O retrato na pintura italiana

O RETRATO NA PINTURA ITALIANA DO RENASCIMENTO

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universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori De Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Christiano Lyra Filho José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Silvia Hunold Lara

Universidade Federal de São Paulo Reitor Walter Manna Albertoni

Conselho Editorial Presidente Ruth Guinsburg Benjamin Kopelman – Cynthia A. Sarti – Durval Rosa Borges Erwin Doescher – Marcia Thereza Couto – Mauro Aquiles La Scalea Nildo Alves Batista – Plinio Martins Filho – Ruth Guinsburg

Comissão Editorial da coleção Palavra da Arte Jens Michael Baumgarten – José Roberto Zan Luciano Migliaccio – Luiz Marques (coord.) – Marcos Tognon

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Jacob Burckhardt

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organização , tradução e apresentação : prefácio e notas :

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Cássio Fernandes

Maurizio Ghelardi

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação B893r

Burckhardt, Jacob, 1818-1897.

O retrato na pintura italiana do Renascimento / Jacob Burckhardt; organização, tradução e apresentação: Cássio Fernandes; prefácio e notas: Maurizio Ghelardi. – Campinas, sp: Editora da Unicamp; São Paulo: Fap-Unifesp, 2012.

1. Arte – História. 2. Arte – Historiografia. 3. Renascença – Itália. 4. Retratos italianos. I. Fernandes, Cássio. II. Ghelardi, Maurizio. III. Título.

cdd 709 704 e-isbn 978-85-268-1145-4 (Editora da Unicamp) 709.031 isbn 978-85-61673-44-4 (Editora Fap-Unifesp) 704.942 Índices para catálogo sistemático:

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Arte – História Arte – Historiografia Renascença – Itália Retratos italianos

Título original: Das Porträt in der italienischen Malerei Copyright © by Cássio Fernandes Copyright © 2012 by Editora da Unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor

Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br

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palavra da arte é uma coleção consagrada às fontes, às referências moder­ nas e à reflexão contemporânea sobre a tradição clássica. Entende-se essa como o processo histórico de “longa duração” pelo qual a história das for­ mas constitui sua própria memória, num triplo movimento de cris­taliza­ ção, transmissão e transformação dos modelos antigos. Centrada na his­ tória da arte, a coleção entende abrigar também estudos de história das retóricas e poéticas, antigas e modernas, de modo a divulgar de maneira crítica e metódica em língua portuguesa, eventualmente em textos bilín­ gues, as vias diversas através das quais a tradição clássica constituiu-se e foi apropriada por seus legatários.

Luiz Marques

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Para Angela, Helena e AndrĂŠ.

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Agradecimentos

A Luiz Marques, cujas aulas determinaram minhas escolhas, agradeço pela possibi­ lidade desta edição.

A Luciano Migliaccio, agradeço pelo ensinamento em todos estes anos.

A Maurizio Ghelardi, cujo trabalho, em grande medida, inspirou esta edição, agradeço pelo indispensável diálogo e pela generosidade no convívio.

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sumário

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Prefácio à edição brasileira: O retrato — uma imagem do caráter humano

Maurizio Ghelardi

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Apresentação: O lugar de O retrato na pintura italiana do Renascimento na obra de Jacob Burckhardt

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Cássio Fernandes

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O retrato na pintura italiana do Renascimento

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Apêndice

Jacob Burckhardt

Rafael retratista (7 de fevereiro de 1882) As origens da retratística moderna (10 de março de 1885) Michelangelo Furioso (1895)

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PREFÁCIO à edição brasileira O RETRATO — UMA IMAGEM DO CARÁTER HUMANO *

Maurizio Ghelardi**

“Sobrecarreguei-me com o esforço de um trabalho contínuo para liberar-me de uma massa de velhas anotações sobre história da arte e, bem ou mal, devo levar a termo esta tarefa antes que minhas forças sejam exauridas de todo. Paralelamente à minha asma, esta incumbência constitui um segundo afã espiritual. Certamente, poderia abandonar toda esta coisa, só que o meu antigo sentido de ordem me impede, ainda que o que escreverei seja destinado a ficar inédito e então a alegrar poucas pessoas.”

