Ensaios Reunidos sobre Osman Lins

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EDSON SOARES MARTINS

ISBN 978-85-913362-0-3


EDSON SOARES MARTINS

ENSAIOS REUNIDOS SOBRE OSMAN LINS

CRATO EDSON SOARES MARTINS 2012


© Edson Soares Martins Coordenador Editorial: Francisco de Freitas Leite Conselho Editorial: Edson Soares Martins, Francisco de Freitas Leite, Francysco Pablo Feitosa Gonçalves, Harlon Homem de Lacerda Sousa, Maria Cleide Rodrigues Bernardino, Newton de Castro Pontes, Ridalvo Felix Araujo. Preparação de texto: Ateliê Editorial do Netlli Diagramação: Ateliê Editorial do Netlli Revisão de texto: Patrícia Sales Gomes e José Evandro Santos FICHA CATALOGRÁFICA M3865 Martins, Edson Soares. Ensaios reunidos sobre Osman Lins/ Edson Soares Martins. Crato: Edição do Autor, 2012. 65 p. 14 cm. ISBN 978-85-913362-0-3 1. Literatura brasileira; 2. Osman Lins. I. Título CDD: B869.4 CDU: 821.134.3(81)

Ateliê Editorial do Netlli Universidade Regional do Cariri R. Cel. Antonio Luís, 1611, Pimenta. Crato, Ceará. 63100-000 www.netlli.wordpress.com | netlli.urca@gmail.com


UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI REITORA: ANTONIA OTONITE DE O. CORTEZ PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO: CARLOS KLÉBER N. OLIVEIRA DIRETORA DO CENTRO DE HUMANIDADES: MARIA PAULA JACINTO CORDEITO DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LITERATURAS: EDSON SOARES MARTINS

NETLLI COORDENAÇÃO-GERAL: EDSON MARTINS E FRANCISCO DE FREITAS LEITE COORDENAÇÃO DO SEMESTRE 2012.1: NEWTON DE CASTRO PONTES PESQUISADORES-ORIENTADORES: EDSON SOARES MARTINS, FRANCISCO DE FREITAS LEITE, HARLON HOMEM DE LACERDA SOUSA, NEWTON DE CASTRO PONTES


SUMÁRIO

1 OSMAN LINS E AS REPRESENTAÇÕES DO “MACHO” EM LISBELA E O PRISIONEIRO E GUERRA DO “CANSA-CAVALO” 7 Do nordestino ao macho

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Osman Lins: um teatro sem machos ou Lisbela e o prisioneiro 21 Homem que levou pisa não é homem: Guerra do Cansa-Cavalo 29 2 POÉTICA DA SUBALTERNIDADE: A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS SECUNDÁRIAS EM A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA, DE OSMAN LINS 39 Do personagem ao subalternizado O demônio das scriptoria: subalternizados e efeito reverso Umas últimas palavras O AUTOR

43 personagens 51 59 65



OSMAN LINS E AS REPRESENTAÇÕES DO “MACHO” EM LISBELA E O PRISIONEIRO E GUERRA DO “CANSACAVALO”


[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

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Este exercício de leitura pretende examinar, fundamentalmente, a construção de determinadas personagens da dramaturgia osmaniana, à luz do aspecto representacional que se organiza a partir da ideia de “macheza”, tal como ela costuma se manifestar em nossa formação social. Evidentemente, a descrição e análise de um tópico dessa envergadura não cabem nos limites aqui disponíveis e demanda, de resto,

um aprofundamento

teórico-metodológico

bastante cuidadoso, já que se trata de um território demasiadamente cediço. Tais restrições, entretanto, não impedem que possamos extrair elementos relevantes das obras em tela, ainda que os riscos de incompreensão ou insuficiência argumentativa se imponham redobrados. Esperamos limitá-los ao nível do tolerável e compensar no plano crítico as dificuldades colaterais.

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Do nordestino ao macho

Iniciamos pela hipótese de que o termo nordestino, na formação social brasileira, remete mais precisamente

à

ideia

que

nós,

nordestinos,

sustentamos sobre o sertanejo, subtipo acerca de quem se estabeleceu um incômodo consenso, do qual, é bom que se diga, a literatura artística funcionou poderosamente como elemento difusor. Alguns elementos, arbitrariamente elencados em nossa investida analítica, demandam primazia, admitida a sua alta difusão, em que pese sua problematicidade. São eles: a visada eugênica, a oposição campo-cidade e a macheza prototípica. Colhemos três ocorrências, a partir das quais desencadearemos nosso raciocínio. Uma determinada visão do nordestino destacase pela sua peculiar configuração eugênica: é aquela de Euclides da Cunha, que fomos colher em Arruda (2003, p. 135-136):

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Quem é então o sertanejo? Para Euclides, é uma sub-raça particular, dentre outras existentes no Brasil. Uma sub-raça tão resistente quanto a flora do sertão e capaz de transmutar-se tão abruptamente quanto a sua vegetação; como o solo torturado pela insolação inclemente e as chuvas torrenciais, ele traz em sua compleição física o maltrato da terra. O sertanejo apresenta notáveis traços de originalidade. Os povoamentos que se originaram, principalmente nos séculos XVII e XVIII, como consequência de um fluxo migratório que adentrou o sertão pelas margens do rio São Francisco, propiciaram as condições para o surgimento de uma raça formada quase sem mescla de sangue africano. Uma combinação de aventureiros vitoriosos e nativos vencidos, ou então, o cruzamento da índole aventureira do colono e a impulsividade do indígena. Defende Euclides que, sem a interferência dos outros elementos étnicos, depurou-se aí uma sub-raça de características comuns e bem definidas [...]. Apesar da assertividade com que Euclides da Cunha postula a insularidade como fator de eugenia relativa, a negativização do negro como constituinte

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étnico do homem nordestino é um dado difuso, mas muito arraigado, de modo a ser fortemente operante nos mecanismos e destinos identitários cultural e socialmente construídos no Nordeste. Não raro é a pigmentação da pele fator de desqualificação social de alta relevância, servindo, no plano linguístico, como conteúdo lexicogênico poderoso no campo das ofensas:

pardo,

nego,

amarelo,

pardavasco,

amulatado, mulato, cabra, mestiço, caburé, sarará, zambo, curiboca, caboclo, cafuzo... No leito da visada eugênica, paradoxalmente, subjaz e retumba um imperativo: a força intrínseca do sertanejo advém de uma homologia entre homem e terra, bastante cara ao pensamento positivista. Pensemos no vigor de permanência desta crença oitocentista e na sua relevância para a definição do sertanejo. Tantas vezes audível, mesmo no timbre emocionado de admiração com que comenta a resistência do sertanejo. A força do sertanejo ora

