Antologia Subsolo 2019

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ANTOLOGIA SUBSOLO 2019

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ANTOLOGIA SUBSOLO 2019

Editora Subsolo Uberlândia – Minas Gerais 2019 3


Copyright @ 2018 Todos os direitos da Antologia Subsolo reservados à Editora Subsolo. Os poemas e prosas deste livro foram cedidos pelos poetas e escritores à Subsolo e podem ser reproduzidos livremente desde que citados os respectivos autores e autoras.

Título

Antologia Subsolo 2019

Editor

Robisson Sete

Revisão Ortográfica

Leon de Aguiar

Diagramação e Arte-final

Robisson Sete

Editora Subsolo www.editorasubsolo.com.br agenciaculturalsubsolo@gmail.com Uberlândia - Minas Gerais

Contato robissonhotelsete@gmail.com

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ÍNDICE Alan de Souza ................... Poesia .................................................. 09 Alanna Fernandes ............ A Xêpa da Vida ...................................... 10 Alberto Rodovalho ............ Para meu filho ...................................... 12 Amanda Bento ................. desarma ................................................ 14 André Fejó ........................ Poeta .................................................... 16 Celso Suarana .................. CARONTE.COM .................................... 17 Chico de Assis ................... Verdade ............................................... 24 Cleusa Bernardes ............. ACORDEI TARDE ................................. 25 Daiane ACosta .................. Arestas (ou, o ar que resta) ................... 26 Danilo Albuquerque ....................................................................... 27 Diogo Rezende ............................................................................... 28 Enzo Banzo .................................................................................... 30 Felipe Ribeiro ................. Meu Amor É um Balanço Para Árvores Alojadas Em Penhascos .................................................................. 31 Fernando Borma ............... rua ...................................................... 33 Gabriel Serafim ................ Post scriptum sobre terça-feira passada ....................................................................................................... 35 Gabriela Luz ................... Corpo de passarinho ..................... 36 George Thomaz .............................................................................. 37 Gui Damas ......................... Cantiga ............................................... 38 Guilherme Martini ............. O cego ................................................. 39 Guimarães Lobo ................. POEMA DE TRÊS SUJEITOS .............. 40 Helil Lourenço ............................................................................... 42 Humberto Prado ................ Água e Sal ........................................... 43 Ian Abrahão ....................... (sem título) ......................................... 44 Isabela Cavalcante ............. Desbaratinada ................................... 45 Jeremias Brasileiro ............ ESTRELA FLOR .................................. 46 Jéssica Ribeiro ............................................................................... 47 Jhyenne Gomes .................. SOLO ................................................. 49 Joaquim Pedro Barbosa ................................................................. 51 5


Jorge Abrantes ................... Rosa de Cordisburgo .......................... 52 Leon de Aguiar ................... Boa viagem ......................................... 54 Liliane Cirino ..................... MARIELLE FRANCO .......................... 56 Luana Angélica .................. GÊMEAS ............................................. 57 Lucas Simon .................................................................................. 60 Luciano Ferreira ............................................................................ 61 Luiz Henrique Coutinho ................................................................. 62 Luizerah ............................ QUEM ME VÊ, QUEM ME VINIL ......... 63 Manuel Veronez ................. ENXAQUECA ..................................... 65 Marcus Vinícius ............................................................................. 66 Maria Lyra .......................... Sobre poetas e olhos .......................... 67 Mariana Anselmo ........................................................................... 68 Maya Pires .......................... POESIA MARvaGINAL ....................... 69 Muryel de Zoppa ............................................................................ 70 Priscila argolo ..................... Nós somos o trânsito ......................... 71 Ricardinho ..................................................................................... 73 Robisson Sete ................ nove da manhã de uma quinta-feira ....................................................................................................... 74 Robson Camilo ................... Após um espetáculo... ......................... 75 Rodrigo Valim ................................................................................76 Samuel Giacomelli ......................................................................... 77 Sílvia Martins .................... Papéis de gênero ................................ 78 Tânia Martins .................... Poesia ................................................ 79 Tatiana Brissard ................. Fluído ................................................ 81 TheBlackCat ....................... Da alma pra folha é meia polegada ..... 82 Thiago Carvalho ............... Enquanto dorme .............................. 83 Valtênio Spíndola .......................................................................... 84 Welington Muniz ................ Escritas em lápides ...............,,,,......... 85 Zé Alfredo Ciabotti .............. Baby, ….............................................. 87

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Epígrafe

Sobre o Poema Um poema cresce inseguramente na confusão da carne, sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, os rios, a grande paz exterior das coisas, as folhas dormindo o silêncio, as sementes à beira do vento, — a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as órbitas, a face amorfa das paredes, a miséria dos minutos, a força sustida das coisas, a redonda e livre harmonia do mundo. — Embaixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. — E o poema faz-se contra o tempo e a carne

Herberto Helder poeta português (1930 – 2015)

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Poesia Está no cimento denso dentro do concreto No óleo, no parafuso das máquinas dos carros No álcool das bebidas, nas brasas dos cigarros Nas vãs filosofias de todos baseados... Está na luz de cada lua cheia E também no fogo dos mil Sóis Tá no cheiro dos lençóis, Na onda do mar, dos caracóis Está no perfume de toda vadia No descanso e noite, Na batalha do dia, Em tu, em tudo e em todos Está a minha Poesia!

Alan Max Miliano alanseixxxas@gmail.com 9


A Xêpa da Vida A chuva forte chegou Cheia de chamego O chão quente Cheirou a chocolate O chinelo que se apresse e se arraste ligeiro Chulé mais verde que chuchu Pé confundiu-se com abacate Por capricho, debaixo da grande árvore, Não se abaixou Trovão trovejou. Levou choque em toda parte A família se chocou com a gravidade Se chateou, pois o raio, a sua cabeça achatou E virou motivo de chacota para a molecada O cheque pré-datado que deu para comprar um chapéu Voltou no dia do pagamento No armazém do seu Manoel Da vida, cansou de levar chibatada Deu um show: Chutou a banca de chuchu Xingou o cachorro Todos os charutos roubou Fumou, tossiu, intoxicou Foi no banco Mandou chamar o chefe Que ele achava ter a chave da solução Relaxa, come uma bolacha, enche o buxo de chá, disse. Vamos passar uma borracha no que aconteceu O negócio é o seguinte: O banco vai te taxar Você pode até se queixar, mas nada vai mudar Roxo de raiva, pensou: na minha testa tem uma faixa escrito TROUXA O caixa vai engolir meu dinheiro mesmo se minha saúde estiver frouxa Até que eu esteja no caixão… 10


Com dificuldades de enxergar, Enxugou as lágrimas que teimavam em rolar Tentou relaxar, mas só o piorou. A enxaqueca voltou E, com a roupa encharcada, tentou se recauchutar Saiu do banco, desceu o morro Foi lá para baixo, na beira do riacho e pensou: Mas que diacho! Isso é golpe baixo, meu xará orixá! Oxalá, me ajuda a minha vida melhorar!

Alanna Fernandes alanna_ufu@hotmail.com 11


Para meu filho Estará tudo em sua memória, Pois glória só há para o que se exibe Existe zelo, ainda há amor E dos estigmas que botaram em minhas costas Tu vês meu peito nu, De homem fraco e de pouca carne. Ainda assim explora meu existir Objetivando saber Porque riam tanto do meu pai? E nem em sua memória estará os primeiros anos, Não estará o cuidado exclusivo Não se recordará das fraudas que troquei Das noites que perdi sorrindo ou apenas rindo em desespero Não se recordará de todas as vezes que eu disse que ela te ama Que ela estava te esperando E com certeza ouvirá histórias de quem eu fui, Já não sou faz muito tempo, Mas é como se eu nunca tivesse mudado para eles. Quando eu me dediquei a você eu “buguei” o meu mundo Dei “overload” nas pessoas que eu amava e esperava que por mim tivessem amor. E para a minha história, foi game-over Ninguém estava disposto a me ver bonzinho ou careta. Preciso contar para ti Não há mais verdade E se essa narrativa torna tua vida mais afável Quem sabe eu não me afasto mesmo Se fores escritor, jamais escreva sobre mim Ninguém vai acreditar em suas palavras Escreva sobre uma viúva, os leitores adoram histórias tristes. Ou não escreva nada Para os outros. Sobre livros e filhos eu só sei que vale a pena Tê-los e sabê-los. E vale muito a pena meu filho Acreditar no amor Mesmo que esse não (h)aja. Veja como tudo se ajeita; E fora a fofoca, Estamos bem e felizes. Fora o ruído, Há amor em teus lares. Há um lar para ti no coração dos teus pais, Que é como castelo, monólito supera o tempo, Revela a alma, Tornam os erros relativos e passiveis de perdão. Para que os supere com o tempo. 12


E sempre haverรก colo alento Quando chorar.

Alberto Rodovalho albertorodovalho@gmail.com 13


desarma onde você descansa? onde você se despe? onde você aposenta seu canivete? onde você dorme de costas para a porta? onde você não tem medo de se atrasar? onde você fala sobre o que quer? onde você tira a sua máscara? onde você abre a cortina do quarto? onde você deixa sua mão pender para fora do colchão? onde você deixa a xícara sem o pires? onde você apaga a luz? onde você se desliga? onde você destampa a garrafa? onde você se deita? onde você troca o lençol? onde você se desfaz? onde você define a verdade? onde você é você?

se você não tem um lugar onde você está? 14


se vocĂŞ nĂŁo tem onde, qual ĂŠ o seu bem estar?