Assim, Jacob Burckhardt escreve em 15 de fevereiro de 1894 a Hans Lendorff1. Por alguns meses, Burckhardt tinha-se empenhado em finalizar a primeira, provisória versão, do ensaio sobre Os colecionadores no Renascimento. Agora, enquanto o ensaio sobre o Retábulo de altar está para ser terminado, o historiador basileense adverte os primeiros sintomas de uma grave crise de saúde que o perseguirá por toda a primavera e o verão de 1894. Esta situação o impedirá até a segunda metade de 1895, ­quando só então compõe em versão definitiva as Anotações marginais à escultura do Renas­ cimento e escreve um de seus últimos trabalhos, vale dizer O retrato na pintura ita­ liana do Renascimento2, que, juntamente com outros ensaios, e graças ao trabalho paciente do amigo Cássio Fernandes, é aqui proposto pela primeira vez em tradução para o português.

Em abril de 1893, Burckhardt pôs fim a suas aulas universitárias, aposentandose. Ainda que advirta quão precária é, naquele momento, a sua saúde física, começa imediatamente a escrever, a ordenar as “velhas informações sobre história da arte” que acumulou ao longo de anos de pesquisa, e que agora sente a necessidade de organizar. Longe, porém, de “requentar um pouco do pão velho endurecido”, a tarefa assume logo uma dimensão e uma profundidade inesperadas, já que a feitura dos textos * Tradução de Cássio Fernandes. ** Maurizio Ghelardi, da Scuola Normale Superiore di Pisa (Itália), é membro do Comitê Científico

para a nova edição crítica da obra de Jacob Burckhardt. Responsável pelo longo e meticuloso trabalho de organização e edição dos escritos histórico-artísticos de Burckhardt na Itália, é também editor para a Fundação Getty (Los Angeles) da obra de Burckhardt em língua inglesa. É colaborador das atividades culturais do Museu do Louvre, do Instituto Warburg de Londres e do Kunsthistorisches Institut de Florença, além de ser membro do Comitê Científico do Graduierten Kolleg di Bonn. Maurizio Ghelardi é também responsável pelo fundamental trabalho de organização e edição em italiano da obra de Aby Warburg, no qual figura uma série de textos inéditos. (Nota do Tradutor Brasileiro, daqui por diante referida como N. do T. B.) 1 Jacob Burckhardt, Briefe, hrsg. v. M. Burckhardt, Bd. X. Basel, 1986, p. 150.

2 Cf. Jacob Burckhardt, Werke. Kritische Gesamtausgabe, Bd. VI, hrsg. v. S. v. Boch, J. Hartau, K. Hengevoss-Dürkop, M. Warnke. Basel-München, 2000, in part. pp. 139-281.

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torna-se cada vez mais uma espécie de testamento espiritual, girando em torno de temas fundamentais da arte italiana do Renascimento. Assim, como acontece especialmente quando mais se percebe a própria fragilidade física, a mente humana busca retraçar no passado um oásis imaginário de saúde e tranquilidade. E é exatamente o diálogo com o passado histórico e com aquele seu, pessoal, que faz ressaltar, nesses últimos anos de vida, as escolhas culturais de Burckhardt. Ao viajante incansável, que no passado tinha-se precipitado nos museus e nos caminhos monumentais da Itália, acreditando encontrar aqui os vestígios daquilo que pensava ser o berço do espírito e da mentalidade moderna, desvela-se a trama cada vez mais complexa e frágil da vida presente e passada. Assim como uma vez o passado, a despeito de sua aparente inatua­ lidade, havia destruído no jovem Burckhardt qualquer ilusão sobre o presente, agora a incumbência urgente de sistematizar essas anotações histórico-artísticas conecta-se à tarefa de “aprender a morrer bem”, típica de quem tinha respirado por toda a vida os valores da cultura protestante: “Trabalho ainda [...], mas comodamente e fazendo longas pausas, trabalho para estar ocupado com algo que foi traçado anteriormente e que agora parece colocar-se além do presente”3. Mas as sombras de um amanhã jamais tão incerto projetam-se não só sobre a vida e sobre o trabalho, mas também sobre as perspectivas da cultura da época, de modo que, do ponto de vista artístico, Burckhardt parece agora perseguir, com um furor crítico inusitado, as raízes na obra de Michelangelo, sobre o qual o leitor pode ler então, em apêndice a este volume, algumas páginas verdadeiramente emblemáticas.