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anima versos de João Cabral1 sobre o homem da zona da mata pernambucana (“... / Embora comum ali, esse amarelo humano / ainda dá na vista (mais pelo prodígio): / pelo que tardam a secar, e ao sol dali, / tais poças amarelas, de escarro vivo.”), ora constitui o folclore pessoal do presidente ex-pau-de-arara... No

ângulo

que

a

questão

assume,

ao

introduzirmos o tópico da oposição campo-cidade, o nordestino (subsumido impropriamente à imagem prevalente do sertanejo) opera como simbolização nostálgica do tempo heroico em que a força viril era garantia

universal

da

sobrevivência

ou

como

advertência aos perigos da efeminação dos costumes e do modus vivendi ancestral, tão caros ao pensamento tradicionalista das elites brasileiras e tão ricamente ilustrado em nossa literatura, sobretudo a partir do romantismo oitocentista. Fernando Vojniak (2003: 665), comentando obra de Durval Muniz, sintetiza o pensamento deste último

sobre

a

leitura

que

o

pensamento

Ver “Os reinos do amarelo”, de A educação pela pedra (19621965). 1

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tradicionalista opera a partir da oposição entre campo e cidade:

A vitória no plano econômico e no plano político da cidade sobre o campo, vista por Gilberto Freire como fator decisivo para o que identificou como crise da sociedade patriarcal, foi reconhecida pelo discurso memorialista como um distanciamento progressivo entre o homem e a natureza; os homens nesse momento se aproximavam da superficialidade, da histeria e da frivolidade da cidade – características designadas como pertencentes ao mundo feminino – e se afastavam da natureza, da vida familiar do campo e das casas de engenho, expressões da solidez de poder e fortuna das famílias patriarcais. A modernidade da cidade trouxera a velocidade do automóvel em detrimento do cavalo de sela, símbolo de distinção e de masculinidade; trouxera o crescimento da prostituição em função do fim da proteção que, na sociedade patriarcal, era dada, pelos homens poderosos, às meninas pobres que defloravam e da substituição progressiva das prostitutas nacionais por estrangeiras; trouxera o aumento do número de suicídios entre os homens, o que parecia

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demonstrar o enfraquecimento do sexo masculino, “que vinha se deixando levar, cada vez mais, pelos desatinos do coração, como faziam as mulheres” (p. 115); trouxera a desnacionalização e a desvirilização da culinária e a desvalorização das manifestações de cultura popular; enfim, a modernidade, aparece no discurso tradicionalista como uma “mulher devoradora, que não perde tempo em deformar e destruir as manifestações viris da tradição patriarcal” (p. 123-124). Para Durval, a vitória da cidade sobre o campo aparece no discurso tradicionalista como fazendo parte de uma tendência de suavização da vida, de desvirilização dos costumes, de horizontalização das hierarquias, de desnaturalização da existência e de introdução do artifício da sedução, apanágio feminino, em toda a sociedade, tornando superficial a vida na cidade. Há várias tensões interpretativas mobilizadas a partir das considerações acima. Citemos um par delas, antes de nos definirmos por uma dentre elas. Em primeiro lugar, parece-nos que é forçoso admitir que o termo “modernidade” é carregado de uma imprecisão abismal, recobrindo sentidos tão díspares 16


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entre si como o desenvolvimento das técnicas na era capitalista e um sentimento de pertinência a um mundo fluído, em que os parâmetros de mensuração da experiência compartilhada diluíram-se, com a fragmentação do real. Assim sendo, referências nocionais

como

“cidade”,

“campo”,

“tradição”,

“patriarcado” etc., tornam-se intangíveis e mesmo irreconhecíveis. Por outro lado, o raciocínio dos autores (Vojniak e Muniz) oblitera uma inegável descontinuidade naquilo que se nomeia como discurso tradicionalista. Os pilares de sustentação dos discursos tradicionalistas, no Brasil, são de matéria diversa e se assentam em terrenos de constituição radicalmente distinta, além de possuírem uma altíssima capacidade de se repaginarem ao longo do tempo, substituindo emblemas e símbolos atacados de caducidade, para manter intocada a defesa dos valores

inegociáveis

da

classe

socialmente

hegemônica, da qual emanam os discursos do tradicionalismo.

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Formulemos

um

exemplo,

tomando

um

nordestino como protagonista, para clarificar os termos de nossa escolha por essa última tensão interpretativa.

Um

jornal

como

O

Pasquim,

geralmente associado à ideia de solapamento dos discursos tradicionalistas, deveria ser entendido como fruto possível da “modernização” da cidade, em contraste com o atraso do campo. Ocorre que, contrariamente, um leitor atendo do jornal, não poderia deixar de concordar com o fato de que a linha editorial de O Pasquim, como nos leciona Green (2003, p. 207), sempre foi propendente a

comprometer-se

com

uma

imagem

hipermasculizada do brasileiro (ou do carioca, o que, no caso, dá no mesmo). Mas foi este o veículo que serviu de catapulta para a glamourização de João Francisco dos Santos, nascido em 25 de fevereiro de 1900, na cidade de Glória do Goitá (PE) e renascido como o malandro homossexual Madame Satã, em 1938, no Teatro República.

