Nos artes e cultura iii

Page 1

www.facebook.com/NosArteseCultura

Conto * Crítica * Poesia *Loucuras com Guido Bilharinho, Nélio Nhamposse, Alex Dau, Pedro Pereira Lopes, Alexandre Staut, Dye Kassembe, Bonde, etc.

Digital

m’saho

Tradução popularizará literatura moçambicana LETRAS 21

Galeria 15

FLOR DE KAKANA

ARTES

19


www.facebook.com/NosArteseCultura

Í

02

ndice

Julho de 2013

04 - Efeméride

nosmocambique@gmail.com

07 - Literatura

17 - Música

100 anos do Museu de História Natural

Colunas 24

The Best of Elvira Viegas (Venho de Longe)

27

Cadernos de Haidian: 29 de Abril de 2013

30

11

A cantora Yolanda, traz nas suas composições, mensagens de esperança, paz e amor. Baseados na Marrabenta e outros ritmos nacionais, fazem fusão com ritmos do mundo, fazendo uma perfeita combinação da guitarra de Jimmy Gwaza e a voz inconfundível da Yolanda Chicane...

HISTÓRIAS INDECENTES OU O DESAFIO À DECÊNCIA(?)

Ensaio

Cartas ao Mundo

14 - Galeria

Obras de Craig Whyle

23

A professora de literaturas lusófonas da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos da América, Lanie Millar, está em Maputo para conhecer de perto a situação literária moçambicana. De entre várias acções de bastidores, Lanie Millar teve dois encontros com escritores filiados à Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) ...

20 - Música

JAIMITO: UM LOUCO OU O HOMEM QUE DEVIA TER NASCIDO AMANHÃ? Unanimemente considerado o melhor guitarrista que o país játeve, Jaimito Machatine nasceu há 64 anos em Zandamela, Inhambane, e tinha 15 irmãos. Faleceu em Maputo no dia 26 de Julho de 2013….

Preservar patrimínio é garantir identidade moçambicana

Música

02

Finalmente, a minha mulher morreu

03

Gente de ninguém

Crónica

04

Saci

Crítica

06

E a terra pariu uma mulher: Poemas do Exílio

Poesia

30

Poesia de Bonde

Poesia

Conto

Seja um de Nós. Escreva-nos pelo e-mail: nosmocambique@gmail.com


E

03 Agosto de 2013

ditorial

nosmocambique@gmail.com

…E O POVO TAMBÉM MORRERÁ DE REMORSOS

U

m imbróglio foi

É este mesmo mundo que o

servido

escultor não precisou viver mais de

aos corações

35 anos de idade. Foi como Cristo.

famintos de

Morreu das mãos de Judas, é como

paz e sosse-

se tudo estivesse premeditado. Mor-

go; almas enfurecidas de pobreza e

reu como Cristo. Fomos nós quem o

miséria com o terror à mistura. Já lá

matamos.

Nós

quem?

Ninguém.

se vai o sossego desejado. O sonho

Alguém dizia que foi o povo. E quem

adormecido acordou os monstros.

é o povo? E esta mesma espécie, ora

Somos fantasmas de nós e dos

assassina, descreveu-a Craveirinha:

Ah! Maria, Põe as mãos e reza Pelos homens todos E negros de toda a parte Põe as mãos E reza, Maria

(José Craveirinha, Reza Maria)

outros. O terror agora tornou-se gente, ascendeu à civilização, subiu à mesa e partilha connosco o prato vazio ao jantar. Agora o problema

DIRECTOR Eduardo Quive Edição Mensal n.º 02 Matola — Julho 2013 Distribuição electrónica

não é se comemos, é o que comemos.

COLABORADORES Alex Dau Guido Bilharinho (Brasil) Alexandre Staut (Brasil) Nélio Nhamposse José dos Remédios Cesário Matias David Bamo Niosta Cossa Pedro Pereira Lopes

PROJECTO GRÁFICO Bantus Imagem

E não são bestas

nós. A verdade em que um artista,

São homens, Maria!

jovem, sucumbiu nas mãos de quem não se sabe, tais movidos pela fúria

tia dos peitos sem oxigénio abafou-

Corre-se a pontapés os cães na fome dos

se, agora ascendeu à chacina. Pobre-

ossos

za maior agora se prenuncia, somos

E não são cães

órfãos de destino. Nem o futuro mete

Dois artistas morreram. Não há voltas a dar. É como se nada tivesse acontecido. É como se nin-

de quem não se sabe. Antes vale se o artista morresse pelas mãos dos tais ―G20‖ da desgraça.

São seres humanos, Maria!

E porque a vida é um improvi-

custa de tudo. Um mundo árido. Feras matam velhos, mulheres e crianças E não são feras, são homens

so, Jaimito Malhatini, quem tinha abandonado a guitarra, pelo papel e caneta, para a escrita e pensamento, cedeu às chantagens da natureza e

E os velhos, as mulheres e as crianças

morreu. Já há muito este artista exi-

morreu, para bem dizer. Não foi um

São os nossos pais

lou-se na escrita, mas não tinha che-

exímio guitarrista Jaimito Malhatini,

Nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

gado à morte. Agora edificou-se para

guém

tivesse morrido. Ninguém

um novo trono. Como ele mesmo

não foi o escultor e artista plástico Alexandria Ferreira. Não. Não foram eles. Ninguém morreu e ninguém os matou. Não é culpa do povo nem do governo, quem devia ponderar e

Crias morrem à míngua de pão Vermes na rua estendem a mão à caridade

sempre propalou, o reino de Deus é o lugar da paz e tranquilidade. Não sabemos que paz um artista precisa no além. Mas se é verdade que Ele

penar essa alma que apenas almas

E nem crias, nem vermes são

traz o sossego, que o homem tenha

soube esculpir e aliviar na terra. Não

Mas aleijados meninos sem casas,

eterna paz. Aos homens, ele mesmo

conheço seus pecados, aliás, os peca-

Maria

conhece a desgraça que os guarda. Amém!

dos de um artista são vários, são eternos monstros da sua criação; um

FOTOGRAFIA Bantus Imagem Marcos Vieira (Portugal) Rogério Rodrigues (Brasil)

para dizer o que se passa cá entre

Comemo-nos nós próprios. A angús-

-nos mais medo. Queremos viver a

ENDEREÇO Av. Mártires da Machava, 904 Bairro Patrice Lumumba - Matola E-mail: nosmocambique@gmail.com Celular: +258 82 27 17 645

Apenas palavras do poeta-mor Suam no trabalho as curvadas bestas

artista é um eterno pecador. Um fingidor, disse Pessoa. Por isso não se

Do ódio e da guerra dos homens Das mães e das filhas violadas

podia poupar a triste desgraça da

Das crianças mortas de anemia

vida de um artista num país que ago-

E de todos os que apodrecem nos cala-

ra tem nome, mesmo que Craveiri-

bouços

nha tenha morrido sem o dizer.

Cresce no mundo o girassol da esperança

nosmocambique@gmail.com


E

04 feméride

Agosto de 2013

Fotos: Rogério Rodrigues

100 ANOS MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL tória Natural passou a alçada do Liceu 5 de Outubro (Escola Secundária Josina Machel) e a direcção passou a ser exercida pelos professores que leccionassem as disciplinas de Ciências Biológicas ou FísicasQuimica. Em 1932, o Governador-geral de Moçambique Coronel José Cabral, transferiu o Museu de história Natural da vila Jóia para a presente localização, na praça das Descobertas (Praça Travessia do Zambeze). As actuais instalações do Museu de História Natural, foram inicialmente concebidas para uma Escola Primária que nunca funcionou como tal. Portanto, em 1932 o Museu Provincial passou a ser chamado de Museu Dr. Álvaro de Castro pela portaria nº 1841. Em 1957 o Museu de História Natural deixou de estar sobalçada do Liceu Nacional Salazar (Escola Secundária Josina Machel) e passou a depender da Direcção dos Serviços de Instrução Pública pelo decreto nº 41472. Em 1959 à 1974, o Museu de História Natural esteve sobre a direcção do Instituto de investigação Cientifica de Moçambique assumindo a direcção do museu o director do instituto.

O Museu de História Natural foi criado a 6 de Junho de 1913, pela portaria nº 1095-A e passou a denominar-se Museu Provincial, localizado nas dependências da Escola 5 de Outubro. Foi criado pelo Capitão Alberto Graça, na altura profes-

sor da mesma Escola. Três anos depois, o Museu foi agregado à Secretaria-geral e passou para a Vila Jóia, actual edifício do Tribunal Supremo, por decisão do Dr. Álvaro de Castro, na altura Governadorgeral de Moçambique.

Visão Outrora o edifício era propriedade do Cônsul da Holanda e estava incluído no recinto do Jardim Tunduru (Jardim Vasco da Gama). Em 1928 o Museu de His-

O Museu de História Natural pretende ser uma instituição regional de excelência na investigação Faunístico, assim


E

05 Agosto de 2013

feméride

Interior do Museu

Outro papel importante do Museu de História Natural é a educação ambiental e divulgação da fauna.

como na qualidade de depositário do património faunístico de Moçambique. Sendo a única instituição nacional vocacionada ao estudo da fauna, e mantendo colecções de referência na fauna, o Museu têm a visão de abranger a sua actividade à todo território Moçambique, com ênfase para as áreas prioritárias de conservação ou áreas pristinas, isto é, habitats e ecossistemas com baixo nível de distúrbio humano, bem como fazer-se presente nas áreas com alto grau de biodiversidade e centros de endemismo da fauna Moçambique. O Museu tem interesse de compilar a informação sobre o uso dos faunísticos e a sua a nível das comunidades rurais. A determinação do estatuto de conservação das espécies das espécies faunísticos de Moçambique e a produção de atlas de espécies faunísticas, bem como a investigação da sua história natural, são aspectos importantes da actividade científica do Museu de História Natural. Estas acções poderão permitir os gestores, decisores a tomarem medidas

de gestão adequadas a conservação. Outro papel importante do Museu de História Natural é a educação ambiental e divulgação da fauna. A sua contribuição na educação formal e informal do cidadão nacional e estrangeiro é relevante pois pode resultar num comportamento responsável dos cidadãos na conservação do ambiente. O Museu pretende alargar a sua presença e acções educativas a todo território nacional através do uso das tecnologias de informação e de outros meios audiovisuais.

Missão A missão do Museu de História Natural resume-se em ―Preservar e divulgar o património faunístico de Moçambique, incentivar a investigação científica da fauna e seus ecossistemas, e promover a educação ambiental formal e informal aos cidadãos, contribuindo para o uso e gestão sustentável dos recursos naturais e ecossistemas de Moçambique‖


Agosto de 2013

letras

CPLP anuncia novos observadores consultivos

O regresso o de Ungulani Ba Ka Khosa

Literatura

“Na Mão de Deus”

06

Uso do Português na ONU depende do consenso dos países da Lusofonia

A

Plataforma Portuguesa das Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD -http:// www.plataformaongd.pt/) passa a ter a categoria de observador consultivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa(CPLP). O anúncio foi dado pelo Conselho de Ministros da CPLP, na sua 18ª. Reunião Ordinária, realizada em Maputo no último dia 18 de julho. ―A Plataforma Portuguesa é composta por 69 ONGD que representam significativamente, através dos seus associados e dos seus parceiros locais, as vozes da sociedade civil que querem contribuir democraticamente para as decisões. Com a atribuição deste estatuto à Plataforma Portuguesa das ONGD, será possível aproximar estas vozes dos centros de decisão e contribuir efetivamente para a implementação de projetos que serão desenvolvidos entre os Estados-membros da CPLP‖, refere o documento final da organização reunida recentemente em Moçambique. O Conselho de Ministros da CPLP sublinhou em seu documento que a ―atribuição deste estatuto à Plataforma Portuguesa das ONGD reveste-se da maior importância, na medida em que reconhece a pertinência do trabalho da Plataforma e das suas associadas nos países da CPLP, nomeadamente nas áreas do Desenvolvimento, trabalhando contra a pobreza e em prol de um mundo mais justo e equitativo‖. Na mesma 18ª. Reunião Ordinária do Conselho de Ministros da CPLP, foi também atribuída a categoria de Observador Consultivo aoConselho Internacional dos Arquitetos de Língua Portuguesa (CIALP), com sede em Lisboa, e à Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira (Unilab), com sede em Redenção, Ceará, Brasil. (LUSA)

O

escritor moçambicano, Francisco Esaú Cossa, mais conhecido nos meandros literários por Ungulani Ba Ka Khola, lançou ao princípio da noite desta quinta-feira em Maputo, a sua mais recente obra, intitulada ―Entre as Memórias Silenciadas‖. Expl ica est e t ít ulo , as memórias que o autor apresenta na capa um olhar de tristeza, de memórias sentenciadas, momentos de desespero, de uma vedação de arame que não é, um soldado em sentinela atrás desse olhar de indignação‖entre o período e espaço. Na obra, o escritor narra as árvores deslumbradas, versando por outro lado da luz ténue que dá outra cor a savana. Segundo Ungulani Ba Ka Khossa, depois do súbito, vem a escuridão, as trevas ou seja momentos de incerteza e de receio. O autor monta na obra uma orquestra denominada Ngodo, que em língua Chope, etnia que cobre parte sul de Moçambique leva marimbas e dançarinos e o respectivo coro e eles próprio o apelidam de Msaho. Ungulani explica ainda que no livro o ―Ngodo, tal como o Msaho, comporta em geral onze andamentos distribuídos em Mutsitso (introdução orquestral), o Mutsitso com duas ou três introduções, Ngweniso (entrada dos dançarinos), Ndano (chamada dos dançarinos), Doinya (dança), Chibudo (dança), Mzeno (dança), Nsumeto (preparação para os conselheiros), Mabandhla (os conselheiros), Njiriri (final dos dançarinos) e Mutsitso (final orquestral). Uma obra para rir, fala igualmente de ―um grito amordaçado de gozo sofrido que abriu as portas da noite‖. (CANAL MOZ)

F

oi lançada na noite de 31 de Agosto, em Maputo, a obra literária Na Mão de Deus, de autoria da célebre escritora moçambicana, Paulina Chiziane em co-autoria com a médium e estudante de espiritismo Maria do Carmo da Silva. O livro é prefaciado pelo conhecido escritor e poeta moçambicano, Calane da Silva, sendo composto por 199 páginas, preenchidas com uma envolvente história real e autodiegética em que o narrador, a personagem principal de nome ―Alice‖, fala sobre o seu drama vivencial – os sintomas físicos e psíquicos que a levaram à psiquiatria e que, fundamentalmente, eram o aflorar da sua mediunidade. Infelizmente, o fenómeno não era compreendido pelos seus familiares e amigos que o tratavam medicamente como se de uma mera doença mental se tratasse.

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa deixou de ser apenas uma organização e reunião de Estados para também atingir “o que deve ser a sua principal vocação: estar cada vez mais virada para o povo, com a participação dos diferentes segmentos da nossa Comunidade”. Estas foram as palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação de Moçambique,Oldemiro Balói.