Amanda Bento verbaliganthomines@gmail.com

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Poeta Colhi dos galhos da poesia, versos que espalhei pelo caminho. Se me sentes prestes a ti, revir. Portento. Tuas mechas brandas. Uma solitude florescendo nua nas horas dos meus dias. Povir. Teus lábios ansiosos, fulguras em mim, apaixonada. Na pequenez de sua íris, miríades de estrelas explodem, na imensidão da infinita luz que parte do teu sorriso... Não existe Poeta sem Poesia, assim, como não existe beleza sem contemplação, surpresa... Se te contemplo é porque és bela, Se sou Poeta é porque tu és Poesia

André Fejó andrefejo@outlook.com 16


CARONTE.COM

Relatório do Projeto Cérbero Redator: Agente-Mestre Thanatos

Aos cuidados do Setor Maat

Prezados Senhores, finalizei meu parecer sobre o caso do Agente Anúbis e agora apresento todos os detalhes para que possam fazer a avaliação final, para julgar se haverá o desligamento do referido agente ou a possibilidade de aplicação do procedimento Sobek. O agente Anúbis, desde sua entrevista de emprego se mostrou muito superior a todos os outros candidatos. Ele vem de uma formação incompleta em psicologia, simpatizante de estudos comportamentais e mantinha sempre um semblante tranquilo, uma fala dócil, capaz de inspirar confiança e trazer a tão sonhada tranquilidade que os clientes da Caronte.com tanto necessitam. Eu próprio participei da entrevista naquela tarde quente, quando fomos vitimados por um defeito no ar-condicionado e apresentávamos muito cansaço e até uma tendência para excessiva irritabilidade. Porém, o agente Anúbis estava tranquilo, vestia um terno escuro de corte impecável, os cabelos fartos em um penteado sóbrio, os olhos profundos que pareciam capaz de afogar qualquer um em empatia e compreensão. Tinha mesmo um olhar acolhedor. Sem dúvidas, sem surpresas, demonstrando uma serenidade ímpar diante das implicações delicadas de nossa empresa. Em suas mãos não despontava qualquer mancha de suor e eu mesmo, já com quinze anos de experiência nesse mercado tão delicado, senti-me demasiado humano e desconfortável diante da perfeição da figura do Agente Anúbis. Ele já veio sabendo exatamente do que se tratavam nossas ações e chegou até a vaga por indicação de Doutora Cora, quem já lhe adiantara tudo com singular discrição. Na ocasião da escolha, alguns dos entrevistadores questionaram que tínhamos candidatos com melhor desempenho profissional, inclusive, um psiquiatra com amplo conhecimento farmacológico. Entretanto, os senhores sabem que em nosso caso há algo do temperamento do candidato que sempre é muito mais relevante, além da boa capacidade de argumentação e disponibilidade sensível. Muitos clientes mudam de ideia durante o processo, especialmente antes do pagamento do óbulo. Assim, mais importante do que conhecimentos precisos sobre técnicas fatais e drásticas, temos, cada vez mais, procurado agentes que nos transpareçam tranquilidade, carisma e boa argumentação. Inclusive, o Agente Anúbis, apesar de formação incompleta, demonstrava conhecimento superior a outros que ostentavam graduação em psicologia. Nem precisamos dizer da 17


importância das indicações e, após uma conversa com Doutora Cora, percebemos que Agente Anúbis reunia as melhores qualificações.

O primeiro caso em que ele ficou encarregado foi extremamente bem executado. Tratava-se de uma senhora que já tinha um histórico de duas tentativas de suicídio, a primeira quando tinha apenas 32 anos, por meio de um corte superficial nos pulsos, e outra recente, aos 57 anos, por ingestão de medicamentos. O Agente Anúbis realizou uma visita quando ela estava ainda hospitalizada, conseguindo acessar o quarto com discrição. A cliente recebeu o codinome de Dona J. Dona J nos recebeu para uma negociação uma semana após a liberação do hospital. O próprio Agente Anúbis, com uma postura modesta e confiante, convidou-me para que supervisionasse seu primeiro atendimento. Dona J parecia feliz em ver o Agente Anúbis, tratando-o como um velho conhecido e sendo muito calorosa comigo. Por um momento cheguei a suspeitar se o Agente já não conhecia aquela senhora e estava lançando mão de uma afinidade que já tinha. Mas eu estava enganado, após duas xícaras de chá, alguns biscoitos importados e uma dose de vinho do Porto, Dona J falou sobre o encontro que tiveram no hospital, evidenciando que haviam se conhecido naquele dia. Ela explicou que foi uma surpresa quando um homem tão alinhado apareceu, logo em um momento que passava por tanta confusão e fragilidade. Disse que ele parecia um encantador anjo da morte e chegou a acreditar que Deus talvez não seria assim tão implacável com os suicidas. Nesse instante, de maneira delicada, e com uma expressão amorosa que parecia verdadeira, o Agente Anúbis enlaçou-lhe as mãos e encarou aquela mulher com empatia, com amizade. Pupilas densas de ave de rapina. Explicou que a vida era uma dádiva somente dela, uma graça que fora dada por um Deus misericordioso que sabia muito bem de seus sofrimentos, de sua solidão, e jamais a condenaria por devolver tal presente. Dona J, então, chorou como uma criança e retribuiu com um olhar íntimo e cúmplice as palavras do agente. Ele ainda aprofundou o momento abraçando-a e, com os olhos marejados, ainda disse: “Somente você é capaz de julgar seu próprio sofrimento e nós estamos aqui para fazer que a sua passagem seja o seu grande momento de abraçar a eternidade. Como um palco! Onde finalmente terá um foco de luz e um aplauso silencioso.” Eu fiquei estarrecido, era como se visse o filho despedir-se da própria mãe, lembrei também de todas as vezes em que cuidara de casos similares e como me considerava capaz de demonstrar empatia e cumplicidade com os clientes. Mas jamais com tanta intensidade, com tanto ardor e verdade, jamais como o Agente Anúbis. Dona J e Agente Anúbis travaram então uma longa e abstrata conversa sobre os incertos sentidos da vida e Dona J deixou claro que estava decidida a contratar nossos serviços. A negociação foi fácil e também superou minhas expectativas. Ao fim, com um semblante tranquilo, corado e até vívido, Dona J assinou todos os contratos e fez questão de deixar uma comissão generosa para o Agente Anúbis. 18


Assim que saímos da casa, o agente inclusive declarou que abriria mão daquela quantia em benefício da empresa, já que compreendia o envolvimento emocional do cliente como parte da natureza dos procedimentos de nosso trabalho e não como um mérito individual. Mas diante de uma execução tão brilhante em seu primeiro caso, e com a devida anuência de Doutor Ankou, concordamos que era mais do que justo que o agente recebesse aquela soma para si.

Muitos poderiam dizer, diante da análise desse caso, que tudo poderia ser sorte de principiante e que a relação entre Dona J e o Agente Anúbis seria um fenômeno isolado, provocado por uma ressonância inconsciente entre ele e alguma lembrança marcante daquela senhora. Talvez a lembrasse de um velho amante, de seu pai, de um filho perdido. Entretanto, pudemos comprovar que os casos seguintes também demonstraram um desempenho ímpar. Além da melancólica Dona J, ele atendeu um homem de 45 anos, sem histórico de tentativas de suicídio; um empresário alcoólatra; uma ex-roqueira de apenas 34 anos que também parecia ser uma cliente difícil, mas que foi resolvido mais rápido que o esperado e outra senhora na faixa dos 65 anos, que já estava diagnosticada com uma doença terminal. A Agente Meng Po acompanhou esses dois últimos casos e me confidenciou seu espanto pela maestria de Agente Anubis: “Ele é de uma sensibilidade audaz e perturbadora, consegue ser doce ou irônico, acolhedor e incisivo, adapta-se como um camaleão à cor de cada necessidade”. A Agente Meng Po e eu conversamos tanto sobre os resultados constatados que pensamos em indicá-lo para Agente-Mestre, imaginando que ele poderia dar uma formação muito rica aos novos agentes e logo chegaria à posição de Doutor. Após esses quatro casos, a consolidação profissional de Agente Anúbis era notória e definitiva, com apenas quatro clientes ele já estava em alto conceito por todos que trabalhavam consigo e já era citado quando se falava em possibilidades de promoções. Podíamos, então, deixá-lo agir por conta própria, sem necessidade de monitoramento. Mas para nossa surpresa, o Agente parecia ter outras ambições. Senhores, em todos esses anos de empresa sabemos muito bem como é difícil a lida emocional desse trabalho, como somos acometidos, constantemente, de dúvidas profundas e sentimentos de culpa, apesar da consciência plena de que estamos a ajudar pessoas que sofrem em seus objetivos sem julgamentos, fazendo da auto-passagem um privilégio único para aqueles que escolhem esse caminho. Não celebramos a vida nem a morte, apenas acreditamos no direito da escolha consciente. Assim como Deus nos legou a dádiva e a cruz do livre-arbítrio, nossa missão está em encarar essa grande sina do homem: suas próprias escolhas. Portanto, eu pessoalmente acredito que não somos vendedores de serviços, nossa ação é delicada e é preciso acompanhar com paciência e respeito aqueles que desistem. Os senhores bem sabem que nosso código de ética pede que sejamos neutros, devemos aconselhar sem induzir, mesmo que isso resulte na desistência de alguns clientes. Particularmente, adquiri a frieza necessária para o trabalho nesta empresa, mas jamais quero ter a sensação de que induzi um cliente a 19


alguma coisa que não fosse sua própria decisão. Orientar, jamais manipular e extorquir aqueles que estão em situação tão fragilizada. Entretanto, o Agente Anúbis começou a se tornar não mais o barqueiro sóbrio da dura travessia, mas um condutor enigmático e sedutor.

O quinto caso de Agente Anúbis foi uma mulher de 48 anos que recebeu o codinome de Senhora H, embora seu verdadeiro nome seja de amplo conhecimento dos senhores. Ao que consta nos registros, essa mulher tinha um histórico de acompanhamentos psiquiátricos e psicoterapêuticos. Em alguns momentos da vida ela teria feito uso de controladores do humor e recebeu diversos diagnósticos, como por exemplo, transtorno bipolar, síndrome do pânico e até foram identificados alguns traços psicóticos. Senhora H era conhecida por uma personalidade extravagante e boêmia, atravessada por atitudes autodestrutivas, além de ser presença marcante nos círculos sociais da elite financeira, já que era a herdeira de um abastado grupo empresarial. Infelizmente, por falta de um monitoramento, não pudemos entender tão bem os meandros do caso, mas temos algumas evidências de que o Agente Anúbis, para alcançar sucesso, iniciou uma relação amorosa com a cliente. Quem começou a suspeitar de algo errado foi justamente a Agente Meng Po, depois de perceber que o Agente Anúbis estava encomendando procedimentos muito estranhos para completar o caso. Ela relata haver percebido uma excitação peculiar em um dia em que ele encomendou flores, champagne e um jantar privado na suíte de um hotel luxuoso. Na ocasião, a Agente Meng Po imaginou que ele estivesse tratando de algum assunto particular, mas reparou que as despesas seriam bancadas com os fundos da empresa. Ele então explicou que era um caso muito específico e que estaria levando a opção de auto-passagem a uma experiência de grandiosidade e êxtase. “Grandes vidas merecem um grand finale”, teria dito o Agente Anúbis, expressando uma eloquência peculiar. A Agente Meng Po ainda contraargumentou, recordando a discrição necessária para a sobrevivência da Caronte.com, ao que o agente respondeu que não havia nada saindo dos parâmetros e da filosofia da empresa. O resultado foi que o Agente Anúbis desapareceu por cerca de três dias, em datas que coincidem com a hospedagem no hotel luxuoso em companhia de Senhora H. Ao reaparecer, ele já tinha os fundos para cobrir todos aqueles gastos, mas havia em seu semblante algo de incompleto, de insatisfeito e triste. Ele exibia a expressão serena de sempre, mas para aqueles que possuem uma sensibilidade rara, como a Agente Meng Po, era muito nítido que havia em sua face traços de desapontamento, de frustração. A agente Meng Po questionou-lhe sobre o caso em que trabalhava, tendo o cuidado de não transparecer qualquer desconfiança, mas sim compaixão. O Agente Anúbis respondeu que não saíra como previsto, que se tratava de uma cliente de argumentação e procedimentos complexos e que deveria, ele próprio, transpor seus limites. Junto a esse sutil desabafo, em que a perfeição técnica de Agente Anúbis parecia maculada por uma dose suave de vaidade, o rosto do agente se transfigurou em um sorriso de luxúria e desafio. 20


