O Paraíso do Diabo

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Walter Hardenburg Traduzido por

Hélio Rocha

O Paraíso do

Relato de Viagem e Testemunho das Atrocidades do Colonialismo na Amazônia

São Carlos Editora Scienza 2016


Copyright © 2016 - Direitos da tradução reservados à Hélio Rocha. Todos os direitos reservados - A reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio deste livro só é autorizada pelo autor. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Esse livro é uma tradução realizada por Hélio Rocha da obra original intitulada The Putumayo: The Devil’s Paradise do autor Walter Hardenburg

Hardenburg, Walter The Putumayo: The Devil´s Paradise / Walter Hardenburg – traduzido por Hélio Rocha; São Carlos, 2016. 222p. ISBN 978-85-5953-002-5 1. Relato de viagem. 2. Amazônia. 3. Putumayo. 4. Colonialismo. 5. Barbárie. I. Rocha, Hélio. II Título. CDD 980

Revisão: Fernando Simplício dos Santos – UNIR Miguel Nenevé – UNIR Maria Eliése Gurgel – SEDUC-RO

Rua Juca Sabino, 21 – São Carlos - SP (16) 3364-3346 | (16) 9 9285-3689 | (16) 9 9767-9918 www.editorascienza.com.br gustavo@editorascienza.com


Sumário

Nos Rios Amazônicos do Não-Direito...................................................... 5 Introdução............................................................................................... 11 Capítulo 1 As Nascentes do Putumayo........................................................................ 37 Capítulo 2 O Alto Putumayo...................................................................................... 59 Capítulo 3 O Médio Putumayo................................................................................... 75 Capítulo 4 Os Huitoto................................................................................................ 95 Capítulo 5 Viagem ao Inferno................................................................................... 113 Capítulo 6 Os Crimes do Putumayo......................................................................... 145 Capítulo 7 O Relato de Roger Casement................................................................... 175 Palavras Finais........................................................................................ 221



Nos Rios Amazônicos do Não-Direito1 O fim da colonização deveria trazer liberdade e prosperidade; o nativo daria origem ao cidadão, senhor de seu destino político, econômico e cultural. Após décadas escondida, sua nação enfim desabrochada afirmaria sua plena soberania; opulenta ou indigente, desfrutaria os produtos de seu trabalho, de seu solo e de seu subsolo; seu gênio enfim restituído ao seu curso natural e o uso de sua língua recuperado permitiriam a expressão e o florescimento de sua cultura específica. Albert Memmi – Retrato do descolonizado

R

aramente havia sentido extremo desconforto, repulsa e a premente necessidade de tradução interlingual durante a leitura de algum relato de viagem que tem como ambiente a América do Sul. Uma quantidade significativa desses relatos simplesmente aclararam minhas ideias e suspeitas a respeito do discurso colonial que ainda nos avilta em suas atribuições de sentido às paisagens e às representações da alteridade, de seus costumes, de sua língua e de suas demonstrações culturais. No entanto, The Devil’s Paradise (O Paraíso do Diabo) foi capaz de me fazer reviver toda a barbárie vivida pelos indígenas do Putumayo. Jamais testemunhei qualquer uma das atrocidades descritas por Walter Hardenburg em seu relato de teor testemunhal. Não há necessidade de espraiá-las aqui, pois o próprio Hardenburg as expõe depois de um retrato artístico das imensas regiões aquíferas do vale amazônico. É como se, antes dos umbrais do inferno, existisse um paraíso. Se esse não for o caso, a abundância de vida no vale amazônico descrita pelo viajante ao menos alimenta a alma do leitor e o faz transbordar de alegria e satisfação diante das paisagens e riquezas naturais proporcionadas pela Providência aos seus filhos.

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Devo este título ao autor desta epígrafe.

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Walter Ernest Hardenburg (1886-1942)