O

analista de política internacional Mário Pinto de Andrade considerou hoje [segunda-feira, 12 de agosto], em Luanda, que a expansão da Língua Portuguesa, como instrumento de trab alho na ONU [Organização das Nações Unidas] e na União Africana, depende exclusivamente da vontade dos Estadosmembros no que concerne à concertação das quotas. Falando à Angop, sobre o estado atual dos PALOP – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa –, o académico disse ser importante que se faça a expansão desse idioma por ser falado por mais de 200 milhões de pessoas no mundo. Em sua opinião, a oficialização da Língua portuguesa na União Africana só é possível através de negociações, uma vez que Angola é um país com grande expressão, a seguir de Moçambique, ao passo que na ONU, depende exclusivamente da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], porque não há grandes constrangimentos em negociar com a Assembleia Geral. Acrescentou que neste momento, tudo depende de Portugal e do Brasil, porque esses dois Estados estão interessados nos pormenores da tradução e da escrita. ―Se houver essa união entre os países, conseguiremos alcançar a meta que queremos. O que é necessário é o consenso de todos‖, disse. Integram essa organização de concertação política Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. (ANGOLAPRESS)


L

07 Agosto de 2013

etras

Literatura

Lanie Millar

TRADUÇÃO POPULARIZARÁ LITERATURA MOÇAMBICANA

Fotos: Embaixada dos EUA em Maputo

Eduardo Quive eduardoquive@gmail.com

A

professora de literaturas lusófonas da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos da América, Lanie Millar, está em Maputo para conhecer de perto a situação literária moçambicana. De entre várias acções de bastidores, Lanie Millar teve dois encontros com escritores filiados à Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) e depois, com jovens escritores, aspirantes e estudantes de letras no Centro Cultural Martin Luther King Jr.


Agosto de 2013

letras À margem dos dois encontros, surgiu a entrevista que se segue, onde a professora faz uma radiografia do ensino de literaturas africanas lusófonas nos Estados Unidos e as possibilidades que a literatura moçambicana tem de se expandir no exterior.

Está em Maputo há vários dias e manteve encontros com escritores e demais intervenientes das artes e letras. Que resultados conseguiu obter?

- Estou em Maputo para explorar e saber o que está-se a discutir, que temas interessam as pessoas, qual é a situação da literatura, dos escritores, dos jovens, os estudos literários em Moçambique e tudo isso tem sido muito informativo. Primeiro tive encontro com escritores da AEMO, depois com jovens para escutar as principais questões e informações sobre o estado da literatura ou as publicações das obras e a circulação das revistas literárias.

Que preocupações levantadas pelos escritores filiados à AEMO poderão ser úteis para si?

- Os escritores falaram da situação educativa que tiveram, da disponibi-

modelos de publicação e a necessidade de ter encontros e espaços de conversa não apenas entre os escritores mais jovens, também com os mais velhos.

Mas antes da sua vinda que informações tinha sobre o país, tendo em conta que é professora de literaturas africanas de língua portuguesa?

- Basicamente o que tive foi através dos livros. Li sobre a história colonial do país, a independência, a guerra. Os grandes autores que nos chegam são poucos, mas temos Mia Couto, Paulina Chiziane, Lília Momplé, Rui Knofli, José Craveirinha, e mais alguns. Mas sempre é uma questão reservada essa, por ser professora ou crítica de literatura de um país estrangeiro. Porque o que temos acesso é essencialmente o que se publica fora desse país. Por isso é que outra ideia desta visita era de construir essas relações que me deixem conhecer o cenário literário de Moçambique.

Os livros de que se refere teve acesso nos Estados Unidos ou teve que recorrer a outros países lusófonos, por exemplo, Portugal e Brasil?

- Tive acesso a alguns livros nos

Literatura

08

Brasil e, obviamente, nos últimos dias aqui em Maputo achei vários outros que nunca tinha visto.

O primeiro recurso para o estudo de uma literatura é a língua. Lecciona literaturas de língua portuguesa nos Estados Unidos e é norteamericana, como é que a língua influencia para o seu trabalho?

- Há duas questões para falar de quem é professor de uma língua estrangeira num país: primeiro temos que conhecer e estudar a língua para poder consumir os livros no seu contexto literário e linguístico. Por outro lado, muitos dos nossos estudantes não vão chegar ao nível de interpretação desejado das obras pela questão da língua, isso faz com que nós também estejamos abertos à possibilidade de estudar essas obras traduzidas, para estimular nesses estudantes o interesse e conhecimento através da literatura em tradução e daí dar a possibilidade de continuar a trabalhar com a língua e conhecer essas literaturas na sua língua original.

Há dificuldades?

- Há sim, particularmente no português. Nos Estados Unidos a primeira língua estudada é o espanhol, por isso, muitos dos

Sempre há essa questão de como é que chegam estas obras para o público. No encontro com os jovens que tive, foime perguntado como é que um estudante que experimenta uma literatura de outra língua entra no contexto? no acesso do texto literário africano principalmente dos autores que se publicam por editoras estrangeiras que é a tentativa de ocidentalização desse texto. Tem se deparado com isso e como é que vê a originalidade do texto africano?

- É sempre um dilema. São dois mundos que tem muito em comum mas tem muitas diferenças. Então sempre há essa questão de como é que chegam estas obras para o público. No encontro com os jovens que tive, foi-me perguntado como é que um estudante que experimenta uma literatura de outra língua entra no contexto? Como é que chega a conhecer as estórias, vocabulário os contextos e quais são as políticas do mercado para o acesso dessas literaturas.

Sob ponto de vista de crítica literária ao texto africano como é que a vê? Escritores moçambicanos num encontro com a professor Lanie Millar

lidade dos livros, dos movimentos e ideias utópicas que tiveram nas primeiras décadas, depois da independência em 1975, e falaram um pouco como é que mudou a situação dos escritores jovens, da situação de acesso dos escritores jovens às bibliotecas, o gosto pelos livros, o processo das mudanças dos

Estados Unidos porque muitas vezes, pessoas como eu, viajam e trazem de volta muitos livros que colocam nas bibliotecas. Nós temos um bom sistema de circulação bibliotecária nos Estados Unidos, tanto que podemos ter acesso a informação de livros que estão em outros lugares. Mas há outros livros que comprei em Portugal e

nossos estudantes de literaturas lusófonas já tem alguma experiência com o espanhol e isso dá facilidade no momento de ler as obras em português. É uma espécie de ponte entre os dois mundos.

Há uma questão que se coloca

- Para mim no campo da crítica estrangeira temos que saber muito bem da crítica que se escreve no lugar de origem dessas obras, o que circula. Há grandes críticos de literaturas lusófonas, por exemplo a professora Doutora Inocência Mata, é africana e está na Universidade de Lisboa, a professora Doutora Tânia Macedo, Rita Chaves que são as grandes críticas do momento para guiar


Agosto de 2013

Letras

Literatura

09

José Craveirinha

Mia Couto com a professor Lanie Millar

uma pessoa como eu, bastante nova na profissão e conhecer isso. Mas sobre tudo as informações em circulação, não só nas literaturas lusófonas, mas também nas literaturas africanas no geral, por exemplo a situação pós-colonial, a relação entre as realidades sociais que vivem não só os escritores mas as pessoas desses país, a situação urbana e o dia-a-dia. A literatura dá a oportunidade para conhecer mas também dá algum tipo de comentário, um ponto de vista particular que representa sempre o que estão discutindo ou vendo, a maneira de lidar com essa situação das pessoas que moram lá. Particularmente, esse aspecto social, para mim, destaca-se nas literaturas africanas.

Nota-se e se tem gerado um “conflito” pelo facto de alguns escritores africanos estarem também muito ligados à política, há algum entendimento entre as duas áreas?

- Acho que sim. Quando falamos de literatura e política podemos falar por exemplo de uma fase da construção da nação, as primeiras gerações depois da independência, pode se dizer que essa é uma literatura política clássica. Mas quando falo de política não me refiro a um ponto de vista de política particular, mas de uma realidade de pensa-

mento com o povo, pensamento colectivo, as tensões colectivas, a visão da vida que as pessoas tem e etc. Portanto, quando falo de literatura e política refiro-me a esse aspecto também.

E o facto de um escritor assumir um protagonismo político, no seu entender, influencia a sua criação literária?

- Essa seria uma pergunta para o escritor. Há tantas respostas para essa pergunta. Levantamos, uma vez, a mesma pergunta, há alguns meses, num encontro com o escritor angolano João Melo, ele falou que o seu mundo de política e de escritor são diferentes. Eu acho que o facto de um escritor ter esse desenvolvimento político pode dar um certo entendimento, mas não necessariamente deve guiar de uma o que ele escreve.

Já se nota que os escritores africanos, moçambicanos em particular, tem essa tendência de viagem, portanto de fazer outras leituras para além do seu enredo. Aliado a isso se levanta a questão da identidade literária. A professora concorda que uma literatura deve ter uma nacionalidade ou identidade?

- Eu não diria que deve ter. Sempre tem uma marca do seu contexto. E, muitas vezes, no caso de Moçambique e noutros países africanos lusófonos sempre há esse ir e vir. Eu prefiro ver como um engajamento com o mundo externo. Eu acho que tem vários aspectos. Por um lado sempre há a questão do consumo nacional, se a literatura é ou não conhecida dentro do país e, a pressão ou a necessidade que o escritor sente de procurar uma editora de fora, simplesmente pela questão de mercado e pela questão de poder viver da sua arte e da sua obra. Mas também esse aspecto abre um espaço para uma discussão dessa identidade, porque quando essas obras saem para o mundo é através delas que os outros vão poder conhecer Moçambique e, por sua vez, os moçambicanos vão poder articular a sua experiência com o mundo. Então nunca diria que a uma literatura deve ter nem uma nem outra coisa, mas eu acho que a literatura que circula fora e dentro do país tem a possibilidade de abrir conversa e debates.

Tem se reclamado, em Moçambique, da qualidade na actual literatura moçambicana. Na sua percepção o que pode minar a qualidade literária?

Sobretudo acho que vai ter a ver com o conhecimento que se deve ter da história literária, social, sobre a situação original

Todos os países tem o exemplo desses grandes escritores que se lançam ao mundo literário sem este treinamento e há os que eu diria que são escritores eruditos que têm o conhecimento da história literária, fontes filosóficas, entre outras, que tem uma informação profunda sobre a literatura.


Agosto de 2013

Letras

Literatura

Paulina Chiziane

10

Lília Momplé

dessa área. Também o não conhecimento das técnicas linguísticas, narrativas, entre outras coisas que dão à obra literária uma voz original e única. São essas coisas que procuro e acho que são ligados com o conhecimento histórico da literatura do país e outras fontes, também com olhar agudo para o mundo fora e para as possibilidades que oferecem as comunidades que entram na obra.

A professora acha que pode se formar um escritor? Como?

- Não sei. Acho que sim no sentido de ensinar as técnicas de escrita e analíticas. Tem de haver uma combinação de vocação e treinamento. Todos os países tem o exemplo desses grandes escritores que se lançam ao mundo literário sem

este treinamento e há os que eu diria que são escritores eruditos que têm o conhecimento da história literária, fontes filosóficas, entre outras, que tem uma informação profunda sobre a literatura. Eu acho que esse esquema oferece a possibilidade para que alguns saiam com essa combinação perfeita do talento, da inspiração também do acesso ao conhecimento profundo do que é a literatura universal.

Já há algum descontentamento sobre a forma como a literatura moçambicana consegue sair do país que tem sido por via de Portugal e já se fala das limitações que advêm disso. Mas para que se leve a literatura para os Estados Unidos provavelmente a questão é outra. Como levar a literatura moçambicana para o estrangeiro?

- É um dilema, sobre tudo a questão da língua. Ou seja os autores moçambicanos, ou os autores lusófonos no geral, entram através da tradução para o mundo externo. Muitas pessoas têm opiniões a favor e outras contra a tradução ou de vender os livros através da tradução. Mas eu acho, como professora e já disse que uma maneira de dar a um público maior a oportunidade de conhecer a literatura moçambicana ou o país é através da tradução. Pelo contacto com as comunidades lusófonas que há nos Estados Unidos comunidades de brasileiros, portugueses ou de caboverdianos, seria uma maneira de estimular a criação de uma comunidade africana ou lusófona que pode dar mais oportunidades para a entrada dessas obras.

Reiner Rilke escreveu cartas a um jovem poeta. E a professora que conselhos dá a jovens escritores? Professora Lanie Millar

- Acho sobre tudo que devem conhecer a literatura, conhecer os escritores do seu país como dos outros. Como professora de fora quero ler esses jovens quero ter acesso através de blogues, revistas, o que pode sair facilmente, grupos de escritores em movimentos que possam sair em antologias e é através desse contacto, das conversas, e é através desse efeitos de comunidades literárias que vão crescer e os jovens poderão aproveitar o contacto com o público. O projecto de um blogue literário dá muita oportunidade para o público de fora saber o que estão escrevendo os jovens moçambicanos. Tem que haver algum lugar de conversa, de discussão, publicação, ainda que não seja em papel, pode ser um oportunidade dos jovens continuar a produzir.

- Estamos a falar dos jovens, mas pode haver receio por parte dos escritores mais velhos ao recurso da internet. Acha que a internet veio para mudar esse cenário de isolamento?

- Acho que sim. Nas conversas que tive nos últimos dias levantou-se essa questão. É um problema como dizem algumas pessoas que o acesso a internet não é universal está limitado às cidades grandes, há algumas pessoas, mas uma vez que a pessoa tem esse acesso pode melhorar o próprio ambiente de falta de editoras, pode ser essa a alternativa boa, porque uma vez que a pessoa tem acesso a essas publicações, a internet representa uma das forças mais importantes hoje não só na literatura, mas no mundo da cultura na geral. Há a possibilidade de conhecer coisas que ainda não tenham chegado a nós.


Agosto de 2013

Letras

Ensaio

11

HISTÓRIAS INDECENTES OU O DESAFIO À DECÊNCIA(?) À Cadiana Mónica, um sonho.