Acredito que o caso de Senhora H é de ciência de todos, afinal, sua auto-passagem foi muito noticiada, devido às circunstâncias extravagantes em que o ato ocorreu. Assim, como sabem, a referida cliente, socialite de família tradicional de nossa cidade, saltou do terraço onde realizava uma festa orgíaca sem precedentes, que literalmente apanhou todos os convidados com as calças nas mãos. Quando recebi a notícia estremeci e enviei um primeiro parecer para o Projeto Cérbero, pedindo autorização para fazer uma averiguação mais detalhada desse caso, ao que o projeto cedeu facilmente, pois a ampla exposição midiática do caso da Senhora H também preocupou alguns Sentinelas. Mas apesar disso, muitos de meus superiores não deram importância à atenção que eu chamava para o caso, isso porque, como eu creio que os senhores bem sabem, o atendimento à Senhora H resultou em um óbulo muito generoso, dizem até que teria sido o mais rico óbulo de toda a trajetória da Caronte.com. Ora, mas foi justamente o valor desproporcional desse óbulo que nos levou a uma preocupação que jamais sofremos. Evidentemente, no caso de Senhora H, estamos tratando de uma família de muita influência e poder, com um patrimônio visado por olhos ferinos. Uma infinidade de parentes e agregados está sempre pronta a contestar um testamento. Assim, um sobrinho de Senhora H, um jovem que vamos identificar como Jovem B, que mal acabou uma universidadezinha de direito, contestou o testamento, justamente por causa do montante destinado como óbulo. O referido Jovem B, em poucas investigações, chegou até uma de nossas empresas parceiras de redirecionamentos fiscais. Isso estremeceu a todos, nunca antes na história dessa corporação uma de nossas transações financeiras acarretara em qualquer risco. Diante disso, os Sentinelas elegeram uma comissão para travar diálogo com o Agente Anúbis, com o objetivo de solicitar melhores esclarecimentos sobre o caso de Senhora H e alertar o agente para possíveis excessos. Eu próprio gostaria muito de ter participado dessa reunião, mas em virtude do treinamento de um outro agente, nem fui cotado para tal. Aí está um terrível erro, caríssimos senhores, quando uma empresa se expande de tal maneira, como é o nosso caso, corremos o risco de nos fragmentarmos sem perceber. Ocorreu então um inquérito entre os Sentinelas e alguns Agentes. E sobre o resultado deste, lanço uma alerta: É preciso cautela, porque o Agente Anúbis encantou a todos. A própria Agente Meng Po, quem me despertou as primeiras suspeitas de que o Agente Anúbis necessitava de atenções, parecia ter sofrido algum tipo de lavagem cerebral. Dois dias após tal reunião, perguntei à agente alguns detalhes, ao que ela me respondeu que estava tudo perfeitamente resolvido. Disse que o Agente Anúbis esclarecera a tudo, comprovando que o esquema da Caronte.com era já suficientemente consolidado, que não havíamos corrido qualquer risco e fez ainda uma explanação minuciosa de nossa estrutura financeira. Nós já havíamos encerrado o assunto quando ela ainda segurou meu braço com força, seus olhos eram de um brilho perturbador. Disse-me: “O Agente Anúbis é o futuro dessa empresa, a renovação necessária, ele nos reserva grandes planos, novos rumos. Não quero parecer leviana, mas creio que ele reúne todos os atributos para ser o novo Presidente Hades!” 21


Não acreditei naquele depoimento, bem como na expressão fanática e quase desesperada de Agente Meng Po. Pedi vistas ao relatório do inquérito e recebi um parecer técnico que apenas justificava que o Agente Anúbis possuía sólidos argumentos e estava apto a prosseguir sua carreira.

E o que nos resta agora senhores? Lembram-se do sobrinho de Senhora H? Será que ele continuou a investigar o desaparecimento de uma soma tão alta dos espólios de sua tia? Jamais saberemos, porque o Jovem B, um rapaz com menos de trinta anos, oriundo de uma família de posses que facilitava sua carreira incipiente, um moço com todas as ambições e condições para uma vida longa, esse jovem se matou. Coincidência? Não creio e acho uma lástima que não averiguemos a fundo essa história. Apelei para Doutora Cora, que me respondeu que não nos interessa investigar se o Agente Anúbis tem alguma relação com essa morte: “Jovem B não era nosso cliente e a absoluta maioria dos suicidas também não é. Esse caso está encerrado, não devemos continuar atraindo as atenções para nossos negócios”. Justificou-me Doutora Cora. De minha parte, resignei-me a não mais dar mais atenção às minhas suspeitas.

Diante de tudo que estou expondo aos senhores, parece-me que há algo de ostentoso na atuação de Agente Anúbis. Para mim, é como se ele não contentasse com a discrição e o quase anonimato de nossa atuação, mas que desejasse fazer de cada morte que conduz um espetáculo grandioso. Agora preparem-se para saber seu novo projeto, que está sendo aplaudido por vários Agentes e AgentesMestres inconsequentes, fascinados pela serenidade e carisma de Agente Anúbis: ele está preparando uma auto-passagem coletiva. Sim, meus senhores, à maneira de um desses fanáticos religiosos que pregam o fim do mundo e organizam grandes sessões de suicídios enquanto esperam Jesus, ou os Ovnis, ou a vinda dos intraterrenos. Sabe-se lá por quais argumentos, o Agente Anúbis criou um blog alegando assistência a pessoas com tendências suicidas e as está atraindo para seu grande show. Segundo o que pesquisei, haverá um grande encontro em um sítio, ao molde de grandes eventos empresariais, onde uma multidão celebrará suas auto-passagens com um banquete, com slides emotivos sobre suas vidas, com um palco aberto para a realização de seus últimos sonhos e um brinde envenenado ao final, quando todos celebrarão juntos o fim de suas vidas. Para convencer a todos, o próprio Agente Anúbis está anunciando que se juntará ao grupo e também fará sua auto-passagem. E pasmem, senhores! Há muitos colaboradores de nossa empresa que estão confiando nisso, chegam a dizer que se trata de um caso único, de um profissional profundo que acredita como nenhum de nós na verdade e beleza de nosso trabalho. Inclusive, alguns Agentes dizem que também participarão, como a Agente Meng Po, o Agente Supay, a Agente Sedna, dizem que até Doutora Cora já encomendou um vestido longo e adornado de pedras preciosas para realizar, em seu derradeiro momento, o sonho antigo de ser cantora. Eu não creio que o próprio Agente Anúbis colocará fim à sua vida, mas sim que aproveitará o conjunto de tantos óbulos para abrir, por si só, seu próprio negócio. É necessário que façamos algo urgente e eu mesmo 22


começo a tremer enquanto tento finalizar esse relato, pois agora, nesse exato momento, o Agente Anúbis me olha sedutor, sorridente, como se também me chamasse para abraçar seu abismo.

Celso Suarana celsoamancio@gmail.com

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Verdade A verdade é overdose de nada, latejando num poema mudo. No espelho é uma imagem parada, contemplando a metade de tudo. Às vezes é faca amolada, filete de sangue no rosto. Dois nomes na encruzilhada, meu desejo e seu oposto.

Chico de Assis chicodeassis.zut@gmail.com 24


ACORDEI TARDE

Estava à toa na vida... (Chico Buarque) Acordei tarde O dia já estava longe O herói já tinha morrido A banda, o bloco, a folia Tudo já tinha passado E eu fiquei para trás

Acordei tarde O dia já estava alto Perdi o cavalo branco Fiquei na beira da estrada Muitos foram na viagem Mas eu fiquei para trás

Acordei tarde O dia já era velho Quando vi, não tinha nada O povo não estava lá Cada um foi pro seu lado Só eu fiquei para trás Cleusa Bernardes cleusaber@yahoo.com.br 25


Arestas (ou, o ar que resta) incongruências contingências hipocrisias... presentes quem ainda está presente? meu coração sangra tanta maldade... ela existe aqui, ao lado, e dentro de cada lado em mim, em ti, e em todos os cantos segregações, pedras atiradas todos estão certos dentro de sua verdade sinto os espinhos meus, os seus e os nossos quem sobreviverá viverá? quanto sangue derramado simbólico ou de carne e osso (a fome pode acontecer desde que não seja a minha) quero gritar correr, mas o mundo é tão pequeno, não é mesmo? 360º e tudo retorna e o que eu posso fazer? como transformar pedra em ouro como alimentar a todos? e o que não gosto em mim eliminar é o que posso? mas é o outro, sou eu o que fazer... e esse ranço me esconder? pra onde, se onde olho vejo partes de mim em você?

Daiane ACosta acostateatro@gmail.com 26


Quis viver para sempre. Dizem que conseguiu. Está por aí faz mil anos — oitenta como humana; o resto como adubo, minhoca e grama.

Danilo de Albuquerque

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essa vida, coisa que nos pega pelos olhos e nos arranca da cama estridentes como os raios de sol da manhã

não deve ser levada a sério

deve ser levada como as moedas trocadas levadas no bolso

prontas para o que der e vier na veneta dos dias

dá-las na padaria para a última fornada do pão-com-café-da-manhã ou

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para o crackeiro sem pão da sola do pé quente na brita do asfalto que todos pisamos e deixamos, inadvertidos, caírem sempre as moedas do bolso

Diogo Rezende diogoreze@gmail.com 29


aquele cigarro você fumou até o dedo enquanto eu secava o último gole acabou a bateria do celular e com ela a música a noite sumia raios de dia acabou a água do filtro o amendoim foi-se o queijo e foi assim no meio de tanto fim que a nossa história começou

Enzo Banzo enzobanzo@gmail.com 30


Meu Amor É um Balanço Para Árvores Alojadas Em Penhascos Ontem você brigou com seus pais disse que iria para a Nova Zelândia que lutava a favor da proteção dos animais falou quando tirou oito em Física para concluir o ensino Médio e que fechou por três anos seguidos os bimestres de Filosofia Ontem você correu e bateu a porta do quarto escutou sua mãe lhe perguntando sobre o antigo namorado e você olhou para seu pôster do Beethoven na parede branca jogou o travesseiro em direção ao chão viu os discos do UFO de 1970, Patti Smith e Chet Baker com trechos das canções escritos a caneta nas capas seu pai queria te ver médica ou advogada você acabou de conseguir entrar para relações internacionais Ontem você chorou alto e repetiu várias vezes a discografia do The Rush em ordem cronológica desenhou um rosto com um par de óculos escuros em uma folha de papel e beijou a feição arredondada com se esperasse a volta do Elvis ou a morte do Presidente Americano leu um pouco de Baudelaire antes de quebrar um porta-retrato que carregava uma fotografia sua tirada pelo seu ex-tóxico e abusivo Você encarou a imagem do Dylan em uma revista na estante pedindo que encontrasse alguém que te salvaria que conhecesse seus poemas, entenderia e quisesse ser como os Beats, Dadaísmo e Allen Ginsberg faria cartas e colocasse na sua caixa de correio todas as quintas feiras te levasse a feira, beberia breja na porta do Mercadinho, planejaria um On the road pela América do Sul, fumaria cigarro vermelho, falaria sobre Godard, as Ilhas Galápagos, os pássaros migratórios, as classificações Darwinistas E lhe ofertasse um chumaço dos cabelos dele, rodopiantes e enrolados no teu dedo indicador com uma tatuagem de arco e flecha Como o amor de Van Gogh pela sua orelha cortada enrolada em um papel e enviada até sua a amada Ontem você me procurou como o último dos Moicanos 31