Nos Rios Amazônicos do Não-Direito

Todavia, como professa Albert Memmi, a máfia espreita essas riquezas, porque, como se sabe, “o nepotismo é um dos traços específicos dos regimes mafiosos” (MEMMI, 2007, p. 29) e, diante de um contexto histórico de regime opressor, é preciso que alguém levante sua voz contra ações desumanas, como fizeram o peruano Benjamin Saldaña Rocca, o irlandês Roger Casement e o norte-americano Walter Ernest Hardenburg; é sobre esses três que escrevo alguns parágrafos. Walter Ernest Hardenburg nasceu em 1886 e faleceu em 1942; era aventureiro, missionário e ativista abolicionista lembrado, principalmente, pelas denúncias das atrocidades contra os indígenas da região do rio Putumayo, no Peru, cometidas pela Peruvian Amazon Company, uma empresa de Júlio César Arana (1864–1952), nos últimos anos do século XIX e primeiras décadas do século XX. Hardenburg cresceu e estudou em Youngsville, Carolina do Norte, EUA, numa comunidade religiosa Metodista. Após a conclusão do Ensino Médio, em 1903, trabalhou na marinha dos Estados Unidos, mas logo foi procurar riquezas como handy-man (“faz-tudo”) no Panamá, no início da construção do canal; e devido à instabilidade política e aos baixos salários, Hardenburg tentou arranjar emprego na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em construção desde julho de 1907. Assim, a 1º de outubro do mesmo ano, partiu de Buenaventura, porto marítimo da Colômbia, rumo à Amazônia brasileira em companhia de seu amigo W. B. Perkins. O plano era chegar ao Brasil no início de fevereiro e “ganhar a vida” vendendo mercadorias para os indígenas e colonos. O negócio não logrou sucesso e em janeiro de 1908 os dois viajantes tinham chegado tão somente ao Putumayo colombiano, na fronteira do Peru, numa região incorporada à economia do boom da borracha, sob o domínio da Peruvian Amazon Company, de Julio César Arana, quando caíram nas mãos dos racionales e dos capatazes da referida companhia. Este livro é fruto de suas aventuras e desventuras pelo rio Putumayo e seus dois afluentes, o Igaraparaná e o Caraparaná. O Paraíso do Diabo “começa de forma descuidada, como um divertido relato de viagem, e nada de diabólico existe nas primeiras páginas”, afirma Anthony Smith em seu livro Os conquistadores do Amazonas (1990). Entretanto, mesmo concordando com a afirmativa de Smith, acredito que uma leitura minuciosa da obra leve o leitor a perceber que a morte do ciclo da borracha na América do Sul e, especialmente, na Amazônia peruana, colombiana e brasileira também esteja diretamente ligada a três jovens, Benjamin Saldaña Rocca, jornalista peruano, Walter Hardenburg, aventureiro norte-americano e 7


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Roger Casement, um irlandês, que, por meio de suas denúncias, conseguiram fazer com que o mercado europeu e norte-americano se dirigisse para outro lugar em busca do produto gomífero. Ao jornalista peruano devem-se as publicações das primeiras denúncias sobre as atrocidades cometidas contra os povos indígenas que habitavam as extensas regiões do vale amazônico, especificamente as terras banhadas pelo Putumayo e seus principais afluentes. Como editor do La Felpa, jornal da cidade de Iquitos, Saldaña Rocca publicou vários artigos acusando a empresa de Arana dos mais terríveis assassinatos e flagelos dos índios Huitoto, Bora, Andoke e Muinane, que eram caçados como animais selvagens, subjugados e forçados ao trabalho escravo no corte e produção da borracha. Roger Casament que, antes de tornar-se cônsul britânico e trabalhar em Santos, Rio de Janeiro e Belém do Pará, no Brasil, trabalhara na Associação Internacional do Congo e foi ali que despertou para os males da colonização, quando “em junho de 1886 foi formada a Stanford Exploring Expedition (SEE) para comercializar marfim, goma de mascar, borracha, azeite de palmeira e cobre em todo o Alto Congo” (LLOSA, 2011, p. 47). Foi trabalhando para essa empresa que Casement começou a se perguntar se a aventura europeia era mesmo aquilo que se dizia, o que se escrevia, o que se pensava? Trazia a civilização, o progresso, a modernidade mediante o livre-comércio e a evangelização? Podiam ser chamados de civilizadores aqueles animais da Force Publique que roubavam tudo o que podiam nas expedições punitivas? Quantos, entre os colonizadores – comerciantes, soldados, funcionários, aventureiros –, tinham algum respeito pelos nativos e os consideravam irmãos, ou, pelo menos, humanos? Cinco por cento? Um de cada cem? Para dizer a verdade, durante os anos que ele estava ali só tinha encontrado um número que se podia contar nos dedos de europeus que não tratassem os negros como animais sem alma, passíveis de enganar, explorar e até matar, sem o menor remorso (LLOSA, 2011, p. 56). Foi, portanto, a partir dessas reflexões que Casement despertou politicamente para a situação de seu país, a Irlanda, oprimida pela Inglaterra, pois, a seu ver, “não se pode permitir que a colonização consiga castrar o espírito dos irlandeses como castrou o dos indígenas da Amazônia” (LLOSA, 2011, p. 215). 8