E para que é que serve a igreja senão para ajudar os que são parvos mas procuram a verdade? William Faulkner

José dos Remédios mirettemuzi@gmail.com Ilustração: Salvador Mungoi

N

a longuíssima história da literatura – enquanto manifestação artística que se concebe graças a imanente presença do emissor, a tal entidade responsável pela emissão dos enunciados do texto, daí o substantivo, da obra, neste caso o texto possuidor de infinitos significados e do receptor, entidade a quem cabe processar o que lhe é transmitido pelo emissor –, vários são os casos de obras literárias que se assumindo como hereges ou desafiadoras aos bons costumes, legitimados por uma sociedade num processo espiral, tornam-se marginal(izadas). Marginal, no sentido amplo, ―(…) adjectiva aqueles que estão em condição de marginalidade em relação à lei ou à sociedade, possuindo, portanto, sentido ambivalente: assim como se refere, juridicamente, ao indivíduo delinquente, indolente ou perigoso, ligado ao mundo do crime e da violência; aplica-se, sociologicamente, aos sujeitos vitimados por processos de marginalização social, como pobres, desempregados, imigrantes ou membros de minorias étnicas e raciais (…)‖ (Perlman, 1977)¹. No sentido que nos é lícito elucidar, segundo Gonzaga (1981)², os usos e significados do termo marginal atinente à literatura estão relacionados, entendemos nós, com o status do(s) autor(es) no mercado editorial, ao tipo de linguagem presente na obra e à escolha de todos os elementos essenciais à configuração da narrativa, nomeadamente, personagens, acções, tempo, espaço, discursos, e etc. Decerto, ainda de acordo com aquele autor, por literatura marginal refere-se às obras à margem dos circuitos comerciais oficiais de produção,

divulgação e que se revelam uma alternativa ao sistema editorial vigente; refere-se ainda às obras que recusam a linguagem institucionalizada ou os valores literários [e porquê não sociais?] de uma época e que, por fim, estão ligadas ao interesse intelectual do escritor esmerarse em retratar o contexto dos grupos oprimidos. Contudo, os critérios, se assim podemos chamar, conducentes à marginalização de obras literárias não são estanques e tão-pouco são absolutos. Dependendo dos contextos sociopolíticos, ideológicos e económicos, uma obra pode ser marginal num período histórico -literário e deixar de ser num outro – o contrário, a acontecer, só pode ser um insólito. São algumas dessas obras o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, O Código da Vinci, de Dan Brown, Teresa Raquin, de Émil Zola, cá entre nós, Nós Matamos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Houwana³, e etc. O que estas obras de autores diferentes, de regiões diferentes, de épocas diferentes e que se expressam diferente [Cada Homem é uma Raça⁴] têm de tão semelhante para além da irreverência que procuramos elucidar? Simples, a liberdade de serem elas mesmas: autênticas e descomprometidas com seja lá o que for. É esta irreverência madura, resultante de uma introspecção concretizada nos enredos, que as faz serem elas próprias. Por isso, mesmo sobre o olhar crítico da censura, essas obras vão estando-se nas tintas com princípios, regras ou algo parecido, e, no sentido inverso ao supostamente razoável, enaltecem-se com o tempo, passando de reles a genuínos modelos literários. É este o fenómeno que torna as obras acima um instrumento revolucionário em relação a um

determinado cânone literário, mas também em relação a uma determinada construção social. Como se seguisse à risca, numa relação envolvendo a causa e o efeito, as peculiaridades de obras contestadas, adoptando um perfil próprio, Histórias Indecentes, primeiro livro do escritor moçambicano Nelson Manhisse (ele também é ensaísta e actor de teatro), não podendo ser outra coisa para além do que insistentemente é, torna-se num desafio explícito à decência na medida em que ao se narrarem as histórias os narradores subvertem tudo quanto lhes apetece sem se preocuparem com quaisquer tipos de represálias. Parafraseando, à semelhança dos romances O Evangelho Segundo Jesus Cristo e O Código Da Vinci, de José Saramago e Dan Brown, respectivamente, a colectânea de contos em análise afronta os conhecimentos sobre a religião que eventualmente o leitor possui e, acima de tudo, questiona, algumas vezes num tom prosaico e céptico e outras vezes num tom convicto e contundente, a veracidade dos alicerces da religião cristã. Atentemos ao seguinte

exemplo do primeiro conto, ―Dois Mais Um Caminho‖, e, depois, ao sétimo, ―O Olhar‖: ―Voltando à narração, tudo indica que Jesuíno sabia quase tudo da vida dos dois poderosos. Sabia, inclusivamente, que eles agiam como gémeos, porém, de forma contrária a estes. Os gémeos, dentro de casa, são tão adversários que chegam a ser inimigos. No verso, é ao se encontrarem fora do lar, só se definem por um. Para não fadigar o leitor ou o ouvinte, é só imaginar o contrário do referido acima. É essa a relação entre Deus e Satanás‖ (p. 7); ―Hei, hei, hei, há outra coisa, como que o anverso de tudo: é o seu defeito (todos os homens tem defeitos, Jesus, por exemplo, era alcoólatra, só pregava com vinho)‖ (p.37). Se no primeiro excerto o narrador de ―Dois Mais Um Caminho‖ usa a sua dialéctica, a sua capacidade analítica para apresentar uma provável relação entre Deus e Satanás, nada mais faz para além de se opor às várias gerações religiosas do mundo, pois em nenhuma delas se aceita a insinuação daquela entidade: Deus e Satanás são amigos. Há aqui uma intenção, clara e objectiva, de o


Letras narrador afastar-se da igreja – dizemos igreja como quem poderia ter tido mesquita – das suas (im)purezas ou das suas contradições, muitas vezes geradas pela in capacidad e/ in gen u idade/ intencionalidade que conduzem os membros dessas instituições à distorção da complexa palavra contida nos livros sagrados: o Alcorão e/ou a Bíblia. Portanto, dizer que Deus e Satanás são amigos pode estar a significar que a primeira entidade, a quem é atribuída a bonança da vida, é tão medonha quanto a segunda, a quem é atribuída a crueldade mundana. E, acto contínuo, dizer, neste contexto, Allah Al-Khalid, Allah An-Nur, Alla Ar-Rahman ou Allah u akbar⁵ é equivalente a dizer Sheitwani Al-Khalid, Sheitwani An-Nur, Sheitwani Ar-Rahman ou Sheitwani u akbar⁶ – uma indecência absurda, grande sacrilégio. No segundo excerto, o desafio à decência continua quando um outro narrador, diríamos, pelas semelhanças, gémeo do primeiro e de todos os outros existentes nos restantes doze (12) contos, não mencionados ainda, macula a imagem d‘Aquele que para uns é filho de Deus e para outros não passa de um (mero) profeta, quiçá com a mesma relevância que Mohamed, em outros contextos, o profeta que ao se transferir de Macca para Madina ergueu a fé muçulmana⁷, tornando Khadija, sua esposa, primeira mulher muçulmana. Referimo-nos a Jesus, vulgarizado de propósito como se de um bêbedo charlatão se tratasse.

Agosto de 2013

mesmo jeito, assumir que José era estéril⁸ constitui uma forma de ou o autor empírico ou o autor textual livrar-se, e ao leitor também, de todos os fundamentos com os quais não comunga. Ateísmo? Parece-nos que é a imagem com a qual o emissor da obra reveste-se quando num parêntesis do conto ―O Olhar‖ desvaloriza a importância de Deus ao ponto de Lhe expor ao ridículo sem meio-termo: ―(olha, um dia ainda acerta no cu de Deus!)‖ (p. 40). Inferiorizando Jesus, símbolo do cristianismo, à classe de um homem comum, retirando o prestígio de Deus, símbolo da criação, igualando-O a Satanás, tendo como intermediário as vozes dos narradores, Manhisse fere, mais do que uma ou outra igreja, a fé dos que acreditam na criação, no entanto, sem aliar-se à ala dos que acreditam na evolução. Ao agir assim, Nelson Manhisse põese a combater do lado dos que questionam as projecções religiosas, sobretudo cristãs, em relação a figura de Cristo, como o fizeram José Saramago e Dan Brown, nos romances oportunamente citados, no entanto, sem a preocupação efectiva e sistemática de desanuviar dogmas religiosos.

Não obstante, a vulgarização e a consequente difamação daí resultante, tendo Cristo como alvo principal, alastra-se aos seus pais com o mesmo azedume contido nas passagens supracitadas. Vejamos o seguinte excerto do terceiro conto, ―Apsiquismo‖: ―Disse-me num desses nossos dias: Sabes o porquê de Jesus não ter sido filho de José e Maria? Abanei a cabeça em jeito de negação – na verdade o velho testamento foi produzido depois do novo, não por Deus, mas por um rei ocioso que amou Maria mais do que à sua esposa, acabando por cometer a imprudência de a engravidar, quando José era desprovido da arte de fazer filhos, por isso escreveu o novo testamento como continuação de um velho que nem existia, isso vem legitimar totalmente a traição da esposa perante o esposo e nem pecado é (…)” (p. 14 – 15).

Nas Histórias Indecentes há assim um suporte religioso muito forte – este facto é irrecusável. Por um lado o autor distancia-se das construções concernentes à igreja como se de um ateu se tratasse (nunca um tolo), questionando, ao estilo Faulkner, ―E para que é que serve a igreja senão para ajudar os que são parvos mas procuram a verdade?‖ (Faulkner, 2000: 365), conforme subentendem as citações apresentadas. Por outro lado, Manhisse aceita o questiona, revelandose integrante dessas mesmas construções. A este último posicionamento são exemplos os contos ―(Re) Volta‖ ―(…) me via como uma rocha datada de muito antes do Senhor da terra e dos céus pensar em fabricar o mundo. Não se usa o verbo fabricar em forma de heresia, sou cristão de precisão⁹, por isso transformo-o em criar para demonstrar a minha fé.‖ (p. 9) e “Os Pesadelos da Semana Passada” ―Eu que, certo dia, achei ridícula e imprópria a colocação de um velho no bar, quando numa das suas rizadas dizia: acima de Deus, honra a teu filho e aos amigos deste para que se prolonguem os teus dias, na terra que o Senhor, teu Deus, te dá!‖ (p. 60) – isto destorce o primeiro Mandamento da Lei de Deus constante nos catecismos católicos¹º.

Ainda que estas ideias proferidas pelo narrador num discurso indirecto façam algum sentido se assumirmos que em qualquer cultura o adultério fez e continua a fazer parte da vida social, envolvendo, de facto, patrícios e plebeus, na concepção da igreja, romana fundamentalmente, esse excerto é indecente porque desacredita Maria, o símbolo de mulher ideal da Igreja Católica, ao lhe retirar com despudor as virtudes que a tornam única e irrepetível. Do

É aqui onde se dá o choque entre narradores de alguns contos, aparentemente ateus, com os dos outros, aparentemente crentes em Deus. Esta talvez seja uma forma adoptada pelo autor para equilibrar a dimensão das várias indecências da obra com o que pacificamente é aceite pelos que crêem no poder celeste: a decência. Entretanto, a ser essa a pretensão do autor, desvanece-se qualquer possibilidade desse equilíbrio vincar, pois as histórias libertam-se de quem as concebe

Ensaio

e impõem-se como aquilo que realmente são: indecentes. E estas indecências descontínuas, quiçá pela natureza de cada conto, ganham, a uma determinada altura, outras especificidades, deixando a igreja à parte, ―por já se saber que ela apenas serve aos parvos que procuram ou fingem procurar a verdade‖, a fim de, com a mesma naturalidade, porém numa escala menor, se dedicar a desenterrar dos escombros episódios fictícios susceptíveis de nos levar à conclusão de que como espécie, como nação, não somos decentes na proporção aparente. Por isso, no conto ―As Vozes do Silêncio‖ há um enfoque a três (3) netos, símbolos da juventude, dos quais uma menina acusa a avó de dizer coisas fedorentas e os outros dois vão ainda mais longe, acusam a avó e a sua geração de pertencer ao mundo das trevas. Um leitor muito solidário poderia prestar amnistia a estas personagens alegando que elas assim agem por serem novas, todavia o que elas dizem à e sobre a idosa de noventa (90) anos de idade equivale-se à atenção evitada pelos seus pais ou à alegria que a família inteira sente quando se depara com a morte da velha. Tais atitudes de personagens de um mundo possível instaurado na obra, se não são reflexo de um mundo empírico, tornam-se profícuos à revelação das indecências de um universo que se adivinha ser o moçambicano. O conto ―Camila‖, à semelhança do anterior, o desafio à decência centra -se rigorosamente nos comportamentos das personagens em detrimento das intrusões do narrador. Em causa, nesta história, está um pai que desde o dia em que encontrou a filha de catorze (14) anos de idade, Camila, a conversar com um rapaz passou a espreitá -la quando estivesse a vestir, a sair do

“acima de Deus, honra a teu filho e aos amigos deste para que se prolonguem os teus dias, na terra que o Senhor, teu Deus, te dá!”

12 banho ou quando ela estivesse sentada à mesa sem quaisquer escrúpulos. Esse protagonista, narrador da história (mais ponderado, logo se vê, parece apresentar uma gula sexual idêntica a de Sebastião Jamisse Nipha ―Soba‖, o protagonista de ―O Caso de Soba‖, que almejava possuir todas as mulheres, inclusive as cunhadas, e com o narrador, sem nome, de ―Nhancuave: a esposa dos espíritos‖, um texto que mais se aproxima a um monólogo lírico do que a uma narrativa), nem sequer se preocupa em esconder, desejava a filha como um homem a uma mulher que espera possuir. É um cenário asqueroso, no qual se mesclam o possível e a realidade. Numa passagem de ―A Minha Terra‖ o narrador confessa quando trata das hipocrisias circundantes aos heróis ―(…) não é biografia de homem nenhum (…)” (p. 28). E nós subscrevemos. Realmente não se encontra ali qualquer biografia, seja naquele conto, seja em toda a colectânea. No lugar de biografia colocamos fotografia e, transformando a sintaxe e semântica da frase, formulamos: as Histórias Indecentes não se tratam de uma biografia de homem nenhum, tratam-se sim de uma fotografia de um Homem gregário, quer dizer, de uma sociedade que tanto pode ser a moçambicana do contexto actual ou de um contexto ainda por vir. Porque ―(…) nada se faz por nada, até o próprio nada‖ (p. 82), questionamos: o que Manhisse poderá pretender com o feroz ataque à igreja e, simultaneamente, à sociedade onde essa mesma igreja se insere? Com as antíteses descritas (ora os narradores assumem uma postura ateia ora assumem uma postura cristã) o que se pretende? Na verdade, estas duas questões estão intrinsecamente relacionadas. Por essa razão as respostas às duas perguntas podem ser fundamentadas da seguinte maneira: quando Manhisse manyisa¹¹ incredulidade com o seu antónimo através das indecências ou do desafio à decência nas narrativas que lhe valeram o Prémio Literário TDM – 2012, na categoria de contos, tenta reflectir sobre o universo polar africano, no qual num pólo uns acreditam e guiam-se por Deus do Ocidente/Oriente e noutro pólo outros, ―os incrédulos‖, desafiam propositada/espontaneamente a concepção ocidental/oriental ao preservarem as crenças provenientes do contacto com as tradições locais. É neste cenário que em ―(Re) Volta‖ encontramos um personagem que na expectativa de viajar procura protecção num curandeiro e não num padre ou pastor, embora seja cristão. (Quanto às antíteses, o autor, recorrendo a voz do narrador do conto ―Apsiquismo‖, explica: ―a minha antítese pretende incriminar certas atitudes humanas, pois várias são as vezes que ouvimos pessoas a argumentar, quando erram, não terem sido as primeiras a fazer isso).