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O Pasquim é moderno e urbano, mas se deixa atravessar

pelo

anseio

de

reproduzir

uma

hipermasculização do homem, o que muito convém à sustentação da imagem tradicionalista do homem fortemente virilizado. Como aceitar uma vinculação com um marginal gay e decadente, se seu foco era dirigido a um público de classe média de Ipanema? Green (2003, p. 207) desvenda o enigma, nos seguintes termos:

Aos 71 anos, Madame Satã continuava um tipo interessante, com seus cabelos brancos e pele escura, num intenso contraste com suas camisas de seda colorida e suas joias reluzentes. Ela ainda podia contar histórias sobre o uso de cocaína, os cabarés e os cassinos, que reviviam a Lapa decadente dos anos 70 na imaginação da juventude e dos intelectuais da boemia carioca. A promoção por O Pasquim de uma ligação com uma época perdida da vida noturna, com prostituição, jogo e o submundo do crime, ampliava as credenciais boêmias de seus editores através de sua ligação com Madame Satã. Também era sugerido que eles conheciam por dentro a história e a cultura da Lapa 19


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dos anos 30. Madame Satã oferecia aos escritores de O Pasquim a oportunidade de provar que, apesar de serem intelectuais privilegiados da Zona Sul, podiam também se identificar e se comunicar com as classes populares brasileiras, ou ao menos com símbolos emblemáticos destas classes. O fenômeno ocorrido no tabloide carioca somente seria possível, se avaliamos corretamente, no tempo e espaço específicos de uma região do Brasil onde o desenvolvimento das forças produtivas permitiu um grau de complexificações das relações intersubjetivas, assim como a leitura que Euclides da Cunha propõe do nordestino também carrega as marcas de um tempo e lugar específicos, enquadrados em sua historicidade própria. Esta introdução se presta a demonstrar que, ao propormos uma leitura da representação do “macho” nordestino, estaremos tecendo considerações sobre um tópico que não é imutável e universal, se tomado como fato social. Pelo contrário, aqui se trata de garantir a imanência da obra, buscando demonstrar a diluição consciente dos componentes arcaicos que 20


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associam a figura do “cabra-macho” e do “nordestino” a topoi desgastados como rudeza, brutalidade, estultícia, esperteza, comicidade e outros de sentido similar.

Osman Lins: um teatro sem machos ou Lisbela e o prisioneiro

Lisbela e o prisioneiro é, talvez, a obra mais popular de Osman Lins, embora a adaptação para o cinema não tenha ajudado a popularizar o nome do autor pernambucano. Passaremos, nessa quadra de análise, diretamente às considerações sobre as personagens, que dividiremos, arbitrariamente, em três grupos: os machos risíveis, os machos plausíveis e os machos discutíveis. Jaborandi, Testa-Seca, Paraíba e Citonho compõem o grupo a que chamamos risíveis. Eles constelam marcas demeritórias as mais variadas. Partamos de o trecho a seguir (LINS, 2003, p. 11):

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JABORANDI Isso é que é um gosto. Pois eu lhe garanto uma coisa: se você visse, terminava torcendo pelo artista. O homem é parada. Uma coragem de bicho. CITONHO Não sei por que você se entusiasma tanto. Essas coisas, essas valentias, essas espertezas, esses saltos, nunca acontecem na vida. JABORANDI Ora não acontecem... (Intencional.) Você bem sabe que sim... CITONHO (Meio confidencial.) Que é isso, Jaborandi? Olha a indiscrição. JABORANDI Ah! Olhe aí. Eu não disse? TESTA-SECA Que mistério é esse? Que é que vocês dois estão falando? CITONHO Não é nada. É um negócio aqui entre nós. TESTA-SECA Paraíba, veja o que estou lhe dizendo. Aqui tem coisa. De vez em quando, é um segredinho, um cochichado... PARAÍBA Você só vive vendo coisa em tudo. Neste curto trecho do diálogo, os presos TestaSeca e Paraíba, apesar de discordarem entre si, põem em relevo a diluição da autoridade das personagens Jaborandi e Citonho. Não se trata apenas de terem sido admitidos na conversa, desde o início, mas, 22


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principalmente, de imporem um vínculo conspiratório mal-disfarçado entre o soldado Jaborandi e o carcereiro Citonho. A incontinência verbal de um e a curiosidade de outro recebem dos seus pares simétricos a mesma resposta: a reprimenda em público. Não se trata de afirmar que a curiosidade, a incontinência e a impaciência sejam atributos interditados ao macho. São, todavia, atributos desqualificadores. Não nos escapa que, em se tratando de uma comédia, é necessário que as personagens apresentem falhas de caráter. O grupo dos risíveis congrega aqueles que esqueceram ou não foram educados sob os preceitos da macheza. Para homogeneizá-los, como requer a configuração de um núcleo secundário destinado a provocar o riso fácil, o mecanismo não poderia ser outro senão a estereotipação. O que nos inquieta é que a estereotipação, como processo, ao recortar traços que, habitualmente, fomos ensinados a reconhecer como mais negativos se fizerem parte do comportamento do “homem”, mobiliza in absentia um

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sentido do riso de escárnio como punição social: o macho curioso, o que fala demais ou aquele reclama como uma mulher devem ser ridicularizados, como forma de desestimular esse comportamento em outros. Lôbo (2006, p. 176), acrescenta que, na processualidade

da

estereotipação,

uma

etapa

imprescindível é a “[...] simplificação, em que as nuances de uma caracterização são como que apagadas, para facilitar o consumo rápido de um préconceito.” Vejamos

como

as

personagens

se

desenvolvem, sempre pela estereotipação (LINS, 2003, p. 30): PARAÍBA Não alisa não, Testa-Seca. O tempo é pouco. LELÉU Tem pouco tempo de quê? Pouco pra quê?... PARAÍBA Você gosta mesmo de mulher, Leléu? Muito? Nunca teve vontade de ser uma?... TESTA-SECA Vamos agarrar esse cabra de uma vez. LELÉU Que é que vocês têm contra mim?

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TESTA-SECA Você é falso. Tinha prometido aqui fugir com nós e foi embora só. LELÉU Foi uma oportunidade. Eu ia perder? Vocês perdiam? TESTA-SECA Paraíba, vamos agarrar esse peste e abrir as pernas dele. Meto-lhe o joelho na estrovenga, pra quebrar tudo. De hoje em diante, cabra, você vai ser mulher de nós dois. LELÉU Se vocês tocarem em mim, vão se arrepender. Tenho os dentes fortes. Na hora que eu pegar os dois dormindo, corto de um em um as veias do pescoço. Uma veia não é mais dura do que uma corda. E eu parto uma corda nos dentes, vocês já viram. TESTA-SECA Então, vamos quebrar os dentes dele. Meu tabefe é mais forte, Paraíba. Você segura e eu parto, de murro, os dentes desse cachorro. Aqui o processo se desvenda, de modo radicalmente mais claro. A associação covarde entre dois homens para seviciar um terceiro, indefeso, não pode deixar dúvidas: não é aqui que se deve buscar a integralidade do caráter do “macho” nordestino.