Ao confirmar a estreita relação entre a percepção da própria condição e a inabalável vontade de objetivar em páginas escritas as últimas convicções, Burckhardt confessa, porém, que não tem nenhuma intenção de publicar aquilo que está fatigosamente escrevendo. Somente nas últimas semanas de vida indicará ao amigo Lendorff qual destino deve seguir este seu último esforço: “A minha intenção a respeito dos quatro manuscritos é doar o ensaio sobre O retábulo de altar, O retrato na pintura italiana, Os colecionadores e as Recordações sobre Rubens à Biblioteca Pública de Basileia, onde todos terão possibilidade de ler e consultar”4. Se, na clareza meridiana, na serenidade da vida e da obra de Rubens — “executor testamentário do Renascimento do Norte” —, Burckhardt tinha identificado a sua concepção ideal do artista em relação aos dois grandes fenômenos característicos de seu tempo — o culto insondável do gênio e a tentativa de fazer da arte fim em si mesma (l’art pour l’art) —, era, porém, exatamente nesse reiterado esforço de redação que devíamos depreender a razão profunda daquele grande projeto sobre a civilização e a arte do Renascimento italiano de que só poucos anos atrás foram levadas à luz as características e as temáticas essenciais5. Qual outro motivo podia, de fato, impelir Burckhardt, no início dos anos 90 do século XIX, a escrever um ensaio sobre o retrato no momento em que a fotografia e a

3 Jacob Burckhardt, Briefe, hrsg. v. M. Burckhardt, Bd. X cit., p. 280.

4 Idem, op. cit., pp. 328-9.

5 Sobre este ponto, permito-me remeter a: M. Ghelardi, La scoperta del Rinascimento. L’Età di Raffaello di Jacob Burckhardt. Torino, 1991.

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reprodução mecânica da obra de arte tinham declarado a sua morte?6 E quais razões podiam conduzi-lo a sistematizar as suas pesquisas sobre o retrato numa época em que os instrumentos para definir o caráter humano tinham mudado radicalmente?

Tudo isso não pode ser explicado, como foi feito7, só com o argumento da preocupação de querer dar forma, nos últimos anos de sua vida, a um material que o autor tinha reunido, visto que de tal modo acaba-se por perder o significado dessas inves­ tigações e os motivos da aceleração que a pesquisa sobre o Renascimento italiano estruturada por gêneros (nach Gattungen) tinha sofrido sobretudo naqueles anos.

A intenção era dar vida a uma indagação que fosse estruturada com base nos gêneros pictóricos considerados essenciais pelo autor. Tal abordagem permite agora a Burckhardt demonstrar em que medida a análise sincrônica das formas pictóricas pode ser exposta e explicada diacronicamente. Desse modo, o retrato italiano do Renascimento é interpretado com base num registro duplo e complementar: de um lado, através de uma reconstrução morfológica que busca revelar as mudanças dos temas representados e as tarefas que o artista tinha sido chamado a cumprir; de outro, através das funções, dos meios e das capacidades que estavam presentes num dado contexto cultural. Em geral, a pesquisa se propõe a explicar a origem do quadro unificado, a proporcionalidade entre conteúdo e função. Em suma, a lançar luz sobre a gênese do formato, já que se trata de evidenciar a relação entre forma e função, e ao mesmo tempo de sublinhar a complementaridade que tal ligação teve para o desenvolvimento artístico do Renascimento italiano.