Agosto de 2013

Letras Na mesma sequência, incorporando nas suas narrativas apartes incómodos aos servos de Deus, Nelson Manhisse põe à prova os leitores, chocalhando as suas mentes quando de forma persuasiva destorce as construções erguidas pelas instituições que geram esse tipo de servos. Além disso, a obra deste jovem autor, já com um holofote amplo que lhe faculta reflectir literariamente sobre graves temas seculares, funciona como se a legitimar um velho pensamento de Thomas Hobbes ―O Homem é lobo de outro Homem‖, e, acto contínuo, é produto do bem e do mal, possuindo assim, uma face afável para uma situação benevolente e uma face horrenda para uma situação malevolente, que coabitam permanentemente no mesmo espaço, seja ele a mesquita, a igreja, o seminário, o convento, a Assembleia da República, e etc. Justifica aquela citação o conto ―Virgindade Rasgada‖, no qual Alex passa de herói a vilão por ter desiludido Hege, uma rapariga atraiçoada pelas suas utopias. Em última instância, as Histórias Indecentes – realmente têm muito de

indecente – vão vitalizando o cepticismo ateu em prejuízo da fé em Deus e das religiões que O louvam, sem deixar de lado o desacreditar de uma sociedade que se auto-envenena à medida que as ambições aumentam. A pergunta que deixamos ficar no ar é: será a primeira obra de Nelson Manhisse marginal ou marginalizada, para depois, quem sabe, se tornar num modelo literário à semelhança das obras marginais ou em tempos marginalizadas como as que foram identificadas nos parágrafos iniciais?

Notas ¹Excerto extraído de Nascimento (2006: 11). ²Citado por Nascimento (2006: 11). ³As duas primeiras obras sofreram uma violenta censura, sobretudo pelos grupos cristãos, por subverterem as suas concepções. Tanto Saramago assim como Brown foram alvo de muitas críticas e os romances em causa desacreditados. Teresa Raquin e o seu autor foram alvo de duras banalizações por parte dos críticos franceses que conside-

Ensaio

ravam a obra um atentado à moral. Nós Matamos o Cão Tinhoso foi, durante longos anos, afastada dos circuitos literários pelo facto de o regime colonial português em Moçambique não a considerar obra literária. Seja como for, com o tempo estas obras emanciparam-se e tornaram-se verdadeiros modelos literários. ⁴Título de um dos livros de Mia Couto. ⁵Deus, O Criador; Deus, A Luz; Deus, O Beneficente; Deus é o maior (traduções extraídas de Fúria Divina, p. 42, 45 e 64, de José Rodrigues dos Santos). ⁶Diabo, O Criador; Diabo, A Luz; Diabo, O Beneficente; Diabo é o maior. ⁷Sobre a Hégira (retirada do profeta Mohamed de Macca para Madina) pode-se consultar o Alcorão Sagrado, traduzido para língua portuguesa pelo prof. Samir El Hayek, p. xi. ⁸Para além de recusar que Jesus não pode ter sido filho de José, o narrador renega automaticamente, embora não explique, que Tiago, José, Simão e Judas, por exemplo, são irmãos de Jesus e filhos de José e Maria. A esta altura o narrador revela-se um pouco informado ou ocioso, pois, de contrário, referir-se-ia a paternidade dos outros filhos de Maria. Sobre os outros filhos de José e Maria, pode-se consultar Mateus 13. 53 – 57.

13 ⁹Sublinhados nossos. ¹ºO primeiro mandamento da lei de Deus diz: ―Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas‖. Ver O Pão da Vida: Catecismo e Orações (p. 70). ¹¹Do xirhonga, entenda-se ―Junta‖. Referência bibliográfica Faulkner, W. (2000) A Luz em Agosto. Largo da Lagoa: Biblioteca Visão. Manhisse, N. (2012) Histórias Indecentes. Maputo: AEMO. Nascimento, E. (2006) “Literatura Marginal”: Os Escritores da Periferia Entram em Cena. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade são Paulo. Dissertação Apresentada ao Programa de Pós-graduação (não publicada). Santos, J. (2009) Fúria Divina, 20ª Edição. Lisboa: Gradiva. Sousa, J. (org.) (2008) O Pão da Vida: Catecismo e Orações, 7ª Edição. Maputo: Paulinas Editorial. ______________ (1978) O Novo Testamento. Lisboa: Sociedade Bíblica. ______________ (s/d) O Alcorão Sagrado. __________________

O ROTEIRO DE MARTIM SOARES MORENO O Professor Doutor António de Abreu Freire lançou recentemente a obra “O ROTEIRO DE MARTIM SOARES MORENO” na Guerra de Restauração do Brasil entre 1604 e 1654. Para além de dar a conhecer o meio século dessa luta, o livro poderá dar a conhecer outros percursos de Martim Soares Moreno, um dos grandes heróis da recuperação do Brasil para o domínio português.

O

ROTEIRO DE MARTIM SOARES MORENO (ed. DebatEvolution, 2013, 192 páginas, com dois cadernos de ilustrações a cores) conta a história de meio século de lutas pela restauração do Brasil, entre 1604 e 1654. Os franceses instalaram-se desde a Paraíba até ao Maranhão, depois de expulsos do Rio de Janeiro e os holandeses chegaram a ocupar metade da costa brasileira, onde controlavam a produção e o comércio do açúcar. Martim Soares Moreno chegou ao Brasil muito jovem e participou em todas as lutas contra franceses e holandeses; natural de Santiago do Cacém, faleceu na sua terra natal, depois de ter servido como militar desde a Bahia até ao Maranhão, durante 45 anos. Ele foi um dos grandes heróis da recuperação do Brasil para o domínio português, combateu intrusos e corsários, em terra como no oceano, desfigu-

rado e com uma mão decepada desde os 30 anos; faz parte da lenda, da tradição e da literatura, sobretudo no Ceará, capitania por ele fundada e onde é venerado. Um dos mais belos romances da literatura portuguesa intitula-se IRACEMA, da autoria de José de Alencar (1829-1877): o romance narra a história de um guerreiro português que se enamora da filha de um chefe índio com quem tem um filho e é uma metáfora da miscigenação própria à nação brasileira. A ficção de Alencar é decalcada sobre a vida real do militar cuja história verdadeira é narrada no livro do professor Abreu Freire. O texto agora publicado resulta de investigações levadas a cabo durante muitos anos, já que a vida do militar se cruza em diversos momentos com a do padre António Vieira, a quem o autor dedicou vários livros e um filme. Martim comandava um batalhão de tropas acantonadas na Bahia pelos anos de 1638 a 1645, antes da investida decisiva contra os holandeses; por esses anos o jesuíta

pregava os primeiros sermões patrióticos para animar os soldados. Mais tarde o pregador foi incumbido de resolver na Holanda, pela via diplomática, a questão da presença holandesa no Brasil, sem

sucesso, enquanto os soldados a quem ele pregara em Salvador da Bahia conseguiam derrotar os ocupantes em Pernambuco; em Agosto de 1648, o jesuíta regressava a Lisboa e o militar também: o padre tinha fracassado, o militar chegava como vencedor de uma grande batalha, mas faleceu pouco tempo depois. Os contornos da luta pela restauração do Brasil são complexos e foram muitos os intervenientes na criação da nação brasileira; Martim Soares Moreno falava a língua Tupi e comandou por várias vezes batalhões de tropas indígenas. Na guerra pela restauração e unidade do Brasil combateram negros, índios e brancos, com interesses diferentes mas uma escolha comum que foi a de continuar a existir sob influência portuguesa. Este livro é a primeira biografia completa escrita em Portugal sobre um dos personagens fundamentais na formação de um dos países mais promissores do mundo, onde hoje vivem 194 milhões de pessoas.


DIVULGAçãO

Agosto de 2013

Eventos

14


G

15 aleria

Agosto de 2013

Fotografia

Corpo Insurrecto Craig Whyle

Posso estar aqui eu posso estar aqui perfeitamente pobre um círio me acendi espora aguda o vento ritmo negro assassino-o posso estar aqui - o musgo é lento como a sombra – e sei de cor a voz cega das canções (viola de silêncio acorda-me) que eu posso estar aqui perfeitamente pedra insone e um longo segredo impessoal bordando a minha solidão


Galeria

Agosto de 2013

Fotografia

Desgrenho cada minuto calmo –

e agonio-te de perigos escondidos

basta de tranças imóveis dobradas sobre mim

a terra imprevista sob a terra

caules retilíneos de flores de pedra

o mar imprevisto sobre o mar

Quebro os taus de vidro

Beijo as espáduas do espaço

na beira dos passeios

desfeito

febril como as pedras prenhes de evasão

16


Galeria

Agosto de 2013

Estou à espera da noite contigo livre de amor e ódio livre sem o cordão umbilical da morte livre da morte estou à espera da noite

Fotografia

17


Julho de 2013

Artes Artista do Mês

Agosto de 2013

Dadivo José

Fotos: Divulgação

DADIVO JOSÉ Diz uma nota de imprensa que já recebemos por ocasião de um espectáculo de Dadivo José músico, docente e actor de teatro: estreou-se em palco a 21 de Março de 1992. Na altura, nem ele era capaz de perceber o que estava lá a fazer. O que o artista Dadivo não sabia, é que estava dentro de uma produção teatral do, na altura, grupo cultural Voz Verde. Este agrupamento “teatrava”, dançava e cantava. Construía um sonho. Dadivo José pegou o teatro como uma paixão, profissão e escola de vida. Hoje vive de teatro, é docente de um curso Superior de Teatro na Escola de Comunicação e Artes da Universidade

Eduardo Mondlane, mas seria injusto dizer que naquela oficina de sonhos, continuada no MAHAMBA e em todos grupos amigos com os quais colaborou (Mutumbela Gogo, Mbeu, Luarte, Xindiro, Ntiyiso, Ximbitana, GTO, Casa Velha, etc), não tenha desenvolvido boa parte das outras habilidades

artísticas. Uma delas é a música. Em silêncio Dadivo José gravou um disco que por causa do seu respeito pelos músicos sérios, teima em não trazer ao público. Uma boa parte dos temas que compõem o disco já foram partilhados em espectáculos.

MÚSICA COM ROSTOS E LÁGRIMAS Ao Dadivo José

David Bamo davidbamo@gmail.com

E

la tem gotas. Se de água não sei. Mas a verdade é que são gotas áridas e ácidas. Queimam e aleijam o coração. Dói ouvi-la. Implanta alguma saudade. Uma saudade triste. Ela invade a tranquilidade. Tem ternura. É penetrante. Tem feitiço. Nos ilustra um homem ao relento, solitário, no escuro, sem rumo, arrependido, com a casa desarrumada a precisar de uma limpeza. Homem que perdeu o orgulho, a honra e a verdade. Homem que chora. O desespero lhe tira sono. Vida assombrada. Isto é o que sinto quando a música ―Murandziwa‖ de Dadivo José cai leve nos meus ouvidos. Uma autêntica fotografia aos que perderam norte e sul

Crítica com a morte dos seus amores. É um abraço aos viúvos e viúvas do meu país Moçambique. Dadivo questiona: “Leswi u fambaku uni siya nita sala na mani A vana va hina wena nkata Vata sala na mani” O mesmo que dizer já que te vais amor com quem vou ficar? Os nossos filhos como é que ficam? Desgraçada seja a morte. A morte, sempre a morte. Esta coisa tão terrível e horrível que não escolhe o alvo, só abate. Mas o meu amigo Dadivo se esqueceu de questionar ao Senhor Todo Poderoso porquê leva os seus filhos. Ela não quis morrer Dadivo, chegou a vez, estava escrito, ela aceitou o chamamento, foi-se. É bem verdade o que dizes:

“Tanto sonhei contigo Não é justo te perder sem te ter Amor vem Vem me buscar Contigo viverei na morte” Mas sabes que isso não é possível. Ela morreu. Este desespero musicalmente descrito em ―Murandziwa‖ é a incorporação de um bom dramaturgo e actor num músico, ou seja, Dadivo não resistiu a tentação de representar neste belíssimo tema. Nos mostra rostos de gente angustiada. Lágrimas que o tempo não enxuga. Saudades eternas. Em ―Murandziwa‖ Dadivo vai ser Joaquim da Silva da peça ―Lá na Morgue‖ que conhece tantas histórias sobre a morte. Dadivo lamenta:

nhamutla vani gwela ku loya – a sociedade te acha um feiticeiro por teres perdido esposa. Mas te digo, a tua indagação é hipócrita, foste sim feiticeiro nesta grande viagem de música. Se não nos mostrarias caixões com esse tom de voz tenebroso, não falarias com fantasmas. Por outro lado, há que felicitar a ti e a banda que te acompanhou nesta música. Ao guitarrista Albino Mbié pela execução, os sopros e a bateria não sei de quem são, as coristas comportaram-se como aquelas deusas que beijam os anjos. Parabéns Dadivo pela música. Parabéns música moçambicana. Parabéns Moçambique por gerares bons artistas!


Artes

Agosto de 2013

ELA DECLAROU-SE À TODOS

Fotos: Facebook Yolanda Chicane

Em 2004, Azarias Arone e Yolanda Chicane fundaram a banda Kakana, Desde então, a dupla têm estado a brindar a plateia moçambicana com perfeição, actuando em vários palcos (festivais locais, festas, casamentos, cocktails, jantares de gala e em algumas casas de pasto da Cidade de Maputo). A sua música não tem fronteiras. Baseados na Marrabenta e outros ritmos nacionais, fazem fusão com ritmos do mundo, fazendo uma perfeita combinação da guitarra de Jimmy Gwaza e a voz inconfundível da Yolanda Chicane. A cantora Yolanda, traz nas suas composições, mensagens de esperança, paz e amor. Acredita que a música é uma linguagem universal de concórdia entre todos os seres.

Músicas como ―Suhura‖ catapultaram a banda e a vocalista em particular. Não há dúvidas que ―Serenata‖ é um presente divinamente concebido e esperado. Prova disso foi a desafiadora enchente no espectáculo de Julho no Centro Cultural Universitário. Moreira Chonguiça, João Cabaço, Simba e Maria Helena Pinto, fizeram parte desse pote de música que marcou Maputo. Afro, Rock e Jazz, são ritmos predominantes nas composições escritas em várias línguas tais como: Changana, Emacua, Chope, Português e Inglês.

Fotoreportagem

19


Artes

Agosto de 2013

Fotoreportagem

20


Agosto de 2013

Artes

Música

21

JAIMITO: UM LOUCO OU O HOMEM

Fotos: Marcos Vieira

QUE DEVIA TER NASCIDO AMANHÃ?

U

nanimemente considerado o melhor guitarrista que o país játeve, Jaimito Machatine nasceu há 64 anos em Zandamela, Inhambane, e tinha 15 irmãos. Faleceu em Maputo no dia 26 de Julho de 2013.