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Vejamos se entre os machos discutíveis resistem alguns dos traços arquetípicos em cuja busca estamos empenhados. A esse grupo pertence o matador Frederico Evandro. Veja-se este trecho (LINS, 2003, p. 32): FREDERICO Vou lhe dizer, velhinho. Meu nome é Vela-de-Libra por causa da minha religiosidade. Toda vez que sou forçado a sacar a moela de um cristão, vou na primeira igreja que encontrar, acendo uma vela de libra e rezo um padre-nosso pela alma dele. CITONHO Mas sacar a moela, por quê? Que negócio é, hum? FREDERICO Por encomenda. Pode haver serviço mais maneiro que matar gente? Se trabalha pouco e ganha muito. CITONHO Nossa Senhora! E você tem mesmo coragem de matar um filho de Deus sem motivo nenhum, rapaz? FREDERICO Coragem, não tenho não. Eu tenho é costume. (Citonho afasta-se benzendo-se.) Escute aqui, menino. Você é muito homem. Você me viu com o pau-defogo na mão?

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Frederico

Evandro

tem

a

valentia,

a

religiosidade, a obediência aos preceitos de defesa da honra familiar, mas a condição de facínora de encomenda esvazia-lhe a possibilidade de encarnar o sentido da macheza em sua positividade, embora preencha todos os requisitos da negatividade. A uma conclusão óbvia, acrescentaremos outra, na esperança de por em relevo um elemento tão costumeiramente relegado ao silêncio: não há apenas uma modelização positiva do macho nordestino. É muito frequente a representação de um modelo negativo que, embora incensado pela admiração de um ou outro analista mais incauto, catalisa soluções punitivas, assim como aqueles

anti-modelos da

risibilidade.

Frederico

Evandro é morto. Somente a violência justificada — positiva

conforme

os

valores

difundidos

nas

manifestações culturais e práticas sociais as mais variadas — poderia por um fim ao perigo da violência mercenária. Se buscarmos em Leléu a figura do macho, estaremos diante de uma hipótese mais plausível,

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embora apenas plausível. Ele preenche alguns dos requisitos do espertalhão nordestino, cuja origem ibérica já foi fartamente demonstrada, mas é apenas indiretamente que a ele poderíamos atribuir a coragem, a virilidade e a integridade de caráter — oculta sob a leviandade culturalmente associada ao circense, mas, em seu caso, desvelada pelo amor verdadeiro

—,

uma

vez

que

a

mentira,

a

irresponsabilidade, a compulsividade de sedutor distanciam-no dos moldes sisudos que a nossa sensibilidade acostumou-se a reconhecer como sendo os do macho nordestino. Sandra Nitrini (2003, p. 116) tece um comentário muito sugestivo sobre Leléu:

Atitudes que causam surpresa também compõem Leléu, que nada tem de prisioneiro nos valores estabelecidos, garantidores de acomodada segurança, mas negadores da “flama da vida”. Volúvel nos amores, experimentador de várias profissões, portador de diferentes identidades, afeiçoado a riscos e deslocamentos, o circence [sic] Leléu, que tanto quer e tanto faz para sair das grades da cadeia de Vitória de Santo Antão, não 28


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hesita a ela retornar, só para ficar próximo de Lisbela, quando fracassa o plano de fuga dos dois. O paradoxal retorno à prisão é mais um movimento deste personagem para a libertação das amarras de valores que lhe são menores do que os impulsos da vida. O macho plausível é o humano plausível, pela incoerência constitutiva, pela busca do encontro entre o estar-no-mundo e a autenticidade que lhe deveria ser inerente.

Homem que levou pisa não é homem: Guerra do Cansa-Cavalo

Em Guerra do Cansa-Cavalo, diferentemente de em Lisbela e o prisioneiro, abundam as modelizações positivas do macho. Parece-nos estar decididamente afastado o tom cômico leve que

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observamos em Lisbela e o prisioneiro2, o que encaminha nossas observações a um cenário de intenções muito distinto, no que se refere à representação dos caracteres. O velho coronel Fidêncio Cavalcanti Lins, sob a exuberância de seu comportamento, amalgama um conjunto de valores contraditórios entre si, mas prepoderantemente

positivantes

da

macheza

nordestina. Vejamos os trechos a seguir: FIDÊNCIO Sempre quis que você casasse com Heloísa. Era uma grande aliança. O nosso «CansaCavalo» e o «Bom-Mirar» unidos. Drahomiro ia ter que recuar. Eu e o velho Coriolano de Barros Wanderley somos da antiga cêpa. Nos compreendemos.

Esta é uma das obras de Osman Lins que menos tem recebido atenção da crítica acadêmica. Das parcas referências que pudemos localizar e ler, ambas padecem de limitações críticas severas no que diz respeito a este texto em especial. Os ensaios serão indicados em nossas referências bibliográficas, de modo a facilitar o trabalho daqueles que pretendam verificar a justeza de nossas restrições, que não são, contudo, dirigidas ao conjunto dos raciocínios de cada ensaio. 2

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PEDRO IVO Compreendem-se... Se isso fôsse verdade, não era Drahomiro quem estava casado com a mulher e a terra. FIDÊNCIO Em parte, você tem razão. Coriolano traiu a nossa origem. Aliás, nossa origem é mais velha que a dêle. No tempo dos holandeses, minha família já possuía terras. Meu tataravô Belchior Bragança Cavalcanti morreu de trabuco na mão, no Monte das Tabocas, defendendo seus canaviais contra a invasão dos gringos. Estão aí os livros, que não me deixam mentir. Por isso, mesmo sem eu pedir a mão de Heloísa pra você, Coriolano devia ter-lhe oferecido a filha. Tudo, menos entregá-la àquele maçom. E o pior é que ouvi dizer que o desgraçado do Drahomiro impôs condições: só casava com Heloísa se o velho se aliasse a êle contra mim. Se já avançava nas minhas terras feito as águas de uma enchente, agora vai ser um dilúvio. Ah! Ah! Ah! (LINS, 1967, p. 18) A honra, a religiosidade aparelhada e objetiva, o zelo com as origens, o belicismo, e a impassibilidade, mesmo que ocasionalmente caricatos, tendem a fazer prevalecer uma imagem de ancestralidade venerável,