assistiu Laranja Mecânica com a legenda em Italiano leu uma notícia de que ouvir Coldplay dá muito sono foi dormir ouvindo Coldplay, apagou do histórico que tinha escutado e nunca mais se falou sobre isso acordou como se o mundo estivesse no final, quase nos créditos e descoberto a verdade sobre as estátuas de Páscoa Passou um delineador, batom bordô, vestido elegante um pouco caro, mas bonito, hoje é sexta e queria breja ouviu seus pais pedirem desculpas pegou as chaves de casa como se fosse abrir o céu e empurrar os anjos com toda sua frustração e negação ao Divino por conta dos 20 anos foi caminhando até o centro, acendeu um cigarro, deu pitaco de ansiedade, roeu as unhas cheias de esmalte Se perguntou no espelho do banheiro segurando uma Budweiser, cadê teu coração Inflado/Embriagado & nu ao lado do meu? Hoje você tomou litrão de breja sozinha, falou que literatura é um pilar, ela te afaga e eu te vi chorando na janela do ônibus de volta para sua casa por não ter encontrado a pessoa amada em menos de algumas horas Desistiu dos búzios, amarrações, disco do Fábio Junior e não me enxergou no ponto com os olhos embaçados de lágrimas Fiquei esperando algum ônibus vir me resgatar da briga que tive com minha família e sair em busca de alguém no centro, para ser salvo Como ex-viciados em jogo, madrugadas insones, pessoas transando em busca de felicidade, coletes salva-vidas jogados ao mar, um morador de rua que desistiu de ser salvo Solos tristes de guitarra, o gosto por dois dias de Campari na boca, mensagens de texto que nunca conseguimos apagar e amores que brincam em balanços nas árvores alojadas em Penhascos.

Felipe Ribeiro ribeirof447@gmail.com 32


rua atravessar a rua. enquanto atravessa a linha a travessa a rua a vida com questões para si resolver ou tentar dissolver em palavra mecânicadevida acontecendo pé pós pé, chão pós chão; a girar a roda todos os dias; rastros rápidos rostos rangentes máquinas motores elétricos letreiros, cidade; perambulantes políticos pensamentos. automáticos automóveis ziguezagueantes transeuntes atentos aos seus celulares; atenção! sinal fechado. rompimento de fronteiras. 33


rua situada no futuro. literatura? documento? pergunta-se enquanto atravessa a rua a travessa portas e portais místicos dos sonhos dos poetas que dormem nas calçadas dos empregados desesperados por salário... escrever enquanto pisa os pés nesta época e para para ver acontecer ação! corre! corta! flui! o coração; ficção? autobiografia? pergunta-se enquanto atravessa bueiros buracos inabitados mundos multiversos versos infinitos atravessar a rua a travessa o risco dos rasgos rompantes dos erres que arrastam para fora Fernando Borma fernandoborma@hotmail.com 34


Post scriptum sobre terça-feira passada Isto não é um poema, repetia em voz alta, enquanto limpava teias de aranhas a bordo de um navio selvagem. Minhas lembranças líricas e as dores no estômago começaram na guerra. Sim, desconhecido leitor, era impossível escrever um poema navegando naquele mar de sangre, aliás, o último trovador morreu em 1914, Drummond havia confessado publicamente! Às vésperas da revolução, fui convertido a fuzileiro do exército vermelho, enquanto fazia meditações solenes sobre o futuro da humanidade. Nem ilusões, nem paraíso, nem inferno! Continuava escrevendo sobre as terríveis feridas da máquina sentimental, segurando um rifle e um silêncio prolongado. "Não se aborreça, não se aborreça, olhe para você, aluno prodígio, você vai sair dessa e escrever belos livros". Ainda que eu falasse a língua dos poetas, era sempre a mesma coisa, exatamente como a guerra havia ensinado: a morte também matava os meus versos. Na segunda-feira cinzenta, apertei a mão dos meus amigos apaziguando a própria consciência, todos já suspeitavam o que iria acontecer!

Gabriel Serafim ggsserafim@gmail.com

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Corpo de passarinho Nestes dias De vento parado morno, Sinto que a gente não existe, Parece que há algo solto Como um corpinho de passarinho Que se entrega, mas, entre as pedras, Resiste aos carinhos das águas, Que molham as asas pequenas E dissolvem as penas Soam sinos, Brincamos que ouvimos Os guizos das sapatilhas da morte Estamos à sorte De uma mitologia feminina com feições de raposa Sim, nasci aqui, Mas não cresci pra ser esposa

Gabriela Luz gabrielaaluz@gmail.com 36


Escrevia como via E comovia Pois as coisas São comoção

George Thomaz georgethomazp@gmail.com 37


Cantiga dentro da clareira do teu olhar tem uma fogueira parto pra te olhar num desses dias em que a noite parece tersol inflamando os olhos eu choro eu pranto eu pronto um cantador tira a viola do saco e senta na fogueira pra fazer sua prece sem pressa seu verso sem verdades quando estou de bem comigo saio assobiando sobre como é escura a noite dentro do seu olhar vazio que nem roça seu olhar tem meu mesmo vazio que a roça lido com todos meus desdobramentos espirituais sem nem suspeitar de que sou o personagem malandro de uma cantiga seresteira entoada na fogueira bem no meio da clareira noturna que é seu olhar vez ou outra a maré da retina sobe e encerra a fogueira a cantoria eu me apago pois a canção que me deu e dava vida silenciou sou apenas outro verso que não deu certo apenas outra melancolia que deu certo outra ida outro perto outro aperto outro parto outro aborto barato outro outra outrem entrem no trem

Gui Damas lovemma@gmail.com 38


O cego Grades não me prendem O breu eu expurgo com as mãos Luz sai das pontas dos meus dedos Vou vivendo e sabendo Que o ouro e a prata têm o mesmo toque Que olhos não veem mas o corpo vibra E quando tudo for escuridão E estiver jogado à própria sorte Lançarei meus braços de tato forte E um clarão irá até seus olhos

Guilherme Martini guio@gmail.com 39


POEMA DE TRÊS SUJEITOS Olhei para um canto sujo do quarto Onde canetas que não mais escreviam Eram jogadas fora Três Eus me olhavam de volta: Eu, o Pai Eu, o Filho Eu em pranto. Em lençóis sujos manchados de gozo Onde amores que não mais existiam Eram lembrados agora Três Eus me olhavam de volta: Eu, o Pai Eu, o Filho Eu encanto. Corri ao reflexo sujo do espelho Onde marcas que não mais se escondiam Eram vistas sem demora Três Eus me olhavam de volta: Eu, o Pai Eu, o Filho Eu espanto. Passado por debaixo da porta Presente na rua que aporta Em cada esquina uma vida vazia Um punhal nas costas e três atos de covardia: O amor negado; O amor roubado; 40


O amor banido. Esgueirando tal sombra incógnita Cheirando qual um cão na chuva Três partes de um todo insólito De minha humanidade turva: Aquele cético; O outro pródigo; Este lascivo. Cercado por Heras e Bacos, Punido por Ninfas e Górgonas, Num labirinto entre o pó e o barro Três hastes de uma só Quimera: A impiedade de Hades; A ira de Ares; O desprezo de Asterion. Sentado na cova que escava Tão sujo como quando amava Aceso o último cigarro Ateu Três se despedem em ADeus: O Pai Cristão; O Filho Pagão; Eu Hápax.

Guimarães Lobo guimaraes_lobo@hotmail.com 41


Minha ruína é culpa. A sua é virtude Minhas olheiras são culpa. As suas são honra Meu mundo fadado à destruição, quando o seu, à transformação Sou estranho, você é comum, e sou menos, sou culpa Ouço-lhe arredio, enquanto ignoras-me, está certo Quem você pisa quem pode te derrubar Culpa é referencial.

Helil Lourenço helil@helil.net 42


Água e Sal som contínuo do atrito com a pele encaixe melódico na ponta dos dedos pulso grave agrava o compasso um gemido único na língua do blues sentidos se arrastam num caminho sinuoso mantem-se o ritmo o peso excede hesitante e úmido precipita-se o espírito em forma de ribeiro nascente fonte dos olhares excitados um sonoro gozo improvisado jaz(z) em minha face

Humberto Prado humbertooprado@gmail.com 43


(sem título) decomposição até as composições - td em decomposição movimento da vida é esfarelar de partículas é decompor um estado terminal pra gerar um devir-término putrefasto a'coplação ~ copulação o mundo é decomposição restos entranhas vegetais servem de alimento às montanhas escuridão decompõe o sol diante da luz projetada sobre a mesma lesma se parte e decompõe a si mesma outra 2 alteridade decompõe o imanente na autoridade da identidade palavras decompõem (e) somam jogando tinta tóxica nas entidades matam com sua decomposição química química decompõe (vide 2) horizonte montanha cheia de vida verde

Ian Abrahão ianl6ve@gmail.com 44


Desbaratinada no prédio onde moro habitam antes as baratas sabe-se lá acesas desde os anos 60 (quanto vivem as desgraçadas?) corro ao google que contesta a data mas evoca coisas soturnas como: - suportam 1 mês sem alimento, 1 semana sem água - um casal pode se multiplicar por 100 mil ao ano - o bicho sobrevive caralhos de tempo sem cabeça por último & não menos importante - ninguém quer casar com a dona baratinha retorno à angústia que incitou a escrita o edifício itaporã reavivou-me intenso repúdio escondo, dia & noite, veneno aerosol atrás do espelho do quarto sonho madrugada afora com criaturas indestrutíveis malgrado compartilhar a existência com seres tais até tento humanizar o inseto recorrendo à clarice lispector e a franz kafka é possível me comprazer diante dum ente metamorfoseado ou duma dona de casa que se encontra com o mais antigo de sua subjetividade entretanto, ao combatê-la (vê bem, não existe dentro de mim algo que conceba a coexistência de nós duas) revisito lugares da casa onde outrora esteve a barata me perco em questões identitárias seria a casa minha ou dela? há direitos para as pragas? qual vida tem valor maior? constato que o que me come por dentro é que ao matá-la, como foi de manhã encurralada no ralo do banheiro a barata desaparece mas não desapareço não há aerosol que aplaque o assombro de resistir num mundo onde destruo uma a uma em batalha inútil & permaneço eu Isabela Cavalcante isabelacavalcante@hotmail.com

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ESTRELA FLOR Noturno olhar florescente vivencia magnífico momento quando estrela desce à terra para transformar-se em flor. Rompe o dia abençoando botões avermelhados quase abertos já revelam semelhança com o brilho que caíra em noite anterior. Emocionante natureza faz flores gêmeas das Estrelas Cadentes viajantes solitárias sob encouraçado azul e tu com teu carisma cativante por um destino caprichoso chegas como extensão da estrela flor.