Edmundo Galiza Matos Fonte: RM

N

um dos muros da vedação do jardim botânico Tunduru, mesmo defronte do edifício-sede da Rádio Moçambique, em Maputo, estão expostos em papel normal ou cartolina, algumas reflexões, em texto, de um homem que chama a atenção de todo o transeunte da zona, mais precisamente da Rua da Rádio. Não estão registados em algum caderno ou simples bloco de notas e muito menos em livro, mas estão disponíveis para quem os quiser consultar,

interessado em conhecer e compreender o que aquele homem, que um dia foi considerado um dos melhores guitarristas moçambicanos no seu tempo, pensa de si e da sua vida e dos que o rodeiam.

escreve tem a ver com a sua longa e misteriosa permanência fora de Moçambique e sobre a qual os pormenores são escassos e dispersos e deles o Jaimito jamais se refere.

―Os escritos do Jaimito‖, assim me atrevo a chamá-los, podem ser entendidos como sendo fragmentos do pensamento do seu autor sobre os mais díspares assuntos, que vão da música ao cinema, passando pela literatura e religião, que é o que ele mais gosta de dissertar nas suas notas e em conversa com aqueles que o conhecem.

São também escassas referências a pessoas ou instituições com quem se relacionou no período em que permaneceu fora do seu pais, embora, numa conversa corriqueira das muitas que tenho mantido com ele quando juntos tomamos uma ―Bica‖ de café, se tenha referido ―a minha mulher‖ a propósito de uma das obras musicais de Joni Mitchel, cantora canadiana, versátil, que disse apreciar

Um outro assunto sobre o qual ele


Artes

Agosto de 2013

Música

22

particularmente. Disse-me que tanto ele como aquela a sua companheira – de nacionalidade americana – partilhavam a mesma opinião sobre Mitchel, recordando até ―compramos um LP‖ com uma foto da cantora sentada numa pedra nas margens de um lago ou riacho envolto numa paisagem tipicamente da América do Norte. Num dia particularmente diferente dos demais Jaimito ―soltou‖ um pouco a língua, talvez porque acabara de lhe oferecer uma cassete contendo a gravação do álbum ―Thick As A Break‖ dos Jethro Tull, que me pedira havia muito tempo. Interessante como ficou agitadíssimo quando comprovou no seu mal-tratado gravador o teor da gravação, que disse ter reconhecido logo de imediato ao ouvir os acordes da guitarra acústica iniciais da obra. Educadamente confidenciou-me que da banda liderada por Ian Anderson tinha particularmente preferência pela obra ― Benefit‖, lançada dois anos (1970) antes dos Jethro Tull terem gravado o épico poema do pequeno Gerald Little Milton) Bostock. Apenas para se aferir dos conhecimentos que Jaimito tem da música, é interessante a sua surpresa quando lhe informei que uma das últimas obras discográficas de Joni Mitchel que me chegaram as mãos tinha a ver com uma parceria entre a cantora e Charles Mingus, que este nunca viria a conhecer porque morrera uns dias antes da sua edição. Jaimito ficou extremamente interessado nos pormenores daquela que lhe parecera uma ―estranha‖ mas ao mesmo tempo agradável colaboração entre uma assumida cantora folk e um jazzman esquizofrénico como o era Mingus. Fez-me prometer -lhe uma cassete com o registo da obra, tal era o seu interesse em ouvir que sonoridades Joni Mitchel e Charles Mingus poderiam produzir e oferecer que pudessem agradar aos seus fãs divididos quanto aos géneros. Pois então, contou que viveu 16 anos nos Estados Unidos, após dois ou três anos de permanência em Portugal. Em Lisboa e no Algarve, o guitarrista terá tocado em clubes nocturnos, com moçambicanos, angolanos e cabo-verdianos, nomeando Bana como tendo sido um deles. Não se recorda de alguma vez ter trabalhado com o Fu, um reputado baterista moçambicano radicado há vários anos em Portugal, muito conhecido nos meios musicais no Algarve. Disse que com um certo Mitó Dickson (com quem se conhecera ainda em Moçambique) fez algumas gravações de músicas de autores moçambicanos, entre os quais de Wazimbo. Desconhece o paradeiro desses registos mas diz ter uma vaga ideia de que terão sido editados em disco pelo Mitó Dickson.

Em Portugal terá conhecido a ―minha mulher‖, americana, que entretanto engravidara. A filha de ambos, gerada naquele pais europeu, viria a nascer em 1982 nos Estados Unidos, por vontade expressa da mãe. Zara Jaime Machatine assim se chama a filha de Jaimito, tendo hoje 28 anos de idade. O que fazia e de que vivia Jaimito nos Estados Unidos tal continua envolto num mistério, sendo certo porém que foi naquele país onde todos os seus problemas actuais tiveram origem. Sabe-se apenas que dez dos dezasseis anos nos EUA foram vividos em cadeias e estabelecimentos psiquiátricos a mando dos tribunais, onde, como ele próprio me confidenciou, passou por experiências terríveis e conheceu gente da ―pior espécie‖. É de supor que Jaimito, guitarrista dotado acima do normal para os padrões de Moçambique e Portugal, não tenha singrado em terras americanas onde o mercado musical é certamente mais exigente e bastante concorrido. Sem trabalho e sem meios para uma vida desafogada e independente, terá então ficado na dependência da mulher, situação que, acredito, se lhe tornou insuportável e geradora de conflitos com a parceira, a quem, diz-se, terá violentado por diversas ocasiões. O seu caso – e continuo nas meras suposições – terá sido comunicado as autoridades judiciais que não se fizeram de rogado perante um ―estranja‖. A mais recente informação dá conta que, depois de várias anos de encarceramento em penitenciárias, a

sua nacionalidade e a língua portuguesa, terão criado um natural interesse e simpatia de um psiquiatra americano de origem cubana. Tornaram-se amigos de longas e proveitosas conversas, o suficiente para o especialista caribenho lhe propor duas alternativas para solucionar o imbróglio em que Jaimito se encontrava amarrado: ir viver para Cuba ou … regressar ao seu país.

vê-lo acocorado ou sentado a escrever as suas notas, compenetrado no que faz, aparentemente alheado do rebuliço da estrada.

O nosso guitarrista não hesitou: acompanhado por dois ―gorilas‖ do FBI, voou dos EUA, com escala em Johanesburgo, até Maputo, onde foi entregue às autoridades moçambicanas.

De madrugada, contam os homens que velam pela segurança do centro, Jaimito entrega-se normalmente a tarefa de ―publicar‖ os seus pensamentos, pregandoos numa frondosa árvore plantada no jardim dos serviços administrativos da Rádio Moçambique, qual um jornal de parede. Por estes dias, a ―exposição‖ pode ser vista num dos muros do jardim botânico Tunduru, defronte da RM.

De um dia para outro, ei-lo que encontra na Rádio Moçambique a sua casa e galeria de exposição dos seus textos ―filosóficos‖. Os escritos estão sobre papel A4 normal mas, na falta deste, o autor falos em pedaços de cartões de embalagem de produtos alimentares ou bebidas, material fornecido por amigos e conhecidos, ou que ele próprio recolhe na rua ou nos cestos de lixo. O lugar onde ele escreve as suas notas não podia ser mais inspirador para o Jaimito: num local público bastante concorrido por homens e mulheres das mais diversas profissões, a maior parte deles ligados a música e destes, alguns antigos membros de bandas que ele integrou antes de ―dar o fora‖ de Moçambique. É no Centro Social da Rádio Moçambique onde preenche os seus dias, toma as refeições que lhe são oferecidas e dorme ou passa a noite numa das entradas daquela rádio pública. Todos os que por ali passam já se habituaram a

O local tem todas as condições para que o Jamito se inspire para o que vai escrevendo, pois para além de se encontrar e conversar com os que foram seus amigos de outrora, testemunha como ninguém os mais diversos comportamentos dos frequentadores do estabelecimento.

Após pregar o material, o nosso ―escritor de rua‖, faz o que todos fazemos – ou devíamos fazer: dirige-se as casas de banho do centro, onde cuida da sua hegiene pessoal. Senta-se depois num pequeno muro situado na rampa que dá acesso ao bar do centro, folheando velhos e rasgados livros, ou então escutando música de um pequeno gravador de cassete com auscultadores minúsculos ofertados certamente por uma alma compreensiva. Registei em imagem fotográfica alguns dos seus escritos com a sua devida autorização. Antes faço notar que quando lhe pedi para lhe fazer um retrato ou uma fotografia em conjunto recebi dele um redondo ―não‖, justificando a recusa com o intrigante argumento de ―eu não quero mais problemas com ninguém‖. Anui e deime por satisfeito, não sem deixar de me perguntar a que problemas se referia e com quem.


Agosto de 2013

Artes

Brevíssimas

23

Música moçambi- Dino Miranda cana no festival de actuou no African Cabo Verde Lounge

M’saho da Paz

A

D

e 16 a 18 de Agosto

―Durante muito tempo consumimos e assistimos espectáculos de músicos vindos desses países. É tempo de também mostrarmos as nossas potencialidades‖ Depois de um grupo de artistas ter participado recentemente de um festival em Angola, segue agora um outro, mas desta vez para Cabo Verde. O grupo é cons-tituído por Yolanda e Banda Kakana, Dilon Djindje, Mingas, Stewart Sukuma e Sizaquel. Os músicos vão representar Mo-çambique no Festival Baía das Gatas, de 16 a 18 deste mês na Ilha São Vicente. Para além dos músicos já referenciados, instrumentistas e coristas vão fazer parte desta lista de artistas que vai levar os ritmos moçambicanos a Cabo Verde. São eles: Dodó, Pimen-ta, Stélio Zoé, Nelton Miranda, Thaphelo Bongane, Fernan-do Morte, Stelinho, Sandra, Bernardo Ounhuane e Carlos Gove. Os músicos vão sair de Maputo no dia 13 de Agosto, podendo regressar no dia 20 do mesmo mês. Júlio Sitói, que conduz a equipa moçambicana ao festi-val, refere que ―Estamos a pre-parar o máximo possível para ter uma representatividade em grande de Moçambique. Queremos com tal continuar com a internacionalização da música moçambicana. Durante muito tempo, consumimos e assisti-mos espectáculos de músicos vindos desses países. É tempo de também mostrarmos as nos-sas potencialidades‖.

D

epois de Stewart Sukuma ceder o African Lounge para Ras Haitrm e Guilherme Silva, no último fim-de-semana, o convite foi endereçado ao compositor, produtor, guitarrista e vocalista Dino Miranda. O músico apresentou-se na companhia de Tony Chabuca no baixo e coros, Tony Paco na bateria, Pateta na percussão e Valy no teclado. Voz e bateria estão a cargo de Dino Miranda. Vencedor de dois prémios musicais, nomeadamente, Mozambique Music Awards e Ngoma Moçambique, ambos em 2009 com o seu álbum intitulado ―Moya wa kaya‘‘, Dino começou a sua carreira profissional em Maputo no ano de 1997, tocando com bandas de música rock. Em 1998, Miranda engrena no projecto Asaga, com Chico António, tendo feito parte dessa banda por dois anos. Em 2000, estuda música na escola de música e dança fuba na School of Music - em Johannesburg, onde também participa em vários projectos musicais. Em 2001, Dino Miranda é aceite para estudar música na Universidade de Cape Town, tendo concluído o curso em 2004. A sua carreira a solo começa em Cape Town, em 2002, formou a sua banda com músicos moçambicanos e estrangeiros, e fez parte de grandes festivais na África do Sul e Moçambique, além de várias participações com músicos nacionais, como o Stewart Sukuma, e estrangeiros, Freshly ground, Napalma, Loading Zone, só para citar alguns.

Associação dos Amigos de Zavala (AMIZAVA) promove entre 24 e 25 de Agosto, a décima nova edição do festival anual M‘Saho. O evento terá lugar na Vila de Quissico, no Distrito de Zavala, em Inhambane. O r g a n iz a d a p e l a A M I ZAVA, participam na iniciativa grupos de Timbila da província de Inhambane, incluindo outras formações artístico-culturais de diversas partes do país. Preservemos a Paz é o lema escolhido para a edição deste 2013.

Carlos Gove no Franco...

O

Centro Cultural Franco-Moçambicano acolheu a dias, o concerto do conceituado baixista moçambicano, Carlos Gove, que publica o seu primeiro trabalho discográfico com o título Massone. Gove tem um percurso artístico de 25 anos de carreira. Sendo que ele já trabalhou com inúmeros projectos culturais e bandas como, por exemplo, a Ghorwane, a Nondje e Vuka Africa. Por isso, o seu disco traduz as suas múltiplas vivências como artista e cidadão moçambicano. Trata-se, na verdade, de uma obra em que Carlos Gove desenvolve uma abordagem concentrada também na questão da luta pela liberdade em vários níveis. Por exemplo, no tema "Marrabenta Groove", interpretado por Tababasyle, Sheila Jesuíta, Ras Haitrim e Yolanda Chicane faz-se um grito em prol da liberdade da mulher, enfocando-se a questão dos direitos humanos.

O melhor do jazz em Maputo

O

s indispensáveis Norman Brown, Earl Klugh, Lee Ritenour estarão no nosso país em Setembro, Novembro e Dezembro. Earl Klugh será o primeiro a esca-lar Maputo para um concerto pro-gramado para o próximo dia 24 de Setembro de 2013, no Centro Cultu-ral Universitário. O mesmo espaço vai acolher, no dia 16 de Novembro, o espectáculo de Lee Ritenour. Lee Ritenour que, a par de Earl Klugh, escala Moçambique pela primeira vez vai oferecer dois espectáculos, sendo o primeiro agendado para 15 de Novembro no Conselho Municipal de Maputo. O guitarrista Norman Brown, já há muito esperado no país, vai fechar este ciclo com dois espectáculos nos dias 13, no Hotel Polana, e 14 de Dezembro de 2013, no Centro Cultural Universitário, facto que vai acontecer na véspera de completar meio século de vida, ou seja, 50 anos de idade. Norman Brown é um dos grandes nomes do ―Smoot Jazz‖, muitas vezes comparado a seu contemporâneo George Benson. Já Earl Klugh é guitarrista e compositor considerado um dos melhores violinistas da actualidade.


Agosto de 2013

Artes

Património

24

Preservar patrimínio é garantir identidade moçambicana Fonte: RM

A

Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) reiterou a importância do património cultural intangível na promoção da identidade de nações como Moçambique.

―Não é o Governo que garante a manutenção das tradições, mas sim é a própria comunidade que mantem as suas tradições. Nesse sentido, não existe nenhuma implantação de convecções de salvaguarda de património imaterial sem que as comunidades sejam envolvidas‖, referiu o Consultor.

―É através de práticas de histórias orais e de rituais que se desenvolvem as danças, o folclore que cada país se faz reconhecer e ganhar forças para a construção da sua própria história ‖, disse Lucas Roque, Consultor da UNESCO.