A importância que Burckhardt atribui a tal abordagem emerge também nas duas conferências sobre “As origens da retratística moderna” (“Die Anfänge der neuern Porträtmalerei”) e sobre “Formato e quadro” (“Format und Bild”)8.

No primeiro caso, o autor busca reconstruir a história do retrato como gênero através de uma breve análise comparativa da ideia de semelhança. Assim, enquanto, em alguns quadros da escola flamenga, o indivíduo é precocemente representado de perfil nas vestes do doador, na Itália, a capacidade de colher o caráter próprio de um indivíduo manifesta-se, ao contrário, através da função política e cultural que o retrato assumiu, sobretudo, em Veneza (representações dos doges) e em Roma (retrato dos papas). Diversamente da pintura flamenga, cujo caráter essencialmente devocional tinha impedido por longo tempo o desenvolvimento do retrato individual, na Itália realiza-se assim uma conexão decisiva entre a função da imagem e a forma do tema representado.

No texto sobre “Formato e quadro”, Burckhardt insiste, ao contrário, na relação entre formato e imagem, arquitetura e forma. O autor compreende a importância que

6 Para a ampla bibliografia sobre o retrato no Renascimento, vide o último catálogo da mostra ocorrida em Berlim, no Bode Museum (25.8.-20.11.2011) Gesichter der Renaissance. Meisterwerke italienischer Portrait-Kunst. München, 2011.

7 Cf. Werner Kaegi, Jacob Burckhardt. Eine Biographie, Bd. VI, 2. Basel, 1977, pp. 450 ss.

8 Cf. Jacob Burckhardt, Werke. Kritische Gesamtausgabe, Bd. XIII, hrsg. v. M. Ghelardi, S. Müller. BaselMünchen, 2003, pp. 460-74 e pp. 506-16.

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tinha tido para a pintura italiana do Renascimento o quadro individual, que havia permitido conseguir uma proporcionalidade entre tema e formato.

Voltando ao ensaio sobre o retrato, é oportuno recordar que aqui o autor revela a ambiguidade terminológica de Vasari, o qual “[...] utiliza, em duplo sentido, termos como ritrarre, ritratto di ou dal naturale, mesmo porque com essas expressões indica tanto o verdadeiro e próprio retrato do vivo de determinado homem, quanto a representação de uma face individual numa imagem, como era habitual no século XV”9. Com a expressão ritrarre eram indicadas, de fato, pelo menos duas tarefas, diversas entre si: por um lado, a reprodução das feições de uma pessoa, e, por outro, a concessão a uma face de traços individualizados criados livremente. Burckhardt segue a evolução dessas duas tarefas, buscando ao mesmo tempo analisar em que medida “a vontade e a capacidade” das diversas épocas e escolas pictóricas alcançaram o princípio da individualização e/ou da semelhança. Essa abordagem permite-lhe não apenas analisar os primeiros traços individuais em alguns personagens representados em afrescos monumentais — afrescos que não eram lugar para uma representação individualizada —, mas também indicar a mudança à qual o retrato foi submetido.