Jeremias Brasileiro jeremiasbrasileiro59@hotmail.com 46


Eu, Berenice. Com os dentes brancos, únicos e unicamente bonitos em mim. Assim sorrio cínica enquanto vou pela minha Via Crucis. Não é cristo mais. Agora, aquela que o espiava, aquela que entregou seu véu para que o homem deixasse seu rosto marcado no tecido, cheio de seu sangue e seu suor. À Santa Luzia eu vou, a das luzes, a dos olhos. Vou cega, arrancam-me os olhos, me puxam com bois. Outros fiéis seguem comigo, mas ainda não sabem de mim e de suas caminhadas. Esperam o céu, mas no final alcançam apenas o calvário. Blasfemo seu caminho santo e tortuoso, rei é o sofrimento que o homem passou. O meu pesar agora não é da carne nem do espírito, não sei nem ninguém sabe do quê. Do mediterrâneo volto para o sol seco do hemisfério sul, que retorce os galhos assim como meus pensamentos retorcem meus músculos. Não tenho inimigos, o único ódio que chega até mim é o de mim mesma. A grande cisma existe entre um e outro lobo cerebral. Minha paixão é a mesma, espadas, esponjas, vinagre, cuspes e pregos. Meu ritual é o da lágrima. Não tenho um pai que me olha de cima, mas tenho uma mãe que pensa em mim enquanto sofre, enquanto eu sofro. Aurora da Salvação. Além dela, com a graça e a bênção da Estrela do Mar: Rainha do Céu. Única mulher respeitada, único útero adorado. Via das Dores, do Perpétuo Socorro, Aparecida, eu vi seu rosto! Ele cura e acolhe. Eu tenho o rosto do seu filho! Ele é de sangue e suor, salgado. Ponho mais sal para doer mais, espero a cura. Verônica é a Berenice na América Latina. Tenho a vitória. Carrego o lenço do homem que chorou nas minhas mãos, e eu limpei. Ele, no caminho dele, cai e encontra sua mãe. Eu encontro ninguém, caio todas as vezes. Os movimentos são bruscos, todos que me acompanham sabem disso. Como o homem que me trouxe às imagens desde a infância, desato os nós da minha existência. Toco os pés das santas, recolho suas lágrimas e me banho nelas: sou também água de lágrima, benta. Carrego olhos numa bandeja, preciso de mais além dos meus. Oro por todos, penso em todos, morro por todos. Tenho a luz que me livra de todo buraco, de tropeço mal resolvido. De porta mal aberta, de escada mal descida. Dos fiéis que passam e pedem, eu sou mais um deles. Pago por um doce de açúcar, Cosme e Damião. Peso tanto que não conseguem me carregar: milagrosa. A ressurreição não virá, porém. Cacem e descubram minha morada, roubem meu país. Banhem-se nos meus rios, violentos: façam filhos nas minhas filhas. Clero, vomite o barro que nos enterra, prenhas. 47


Depois, morta, espero minha imagem num sudário. A prova de que minha oração é verdadeira. Creio no culto aos meus sofrimentos, um dia.

Jéssica Ribeiro jessica.campinas@gmail.com

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SOLO Ela acorda às sete, antes mesmo do celular despertar. Por alguns segundos, sente a paz. Gostaria de ficar mais algum tempo debaixo dos dois edredons e aproveitar o dia sem preocupação nenhuma. O celular desperta, a paz acaba. Levanta e coloca a água do café para ferver enquanto escova os dentes. Volta para o café e sua mente divaga por um tempo enquanto ela observa a água em borbulhas. Liga a TV e assisti ao jornal enquanto toma o seu café forte. É hora da caminhada. Começou a se preocupar com a saúde só nos últimos meses, depois de semanas com dores sem nenhum diagnóstico. Duas voltas no bairro. É o suficiente. O dia começa de verdade. A aposentadoria não bastava para sustentar as quatro mulheres da casa. As filhas, já adultas, ainda são dependentes dela. Só dela. O pai, há muito abdicou de seus deveres e acredita que R$ 200,00 é o suficiente para ser pai. Monta sua bolsa. Perfumes, lingerie, tapetes, cremes naturais. Vende de tudo um pouco, para no final do mês pegar até 30% de cada e conseguir completar sua renda. Anda a cidade o dia todo oferecendo o trabalho informal e porque não consegue ficar dentro da pequena casa popular. “Comi pé de cachorro” - brinca, toda vez que alguém comenta as suas andanças. Filha mais nova de uma família de 11 irmãos aprendeu a trabalhar cedo. Um trabalho que não pesa por sua tarefa e sim por sua finalidade. Desde pequena lava, passa, cozinha e abaixa a cabeça para os homens de sua família que acreditam ser donos da verdade. Casou-se aos 17, não queria mais viver na casa dos pais tão severos, queria viver a vida. O sonho de ser bailarina foi trocada pela vida na olaria. Cresceu, agora suas bonecas eram suas duas filhas pequenas. Descobriu que o pensamento do seu marido não era diferente dos seus irmãos. Ele trabalhava, ela cuidava da casa e das filhas. Até o dia que resolveu largar a situação. Momento turbulento. Rameira, puta, as filhas vão virar umas perdidas, renegou a deus, agora aguenta. Nunca teve medo de trabalhar e agora não seria diferente. Ela, com duas filhas, trabalhava o dia todo para sustentá-las. Tentava ter calma para lidar com duas filhas que não aceitavam o fim do casamento. Tinha de esconder os namorados das filhas, da família, da sociedade. O pai das filhas trabalhava o dia todo, ficava com elas um final de semana sim outro não, comprava presentes para tentar adula-las, falava mal da mãe; "mas eu dou pensão, sua mãe deve estar gastando com os machos dela". As lembranças vão embora. Hoje ela não esconde os vários namorados. É direito dela, é o corpo dela, não deve satisfação a ninguém. Volta de suas andanças, feliz por conseguir fazer o dia. Foi um dia bom de vendas. É hora de preparar o café forte, sentar, ligar a TV e ver sua novela. O dia já está acabando, se entretêm com as novelas, os vídeos de culinária, as conversas de Whatsapp. A filha chega da faculdade, ambas cansadas. Conversam brevemente, como todos os dias. O assunto da vez são filhos. 49


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Esperta é você, filha, que não quer ter filhos. É bom, mas é difícil. É bom mesmo, mãe? Você não dorme por causa da barriga, depois por causa das doenças, a rebeldia do filho, a juventude desviada. É bom? - É mesmo, será que é bom? As duas se olham e se entendem. É difícil ser mulher, é difícil ser mãe solo. Nenhuma queria que a outra entendesse esse sentimento.

Jhyenne Gomes jhyennegomes@gmail.com

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no poste/ duas casas de JoĂŁo de Barro/ rua iluminada

Joaquim Pedro Barbosa haimimjp@gmail.com 51


Rosa de Cordisburgo Rosa é Rosa puro espinho Espinho só pétala. Pétala em sua Matéria. Matéria só Fábula. Rosa da palavra Palavra que de simples, complexa. Que de clara, hermética. Que de presa metáfora. Palavra sem limites. Fronteira do que é hibrido e não tem fronteira. Semântica feita de sintaxes Rosa é o sertão E O Sertão, Vazio Intrínseco. O Nada em tudo, O deserto interno. Silêncio sísmico de um Deus de mãos trêmulas. Rosa é um cosmorama Um Topos inventado de geografia improvável. Um cosmos impossível. Logos só páthos. Rosa está escrito/inscrito Uma vírgula divide o mundo em narrativa sem ponto final. De eterna interrogação. Literatura Experimental. Empeiria Metafísica feita de Evidências e revelações Uma Gramática inerente. Língua laboratório. Miscigenação de muitos dialetos. Língua mestiça. Feita de traduzir o homem (animal Estrangeiro) Rosa é Mito Fausto que passeia entre os buritis. Bem e mal são labaredas. A vida é Rio que avança. Eis que um lago: Viver é um poema muito perigoso. Rosa é Poesia Poesia urdida no áspero do sonho. Na lógica de assombração. No artifício da natureza. Rosa é o dessertão. Sombras imaginárias. De arquétipos desesquecidos Rosa é cor. Mas não cor-de-rosa É Cor de deserto. Cor de vereda. Cordisburgo. Burgo que é o pós-sertão No sertão mesmo. Rosas não falam. 52


Rosa é silêncio. Às vezes sussurro, E sussurro é a lembrança do que jamais se soube.

Jorge Abrantes jorgeabrantes@gmail.com 53


Boa viagem Eu fui pru céu de Tático Móvel, O procedimento foi igual o de sempre: Empurram a gente pra dentro de um vaso; Cara enfiada naquelas nuvens sujas; Uns três perguntando sobre o caso; Um pinico raso; Um amontoado de infelizes merdas, perdas, Crack, seiva, prostituição de um corpo estuprador! Corpo cujas marcas eram vistas no querubim morto, E ele confessou aqui! Aqui dentro da nuvem, Foi ele! Perto de um Santo falou de nós, Próximo a este curral que estamos tem Um monte de tarado, seres depravados, tem Um monte de foto de anjas nuas, De asas de fora e cu macio. Cá estou no paraíso penal, lugar quente e sombrio, Pelo frio anal, cu na mão! Endereço – Vila de São José, perto do nimbo central, ao lado do cúmulo, Prá lá nos arrastaram Depois que matei São Pedro e Santa Rita, Depois de um duplo homicídio, Depois disso! Outros Santos me quiseram, A cabeça tava na proposta, Teceram até como seria meu estupro! Aqueles anjos vão me comer! Acaba que vou ficar na bosta! Eu não gosto, mas Ele gosta! 54


Meu rabo chorou, A piedade do juiz se findou, Percebemos o que acabou, Não, a ressaca nós não temos, findou! Neste horrível lugar de angelical tormento, Eis que a culpa nunca vamos pagar! Alguém nos marcou Numa saudade que destroça, Nunca mais ver o pavimento da minha roça! Tudo rodou! Maltratado? Nunca! “Escolhido” seria o termo propício, Um mero precipício, Na latrina daquele abismo, Deus simplesmente nos deixou.

Leon de Aguiar leondeaguiarpetufu@gmail.com 55


MARIELLE FRANCO Mataram Marielle Não puniram os culpados Ela lutava por justiça Para os povos negros da favela Marielle virou semente Virou placa de rua Símbolo da luta da nossa gente Ficou eterna em nossa mente Marielle Franco, presente!