A participação das comunidades, segundo Roque, é de extrema importância para a preservação das tradições que são também fundamentais para a manutenção dessas mesmas comunidades.

Roque falava segunda-feira na cidade de Maputo a margem da cerimónia de abertura do ‗workshop ‘ subordinado ao lema ―Salvaguarda do Património e Cultura‖ organizado pelo Instituto de Investigação Sócio - Cultural, Embaixada da Noruega, e pela própria UNESCO. De acordo com Roque, para que tal aconteça é necessário que a sociedade seja a principal mentora deste processo.

Este ‗ workshop‘ é considerado de extrema importância por ter como objectivo munir os funcionários do Instituto moçambicano de Investigação Socio - Cultural (ARPAC), do Ministério da Cultura, e da sociedade civil, de técnicas de uso da Convenção de 2003, que tem a ver com a salvaguarda do património cultural e imaterial. Por seu turno, o representante do Ministério da Cultura, Fernando Dava, disse ser graças ao ajustamento das neces-

sidades de protecção e da valorização do património que se conseguiu motivar as comunidades a interessarem-se pela sua cultura imaterial. ― Um dos resultados colhidos dessa série de formações foi o inventário do património cultural intangível da Ilha de Moçambique, um trabalho pioneiro que se apresenta já na sua versão final‖, explicou a fonte. A Ilha de Moçambique foi consagrada Património Mundial da Humanidade, em 1996. Esta zona insular também se destaca pelo seu valor cultural tradicional.

―A nossa expectativa é que a partir destas duas capacitações estejamos melhor munidos e preparados para fazer face aos desafios que se apresentam na implementação da convenção de 2003‖, acrescentou. Enquanto isso, o representante da UNESCO em Moçambique, Abou Amani, frisou a importância deste encontro de três dias por incluir, na sua agenda, a avaliação do património imaterial de Moçambique, bem como a elaboração de planos de salvaguarda e implementação de gestão estratégica destas matérias.

The Best of Elvira Viegas (Venho de Longe) Crítica

Niosta Cossa

A

carreira de Elvira Viegas dentro da Música Ligeira Moçambicana é ímpar. Dentre todos os artistas conotados com aquele género é a mais distinta. E entre as 3 grandes divas da Música Ligeira Moçambicana, Zaida Chongo, Elsa Mangue e ela (Elvira Viegas) – se considerarmos que Mingas sempre esteve mais na "Música Moçambicana Internacional" do que propriamente na Música Ligeira Moçambicana – ela é a mais consciente e mais serena. Ao estilo pomposo e escandaloso de Zaida Chongo e à natureza depressiva -autodestrutiva de Elsa Mangue, Elvira Viegas opõe consciência e serenidade e sobriedade. Dentro da crença e prática moçambicana da arte como uma arte educativa, Elvira Viegas é quem mais se

músicas foram regravadas para este álbum.

destaca. A Música Moçambicana sempre foi rica em artistas loucos, extravagantes, rebeldes, desesperados, provocadores, moderados, conservadores, temperados e, ultimamente, engraxadores do poder político, enfim, sempre teve artistas de toda estirpe lírica e de atitudes variadas, mas nenhum chegou aos pés de Elvira Viegas como artista educadora. Elvira Viegas é única. Tal qual é único o seu estilo, que mistura a Marrabenta e o Afro-Pop, crian-

do um estilo suave, mas, forte, dinâmico e pulsante. Por outro lado, o canto dela, simplesmente, é o melhor (dentre o género feminino) que se encontra dentro da Música Ligeira Moçambicana. Este The Best of Elvira Viegas, que, como sugere o título, apresenta as melhores de Elvira Viegas, não é simplesmente um exercício de recolha das melhores músicas da cantora, tal qual foram gravadas originalmente, para serem relançadas num único disco. As

E nesta regravação as músicas são embaladas pelo som sombrio do teclado de Pipas, que, à entrega apaixonada de Elvira Viegas, acrescenta melancolia, deixando as músicas tensas, magníficas, em catarse, no entanto, no limiar da tristeza, da falta de ritmo e da pregação de Moral, e só lá não caem graças aos outros executantes, Stélio Zoe, Carlitos Gove Manuel de Jesus, Sacre, Pacha Viegas e o grande Sox, que mantém a música viva e focada. Fantástico! Assombroso! Ainda em relação aos artistas, finda a audição deste The Best of Elvira, fica-se com uma certeza: Sizaquiel e Jenny são grandes vocalistas de apoio. Um grande disco este.


m’saho Caderno de Prosa&Verso

CONTO

POESIA

LOUCURAS

QUESTÕES DE NOSSO TEMPO Guido Bilharinho

Pág. 05

Finalmente, a minha mulher morreu Pág. 02

GENTE DE NINGUÉM Pág. 03

Conto de Alex Dau

Parte Integrante de Nós 02 - Agosto de 2013 - Não pode ser distribuido separadamente

A insatisfação nas ruas os manifestantes ainda não viram tudo


M’saho

Agosto de 2013

02

Prosa

Finalmente, a minha mulher morreu Nélio Nhamposse n_nhamposse@yahoo.com.br

nizavas ou não.

Finalmente, a minha mulher tinha morrido. O quarto, onde jazia Julieta, estava funesto e pesado de dor. As jasmins emanavam e esculpiam o corpo estatelado sobre a cama. E eu contemplava aquele silêncio que irradiava do corpo, que respirava a dor e morfo que a morte nos permite: o silêncio de não poder ter voz para verbalizar o que sentimos e sonhamos, o que cheiramos e tacteamos, o que amamos. Lembreime que Julieta apreciava tanto o silêncio que se tornou cultora do mesmo. Esculpia-o e reinventava-o. Instantaneamente, enquanto olhava incisivamente para o corpo que jazia soberbo e altivo, travava monólogos e reminiscências das longas noites de luas com Julieta. Luas de que me tomo e choro. Luas de que me entrego com a nostalgia de suar e morrer nelas. E aí começa a cartase:

De certo, lembro-me que fui feliz contigo, Julieta. Repito, fomos felizes. Muita gente mete pança pela palúrdia quando fala de felicidade e alegria. Confundem os sentimentos. A felicidade é o leito do tempo. Nunca anuncia marés altas ou baixas. É a premonição que a poesia permite, o azul do céu; o futuro por desenhar e o passado quando anunciado. E, em sentido inverso, a alegria é o fulgor, a paixão, o instantâneo, a envolvência, o calor, a volúpia ardente que sentimos. A princípio eu saía de manhã e voltava no dia seguinte. Depois viajava

noites infinitas e, mesmo quando contigo estivesse, te abstias no infinito. Lembras-te, dormíamos de bruços e distintos um do outro. O tempo foi andando. Descobriste a Rosimel, o verbo que me fazia ecoar, a perdição, e nem para tanto te incomodou. Permaneceste apenas em silêncio. O facto é que me concormias os ossos. Retalhava-os e transforma-os em pó. Depois destilavas e tomava-os. E sabe, os anéis passam, mas os dedos permanecem. A Rosimel para mim era um anel, a alegria, o calor, a carne, a humidez. E tu, o sangue, o útero. Lembras-te das noites de núpcias? Se me permites, dizias: ―tu dormes no meu leito como quem agoniza. Quando me tomas, decepas-me por inteiro. Não deixas nem espaço para a vírgula e raramente falhas o verbo. Tomas-me como jorras sangue nos teus versos.‖ E retorquia: - ―Não posso negar que te amo como se me mutilasses. Como se me banhasses de água e dilatasses em pó. A nossa ligação é umbilical. Um cordão que não me foi cortado. O leito dos afogados.‖ Hoje, a nostalgia se apossa. Passaram meses, depois anos. Não mudaste. Permaneceste fiel e solitária. Uma solidão de que me banho e gemo. Uma solidão de que me alimento aos prantos e choros. E continuas a corcomer-me. O que eu queria era pintar-me no céu com Rosimel. E, por muito tempo, o que eu queria era que pairasses e desvanecesses no Verão. Pouco interessava-me se ago-

O rio foi seguindo o seu curso como uma criança quando nasce, o ciclo da vida. Amantizaste com a solidão e o silêncio e exilaste-te no abismo. Tornaste-te fantasma de mim e de Rosimel. No autocarro, nos hotéis, víamos-te passar, de súbito e espontaneamente. Seguias-me como uma mãe que segue a sua cria. A princípio achei que fosse alucinação, mas depois percebi que tu eras parte de mim, esquartejada em ti. Eras uma sereia. E, mesmo assim, não entendo por que é que te lançaste do vigésimo primeiro andar, se já eras eu e banhavas-te do sol de Rosimel! Éramos cúmplices, amávamos a mesma mulher. E, entre nós, amávamonos na solidão e no silêncio, nesse fio cuja nascente hoje se revela. E, quando dou por mim, travo estes monólogos como se me tivesse transposto de mim. E estou. Estou entre o teu corpo e as ideias que ainda não aclaram. As jasmins continuam a espalhar o teu cheiro em tudo quanto há na casa. Escrevo no silêncio da solidão. A profecia cumpria-se. Lembro-me que dizias que no dia que morresses querias morrer no poema: ―Quero esfolar a rima com a minha morte. Quero ser enterrada num poema. Quero que o céu e o verso se encantem. E ninguém mais escreverá tamanha heresia. Apenas eu e a poesia‖. E, decerto, comecei a chorar. O que durante anos cultivei e tanto desejei tinha acontecido e eu contorcia-me. Contorcia-me pela saudade de não mais poder sentir a solidão e o silêncio, e, sim, transformar-me nela. Contorcia-me pela dor de não mais me poder reflectir no espelho e passá-lo a sê-lo. Quando, de súbito e instantaneamente, ali defronte do cadáver que já se fazia morto, uma carta levitou. ———————————————— *Texto extraído do romance inédito “Matiangola e os discursos fúnebres”, da autoria de Matiangola

Lembro-me que fui feliz contigo, Julieta. Repito, fomos felizes. Muita gente mete pança pela palúrdia quando fala de felicidade e alegria. Confundem os sentimentos. A felicidade é o leito do tempo. Nunca anuncia marés altas ou baixas. É a premonição que a poesia permite, o azul do céu; o futuro por desenhar e o passado quando anunciado. E, em sentido inverso, a alegria é o fulgor, a paixão, o instantâneo, a envolvência, o calor, a volúpia ardente que sentimos.


M’saho CADERNOS DE HAIDIAN 29 de Abril de 2013 Pedro Pereira Lopes pedrolopes.isri.ap@gmail.com

T

odo homem nasceu para ser campeão! Quero acreditar, acredito, ah!, injusteza de crenças omissas que me aturdem como leão errante em correnteza! Quem devo culpar por tamanha insperança? Ninguém seria um pronome preciso demais, nem-ninguém, máscara branca de palhaço de circo em ópera fantasma, com gestos e passos valsados, condenados ‗amazimus‘, sem-rosto dos rostos sem-rostos. Era uma vez um homem que negociou o seu próprio sorriso, a narrativa acabou antes de se ter finalizado, o meio perdeu-se entre lamentos, o fim fugiu de si mesmo, de tão trágico que se sentia, voz omnisciente que se assoberbou, vulcanizou, expeliu brilhos de cinismo democrático. Que se fez da nossa oportunidade? Que possibilidade, a de repensares num futuro com escassas páginas de avaliação, sem erros, sem acertos, de inúmeras intentativas sem felizes combinações? Jogas um jogo viciado, com dados adulterados, com jogadores ridículos mas previamente acautelados. Todos os teus respiros são permitidos, os teus arrotos são contados – como as batidas de um engenho engendrado em oficina, Pinóquio de barro e ventas de penas! E desaproveitámos o nosso tempo cuidando em mudar o pensamento dos que pensam por nós, sobre nós, sob nós. Esquece! De nada te vale o que sabes se não conheceres as pessoas certas, tiveres os amigos certos; foi o final do porco mais terrível do que o castigo do coelho? De que nos vale o teu carisma se o brilho dos teus olhos não nos faz ver a luz do amanhã? Fartei-me de estudar o ontem, esse ontem cavernado, e se desminto a própria objecção do meu cérebro, que isso quererá dizer, estarei formatado, poderei confiar nos meus sentidos? O teu carisma, ah!, não me vale para nada. Irónico: apreciar o mundo faz-me parecer que somos uma turba de demorados – intelectual versus espiritual – para o pior de nós mesmos, ou aquela injusteza, sem dono para oferecer, para aqui é alguém chamado. Tecnocracia – é isso que faz a diferença, não os litros de petróleo que podemos pôr dentro do nosso bujão, que tememos nós, fazer a fila?

Agosto de 2013

03

Prosa

Gente de ninguém Alex Dau alexdaumz@gmail.com

V

agabundos famintos deambulam pela cidade sem fé de outrora, porque o lixo é pobre, já não têm restos de comida como no passado.

Agora os munícipes são comensais rigorosos e implacáveis, porque o custo de vida arrebata muitas paciências e deixa estômagos desconfortáveis. Mendigos escalam a urbe todas as sextas-feiras na esperança que os súbditos de Alá sejam misericordiosos para com eles. Mas nem todos são abençoados pela condescendência do misericordioso e acabam mais pobres, porque o cansaço lhes rouba as poucas energias que possuíam e regressam a casa sem fé. Meninos analfabetos proliferam pelas ruas da cidade e não imaginam há existência do alfabeto de Camões e companhia limitada. Os seus ideais são outros, nas suas mentes repousam sonhos de banquetes com muitos manjares. São todos chamados de meninos da rua, mas todos eles têm nome, mas quem quer saber, ninguém, nem eles próprios, que os chamem como quiserem. Talvez tiveram certidões de nascimento, mas com

com balas perdidas, ou as vezes com vontade de saciarem o dedo no gatilho com vontade proclamado por satanás, para aparentando nós proteger. Vale a pena ser amigo dos larápios, pois uma vez assinada a trégua sabem-no respeita-la. A cidade continua manchada de sangue derramado por pacatos citadinos que lutaram em prol dos seus direitos ou buscaram justiça, e o espírito dos corpos baleados vagueia algures pela cidade, aguardando o momento de se vingarem dos seus carrascos. O lixo nauseabundo intoxica a respiração dos munícipes, quando transborda dos contentores, e permanece no asfalto em muitas esquinas inviabilizando o trânsito já desorganizado, protagonizado pelos motoristas de ―chapa‖ que transformam a rodovia em pistas de fórmula um, numa luta sem escrúpulos que travam entre si na busca de passageiros. Cobradores de ―chapa‖ imploram aos citadinos que viajem nos seus carros, mas uma vez a bordo, os passageiros são maltratados e humilhados, porque de simples passageiro, o indivíduo passa a simples carga a bordo.

certeza os seus pais acabaram por usa-los para acender uma fogueira para se resguardarem do frio, preparar um manjar, ou mesmo devem ter usado para limparem o cu, dependendo das circunstâncias.