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tão familiar quanto involuntária na literatura de autores nordestinos. Seu contraponto, o senhor do Engenho Timorante, Capitão Drahomiro Marinho, noivo

de

Heloísa,

padece

de

duas

marcas

desqualificatórias relevantes: foi traído por Maria Úrsula, de quem providenciou tornar-se viúvo, e, mais grave, libertou um inimigo apresado contra o pagamento de um conto de réis, o que faz Fidêncio tratá-lo por “faminto”, sujeito desprezível que só pensa em terras e dinheiro (LINS, 1967, p. 72). O desfecho da peça sintetiza com maestria o caráter de Antonio Vilela, o mascate que anseia pela volta do tempo da Cavalaria Andante: HELOÍSA Sei muito bem que será agora ou nunca. E se eu não fôr, seu Antônio Vilela, quero que saiba: tive orgulho em me deitar com o senhor e nunca hei de esquecê-lo. Eu amei o senhor. ANTÔNIO Por que fala assim, no tempo passado? CORIOLANO Não precisa falar mais. Vamos os três no meu cabriolé Conversamos no caminho... 32


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Se quiser mesmo ir embora, muda de roupa em casa, pega suas coisas. Depois, vai. ANTÔNIO Agradeço muito o que o senhor tentou fazer por mim. Mas, se é pra ir com dona Heloísa, preferia sair direto daqui; e sem outra companhia. CORIOLANO O senhor é vivido. Sabe dosar cautela e afoiteza. HELOÍSA Então podemos ir? CORIOLANO (com secreta amargura) Tem seu destino nas mãos. Faça o que quiser. ANTÔNIO Eu podia ir num burro, com os meus baús; a senhora no outro. Se fôr com êsse vestido, vão dizer daqui a muitos anos que passou um homem pela estrada com duas cargas nas alimárias: a noite prêsa e a alva da manhã. Cavaleiro andante, amante devotado e poeta, homem que nao aceitou que sua vida fosse comprada das mãos de seu inimigo, Antonio Vilela reúne as virtudes do macho, positivado e depurado da rudeza,

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da estultícia, da comicidade, da compulsão sexual... Esse heroi pernambucano que conquista a mulher amada não é, naturalmente, o macho prototípico que certa tradição de estudos culturais tenta figurar como representação homogênea do nordestino interiorano. Mal lhe cabe o designativo de macho, se nos refugiarmos, insistente e refratariamente, na imagem do macho como insígnia

negativa, marca

da

inferioridade cultural do povo ou das inconsistências saudosistas dos discursos da tradição. Em O fiel e a pedra, Osman Lins oferece-nos um protagonista da mesma cepa. Acreditamos que o autor

de

Avalovara

consegue

trabalhar

uma

consistente imagem da masculidade, elaborada a partir de uma experiência humanizante em que os valores

do

povo

nordestino

são

lidos

como

dignificantes. A frase de que colhemos, com leves alterações, o título desta seção, tem, no mínimo, duas vias de significação. Pode dizer que o homem espancado por outro é um fraco e não merece o reconhecimento social. E é isso que ela quer dizer na

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boca de Drahomiro Marinho, vilão cruel e degenerado. Mas também é uma sentença que clama pelo reconhecimento da diferença entre macho e homem. Ao

pô-la

na

boca

do

vilão,

o

dramaturgo

pernambucano ergue contra nós a advertência que nos fará hesitar e mesmo refutar as sentenças desumanizantes da tradição das elites. É assim que a masculinidade, em Osman Lins, carrega mais as insígnias de reconhecimento ao valor do homem do Nordeste, que os estigmas da caricatural e antipática macheza arcaica. Macheza esta que, por sua vez, está longe de ser a única forma de entender a rudeza e persistência tão necessárias ao prodígio de não secar, ao sol dali, aquelas poças de humano vivo.

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Referências: ARRUDA, Gerardo Clésio Maia. Representação do Sertão Miserável e Dominação do Sertanejo. Revista Humanidades 2003, 18(2): 133-139. COSTA, Iná Camargo. Teatro de Osman Lins: um breve esquema. In: ALMEIDA, Hugo (org.). Osman Lins: sopro na argila. São Paulo: Nankin Editorial, 2004. p. 151-156. GREEN, James N. O Pasquim e Madame Satã, a “rainha” negra da boemia brasileira. TOPOI 2003, 4(7): 201-221. LINS, Osman. Guerra do “Cansa-Cavalo”: peça em três atos. Petrópolis: Vozes, 1967. 131 p. (Coleção Diálogo da Ribalta, 23) LINS, Osman. Lisbela e o prisioneiro: comédia em três atos. São Paulo: Planeta, 2003. 120 p. LÔBO, Júlio César. Cultura nordestina, sociedade carioca (representações de migrantes nordestinos na chanchada, 1952-1961). Sociedade e Cultura 2006, 9(1): 161-172. MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 356-357. MOURA, Ivana. O teatro da palavra de Osman Lins ou a palavra no centro do palco. In: FERREIRA, Ermelinda (org.). Vitral ao sol: ensaios sobre a obra de Osman Lins. Recife: Editora da UFPE, 2004. p. 181193. VOJNIAK, Fernando. Desconstruindo falas do falo. Estudos Feministas 2003, Florianópolis, 11(2): 661680.

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POÉTICA DA SUBALTERNIDADE: A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS SECUNDÁRIAS EM A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA, DE OSMAN LINS


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O raciocínio que aqui pretendemos desenvolver toma seus pressupostos analíticos de uma tradição crítica que já consolidou seu instrumental conceitual e sua mordedura metodológica. Todavia, ao contato com esta abordagem marxista, conceitos e categorias de uso largo e praticamente irrestrito passam a exibir uma forma nova. A personagem, quando lhe perquirimos os pressupostos sociológicos de sua forjadura,

costuma

declinar

verdades

novas.

Pretendemos obter aqui um ou dois lampejos de verdade ao examinar duas personagens de A rainha dos cárceres da Grécia, do escritor pernambucano Osman Lins.