Liliane Cirino psiqque2000@yahoo.com.br 56


GÊMEAS

Capítulo I

Lembro-me de ter colocado ração e água para a Perene, fazer um carinho automático na cabeça que não deve ter durado dois segundos e sair de casa para tomar o ônibus. As árvores não se moviam naquela manhã quente de novembro e pareciam nunca ter conhecido o vento em sua existência. Percebi assim que desci no meu ponto, como o céu estava completamente limpo, azul e sem emoção como eu nunca havia visto. A breve caminhada até a entrada do hospital, nesta altura, era uma espécie de castigo carregando aquela barriga enorme onde sentia o suor escorrer embaixo e por entre os peitos. O ardor das assaduras entre minhas coxas eram um lembrete do que o meu corpo era capaz de experimentar. Neste instante em que sentia o mormaço e via a entrada do hospital se aproximar sobre seu fundo azul, atentei-me para a completa ausência de excitação diante do que aconteceria em algumas horas, uma calmaria antes da tempestade. Meu nome é Liliane e tinha vinte e oito anos quando as meninas nasceram. Ofélia foi a primeira a ser retirada de dentro do meu corpo, através da cesariana. Era bem menor do que eu esperava, mas não conseguia entender com clareza se ela era realmente muito pequena ou se o corpinho que eu avistava forçando o foco de minha visão era resultado de alguma espécie de distorção causada pela anestesia. Que bichinho pequeno! Chorava gritando com uma força violentamente animal cujo desespero ainda ecoa em minha cabeça seis anos e quatro meses depois. Muito diferente da Virgínia que veio logo em seguida. Virginia era um pouco maior que Ofélia, pude constatar nos cuidados pós-parto. Saiu de meu útero em silêncio, levando alguns segundos para comunicar sua insatisfação em ser importunada dentro de sua própria casa. Seu choro parecia o de um gato muito novo. Alguns detalhes, se observados com perspicácia, vem antecipar coisas que existem somente enquanto potência, agora percebo. Virginia teve problemas intestinais seríssimos, cólicas que doíam até em mim e que exigiam cuidados que a época, pareciam que seriam eternos. Um sofrimento eterno. Pouca gente veio visitar. Meus pais e uma tia do Alagoas, o Fleury e sua família gigante que por misericórdia de algum ser divino foram embora rapidamente de volta a sua cidade e alguns amigos e amigas. Desde o início havíamos decidido que eu encararia a jornada praticamente sozinha. Fleury nunca quis as gêmeas, mas no final das contas decidira participar da educação das duas a distância, do jeito que desse, encaixando a convivência com elas entre seus compromissos e pesquisas e eu concordei. Tudo muito claro. No dia do nascimento, haviam três meses que não o via. Estava fazendo uma pesquisa sobre algo relacionado a “cura da alma”, algum ritual de passagem, coisa que nunca entendi direito, numa tribo indígena no Tocantins.

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Minha mãe e minha tia me ajudaram com os cuidados com as meninas nos seis primeiros meses. Prestaram um serviço cujo valor seria impossível mensurar: me ensinaram a como dar banho, embalar, como segurar, como colocá-las para arrotar. Como trocar as fraldas e esquentar uma mamadeira no banho-maria e até a melhor posição para amamentar. Cuidar das assaduras e cólicas da Virginia. Aprendi tudo logo na primeira semana e a ajuda era providencial, mas o que me interessava mesmo eras AS MENINAS. Como elas funcionavam e suas personalidades cujos contornos já nasceram com elas. Os sons que emitiam, a maneira como dormiam e acordavam, como movimentavam suas minúsculas mãozinhas, como observavam a movimentação a sua volta, como reconheciam minha voz e demonstravam isto com a pequenina descarga elétrica que parecia percorrer seus corpinhos ao me ouvir, mas o que mais prendia minha atenção, e eu poderia passar horas observando, eram seus olhos. Virginia tinha feições muito mais delicadas que Ofélia. Poder-se-ia afirmar que seus olhos negros eram cálidos, saturados de mansidão, talvez até um pouco sonolentos. Já os olhos de Ofélia eram incrivelmente grandes e despertos. Ela parecia saber de onde veio e para onde ia. Olhava-me de uma maneira que fazia um arrepio percorrer minha coluna as vezes. As duas sorriam com os olhos quando me percebiam e eu ficava petrificada sem saber o que fazer com a ideia do poder que sentia sobre aqueles dois seres indefesos. Os primeiros anos foram relativamente tranquilos e éramos praticamente só eu e elas. O Fleury aparecia periodicamente e se deu bem com as duas durante alguns anos. Mandava presentes indígenas e dinheiro todos os meses para vivermos uma vida confortável e para que eu pudesse me dedicar exclusivamente à elas, com uma distância segura dele. Sua ausência se pronunciou quando os distúrbios de humor começaram a aparecer, paulatinamente durante brincadeiras e a convivência cotidiana, cujo agravo se alastrou como erva maldita entre nós culminando no problema de saúde que me acomete hoje. Coisas se sucedem em dias aleatórios e conseguem esconder a magnitude de sua importância até que explodem na sua cara. O dia do nascimento de seus corpos foi um dia morto, agora eu sei. Cinco anos depois, minhas crianças nasceram. Elas nasceram em um dia de semana, em um clube modesto daqui da cidade, em um dia morno e cheio de sombras frescas de arvores variadas. O lugar estava quase vazio exceto por dois rapazes adultos que praticavam nado, alguns adolescentes brincando com uma bola na água e algumas senhoras idosas de chapéu que tomavam sol ao redor da piscina principal, besuntadas em simpatia e protetor solar espesso e amarelado que estacionavam em meio a suas rugas. Organizei nossos objetos em uma das cadeiras de praia sobre a grama que havia no entorno da piscina e entramos. Primeiro eu e depois, com alguma relutância Virginia, encaixando suas perninhas envolta do meu torso e abraçando-me na altura dos ombros com um sorrisinho de nervoso causado pela água fria. Olhei bem fundo nos seus olhinhos negros e brilhantes como duas pedras de obsidiana e devolvi o sorriso. Ofélia pulou direto dentro da piscina provocando uma pequena explosão, jorrando água fria em nossos corpos que se apertaram brevemente entre si, fundindo-se em um só. Veio em nossa direção 58


movimentando-se desarticuladamente até tomar o lado vazio de meu torso, que lhe era de direito. A vegetação rica do clube era verde reluzente e haviam plantas ornamentais com flores de cores variadas, distribuídas entre outras plantas sem flores e menos nobres. O azul da piscina, mais claro que o azul do céu do dia coalhado de nuvens que pareciam saídas de um cartoon americano infantil. Dois modestos altofalantes, estrategicamente instalados nas extremidades da piscina principal transmitiam uma rádio em altura ideal. Percebi, no momento em que as meninas estavam completamente atreladas ao meu corpo, no momento em que todas estavam finalmente confortáveis e nos movíamos em câmera lenta pela piscina que os alto-falantes nos cantavam So Happy Together, como se nos conhecesse. Tudo fazia sentido e nada estava fora de seu lugar: os meninos jogando bola quase que em silêncio, os rapazes praticando diversos tipos de nados, as senhoras deitadas nas cadeiras de praia com seus maiôs estampados e chapéus repousados sobre seus rostos besuntados de protetor solar, o céu de cartoon americano, as árvores e plantas que se moviam e brilhavam no mesmo ritmo que nós, o vento calmo que afagava, o momento epifânico da música que se fundia a felicidade igualmente epifânica que eu sentia fazendo com que me movesse para fora da órbita do sistema solar. Tinha certeza absoluta de que não havia conhecido a felicidade antes daquele dia.

Luana Angélica falecomluanabanana@gmail.com 59


somos seres sozinhos sambando sempre sozinhos salivando sobre sapos sendo suprimidos sabotados saindo sem sermos salvos sonegando a sabedoria sendo sátira da soberania soterrados por salários safados sequestrados sem saber se já é sábado sequelados simulados sistematizados a sermos sombra sobreviver a essa sangria santa satânica segregados os semelhantes soro, sangue, sémen separa que a sobra é sua some sirene salta a sensatez e sempre se lembre a solidão é pra sempre

Lucas Simon lucassimonla@gmail.com 60


Luciano Ferreira lojuara@gmail.com 61


quando em poesia tropeçar por acaso ou por descuido aborte o juízo perverta a lógica subverta a métrica provoque a ética quando em poesia tropeçar: caia.

Luiz Henrique Coutinho luiz.h.gi@hotmail.com 62


QUEM ME VÊ, QUEM ME VINIL Meu lado B Não se encaixa Em nenhuma faixa Do meu lado A Meu lado B, Se A em mim, Portanto, É Não A A fissura na minha existência É Ranhura da experiência Que me move, Me comove E Me devolve Owh = resistência A trilha sonora Da minha, imagina som É grave É greve [compacto em breve] Na corda tênue da minha vida bamba Aquilo que soul (Óh, Djeus!] Grunhe Groove, Samba 63


Estéreos Dos Histéricos Eus De outros Mundos De outras bandas

LuiZerah luiscavh@yahoo.com.br 64


ENXAQUECA o celta chegou no posto onde estava o amigo flavão era seu dia de folga me chamou para uma curtição deixei o carro estacionado fomos no dele alucinado atrás de um puteiro eu não tinha dinheiro só o flavão! ele escolheu uma puta eu pedi um litrão flavão meteu e eu bebi saímos da zona com uma latinha já descemos direto e reto pras bandas do Lagoinha flavão comprou 50 reais de crack e como um baque subimos ao monte hebron só o som do bom chegamos no apartamento de uma velha craqueira na casa um cheiro violento de mijo de gato não havia móveis só uma cama e uma tevê no quarto da velha craqueira que me ensinava o cachimbo acender flavão mordia a cara olhando pela janela da sala a gente no quarto chimbava e não dizia uma palavra acabou tudo e vazamos entramos no carro e deslocamos para o posto novamente 6h da manhã peguei o celta e parti a luz do dia já cortava a noite testemunha de tudo que vivi. Manuel Veronez junexblacklabel@hotmail.com 65


Rebolar à beira do abismo, palitar os dentes do Leão, encapar batatas quentes, entre outras atividades ingratas— Poucos anos, só o cansaço comedido restará pelas ruas da cidade. Será o início de nossa estrondosa fuga até o primeiro mirante Onde, À distância incalculável de horizontes, é tudo planura e as pessoas Como formigas, Nunca brigam ou sangram. Nada recordam ou recobram. Não recorrem insistentemente à justificativas de toda ordem nem se gastam em buscar a paz possível por apenas existirem. Toda ausência é perfeitamente ignorável e os sentidos quase não angustiam Quando Ansiedade e Palavra, amáveis desconhecidas, não mais recobrem O abismo, o Leão, as batatas E cada dente que palito, ingrata planura pessoal, vai Insistente formiga, rebolando fugitiva desde o início E até— 31.10.18 02.11.18 30.11.18 marcus vinicius

marcusviniciuskp@gmail.com 66


Sobre poetas e olhos Perigoso de poeta é se afeiçoar à dor É adotar a tristeza porque sabe que é bonita É acarinhar as pequenezas sombrias da alma E cutucar as feridinhas pra sangrar no papel... Perigoso de poeta é achar que os calabouços de seu universo São maiores que os do mundo Se alimentar de verso Esquecer de levar a namorada no cinema Não cortar os cabelos por esquecimento Não abrir a janela ou pôr flores sobre a mesa. Perigoso de poeta é perambular sozinho Com um cachimbo dependurado na boca Na companhia silenciosa do vento Embranquecendo os cabelos e perdendo o ônibus... É furar um olho e poder ver de lado o mundo Gastar mais a vida de dentro que de fora Amar mais no papel. Presta não ter um olho só Que adianta ver infinitos Se a existência acontece é no intervalo do que acaba? Acontece é de fora, também... E perder a festa? Ficar olhando de longe, caolhamente, só pra escrever sobre? Presta não ter um olho só só um olho É perigoso... é indigno... caçar metáforas e perder a vista É desperdício vida vazando pra dar lugar à palavra E quando todas as línguas são esquecidas? E quando todos os códigos enferrujam-se? E quando todos os dialetos são esquecidos dentro de um abraço? Olhos: quero os dois.