A taxa de lixo instituída pelo conselho municipal ainda não combate o inimigo implacável que é o lixo, mas cria dissabores financeiros a muitos citadinos que lutam desarmados contra o custo de vida.

Agora eles residem num canto da cidade, sonham ao relento, sonhos resfriados com sabor a desespero.

Patrões de muitas nacionalidades, libaneses, paquistaneses, brasileiros, portugueses, chineses impõem sua autonomia degradando sobremaneira a nossa frágil soberania.

Mas eles fazem parte desta sociedade que os ignora, são desta pátria parida a mais de três décadas, quando eram rotuladas como seiva da nação. Também os loucos carregam a sua insanidade pela urbe e exibem acrobacias gratuitas enchendo de alegria as crianças que transitam pela urbe que só conhecem o circo pela televisão. Vendedores ambulantes fazem promoção de vários artigos, mesmo sem conhecimento de ―marketing‖, mas a polícia camarária continua sempre no seu encalço, para lhes dificultar a sobrevivência. Estão todos condenados a miséria sem quartel, todos vós, meninos de rua, vagabundos, mendigos e insanos. Estamos todos lixados incluindo vós os corruptos, porque chegará o dia do julgamento final, confidencioume um afamado médium. Mas enquanto não chega o dia do julgamento, a luta contínua, mesmo desarmados contra o inimigo uniformizado que nos fuzilam por vezes

Os combatentes se cansaram, luta armada, guerra civil, agora o povo crê sem fé na justiça divina, que devia ter chegado há muito, mas enquanto não chega o povo vai acreditando no futuro, porque no passado justiça nenhuma foi feita, os vencedores são os mesmos que firmaram contrato com o diabo. Mesmo assim uma quietude paira na cidade numa manhã de domingo qualquer com acerto no calendário da nossa era, e a frescura de verão vem impregnada com o cheiro nauseabundo libertada pela decomposição do lixo, mas o ácido úrico de bebedores de todas as barracas que proliferam pela cidade e arredores. Entretanto vereadores municipais, mostram-se impotentes para estancar o lixo, mal que se tornou símbolo da capital. A vida continua com a oposição do lixo e outros malefícios urbanos e humanos, e a luta do povo avança em prol da liberdade e justiça.


M’saho

Agosto de 2013

Crónica

04

SACI

Alexandre Staut* nosmocambique@gmail.com

*Alexandre Staut nasceu em Pinhal/SP/ Brasil, em 1973. Jornalista, é também autor dos romances ―Jazz Band na Sala da Gente‖ (Toada edições, 2010) e “Um Lugar Para se Perder‖ (Dobra Literatura, 2012).

**Saci é um personagem do folclore brasileiro, um ser das matas que tem uma única perna, que vive pulando e que fuma cachimbo o tempo todo.

A

lguns sussurravam, ali, na rua da gente, que ele era o currupira, apelido que ganhou por causa dos calcanhares sujos, sempre inchados. Outros o chamavam de Noia. Eu acredito que achei o seu nome certo ao batizá-lo de Saci**. Vivia mancando,arrastava uma perna, o cachimbo aceso sempre preso à boca, escondia-se de tudo, a cara de medo. O corpo, um fiapo. Nos últimos tempos deu para ficar na frente da loja de discos. Dançava. Dançava, tivesse música ou não. Eu observava tudo da minha janela. Diziam que tinha 27 anos, o infeliz. Às vezes, quando o via, o desejo era rir do seu desatino. Mas não ria. Pensava no meu pobre paizinho, nos tios bêbadoslá do beco, dos quais dois ou três se recuperavam, aceitando só água nos aniversários. Coxinha com água, empada com água, bolo com água, por favor, eles falavam, com sorriso estampado de quem descobriu tarde que a vida é boa. Mas o Saci... Esse parecia não se recuperar. Gastava uma grana de cana, o coitado. E ainda puxavacachimbo. Viciado até a raiz do cabelo. Certo dia, acordeide uma noite mal dormida com alvoroço na rua. Abri a janela evi a movimentação na frente da casa. Pronto, o Saci morreu, foi o meu pensamento. Não. A mulher, sentada no chão, chorava, tampando a cara com as mãos, como se estivesse envergonhada do marido. Os que passavam para o trabalho cochichavam, apontando uma frase pichada na parede caiadado barraco do casal. Desviando das cabeças ajuntadas na cena, pude ler as letras tortas, grandes, que anunciavam assim: ―o chupa latas‖. Espichei as orelhas para ouvir mais de perto o burburinho. Dona Daiana Cristina, a esposa do Saci, conhecida no becopor Nega da Cocada, senhora com quem nunca tinha trocado palavra até o citado dia, chorava, falava dos seus dissabores. Passei gumex no cabelo, penteei os fios para trás, mandei a camisa de botão pelo tronco, a calça de tergal passada com vinco, sapatos bem apessoados, engraxados. Atravessei a rua e escutei o choro fino da jovem madama. Ainda tampava o rosto com as duas mãos. O choro escorria pela saia florida, as pernas de fora. Engoli seco e pensei em estender a mão, acertando os cabelos esfiapados na cabeça dela. Mas não me atrevi. A gente

cabeça dela. Mas não me atrevi. A gente nunca sabe. No mais, sempre primei pelo respeito na vizinhança. Mas, para a minha sorte, ou azar, assim que cheguei mais perto, percebi, ela sentiu o meu cheiro, doutor. Olhou bem nos meus olhos. Olhar de mulher. Quase sorriu. Disse que o Saci era um doce. Só pensava em açúcar, vivia mastigando suspiro, deitado na frente da tevê. No entanto, há umas semanas o pobre conhecera uns rapazes no bilhar. Ofereceramo fumo que o coitado nunca mais largou, ela disse, chorando ainda mais nessa parte da história. Desde então, o viciado passara a levar tapa na orelha dos policiais do postinho, bem na subida do morro. Era o pedágio que devia pagar para subir de volta pra casa. Às vezes,os policiaistiravam os únicos dois mirreis do bolso do coitado. Ele vivia entrincheirado, como se em guerra, mudara pra chuchu, declarou a jovem madama. Não trabalha mais, não come mais, não dorme mais, nunca mais pediu suspiro depois da janta, nem mesmo do feijão com linguiça dos sábados ele comentava nas conversas da semana. Não estava preparada para cuidar sozinha do lar, enviuvar, essas coisas, choramingava ela, na minha presença, mais uns seis ou sete, que ali estavam para ouvila. Nesse dia, meio sem querer, passeia a me afeiçoar pela mulher. Diana Cristina. Tão nova, tão sofrida. Eu, da minha parte, bem que tentei não tomar partido, mas, a cada vez que via o Saci sair, mancando, os olhos esbugalhados, o negócio aceso na boca, eu arrumava o cabelo, colocava brilho, espirrava a colônia e ia... Batia na porta dos dois cômodos do casal. Da primeira vez, a vizinha estranhou. Sempre tão quieto o senhor, disse. Da segunda, chegou a dar uma risada. Da terceira vez, serviu café com rapadura. Da quarta, eu a convidei para o baile do sábado, no morro do Adeus. Mas antes da valsa, praticamente me mudei para a casa dos meus vizinhos. Fiquei tarado pelo corpo da Diana Cristina, tarado de pular dentro de um vulcão, sabe, doutor? Acontecia, vez em quando, de eu estar lá, esparramado na cama, no que ouvia o Saci chegar. Passava o braço e pegava as peças soltas pelo quarto, meias, cueca, sutiã, calcinha. Cheguei a mergulhar para debaixo da cama. Sempre dava um jeito de esticar a audição, com a qual ouvia as malcriações do marido traído.

Eu já era de casa quando percebi que a minha vizinha apanhava do homem em forma de Saci. Todos os dias, doutor. Acontecia de eu dormir na casa do casal, quando a besta-fera não aparecia. Eu fazia carinho, cafuné, coçava as costas dela, com a mão bem leve e a ponta dos dedos, como ela me pedia,essas coisas todas de um casal apaixonado... Lavava a louça da janta, esticava panos no botijão, colocava bala pros passarinhos na beirada da janela do quarto. Para retribuir, ela fazia cocada de forno, cocada queimada, com manteiga e... A fé, pobrezinha. Daiana Cristina perdia a fé. Pensava em vender o barraco no morro, 20 mil, falava. Fugir dali para se esconder do moleque do marido. Mas e eu? E a nossa amizade? A amizade colorida? Eu me pegava perguntando para a jovem senhora. O senhor é aposentado, ela respondia. Vive do depósito do governo. Podemos vender os dois barracos e comprar um canto num outro morro, um morro distante, vida digna. Resumir ainda mais a história, senhor escrivão? Bem, o pobre do Saci nunca se referiu a mesmo a mim. Nem eu a ele. Sua voz eu ouvia sempre do debaixo da cama. Parecia um moleque. Mas, em vez de cocada, ele pedia a alma da Diana Cristina, doutor. Queria que ela pagasse com a sua vida as suas saídas. A preta nunca foi de brincar. Nem eu, homem apaixonado. Admito que, sozinho, apressei a sua morte, seu doutor. Eu comprei o veneno. Eu misturei na feijoada. Eu obriguei o homem a comer. Tão magrinho, eu falava. Ouça o seu vizinho. Eu dei comida na boca dele, doutor, colherada depois de colherada. Na mesma noite ouvi o malandro estrebuchar. Eu estava deitado no quarto do casal, esperava a sua morte, quando ele deu o último suspiro. A preta saiu correndo, quase pelada, e, em vez de anunciar cocada, disse que um homem abria um buraco no chão da cozinha para enterrar o corpo do finado marido. A preta mexe com a minha cabeça pra chuchu, doutor. O meu grau de luxúria para com ela é alto, grande. Agora não sei se a vejo mais. Será que um dia vai se lembrar do cafuné que eu fazia nas suas costas? Será que um dia, mexendo o tacho com cocada doce, pensará em mim?


M’saho

Agosto de 2013

05

Crítica

QUESTÕES DE NOSSO TEMPO

Guido Bilharinho

O

Brasil foi tomado no mês de junho último por manifestações de insatisfação, protesto e reivindicações de proporções inéditas até então. A palavra chave do fenômeno é insatisfação. Insatisfação generalizada contra o estado das coisas no país. Se há (e há) progressos, instalações e condições inimagináveis até mesmo há trinta ou quarenta anos atrás (imaginese antes!) , os desmando s, a incompetência, a desonestidade, o oportunismo, a falta de caráter, a carga tributária, a burocracia, a violência e a insegurança também multiplicaram-se, permeando e afetando o tecido social. Os manifestantes que foram às ru as para expo r essa legítima insatisfação, além de merecerem todos os elogios, exceto, obviamente, os baderneiros, os vândalos e os meliantes, nem sentiram ainda, pela idade da maioria, a tragédia de um país injusto e engessado. Se percebem que, com exceção de poucas e sofridas entidades culturais e assistenciais privadas, a maioria absoluta das organizações partidárias, sindicais e ongs de diversas matizes pautam-se por interesses particulares de seus dirigentes, ou, quando menos, por ideologia, não representando senão a si mesmas, ainda não enfrentaram as angustiantes filas dos atendimentos públicos. Se acham absurdos os gastos com estádios, futuros elefantes brancos a darem só despesas (mas, contraditoriamente, muitos são contra seu arrendamento a particulares), não tiveram de amargar meses para simples averbação em registro público e nem pagar taxas exorbitantes só para registrar mera ata de eleição de diretoria de entidade cultural absolutamente destituída de finalidade lucrativa. Se, com sobeja razão, repudiam a maioria dos candidatos e dos eleitos pela sociedade (e não políticos, que são outra coisa, rara no Brasil atual) para os executivos e legislativos, nunca atentaram que eles têm de gastar fortunas nas campanhas eleitorais (talvez, em média, uns três milhões de reais para deputado federal), ainda correndo o risco (certo para a maioria) de não serem eleitos. Então, como candidamente pretender que só idealistas se candidatem e como exigir

A insatisfação nas ruas os manifestantes ainda não viram tudo

que quem paga ou tem de obter meios de custear os gastos de sua eleição vá representar o ―povo‖? Sobre isso, aliás, ninguém fala! Por quê? Como também pouco se fala e se escreve contra os excrescentes fundo partidário e imposto sindical. Ao contrário, investem até contra o fundo público eleitoral, que deverá ser gerido e aplicado pela Justiça Eleitoral e não pelos partidos, proibidas totalmente outras fontes de custeio e outros gastos, oriundos até mesmo dos próprios candidatos, com o que, e só assim, haverá a decantada democracia no país, possibilitando a candidatura de todo cidadão no gozo de seus direitos e a ser exercitada em campanhas eleitorais regulamentadas.

Nada há, no momento, mais autêntica, legítima e motivada do que a insatisfação generalizada Se os manifestantes externam legítima insatisfação contra a corrupção, o sobrefaturamento e os desvios de recursos em obras públicas e contra os gastos estatais com a Copa, não atentaram, ainda, para os permanentes, inconstitucionais e fabulosos gastos publicitários das administrações e dos legislativos federais, estaduais e municipais em rádios, TVs, internet, jornais, folhetos e catálogos para se autoelogiarem. Essa juventude tão justamente insatisfeita nem ainda enfrentou o

engessamento do país em todas as áreas, com multiplicidade de exigências formais e burocráticas de toda ordem e espécie, como, por exemplo, em relação ao meio ambiente, a respeito do qual o Brasil tem a legislação mais draconiana do mundo, com imposições cerceadoras que nenhuma out ra nação t em, desequilibrando os índices de custos e produtividade e enfraquecendo o país na competição internacional, quando o correto e cientifico é se ter legislação uniforme para todos os países, visto que a questão ambiental é planetária. Além de tantos outros descabimentos, distorções e deturpações, essa juventude ainda nem enfrentou o confisco representado pela alta carga de impostos do país, a ponto de um profissional autônomo pagar, só do soidisant imposto “de renda” e sofismaticamente ―outros proventos‖, praticamente um terço de seu ganho bruto, nem atentou, também, para a imensa injustiça tributária que obriga o assalariado do mínimo pagar, de imposto de consumo, a mesma percentagem de um milionário. E, ainda, nem conhece a sangria a que é submetido o país com a absurda remessa às matrizes das multinacionais de lucros, royalties, dividendos e rendiment o s diverso s. Como demonstrado pelo departamento (ministério) de Comércio dos E.E.U.U., de 1990 a 2000 a América Latina enviou para aquele país a esses títulos nada menos de UM TRILHÃO DE DÓLARES (Folha de S. Paulo, de 10/02/2003), fora o que remeteu para a Europa, Coreia do Sul e Japão. Nada há, no momento, mais autêntica, legítima e motivada do que a insatisfação generalizada no país com o estado (geral e particular) das coisas (de todas as coisas), como, por exemplo, o aposentado pelo INSS não poder auferir mais do que R$4.150,00 (que é o teto fixado), enquanto os servidores públicos aposentam-se com vencimentos

integrais, de R$ 12.000,00, R$ 15.000,00 ou mais de R$ 20.000,00, havendo, pois, defasagem absurda entre esses regimes de aposentadoria, que alguns querem uniformizar, mas, para baixo, já que necessário sobrar recursos para as mordomias oficiais, os palácios luxuosos, as viagens, nacionais e internacionais, constantes e caríssimas, a maioria delas, notadamente de congressistas, meras (não inúteis, mas, nocivas) vilegiaturas turísticas, enquanto o povo aufere o mínimo (e é o mínimo mesmo) e rala nos ônibus precários e nos metrôs e trens suburbanos superlotados das grandes cidades. Por isso e por muito mais, o Brasil necessita ser passado a limpo, reorganizado de cima a baixo, para que suas instituições públicas (e as privadas também) passem efetivamente a contribuir para o progresso e bem-estar dos brasileiros e não sejam entraves à boa administração e ao desenvolvimento do país, como o é o caótico sistema político organizado, dirigido e mantido por grandes conglomerados empresariais, diret amen t e ou po r meio de representantes. Por fim, é de se observar e atentar que a causa maior, se não a única, de toda a precariedade (e ponha precariedade nisso) das instituições públicas e privadas brasileiras decorre, fundamental e principalmente, da permanente abstenção da sociedade, de sua não participação, de sua carência de espírito crítico, combativo, organizacional e, em decorrência, de sua falta de exigência, de seu alheamento, descaso, comodismo e abulia. Por isso, alvíçaras para as manifestações. Mas que não se fique só nelas e que tenham, sempre, espírito crítico e combativo, mas, construtivo, escoimados das manifestações os recalques, as invejas e as abomináveis unilateralidades ideológicas, sempre obnubiladoras da mente e limitadoras do raciocínio e da percepção da realidade.

Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil, foi candidato ao Senado Federal e editor da revista internacional de poesia Dimensão, de 1980 a 2000, sendo autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional.


M’saho

Agosto de 2013

06

Poesia

Angola

Angola

E A TERRA PARIU

clamam por ti as minhas lágrimas

UMA MULHER:

louca de desejo de te ver só ver-te

Poemas do Exílio

por ter-te perdido louca de sentir-te e sentir-me em ti quando ! quando, o teu céu é tão diferente o luar é mais cândido o mar o nosso mar há quanto tempo não o vejo quanto se não chega depressa a aurora morrerei de desgosto de saber-te perdida oh ! minha terra onde a gente é pura inocente vazia de mágoas vítima de potências doente por não compreender humilde como Cristo pobre muito rico por seres assim é que eu sofro por ti

Dye Kassembe é Amélia de Fátima Cardoso nasceu em Angola. Aluna exemplar, foi noviça no convento de São José de Cluny onde fez todo ensino secundário. Licenciada em Ciências Humanas, opção Filosofia Política do Desenvolvimento, na Universidade de Paris VIII St. Denis – França, onde vive há trinta anos. Também tem o Curso Geral de Enfermagem, feito na França, profissão que exerceu por mais de 20 anos. Escritora desde os anos 70. Dìa Kassembe é o nome do avô materno, e também do sobado que pertence ao reino da Kissama.

18 Março 1978

Depois da Guerra Na luz Na escuridão Do silêncio Na madrugada menina Nada No esplendor Do sol Raiando alegria No júbilo de corações No paraíso dos amores No entardecer Nada No viver da ilusão No sentir-se feliz Na solidão Nada Ah ! solidão Mantenha-me assim No vácuo do regaço Ah ! solidão Me queres sem limites Fazes-me sofrer Sem alívio Ah solidão! 22 Agosto 1977

Vácuo O esqueleto apareceu Risonho Medonho A criancinha morreu O crime aparece Triunfante Heroicamente A criancinha morreu A vida desapareceu Acabrunhada Envergonhada A criancinha morreu O ódio cresceu Fecundo imundo a criancinha morreu o pecado apareceu temeroso poderoso o esqueleto sorriu a criancinha morreu o mundo se extinguiu 9 Maio 1978

O retrato da vida Lágrima, correntes Opressão, revolta Gargalhada Risos tristes Sorrisos imaculados de amor chegando Olhares sem mágoas Olhares inquietos Olhos suplicando Um pouco do nada Bocas sedentas talvez de beijos rostos radiantes cheios de esperanças caminhões chegando, barcos, aviões vozes gritos berros murmúrios choros, soluços hospitais, crianças armas, fome lágrimas, correntes parte-se regressa-se morre-se quatro letras e já no infinito VIDA

Tu vais partir Amanhã tu partirás A angústia esmaga o coração amanhã não estarás se ao menos eu pudesse chorar mas estou tão vazia amanhã não estarás que farei para quem serei bela para quem sorrir a quem falar amanhã tu não estarás meu amor tenho medo da noite da noite longa meu amor tenho medo do silêncio do silêncio que vem a cada instante me falar de ti meu amor tenho medo da vida esta vida que nos espera sem promessas cheia de dúvidas sem esperanças cheia de desesperos

16 Fevereiro 1978

meu amor tenho medo

Exilada Como vivo morta Sem morrer Com desejo de te ver E não poder Que negro é O sepulcro desta vida Em terras estranhas De alma perdida Este vazio Esta ansiedade Esta dor e saudade Esta raiva Que treslouca E consome a carne Já tão pouca Não é senão O querer voltar Voltar e não poder O ter de ficar Ficar e não querer

de ti que és tu? 25 Outubro 1979

Não é mais Que a ausência do mar Da minha ilha Nas noites de luar Do muceque Rangel Sambizanga Bairro operário Marçal Cazenga BASTA ! Recordar o que é Viver para que é Se a alma já a perdi E a vida a não vivi 15 Abril 1976


M’saho

Agosto de 2013

07

Poesia

CARTAS AO MUNDO Moçmbique

Poesia de Bonde

Eduardo Quive eduardoquive@gmail.com

Há tal soturnidade, há tal melancolia. Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

A

Cesário Verde (O Sentimento dum Ocidental)

D

ispo o silêncio que assola o âmago da noite. Dispo o sol adormecido entre as nuvens sangrentas de um céu que nesta noite não cospe estrelas. Há uma chuva embebedada que se destroça entre os escombros perdidos desse céu ensanguentado. Esse céu que já não é de deus nenhum. É dos homens. É nosso. Por isso o dispo como dispo o silêncio das coisas a volta. Uma janela com vidro partido pela lateral; uma cortina branca com pintas de preto apodrecido pelo rio que escorre a parede quando o zinco não prende as águas amargas desse céu melancólico; na parede à rosa, manchas pretas fazem a decoração entre as gotas vermelhas de sangue dos mosquitos sofridos na última noite saciada; uma porta que tranca-se com o sacrifício das mãos que empreendem a força; uma lâmpada de 100W colada à parede que contrasta um quadro pintado por um artista mal afamado; uma estante com livros inclinados, CD‘s espalhados pela superfície, preservativos selados que esperam utilidade desde a última noite de volúpia a oito meses que a Ermelinda foi desvirginada; dessa orgia não restou lembrança alguma, senão a dúvida de porquê ela nunca mais voltou a pôr os pés nesse quarto amelado entre memórias e escombros, espólios de uma vida monótona; acento à essa estante, um computador enrugado faz tempo à espera de transcrever um poema sarcástico como sempre desconseguido; uma caixa de madeira, inventa uma cabeceira onde adormece uma carapaça de um cágado com dez anos de vida, um boneco de cavalo nas costas de um pequeno vazo feitio de uma pata sem cabeça, um relógio com Nossa Senhora por dentro, repousa avariado nessa cabeceira inventada; páginas de jornais e livros desfazem a beleza dessa cabeceira e outros papéis de urgente aquisição; no chão cheio de areia e folhas de mafurreira, um balde e uma bacia apontadas aos buracos das chapas de zinco, esperam uma chuva que não chega, aquietada, um tapete estendido adormece envelhecido nesse chão; uma cama a cair aos pedaços finge-se de sobrevivente das dormidas à rasca, das fornicações que jazem a oito meses que a Ermelinda foi desvirginada; a almofada, com as fronhas sujas desde os oito meses, se quer reclamam alguma limpeza, as pintas de sangue e bolor não clamam lavagem; a cama que acolhe lençóis imundos, é constantemente abrigada por livros, jornais do dia e outras publicações, uma roupa suja e uma pasta, são habitantes inevitáveis dessa madeira com molas e esponjas gastas de orgias à muito havidas. É assim o paraíso. Nenhum mais inglório, além de mim, habita esse repositório de moribundos; nenhum outro povo, haveria de aceitar tamanha imundice, que o silêncio empobrecido de uma madrugada que ameaça cessar sem tecer as últimas considerações. Que seriam? A vida, por si, é um rio descorrente.

Urlima de Andrade

Amiga Urlima, os ventos nesta urbe jantam o resto dos nossos atormentados desejos, a mesma audácia dos carrinhos de mão, de meninos nos bairros periféricos da nossa cidade em queixume. Querias ter no brando olhar, a nostalgia dos tempos da bola, as bonecas cansadas da espera nas vitrinas da rua que não chega ao fim. O sonho não é para quem anseia a fome mortal, mas sim para as causas da genialidade, o tédio das noites mal-encaradas, os beijos esquecidos nos processos criativos. Há um céu que chora o segredo dos vocábulos nocturnos da baixa, há uma hora que sente na epiderme a falta de angústia nos trilhos do café, há na solidão das ruas estreitas a confidência dos poemas verticais da Noémia, e um imaginário banco de jardim vestido de negro com a Florbela Espanca. As cores fogem do que não se pode afastar, do que é impossível diagnosticar, do que… como nas manhãs frias de Junho tiram a alegria estampada nos olhares satíricos da falta de pão.

Sobre o crepúsculo dorme o sol das angústias; Transpiram na sonolência as feridas do agreste olhar diante do inesperado cansaço. Tu que foste outrora cavaleiro dos oprimidos, o Sansão para os guerreiros da verdade, agora cambaleias no horizonte invisível, sem a glória apetecível dos frutos verdes de Outubro. O nublar da vida repele de si o astro entediado, a voraz sagacidade de paragens secretas, para que o hemisfério sul se compadeça com os delírios da admirável civilização sulista.

Não grite somente ao anoitecer da aurora, faça de si um vulto invisível, um ser gregário da civilização que desanda de si, um caixeiro-viajante das horas mortas (Ganhamos e perdemos o pudor das coisas com a saciedade do conhecimento endógeno, o fio condutor do nirvana. A geração passada deixou-nos de braços atados para o futuro que não chega, criou em nós a preguiça da espera, o calor da transpiração à hora da criação). Não sendo o afamado Buda, percorres os montes Himalaias do amor em brasa, com que não olhas para o céu-da-boca seca dos odores do verão. O amor que sonhas é o mesmo que viverias na constância das palavras?


Última Hora

| nosmocambique@gmail.com

32

“NINGUÉM MATOU ALEXANDRIA FERREIRA”

Era uma vez um artista, um dos bons escultores moçambicanos, foi morto barbaramente, confundido com um dos elementos da gang criminosa que tem vindo a atemorizar a província e cidade de Maputo.

com ferro de engomar e até matando. Cesário Matias nosmocambique@gmail.com

P

arece realmente um princípio de uma história de ficção, mas é a verdade nua e crua que chocou a comunidade artística na manhã deste domingo, dia 11 de Agosto. Alexandria Ferreira, morreu dois anos mais velho que Cristo, aos 35 anos de idade. Do seu leito ―desamamentaram-se‖ dois filhos. O caso sinistro deu-se na madrugado deste domingo enquanto o escultor zelava pela segurança no bairro onde residia, no Posto Administrativo da Matola Rio, província de Maputo. Alexandria fazia patrulha com mais dois companheiros, segundo contou ao NÓS o pai do artista contactado na manhã desta segundafeira. Pelo que conta ainda o progenitor, Alexandria, fazia a ronda pelo quarteirão com dois companheiros, quando de repente cruzaram-se com um outro grupo, maior, que fazia também a caça ao G20, como são conhecidos os homens que tem semeado terror nos bairros periféricos da província e cidade de Maputo, torturando as suas vítimas

A marcha de Alexandria que não tinha outro intento, se não o de salvaguardar a sua integridade e dos demais moradores da sua área, ficou interrompida quando a população dum outro quarteirão encetou uma ofensiva contra os três. O artista e os dois companheiros apercebendo-se do facto, acorreram à esquadra da polícia mais próxima, no bairro de Quilómetro 16, a fim de pedir protecção. Tal protecção não foi dada pelos homens da lei ordem. A desordem se instalou a população supostamente movida com o espírito de ―justiça com próprias mãos‖ tirou a vida de um proeminente escultor da mais nova ordem de artistas moçambicanos. A continuidade na área de Alexandria Ferreira vai abalando-se. o presidente do Núcleo de Arte, agremiação em que fazia parte o malogrado, fala de uma perda irreparável, ao retratar-se da morte de Alexandria Ferreira. ―Foi-se um artista de mão cheia e que o seu espólio faz parte do inigualável trajecto cultural do país‖ – disse Nyonguene. A acção da polícia, segundo o líder do Núcleo de Arte, demonstra a situação de insegurança em que todo o cidadão está exposto, mesmo diante de quem devia trazer segurança. Nasceu a 08 de Dezembro de 1978 em Maputo. Até à sua morte, assumia-se como artista e da arte das suas mãos,

vivia, e os seus companheiros, já deixam mensagens de dor e consternação na sua página na do facebook. Uma delas é da consagrada cantora moçambicana Chude Mondlane. Também o conhecido produtor Pablo Ribeiro reagiu dizendo ―estás aqui, em cada um de nós, nas tuas criações e mensagens que elas transmitem‖ Uta Santana afirmou ―Nunca tive tanto ódio e desprezo de ser moçambicano e de ter sido parido num país acorrentado pela injustiça onde a própria população tornou-se assassina de si mesma. Homens equipados (população) preparados para matar, catanar, linchar ao seu próprio irmão… tudo isto por culpa da actual situação que se vive em Moçambique num governo inapto, corrupto e fraudulento…‖. Entre toda consternação e intranquilidade que toda comunidade artística sente, nenhuma pode tirar o facto de que o país está dentro de uma grande crise de segurança. Hoje foi um artista alvo desse povo com fúria de justiça. A Polícia da República de Moçambique continua inoperativa. Um homem de arte viu a morte nas mãos dos homens da lei e ordem. E porque quando é o povo que mata, mesmo sob a responsabilidade do governo, é mesmo que dizer ―NINGUÉM MATOU ALEXANDRIA FERREIRA‖. Ninguém foi penalizado, ninguém será penalizado e porquê o fariam. Até o dia que este povo, com a mesma sede de paz e sossego terá a cabado a si próprio de mortes confundidas.

A acção da polícia, segundo o líder do Núcleo de Arte, demonstra a situação de insegurança em que todo o cidadão está exposto, mesmo diante de quem devia trazer segurança.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.