Essa transformação do individual ao ideal parece decisiva para entender a modificação do retrato como gênero pictórico a partir do século XV na Itália: Através de um rápido olhar de conjunto, orientado não segundo as escolas, mas de acordo com a vontade e a capacidade dominantes, cumpre agora traçar as diferenças entre o retrato do século XV e o dos primeiros decênios do século XVI. Veremos que em alguns casos singulares o artista desejou refletir no personagem representado um novo espírito artístico, que a pessoa representada quis espelhar o seu nível social ou que a obra foi fruto de uma forma expressiva comum a ambos. É suficiente notar que o homem é agora considerado em sua aparência pictórica de modo muito mais complexo e que o seu significado agora se transformou. Enquanto até então o propósito principal do pintor tinha sido uma estrita fidelidade ao individual, agora nesse aspecto aproximam-se com igual dignidade os novos meios artísticos que tornam possível um fascínio do olhar em direção ao desconhecido. O menor detalhe, o acidental, que até aqui não tinha sido economizado, desaparece progressivamente, ao mesmo tempo em que o princípio da semelhança é buscado sobre um plano diverso. Já o novo modo de produzir a ação de luz e a sua angulação conferem um significado novo à testa, à base do nariz, ao queixo e assim por diante. A partir desse momento, uma precondição para toda a pintura retratística é o quase total abandono do perfil, pelo menos nos retratos concluídos, visto que nos estudos preparatórios pode possuir um valor fisionômico particular e na arte ideal continua a viver como uma das possíveis e mais elevadas manifestações do belo10.

O arco que Burckhardt traça em seu ensaio sobre o retrato percorre desde as faces com traços individuais no interior das pinturas e dos afrescos monumentais até 9 Ver p. 53 desta edição.

10 Ver pp. 138-9 desta edição.

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o retrato individual. Trata-se de uma evolução que da pluralidade dos temas chega ao tema singular dos traços individualizantes, ao individual, ao caráter e, então, à idealização. Esse processo assinala, para Burckhardt, a emancipação do retrato no interior da pintura como gênero autônomo.

Assim, entre o século XV e o início do século XVI, assistimos a uma trans­ formação iconográfica do retrato que, da pluralidade dos temas e dos personagens, chega à individualização dos caracteres e à concentração dos temas, até que, com a introdução do tamanho natural, impõem-se uma idealização dos temas e uma nova e equilibrada relação entre formato e quadro.

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APRESENTAÇÃO O LUGAR De o rETRATO NA PINTURA ITALIANA DO RENASCIMENTO NA OBRA DE JACOB BURCKHARDT Cássio Fernandes Há uma profunda identificação entre o Renascimento italiano, concebido como época histórica, e o nome do historiador suíço Jacob Burckhardt (1818-1897). Formado pelas lições dos estudiosos responsáveis pela consolidação da ciência histórica na Universidade de Berlim no século XIX, Burckhardt manteve por toda a vida um contato com as mais diversas fontes que remontavam àquela época. O produto de seus estudos teve tão grande significado nesse contexto, que se tornou quase impossível pensar a Renascença italiana, como bloco histórico unitário, sem fazer referência à figura de Burckhardt, já que o esboço e o aspecto formal da época se deveram originalmente ao alcance de sua descoberta.

Tal descoberta concretizou-se com a publicação, em 1860, de seu livro mais conhecido, Die Kultur der Renaissance in Italien (A cultura do Renascimento na Itá­ lia)1. Através dessa obra, Burckhardt apresentava uma síntese histórica do período, concedendo à infinidade de realizações dos homens na Itália da época um caráter e um sentido de unidade. Porém, o livro que sintetizou sua descoberta esteve longe de se apresentar isoladamente no conjunto de sua obra. Foi, na verdade, o primeiro resultado de um trabalho que se estendeu por várias décadas, revelando que a descoberta histórica de Burckhardt deu-se num longo processo, até os últimos anos de sua vida. Apenas desnudando, ainda que de forma resumida, as etapas desse processo é que se pode compreender o significado do conjunto de escritos de Burckhardt que aqui se publica: O retrato na pintura italiana do Renascimento e os textos reunidos como Apêndice.