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[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

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[Edson Soares Martins]

Do personagem ao subalternizado

Para Anatol Rosenfeld (2000, p. 21), o texto literário,

no

que diz respeito

estritamente

à

verificação de sua ficcionalidade, deve ser arguido por outros critérios que não o do valor: deixando de lado os problemas de caráter ontológico e lógico, no plano epistemológico encontraremos a personagem como o elemento através do qual mais se adensa e cristaliza a camada imaginária. Rosenfeld (ib., p. 23) assevera que é “com o surgir do ser humano que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária.” Ilustremos,

sucintamente,

as considerações

acima com uma passagem de A rainha dos cárceres da Grécia, dedicada às personagens Maria de França e Rônfilo Rivaldo, em que os trechos por nós destacados correspondem ao acréscimo revelador,

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[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

segundo o Professor Rosenfeld. No trecho, são advérbios e expressões adverbiais, além das orações de valor objetivo os responsáveis, junto ao leitor, pela inequívoca impressão de ficcionalidade:

Ganha algum dinheiro, em casa, fazendo bruxas de pano. Às vezes, com a ponta da tesoura, estripa-as. O eleito de Alberto Magno, que nada sabe dessas mortes, e da raiva que obscurece o coração da louca, vê naquela nova ocupação instintos maternais e arranja-lhe o emprego menos indicado: pajem de dois meninos surdos-mudos. (LINS, 1976. p. 21)

Partimos

destas

observações,

que

derivando, artificiosamente, um filamento do juízo teórico

de

Rosenfeld

cremos

que

parte

considerável do valor de fruição de uma obra ficcional estará sempre a depender de quanto a imaginação se adensa e cristaliza através das personagens. Não se trata, igualmente, de uma categoria de pouco

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[Edson Soares Martins]

importância para um correto ajuizamento crítico da obra. Lembremos como a dissecação das funções e caracterizações das personagens de Senhora são importantes para o raciocínio que Roberto Schwarz (1992, p. 29-60) desenvolve no segundo capítulo de seu Ao vencedor as batatas (A importação do romance e suas contradições em Alencar). É ao analisar a protagonista e as personagens secundárias que Schwarz enxerga os dois efeitos-de-realidade, superpostos e incompatíveis, a comprometer a composição daquele romance alencarino. Em outro momento de nossa tradição crítica, mesmo que se trate, no caso em tela, de distinguir discurso popular e discurso erudito, mas ainda se tratando de distinguir a boa criação da criação vulgar, é ao personagem como categoria (neste caso, articulada à categoria do narrador) que um estudioso como Antonio Candido recorre:

Creio que apenas Simões Lopes Neto fez ficção realmente boa

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[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

dentro desse enquadramento comprometido, porque soube, entre outras coisas, escolher os ângulos narrativos corretos, que identificavam o narrador com o personagem e, assim, suprimiam a distância paternalista e a dicotomia entre o discurso direto ("popular") e o indireto ("culto"). (1981, p. 61)

Nossa abordagem tentará conferir o relevo merecido ao processo de construção das personagens secundárias em A rainha dos cárceres da Grécia, limitando, todavia, nossas considerações a duas personagens, Rônfilo Rivaldo e Nicolau Pompeu. Também o conceito de subalterno está a merecer uma apresentação inicial, uma vez que dele nos

serviremos

para

situar

os

pressupostos

sociológicos das funções que estas personagens assumem no desenvolvimento da narrativa. Comecemos pelas negativas. O conceito de subalterno, do modo como o Ocidente dele se tem apropriado, estabelece um viés ideológico que se

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[Edson Soares Martins]

traduz assim: de um lado estão os subalternos, na posição

de

subalternos,

acomodados

ou

em

desconforto com tal papel; de outro, os intelectuais, responsáveis por sistematizar, nos diversos campos do saber acadêmico, a recepção qualificada das estratégias de que os subalternos lançam mão para poderem falar de si. Um aspecto sempre subjacente ao tratamento teórico-metodológico mobilizado pelos estudiosos do subalterno é o pressuposto de que a perspectiva solidária do intelectual já implica em seu estatuto

ontológico

diferenciado

daquele

do

subalterno, a quem fica vedada a condição de intelectual pleno. O subalterno, por exemplo, nos Estudos Culturais/Pós-Coloniais/Subalternos3, pode ser o sujeito que escreve o romance ou organiza a ação restrita de que o intelectual se apropria como objeto de estudo.

Aproximaremos, doravante, os termos Estudos Culturais, Estudos Pós-Coloniais e Estudos Subalternos, reunindo todos sob esta última consigna por entendermos que sua matriz teorética é idêntica no caso a que nos dedicamos. Trata-se da linha de estudos estabelecida essencialmente por Bhabha e Spivak. 3

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[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

Não se concebe o subalterno de posse das faculdades críticas que emancipam o sujeito da minoridade cultural. Propondo-se a construção de estudos que instrumentalizem uma denúncia da condição subalterna – da qual o indivíduo deve ser emancipado, ou, de modo distinto, a respeito da qual pouco se entende e, portanto, à qual pouco valor se atribui –, os Estudos Subalternos, em alguma medida significativa, reduplicam, na própria constituição de seu objeto de estudo, a estratificação contra a qual se (re)voltam. Não são pouco frequentes, no âmbito dos Estudos Subalternos as assertivas ou raciocínios que, se

não

funcionam

como

vitimizadores,

são

involuntária mas decididamente preconceituosos. Também não se despreza a importância da linguagem na ciência, sobretudo quando os rumos da validação interna do método de qualquer campo teórico

dependem

muito

da

sua

consistência

terminológica. Chamamos a atenção para o uso marcadamente adjetivo que “subalterno” tem nos Estudos Subalternos. O subalternizado de que nos

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[Edson Soares Martins]

ocupamos

é

material,

histórica

e

socialmente

determinado. É substantivo e pode ser isolado como indivíduo sem que nele se elidam os processos que o atravessam como parte da totalidade, ou, preferimos dizer (e isto para que fique bem claro o campo a partir do qual pensamos), trata-se do sujeito individual percebido como sujeito histórico. Buscaremos na reflexão marxista autógrafa um primeiro vislumbre do que temos buscado definir. Quando Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, afirmam que a burguesia entronizada no poder transforma em simples valor de troca a dignidade pessoal e eleva acima de todas as outras liberdades (duramente conquistadas) a liberdade de comércio, podemos dizer, com certeza, que acabara de nascer

o

sujeito

subalternizado

em

sua

substantividade. É bastante oportuno ter em mente, na leitura do trecho referido do Manifesto, que, como bem sustenta Merleau-Ponty, as relações sociais não se

dão

diretamente

entre

consciências,

mas

mediatizadas por instituições e por coisas.