Maria Lyra mariaclaudialopes9@hotmail.com 67


Tenho arrancado sistematicamente dois ou três fios brancos de cabelos Nascem indiscretamente cinco ou seis fios no topo da cabeça Fios brancos no topo da cabeça ao pé das sobrancelhas A cada volta no Sol aumenta, progressivamente Branca cabeça Jovens compram bebidas Baratas No supermercado Trago para casa Pão com manteiga Ao redor da cabeça Novos fios brancos Nascem Geometricamente

Mariana Anselmo contato.marianaanselmo@gmail.com 68


Poesia MARvaGINAL Poesia marginal Parida pelo canal vaginal Se o que faz é autoral Assine como masculino Pois para o feminino Resta o silenciamento O apagamento O excremento De estar a margem Não sou a primeira Nina Não sou a última Leila Force minha desistência E lide com minha resistência Faço da arte minha residência Saiba, além de mulher sou semente Senhor descrente, teu sangue verte dor. O meu verte amor. Tudo que compõe, Tudo que expõe Eu o faço com maestria Não aceito que remeta a histeria! Enquanto o sangue da vida escorre por minhas pernas Nenhuma porta nos foi aberta Mas todas as portas serão arrombadas.

Maya Pires mayasp99@gmail.com 69


eu nรกufrago em seu peito deserto

Muryel De Zoppa muryeldezoppa@yahoo.com.br 70


Nós somos o trânsito nós que paramos o trânsito, conseguimos notar que nos tiram o caráter de sujeitas para permanecer objetos? conseguimos perceber que suas buzinas gritam pelas nossas ancas não pelos nossos turbantes? conseguimos sacar que em suas bocas só cabem nos chamar "morena" como se nossa cor fosse vergonha? já perceberam que eu tô nervosa e que a culpa é deles? nós que paramos o trânsito, sabemos que nossas veias são guiadas por axé ancestral e que tudo se tornou uma busca? definimos nossa vida como nossa, enquanto eles esperam que saibamos como resolver a deles rastreamos a felicidade, só que para chegar até ela temos que mostrar que somos super mulheres super mulheres negras que não podem chorar que não falam de si que ouvem não em quase toda esquina. o sim chega de madrugada, quando não segura minha mão em público e não podemos ser visto juntos o sim diz que eu não devo parar de esperar o sim só sabe me dizer não nós que paramos o trânsito, sabemos que a vida afetiva de Lélia se parece com a de Djamila e que a vida afetiva de Elza se parece com a de muitas pretas retintas? nós que paramos o trânsito, somos vitrines de balada, bibelô de calçada, por todos elogiadas, mas preteridas na entrada. somos a margem aliada ao concreto: o afeto repleto de dialetos resumidos em dejetos que estreitam nossos elos de amor nós que paramos o trânsito, 71


desejamos ser vistas olho a olho, tocadas, mas não só quando nossos blacks estão armados desejamos que a nossa identidade seja aceita, não questionada quando fugimos da colonização nós que paramos o trânsito, queremos ser iguais no tratamento, não que sintam medo por parecermos fortes, potentes e falantes. queremos que nossos iguais nos amem, que nossa intelectualidade seja baseada em desconfiança, não queremos que nos vejam como cuidadoras, não queremos que enfraqueça nossa luta nós que paramos o trânsito, sonhamos em como nossa liberdade poderia ser nossa sonhamos em ser pessoas antes de figuras carnavalescas sonhamos que as diferenças não sejam percebidas pelas estruturas de raça e gênero que maltratam nossas irmãs sonhamos que o sol nasça novamente com a certeza de que... se for para parar o trânsito, que seja com tsunamis, terremotos e tempestades de palavras embriagados por luta e resistência que sejamos como Luiza, Teresa, Dandara que pensamos como Lélia, Beatriz, Conceição que cativemos como Glória, Thaís, Zezé e que Iansã nos traga a força para soprar um vento de parar o trânsito na cabeça daqueles que tiram toda autoestima de cada preta seguir na luta, nos espaços e na tão sonhada liberdade.

Priscila Argolo priscilargolo@gmail.com 72


CURTO POEMAS CURTOS

A MOR TE DAREI A VIDA

A VI DA É DI VI DI DA EM DÁ DI VAS DÚ VI DAS E DÍ VI DAS DU VI DAS ?

Ricardinho fodadeesquecer@gmail.com 73


nove da manhã de uma quinta-feira Que seja encontrado, num banco de praça pela mais triste estudante do 9ºano no dia em que terminou com seu namorado, Leozinho Que seja largado em banheiros de rodoviárias, albergues e casas de abrigo, que tenha suas folhas rasgadas pra alimentar o fogo de todo um povo numa noite fria Que pedreiros o leiam enquanto esperam, sob andaimes e marquises a chuva torrencial cessar para voltarem ao trabalho erguendo mais um condomínio horizontal com vistas para o Dom Almir Que as putas o folheiem, com seus dedos angulosos entre uma foda e outra, enquanto vasculham no espelho suas coxas em busca de celulites ou imperfeições Que inspire revoltas nos subjugados, e que o mais alto comando militar instaure um alerta vermelho sobre sua periculosidade lírica e institua um secreto Comando de Caça aos Poetas (CCP) Que na Livraria Saraiva, o público comece bovina e lentamente a se levantar ao ouvir os poemas, durante uma leitura pública feita por mendigos crackeiros Que seja arremessado, como bomba, coquetel ou pedra contra as grades de ferro da prisão e contra todo um batalhão da cavalaria numa avenida tomada pela indignação e pela fome Que se torne moeda de troca nos presídios, como os cigarros, as bebidas, a pornografia ou as drogas, e que queime junto com colchões no dia da mais violenta rebelião Que os luminosos da Broadway ou da Praça Roosevelt, explodam sobre as cabeças enevoadas dos ‘críticos do jardim de infância’ e que sintam, antes de dormir, calafrios ao ouvirem meu nome sendo esconjurado várias vezes no programa ‘fala que eu te escuto’ Que nas bocas de fumo, os viciados atinjam seu alívio trocando algumas páginas por petecas e pinos, e que os gerentes presenteiem seus filhos, matriculados nas séries iniciais de alfabetização, com essas mesmas páginas arrancadas E que lixeiros o encontrem, como um tesouro desconhecido, soterrado nos entulhos em frente ao parque municipal e gritem seus poemas como árias de uma ópera subterrânea e suja durante toda a noite, enquanto recolhem pelas ruas nossas almas, fechadas em brancas sacolas plásticas de supermercado circundadas por moscas varejeiras E que cada poema encontre um abrigo, um corpo uma boca, o colo de um anjo imundo e perdido e que seus beijos sejam longos e turbulentos Robisson Sete robissonhotelsete@gmail.com 74


Após um espetáculo... Quantas cambalhotas... Tive eu nessa vida, Pra hoje ter minha alma partida, Perdida e sem porta. Quantas piruetas... Resistir sem transparecer estar triste, Pra hoje acordar e perceber que isso insiste, Que eu seja só um mero e fugaz poeta. Quantas crianças adormeceram lembrando de mim... E sonham com o tanto que riram, É de fato algo que em mim elas admiram, Mas isso não tem força de florescer meu jardim. Somos feitos pra graça! Somos feitos de aço, Purpurina e gargalhadas, Somos seres que não se ferem, palhaços! Mas hoje, vejo e sinto que tudo, se embaça, Pois tenho em meu peito uma alma quebrada. Não sirvo mais de brinquedo... Não tenho mais o encanto, Perdi minha essência, meu enredo, Perdi minha Alegre maquiagem com o pranto. Portanto... perdi você, que era fonte de luz e calor... Por causa de uma pequena ferida, Que foi se alastrando por sobre o amor, Deixando desmotivada essa minha arte de vida. Devo morrer agora!

Robson Camilo pescadorpoetico@gmail.com 75


Dormiu de toca por faísca de Ilusão, Uma fagulha. Alvo Brando. Areia transversa a tecer Sonhos que vai querer sonhar de novo. Para cura de expostas feridas, Nada melhor que poeira de flores secas... Enquanto riem belos os anjinhos fumantes Que dão tchau, Para onde você vai quase todos Os dias?!?

Rodrigo Semfim noisemoscada@gmail.com 76


Em meus poemas nunca uso a palavra Amor porque nunca o vi, nem conheci esse Amor que chamam pelo mesmo nome, Amor, que fala dessa coisa abstrata que não se pode tocar, nem desenhar, que não tem cheiro, e não tem cor prefiro nomeá-lo Cadeira, onde eu me possa sentar às vezes lhe chamo Rua, mas prefiro Casa o abraço na forma de Mãe, e também de Pai observo ao longe como Nuvem, e deixo passar imagino a correr como um Menino, e tem meu rosto de manhã me acorda Luz a contragosto durante os dias me surpreende a cada esquina e me acalma a alma nos beijos de uma Menina de madrugada me acorda latindo para o portão e me traz a dúvida entre um sim e um não por isso não sustento a palavra Amor melhor representado como Corpo, Céu ou Chão esse Amor que só se sabe ser, sendo Outro como um ator invisível que só pode ser visto refletido naquilo que aponta com a Mão.

Samuel Giacomelli s.giacomelli@gmail.com 77


Papéis de gênero A mãe era virgem O pai, criador Ela era doce Ele, juiz de todas as coisas Ela, vagina intocada Sempre Ela, santa Ela, mãe Mulher, Serve a um Ele Todo Poderoso Ela, hímen Ámen.

Sílvia Martins silviamartinsparreira@gmail.com 78


Poesia De mão em mão Quando e por que, em que parte entre o céu e a terra a política viveu esse turbilhão de abraços, de beijos e de lágrimas com tanta tristeza e tamanho calor? Onde, em que hall de um palácio do mal em que masmorra fria outro povo tocou chorando e beijando tanto assim essa democracia? Logo logo num cordel outro poeta Maiakovski mais inciso vai te contar que aprendeu nesse instante sem igual que num país de poucos, com muitos sem-terra, sem nome sem força e sem pão, surgiu uma história ainda maior que uma prisão. Coiotes zumbis dos States, com chips e fakes e seus coiotes coligados, enfurecidos e enlouquecidos de outros infernos do aquém vieram mais uma vez ferir todo mundo (no corpo de um homem agora acariciado de mão em mão) e para quê? pra se fartarem dos seus despojos, que são: Amazônia, nióbio, petróleo, água, sol, vento, ouro, diamante, cassiterita, urânio, esmeralda, soja, milho carne, laranja, liberdade e feijão tudo somado, setenta e sete por cento do PIB do mundo porque não? Mas nos porões de um corredor escuro fiapos brancos de um Lula forte tanto na sua tristeza, quanto antes na sua alegria, ruge e resiste 79


viceja e voa. por isso é hora de secar as lágrimas, arrumar a matula fincar o pé na estrada com a velha camiseta da cor da vida bater na porta do sindicato, da associação, do diretório acadêmico do partido, da universidade, de cada canto de uma fábrica, pátio, sala cozinha ou galpão. Conversar, debater, entender, organizar, discordar, acordar e tomar o rumo do palácio no planalto central, de assembleia em reunião de palestra, de plenária em manifestação 2 milhões de vozes x canhão. E avia, avia revolução que a nação está aqui, aí, lá, acolá e cá nas linhas dessa mão que ninguém vai soltar de outra mão.