Quando, no outono de 1860, A cultura do Renascimento na Itália saiu das prensas de uma casa editora de Basileia (Suíça), Jacob Burckhardt não podia prever a importância que o futuro lhe concederia. Ao contrário, para o autor, o livro, que apresentava uma síntese histórico-cultural da referida época, continha uma lacuna que o atormentava. Era como se ao livro faltasse uma parte. Ele tinha negligenciado uma análise detalhada da arte do Renascimento, e sobre isso não pôde silenciar: “Nós tínhamos primeiramente pensado em preencher a maior lacuna do livro com uma

1 Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. Os títulos que aparecerem em itálico

referem-se às obras que foram traduzidas para o português e publicadas no Brasil, e seus dados completos de publicação serão sempre mencionados em nota de rodapé. Os títulos que aparecem sem itálico representam apenas a tradução livre do título original.

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obra especial sobre a ‘Arte do Renascimento’, propósito que aqui pôde ser realizado apenas em parte”2, afirmou já na primeira página. De fato, o livro de 1860 era parte de um projeto de trabalho longamente elaborado e por algumas vezes reestruturado, um projeto que se confunde, em vários pontos, com o conjunto da obra de Burckhardt, mas que naquele momento assumia uma forma específica e revelava um anseio de continuidade. É o biógrafo de Burckhardt, Werner Kaegi, quem afirma que a preparação de A cultura do Renascimento na Itália ocupou o período entre 1846 e 1860, ou seja, da primeira viagem do autor a Roma até a elaboração final do livro3. Nesse intervalo de tempo, o historiador trabalhou em diferentes projetos editoriais: desde as contribuições às segundas edições do Handbuch der Geschichte der Malerei (Manual de história da pintura) e do Handbuch der Kunstgeschichte (Manual de história da arte) de seu ex-professor em Berlim Franz Kugler, editados respectivamente em 1847 e 1848, até duas de suas obras principais: Die Zeit Constantins des Grossen (A Era de Constan­ tino, o Grande), editado em 1853, e Der Cicerone (O cicerone), editado em 1855. É também nesse período — como o denomina Kaegi, seus Wanderjahre (anos de viagem) — que Burckhardt, entre as estadas na Itália e as temporadas de trabalho ao lado de Kugler em Berlim, ensina em Basileia e em Zurique, para, em 1858, estabelecer-se definitivamente no meio citadino basileense, assumindo a cátedra na universidade.

De qualquer forma, em meio a mudanças e voltas ocorridas no intervalo de tempo entre 1846 e 1860, desenha-se na mente de Burckhardt a grande e multiforme unidade histórica apresentada na síntese histórico-cultural à qual chamou A cultura do Renas­ cimento na Itália.

Sobre esse longo período preparatório, cabe deter-nos, como forma de elucidar o significado dos manuscritos de Burckhardt sobre a retratística pictórica renascentista, em dois contextos precisos: a sua segunda viagem a Roma, entre 1847 e 1848, e os meandros da efetiva idealização do livro, ocorrida a partir de 1858.

Em sua origem, a ideia do livro teria sido esboçada, de fato, em sua segunda estada romana, no inverno de 1847-1848. O próprio Burckhardt o confessara, em março de 1895, quando da visita de Ludwig von Pastor, o autor da monumental Geschichte der Päpste (História dos papas). “Naquele momento formou-se em mim a primeira ideia sobre A cultura do Renascimento da Itália”, afirmou em sua conversa com o historiador alemão4. Ele tinha chegado a Roma em 11 de outubro de 1847, após os meses de trabalho, em Berlim, na reedição dos citados manuais histórico-artísticos de Franz

2 Jacob Burckhardt, “Die Kultur der Renaissance in Italien”, Gesammelte Werke, vol. 3. Basileia, Stuttgart, Schwabe, p. 1.

3 Ver Werner Kaegi, Jacob Burckhardt: Eine Biographie, vol. 3. Basileia, Stuttgart, Benno Schwabe Verlag, 1956, p. 647.

4 Citação contida em Werner Kaegi, Jacob Burckhardt...

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