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[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

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[Edson Soares Martins]

O demônio das scriptoria: personagens subalternizados e efeito reverso

Rônfilo Rivaldo, o Espanador-da-Lua, surge no Capítulo III do manuscrito de Júlia Marquezim Enone. A seu propósito, o Comentador Anônimo, narrador do primeiro plano, seleciona e compartilha, um tanto disparatadamente, algumas informações: é uma personagem que se dedica a ações sociais. Ele funda uma escola gratuita, apesar de ser analfabeto. Mais tarde, torna-se prático-dentista, tipo familiar de charlatão. Além disso, tem grande interesse pelo Espiritismo, embora dedique alguma atenção à superstição pura e simples e ao protestantismo. Seu guia espiritual é o prelado Alberto Magno de Titivila. Atua tutelarmente em relação a Maria de França, embora sua atuação seja mais pretendida que efetiva, já que a pupila se esmera, entre as crises e acessos de loucura, em desprezar-lhe os conselhos. Nicolau Pompeu, a segunda personagem a que dedicaremos nossa atenção, associa-se a Maria de 51


[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

França durante a folia de rua, no Bloco “Flor da Madrugada”. Vejamos o trecho, em que se descreve indiretamente o miserável centroavante suburbano:

O “Torre”, clube suburbano sem futuro onde seu novo amigo atua como centro-avante, perde um campeonato atrás do outro. Paga uma miséria aos jogadores – quando paga – e a saída para o atacante é desgastar as forças que lhe restam como guarda-noturno, enquanto aspira à Seleção Brasileira. Nicolau Pompeu (seu nome esportivo, Dudu, raramente aparece nos jornais) irradia uma serenidade que Maria de França nem sequer imaginava. Isto apesar do passo rápido, dos olhos acesos, do chapéu levantado sobre a testa e do seu jeito – enganoso, afinal – de quem “se não abre o caminho no peito, abre no ombro”. Afeiçoase a ela e esse pobre amor se manifesta sob a forma de orientação junto ao sistema previdenciário. [...] (LINS, 1976, p. 23).

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[Edson Soares Martins]

A colaboração material de Nicolau Pompeu, diferentemente da orientação moral de Rônfilo Rivaldo, de quem acaba por se tornar amigo, é bastante efetiva. Mais de uma vez tem-se a impressão, rapidamente desmentida, de que Dudu conseguira destravar o processo de aposentadoria de Maria de França. Simetricamente ao que ocorre com o protegido de Alberto Magno, sua condição também se altera: torna-se trocador de ônibus, após uma série de eventos infelizes provocarem seu afastamento do Torre (por ter sido acusado de doping, após o excelente desempenho em campo, obtido graças a um elixir dado pelo mago Rônfilo Rivaldo) e sua demissão do armazém cuja vigilância fora posta sob seus cuidados e que é alvo da ação de assaltantes, com quem se julga, erroneamente, que Nicolau estivesse consorciado. As ações, inclusive, mantém entre si um estreito e estranho encadeamento: Nicolau Pompeu necessita do elixir por ter passado a noite depondo sobre o 53


[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

assalto ao armazém. Toma o elixir dado pelo amigo, corre os noventa minutos do jogo, após o que é novamente levado à delegacia, desta vez para depor sobre o uso de substância proibida. Acaba sendo demitido e, ao tornar-se trocador de ônibus, tem comprometida sua capacidade de auxiliar Maria de França: por um lado, do ponto de vista da estetização da condição de vida material dos pobres, o tempo livre do indivíduo se torna tanto mais escasso quanto mais pronunciada seja sua degradação como pessoa; por outro lado, do ponto de vista composicional, no que diz respeito ao desenvolvimento oculto de um motivo, que somente emerge nos desfechos4 (parciais ou absolutos),

pois,

torna-se

Nicolau

Pompeu

Transpomos para cá, como ferramenta analítica aplicada ao estudo do romance, a proposta que Ricardo Piglia (2004, p. 8794) concebe relativamente ao conto, como narrativa necessariamente dupla, em que se narra em segredo uma segunda estória, revelada sempre no desfecho. Como a estrutura do romance comporta o desenvolvimento e resolução de núcleos de ação narrativa encadeados, chamamos à resolução do entrecho desses núcleos, pela sua própria natureza e necessidade, parciais, reservando a denominação de desfecho absoluto àquelas soluções que, do ponto de vista da materialidade do texto, põem fim à narrativa. 4

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[Edson Soares Martins]

admirador e amigo de um motorista que, em verdade, é o deflorador de sua noiva, a louca Maria de França. Estas duas personagens secundárias, unidas em torno de um procedimento que o Comentarista Anônimo revela como sendo o da motivação falsa ou efeito reverso, acabam por contribuir diretamente para o desenvolvimento do enredo em segundo plano (aquele do romance de Julia Marquezim Enone, em que Maria de França é narradora, ou mais propriamente dizendo, locutora). As ações de Rônfilo Rivaldo, ao contrário de suas orientações, frutificam, mas sempre no sentido contrário do que pretendera: suas tentativas de auxílio apontam para desenvolvimentos que sempre se resolvem pelo inverso da iniciativa primeira, como no caso em que o elixir revigorante acarreta o comprometimento do auxílio efetivo que Nicolau Pompeu podia prestar à pobre Maria de França. Assim, a ação de Titivillus, o demônio do erro que obsedia os trabalhadores das scriptoria, sai do campo do nominalismo puro e vem dar o ar da graça no 55


[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

plano da práxis, em que forma, sentido e função conjugam-se na objetivação do ser. Do ponto de vista da apreciação crítica da função

das

personagens,

é

desejável

que

o

desenvolvimento de suas ações contribua para o andamento do entrecho principal, o que as redime de uma existência ilustrativa e gratuita, como Schwarz apontara em relação às personagens secundárias de Alencar em Senhora e como acreditamos ser possível afirmar sobre a maioria dos romances oitocentistas brasileiros anteriores à virada machadiana de 1881. Neste aspecto, resumimos, Nicolau Pompeu e Rônfilo Rivaldo servem à economia narrativa e incrementam o valor dos romances de primeiro e segundo plano, por constituírem-se como – e através de – um procedimento técnico de concentração, tão difícil de captar nos romances que se acredita mesmo que sua necessidade seja restrita ao conto, mas sem o qual o centro perde os vínculos arquitetônicos com a periferia e o romance passa a padecer de uma fragilidade constitutiva que, se não é incapacitante, é,