Tânia Martins taniamartins.m@hotmail.com 80


Fluído Ela com seu olhar Onde mergulho profundamente em Águas mansas e tranquilas Menina das pipocas ao luar Nossas conversas gostosas Musa das viagens siderais Ela. Leve, diferente Parece que o tempo passa, não vejo, passou sem pressa, sem espera... Um sopro, um vento suave Nas flores, no sol, no concreto, que expande até o céu, na cidade que corre No friozinho que quero teus beijos O riso solto e fluído Feito comédia romântica Sua volta ao mundo e histórias me alucinam Teu sorriso que vibra no ar Ata-me Vontade de mais além de beijos Sua voz lindeza, delicadeza em tons azuis violáceos Mistérios que desvenda aos poucos Como uma paisagem esperando ser desbravada Ser livre, libere Sua pessoa que espero, convite, convoco, encontro Esteja... já é Desliza como um canto de um rio Ligada nessa conexão boa, Vibrato Sonoris dos campos verdes, som do verde Mar Num afeto de ter seus sorrisos, com asas Nossas conversas se acaloram E os dias passam E ficam mais doces.

Tatiana Brissard bri37zen@gmail.com 81


Da alma pra folha é meia polegada Veneno no escapamento, descartes humanos inundam cidades apenas entupindo bueiros. A chuva ácida nada mais é do que as lágrimas de desgosto que escorrem de meus olhos vermelhos Reflexos no espelho é o que mais vejo, de gente que se mata e morre todo dia, o dia inteiro. Nas igrejas, vielas e becos, postas de joelhos pela mesma lei que prende inocente e autoriza desgraças praticadas por políticos, policiais, padres, bispos, pastores e obreiros E ainda botam a culpa nas chamadas comunidades, dizem que lá que é o berço da criminalidade. Vivendo as margens dessa escrota sociedade, na terra em que cidadão de bens mata cidadão de bem, eles promovem chacinas em nome de vossa santidade, Apartheid, escravidão, campos de concentração, modernas formas de matar honrando a velha inquisição. Saqueadores seculares, descasos milenares. Quem dera se fosse só aqui, mas são em todos os lugares E ares e azares de centenas de milhares de vítimas e marionetes das cobiças de Ares. Somos desafortunados habitantes dos Campos Asfódelos sendo massacrados por prisioneiros do submundo Tártaro Frutos do fascismo e do descaso dos monstros que nos matam com calma Psicopatas homicidas, seus heróis são oferta ao submundo, porém em vida Com a moeda sobre os olhos pagando a Caronte com a alma Eles matam por dinheiro, eu salvo por compromisso Fazem o bem olhando a quem e eu sem nenhum interesse em lugar garantido nos Campos Elísios Eu não preciso disso, eu não quero nada disso. Eu não preciso disso, eu não quero e nem preciso Luto por amor ao ver sorriso, eu sou viciado nisso Viva sem racismo, viva sem xenofobia, viva sem machismo ou outro qualquer tipo de preconceito. Viva sem homofobia. Respeita as mana, os mano e as mina Não critique, ajude. Faça a diferença, mude. Não seja hipócrita como esses caras que espancam estuprador, mas fica dando em cima de mina que tem idade pra ser sua irmã mais nova e até mesmo a sua filha. Eu não julgo, não sou ninguém e nunca tive a intenção de ser. Vim apenas pra conscientizar, falar o que cê tem medo de dizer. E por mais que não queira me ouvir, o que todos chamam de minha arte vai tocar você Para pensa e vê se não fode, se você é muito burro pra entender metáforas não sacaria quando digo que quem nasceu pra ser discípulo de Hades nunca entenderá o que diziam os ensinamentos de Toth Sem truque de mágica nem falsa abra cadabra, vocês são tão burros que fingem não enxergar os motivos que levam os povos às Diásporas. TheBlackCat satanas616134@gmail.com 82


Enquanto dorme Às vezes, vez por outra, é verdade, e menos vezes do que deveria ter feito, eu te observava dormindo. Tenho pouco sono na maior parte do tempo, é muito fogo correndo nas veias, tem época que preciso de poucas horas de descanso, você bem sabe que caminho na madrugada. Mas aí eu acordava e ficava te olhando, em mínimos detalhes de cada polegada, que eu sempre conhecia e sempre desconhecia em carinhos. Como homem, eu tentava farejar, sentir e adivinhar seus desejos, e me antecipar um pouquinho. Às vezes conseguia, às vezes não. Mas ali, desarmada, você é que me desarma. E se vira e eu te aconchego no meu peito, do lado esquerdo, você ouvindo as batidas do meu coração e eu me perguntando o que aquilo causava nos seus sonhos. Me acaricia os pelos no peito e só então eu noto que você pintou as unhas. Ficou bom, vou lembrar de te dizer quando estiver acordada, mas sempre esqueço. Faço carinhos suaves no seu rosto, tem uma penugenzinha leve na sua face, perto das orelhas, que só se sente na ponta dos dedos. Passo ao carinho relaxante na sua sobrancelha, uma espécie de cafuné, que eu acho que só eu faço, e tem aquela sua cicatriz ali, da infância, nunca soube exatamente que peraltice causou aquilo. Pequenina, na sobrancelha esquerda, mas dá pra ver e acho um charme. Dormindo, cansa do metrônomo descompassado do meu coração, se desvencilha e vira de costas. Ah, as pintas. Tem essa grandona no seu ombro direito, logo depois da curvinha que marca a posterior no hemisfério do corpo. É segredo, mas já contei suas pintas, uma por uma, brincando de jogo da memória. Agora mesmo, posso fechar os olhos e me lembrar de cada uma, lugar e tamanho. Já imaginei um War antes de te beijar: pegar a carta de “dominar seis territórios com vinte beijos”. Prazeres meus. E sua pele, macia, com um cheiro quente. É assim que se definem cheiros, com os outros sentidos. Sabe que eu sempre pirei em te ver saindo do banho? Era aquele ritual de toalha na cabeça, passar creme no corpo (tinha um com cheiro de torta de limão), se ajeita aqui e ali, veste a camisola, ou um shortinho, ah, delícias de um striptease ao contrário. Observava e imaginava você crescendo e aprendendo a se cuidar, como foi isso? Sai pra lá que é segredo, eu me encanto com esses mistérios femininos, que continuem mistérios. Agora, nessa noite de lua alta e postes acesos, luz branca entrando na janela, dá pra ver as marquinhas que o lençol amarrotado deixa na sua pele. Leio como se lê adivinhações, como se lê um mapa. Esperança pra esse marinheiro vagabundo em busca de tesouro. Tem noção da sua importância pra mim? Ah, mas você dorme, e o mundo que se exploda, é justa tua parte no descanso. É asso, como posso dizer, você é Iemanjá nesse mar adentro da vida. Piegas demais, mas sincero. Tenho sorte, grita algo em mim. E há minha mania de te abraçar por trás, de conchinha, a malandragem de um braço por baixo e outro por cima, as mãos nos seus seios, pelos das minhas pernas roçando nas suas, luxúria e aconchego, de safadezas tenho um repertório. Abraço como se nuca fosse partir, corpos viciados e almas em busca de um acerto. Meus olhos marejam, “Que foi?”, finjo que é alergia, te aperto em mim e durmo. Thiago Carvalho insidemidia@gmail.com 83


ValtĂŞnio SpĂ­ndola valtspindola@gmail.com 84


Escritas em lápides

No sonho louco De pontes quebradas Caindo no penhasco Espadas afiadas Monumentos de arte Escrita na pedra fria Desenhos floridos Reluzindo nas estrelas Imagens distorcidas Incrustadas no céu de anil Explodindo fogo no ar Por meio de balas de fuzil Nas favelas de ruas estreitas Labirintos que sobem e descem Um grito, eco da morte No silêncio das mentiras O samba louco continua Produzindo mais estrelas Nos carros alegóricos O canto esconde e mutila A espera da pacificação Escritas em lápides enfeitadas Das mortes em monumentos Nos sonhos de cada dia As pessoas ficam esquecidas Nas manchetes de jornais Lembranças despedaçadas

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Rasgadas no corpo da gente.

Welington Muniz – Murito ribeiromuniz1950@gmail.com 86


Baby, Já sequei a garrafa de Jack Daniels que compramos naquela noite em que dormimos no quarto doze do motel Delírius. Foi a primeira vez que sussurrei em seu ouvido “eu te amo”, “eu te amo”, “eu te amo”, enquanto a rádio AM tocava uma versão lenta de “Don’t Let me Down. I guess nobody ever really done me, oh she done me, she done me good.”. A garrafa de Jack Daniels, agora seca, virou morada para duas margaridas brancas (suas favoritas) que roubei do jardim daquela minha vizinha velha que você acha parecida com a Glória Menezes. Aliás, você tinha uma teoria de que a Glória Menezes sempre foi velha. Dizia isso e depois ria, ria esse seu riso gostoso. Já troquei três vezes as margaridas. É... Faz tempo demais, baby. Faz muito tempo. Desde que você saiu de casa pra morar com aquele argentino que vendia empanaditas no nosso bar favorito. Hermano hijo de puta. Voltei ao nosso bar favorito, fui lá dia desses. Pedi uma dose de Mojito – preparado com Soda, como você gosta, e caí no choro. Chorei pra caralho, bebi pra caralho, chorei pra caralho. E acordei na cama daquela menina de cabelo esverdeado que sempre me pedia o isqueiro emprestado e você detestava. Saudades até do seu ciúme, baby. Queria saber todos os meus passos, todas as minhas senhas. Por falar nisso, não troquei até hoje a senha do Facebook, só pra você entrar e dar de cara com minha solidão. Talvez te comova. Sinto sua falta, baby. Sinto falta do seu corpo. Cada pedaço, cheiro e gosto. E tenho certeza de uma coisa: as lembranças que tenho não bastam para confortar meu peito dilacerado. Nunca favorecem. Pelo contrário, servem apenas para aferroar as aflições de quem está condenado à doença do amor não correspondido e todos os seus sintomas. Para terminar essa carta de amor ridícula, como disse certa feita aquele poeta português. Acrescento: além das cartas de amor serem ridículas, todo homem apaixonado é um ridículo, o seu amante argentino é um ridículo, o namoro que estou começando com a menina do cabelo esverdeado é ridículo, essas palavras são ridículas. O amor é ridículo. Mas aquele beijo que você me deu, baby, dói até hoje.

Zé Alfredo Ciabotti josealfredociabotti@gmail.com 87


Leia no volume mรกximo, em alto e bom som. 88


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