sonhos.

Mas como viver é preciso e o passado é o que de mais certo temos, as recordações entram-nos pela alma e saem-nos pela boca, pelos olhos, pelos poros…Pois bem, evocaste no texto, tua avó Mariana que a amiúde me lembra. Ela conhecera minha avó materna, PalmiraJabé, estando por isso, ligada ao passado de minha mãe. Acompanhei a senhora Mariana, muitas vezes ao terço diário na igreja de Sta. Maria. Ia bastas vezes a nossa casa onde passava as tardes a conversar ou a coser roupa. Também para mim e meus irmãos era a avó Mariana, e tanto quanto sei, nessa altura, poucos netos tinha em Manteigas – talvez estivesse o Rui (que é feito dele e da sua guitarra? Não o vejo para aí há meio lustro!). Lembro-me ainda de minha mãe ―obrigar‖ a avó Mariana a acompanharnos nas refeições e quando o caldo era de grão, havia sempre filme, porque a sua garganta muito sensível, reagia ao polme da leguminosa, fazendo-a tossir excessivamente. Era uma mulher de rija têmpera, mas com o passar dos anos, tornaram-se raras as descidas ao Valazedo, ficando retida na sua casa do Eirô. Assim, éramos nós que subíamos, para levar uma sopa ou um mimo. Sentadas junto da janela que dava para a ribeira da vila, conversávamos, contando ela antigas histórias. Ainda hoje, recordo as suas mãos, escuras e ossudas, salpicadas de sinais, mas sempre tão expressivas. Sabes Zé, de certo modo, tenho orgulho de ter partilhado momentos tão únicos com esta velhinha que não sendo da minha família,

PALAVRAS Palavras curtas, palavras grossas, Palavras impetuosas e cuidadosas, Palavras cheias de charme. Palavras duras, como picadas de um enxame. Algumas desmotivadoras E outras encorajadoras. Nunca passam despercebidamente, Palavras sempre mudam, Estruturam, mas também desestruturam, Tão pequenas e com um poder imensurável, Quem dera as proferir, sem ferir, As exalar, sem importunar. Disparar, sem alvejar. Não vivemos sem elas, são aquele sim e não que fazem o coração palpitar.

era como se o fosse. Tudo isto para dizer, que esta distância física entre o extremo mais ocidental da Europa e o extremo mais oriental da Ásia põe as recordações em paralelo. E tal como tu, ―Nesta andança inquieta, admirável e insegura que é a vida, saibamos respeitar-nos no seio do nosso tempo, saibamos colher as flores que hão-de perfumar a nossa casa, e não nos cansemos do que nos faz falta, não abusemos da força que já não somos por se ter esgotado a força que já fomos, nem troquemos a emoção do afecto instintivo pela secura da apatia insolente‖.

“As palavras são mais sensíveis que peças de cristal, portanto, é preciso saber usá-las.”

07


Última Hora

| nosmocambique@gmail.com

32

ARTISTAS JÁ CONFIRMAM PRESENÇA

J

á se conhecem as datas de realização de um dos maiores festivais de música em Moçambique e com mesmo prestígio a nível do continente. O Festival Azgo na sua edição de 2014 tem músicos de peso para além da programação multicultural que junta, artesanato, gastronomia, cinema e literatura. Dois artistas influentes já confirmaram a sua vinda em Maputo para actuar no festival que decorre nos dias 23 e 24 de Maio próximos. Conheça a seguir o perfil dos artistas….

ILHAS REUNIÃO

A autora de ―Django‖ e ―Ti blé‖, espera contagiar o público que aderir aos espectáculos do ―Azgo‖, assim como, fortificar laços com Moçambique, uma vez que haverá espaço de colaboração entre Christine Salem e a moçambicana Zena Bacar. A parceria musical entre estas duas vozes de grande respeito, vai contar com os préstimos dos Eyuphuro, banda que tem Zena Bacar como vocalista principal. Ainda no quadro do Festival Azgo em parceria com o CCFM, Salem promete incendiar o palco do Centro Cultural Franco Moçambicano, onde a artista vai protagonizar um espectáculo inserido numa residência artística aqui no nosso país. De Moçambique, a cantora das Ilhas Reunião, ruma para à vizinha Swazilândia onde vai participar no afamado festival multicultural daquele país, o Bushfire. Christine Salem é uma das mais brilhantes vozes femininas do ritmo Maloya, música originária das Ilhas Reunião, terra natal da artista. Com

uma personalidade forte e carismática, Christine Salem toca um instrumento denominado típico da comunidades conservadores do seu país, denominado kayanm. Muitos críticos de música e arte em geral, consideram que a voz de Christine tem o poder do oceano, banha corações e mentes. Desde 2008, após quase 10 anos ininterruptos em turnê por diferentes países do mundo, Christine Salem dedica-se a música de raiz do continente africano em particular do seu país natal. Produz um trabalho de uma nova linha, escreve música baseada nos ritmos tocados durante as cerimónias dedicadas aos antepassados em Madagascar, nos Comores e nas Ilhas Reunião.

ÁFRICA DO SUL

Tlale Makhene, vencedor dos SAMA (South African Music Awards - maior parada de sucesso de música na África de Sul) tem presença garantida no Festival Azgo, evento vai para a sua quarta edição. Este professor de música e performer, já partilhou palco com nomes como:

Keiko Matsui, Pharaoh Sanders, Corrine Bailey, Angelique Kidjo, Jamalia, Caiphus Semenya entre outros. Tlale Makhene vai escalar pela primeira vez Moçambique e espera conquistar a simpatia dos apreciadores da sua música. Mais do que isso, Tlale, servir-seá desta oportunidade não só para ampliar a rede de contactos, assim como, para projectar-se mais no mercado internacional. Tlale Makhene is one of South Africa's most remarkable drumming talents.Tlale Makhene é um dos mais notáveis talentos de percussão da África do Sul. Highly regarded by musicians and musical fans alike, he is as much sought after teacher, session musician and performer. Altamente considerado por músicos e fãs de música da mesma forma, ele é o mais procurado depois de professor, músico e performer. His album, The Ascension Of The Enlightened is a true spiritual offering from a truly enlightened man. Seu álbum, A Ascensão dos iluminados é uma verdadeira oferta espiritual de um homem verdadeiramente iluminado.

Born in Soweto, Tlale moved to Swaziland at a young age and began drumming at the age of four. Nascido em Soweto, Tlale mudou-se para a Suazilândia em tenra idade e começou a tocar bateria com a idade de quatro. Tlale começou a tocar bateria na igreja, bem como, no meio escolar.After leaving school he returned to his birthplace Soweto in 1992 and began studying drumming full time at the FUNDA Center. Após deixar a escola, voltou para sua terra natal Soweto em 1992 e começou a estudar, batucando em tempo integral num Centro de Formação Profissional local. Refira-se que a Quarta Edição do Festival Azgo, terá lugar entre os dias 23 e 24 de Maio próximo, no Campus Principal da Universidade Eduardo Mondlane. Para além de artistas estrangeiros, o evento, leva ao palco músicos de Moçambique, casos de Simba, G-Pro, Isabel Novella, Yolanda Kakana e Ghorwane.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.