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[Edson Soares Martins]

indiscutivelmente, fenômeno para o qual a atenção do crítico deve estar voltada. Mas não termina por aqui a importância das duas personagens, conforme queremos crer. Se como objeto das considerações do crítico, elas carreiam virtudes ao texto, um prolongamento de sua motivação composicional (que é o efeito reverso), exigem de nós ainda um pouco de compenetrada atenção. A apreciação do Comentarista Anônimo que faz das personagens elementos simboligênicos de um esboço de estrutura quiromântica, na qual residiria a verdade da forma em análise, reduz a atividade da crítica – com que ele deseja honrar a memória de sua amante – a um repertório estéril de associações exteriormente eruditas. Levando o narrador a um erro tão grave, e deixando desproporcionalmente desenvolvidos outros aspectos da construção da narrativa

de

segundo

plano

(a

fluidez

e

interpenetração do espaço e do tempo, a redução de vultos históricos de variadas cepas à condição de 57


[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

personagens apenas citadas, o mecanismo de recorte e mesclagem de textos da cultura popular como procedimento de fatura textual etc.), o texto nos convida a entender o papel que desempenham os intelectuais em nosso processo social. Analisando intelectuais compassivos, que se compadecem e enternecem com o sofrimento de outrem, a quem tentam libertar pela palavra ou pela colaboração e que representam um dos produtos criticáveis da importação de um modelo de intelectual para o Brasil, nosso Comentarista Anônimo se converte em outro produto execrável da referida importação (que se inaugura como troca comercial já nos tempos coloniais): o intelectual da erudição divorciada do “sentimento do mundo”.

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[Edson Soares Martins]

Umas últimas palavras

Referindo-se ao que nomeia como Romantismo da desilusão, Lukács afirma:

[...] A vida faz-se criação literária, mas com isso o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor de sua própria vida e o observador dessa vida como uma obra de arte criada. Essa dualidade só pode ser configurada liricamente. Tão logo ela seja inserida numa totalidade coerente, revela-se a certeza do malogro: o Romantismo torna-se cético, decepcionado e cruel em relação a si mesmo e ao mundo; o romance do sentimento de vida romântico é o da criação literária desiludida. (LUKÁCS, 2000, p. 124)

Sem a materialidade do texto que permita a consulta, ousamos propor que a leitura de Lukács descreve, acertada e veementemente, a narrativa

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[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

escrita por Júlia M. Enone. É certo que Lukács não pensava em associar o trecho acima a uma obra específica; trata-se antes de uma síntese da relação entre sujeito e mundo numa dada quadra histórica e cuja referência objetiva é a evolução da forma romanesca. Mas, também por isso não hesitamos em aproximar o pensamento do filósofo húngaro aos problemas contidos no romance de Osman Lins, que se pretende declaradamente uma reflexão sobre os limites do romance. Todavia, se aplicamos o raciocínio lukácsiano à narrativa

de

primeiro

surpreendentemente

plano,

a

afirmativa:

o

inversão

é

Comentarista

configura a sensaboria de sua vida, despachada em anotações irregulares de seu diário pessoal, no pináculo do tom antilírico que é o ensaísmo crítico, embora seu surto de falibilidade, no arremate do romance, permita ao texto fechar-se em um dos trechos de mais pungente lirismo da literatura brasileira do Século XX.

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Em que medida as personagens secundárias participam dessa configuração? É que elas estão ali para nos alertar sobre aquela certeza do malogro a que se refere Lukács. Um mistificador analfabeto e especialmente apto para o goro e um jogador de futebol sem futuro, convertido em trocador de ônibus, que, tísico, se mata. São eles, em sua inverossímil e incongruente plasmação da miséria humana, mais homens – e mais palpáveis! – que este professor secundário

desiludido,

incapaz

de

produzir

o

desvelamento de sua nulidade e incapaz de fugir ao dever de vivenciar essa nulidade e seu desvelamento. Por contraste, e isto é um resultado soberbo, estes dois pobres diabos, em meio a um labirinto inacreditável, sempre fiéis ao efeito reverso que lhes engendrou e que lhes dá sentido, vivem e vivem mais humanamente que os intelectuais encapsulados em suas mestrias.

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[Ensaios reunidos sobre Osman Lins]

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[Edson Soares Martins]

Referências

CANDIDO, A. Os brasileiros e a literatura latinoamericana. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 58-68, dez. 1981. LINS, O. A rainha dos cárceres da Grécia. São Paulo: Melhoramentos, 1976. 218 p. LUKÁCS, G. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. 240p. MERLEAU-PONTY, Maurice. La guerre a eu lieu. In: ______. Sens et non sens. Genève: Nagel, 1965. PIGLIA, R. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 87-94. ROSENFELD, A. Literatura e personagem. In: CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 09-49. SCHWARZ, R. A importação do romance e suas contradições em Alencar. In: _____. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1994. p. 29-60)

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O AUTOR Edson Soares Martins possui graduação (1996), mestrado (2001) e doutorado (2010) em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é Professor Adjunto de Literatura Brasileira, na Universidade Regional do Cariri (URCA). Tem experiência na área de Literatura, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura brasileira, poesia, narrativa moderna e contemporânea, romances de Clarice Lispector e Osman Lins e psicanálise. Também manifesta crescente interesse pelas literaturas africanas. Sua dissertação de mestrado foi publicada em 2011, sob o título Os deslimites da poesia: desamparo e infantilização da linguagem na poesia de Manoel de Barros. Também publicou em 2010 sua tese de doutoramento, sob o título O romance e seu direito ao grito: mímesis e representação em A hora da estrela e A rainha dos cárceres da Grécia. Publicou, em co-autoria com Newton de Castro Pontes e Ridalvo Félix de Araújo, o livro Sujeito e subalternidade na literatura brasileira: primeiros ensaios (2010). Organizou, com Francisco de Freitas Leite, duas obras coletivas: As veredas da pesquisa em Letras: ensaios críticos e teóricos (2011) e Língua, literatura e ensino: a pesquisa acadêmica no DLL/URCA (2010). Tem capítulos publicados em livros e artigos em periódicos acadêmicos.

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