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Walter Hardenburg é o terceiro desses jovens humanistas que, aos 21 anos de idade, veio para a América do Sul em busca de aventuras (e, como a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré procurava trabalhadores), juntamente com seu amigo Perkins, Hardenburg deixa Buenaventura, na Colômbia e, numa jornada a pé subindo e descendo as regiões íngremes dos Andes, dirigese, agora de canoa, para o rio Putumayo, rede fluvial que deságua no Brasil, rumo ao Atlântico. Todavia, a aventura se transforma em desventura e juntos testemunham a catástrofe, de modo traumático, como não poderia deixar de ser, dos indígenas da Amazônia. Seu relato, portanto, é um testemunho histórico e, como afirmam Márcio Seligmann-Silva e Arthur Nestrovisk, em Catástrofe e representação (2000), “a temporalidade do evento traumático é complexa e envolve construções recíprocas do passado e do presente”. Na opinião desses críticos, “catástrofe, trauma e memória traduzem-se uns aos outros nessas histórias que não se deixam capturar pelo pensamento, nem pelo discurso” (2000, p. 09). A tradução que lhes apresento é, pois, uma viagem ao paraíso e ao inferno simultaneamente. Seja através das representações dos inúmeros acontecimentos relatados aqui, seja no fluxo e refluxo, nos interstícios, nos entre-lugares e nas reflexões e ações contra a violência e a barbárie ainda em progresso no século atual. Este livro não é dedicado a ninguém em particular. Meus esforços dedicam-se, portanto, ao assunto, à violência, tendo em vista que ela ainda reina entre os seres humanos. Mesmo assim, gostaria de lembrar o centenário da morte de Roger David Casement (1864 – 1916), cuja vida foi tirada na prisão de Pentroville, em Londres, acusado de traição à Inglaterra aliandose à Alemanha em busca de libertação de sua terra natal. Porém, como esse fato não seria crime para levá-lo à pena de morte por enforcamento, muitas acusações foram impingidas ao réu, algo como degenerado e pederasta em seu próprio Black Diaries. No entanto, como Llosa, também questiono: “Será que existiram mesmo e Roger Casement os escreveu de próprio punho com todas as suas obscenidades nauseabundas, ou foram falsificados pelo serviço secreto britânico para executar também moral e politicamente o seu ex-diplomata, dar-lhe um castigo exemplar para dissuadir os potenciais traidores?” Hélio Rocha Porto Velho, fevereiro de 2016.

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Introdução

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uma terrível ironia do destino que uma terra – cujos filhos viveram séculos do outro lado dos horizontes conhecidos e que, mesmo após a “descoberta” viviam sob leis sociais “tão benéficas como nunca se conheceu em quaisquer impérios da Ásia, África ou Europa, ou em qualquer monarquia cristã”, leis registradas por um historiador confiável e, em parte, passíveis de verificação pelo viajante e estudioso do século XX – tenha sido palco de tantas desgraças, torturas, atentados e assassinatos de inúmeras tribos indefesas.

Durante o Império Inca, no Peru, conforme os registros do historiador inca-espanhol Garcilaso de la Vega2 – citado no parágrafo anterior – e outros escritores, o sangue humano jamais fora derramado propositalmente; cada indivíduo desse império era provido de acordo com suas necessidades e tinha seu lugar num plano econômico-social bem organizado; e não havia mendicância ou indigência; os indivíduos eram orientados, por meio de leis, a ajudar uns aos outros de modo cooperativo; não conheciam a injustiça nem a corrupção; e havia a crença em um Ser Supremo. No entanto, na República do Peru, sob um regime capitalista ausente, as tribos indígenas de diversas etnias dessa mesma terra foram defraudadas, escravizadas, violadas, torturadas e destruídas. Isso tem ocorrido não em casos isolados, sob comando de algum potentado selvagem, mas às dezenas de milhares sob o regime de um governo dito republicano, num país dito cristianizado e a mando dos agentes de uma grande empresa com sede administrativa em Londres e em Iquitos, a Peruvian Amazon Company. O “crime” desses infelizes é que nem sempre conseguem produzir a cota mínima de borracha exigida para satisfazer seus capatazes3 – trabalho em que praticamente não recebem nenhum pagamento. Na produção de borracha – para que a indústria automobilística possa se multiplicar nas cidades da cristandade – ecoam gritos de desespero dos indígenas torturados nas matas 2.

Gómez Suárez de Figueroa, mas conhecido como Inca Garcilaso de la Vega, foi escritor e historiador peruano de ascendência espanhola e inca. Nasceu em Cuzco, no dia 12 de abril de 1539 e faleceu em Córdoba, Espanha, em 23 de abril de 1616.

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Os capatazes, negros barbadianos, eram os intermediários entre os “racionais” e os chefes das estações da borracha da Peruvian Amazon Company.

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sombrias da Amazônia. Essas histórias não são frutos da imaginação, mas uma declaração fiel à realidade descrita por várias testemunhas neste livro. A denúncia das atrocidades no vale amazônico que, sob o título “Atrocidades do Putumayo”, assustou o público e despertou horror e indignação generalizada – atrocidades piores do que as do Congo, na África, não podem ser consideradas como um simples fenômeno isolado. Esses incidentes são a manifestação extrema de uma condição que se apresenta de diferentes formas no mundo todo e sob os desmandos de um imperialismo afiado e egoísta ou de um industrialismo cujos expoentes, para acúmulo de riquezas, negam uma proporção justa dos frutos da terra e da labuta aos trabalhadores que produzem essa riqueza. A causa primária pode ser detectada no trabalho em quase todo o país, e em quase todos os setores desse tipo de indústria; e, embora seus métodos em outros lugares sejam ausentes de luxúria selvagem e barbárie, ainda causam terrível sofrimento à humanidade. É fácil condenar a nação peruana sem qualquer constrangimento, pois esse local de desgraça, o rio Putumayo, fica em seu território, e sob cuja negligência e ambição, a culpa para tais ocorrências é, em grande parte, colocada; entretanto, a consciência do comercialismo em todo o mundo também deveria ser levada em consideração. No entanto, deixando de lado esse aspecto mais amplo do assunto, é necessário compreender as condições locais que poderiam ter contribuído para tais acontecimentos. O vale amazônico (uma região tão grande quanto toda a Europa, sem a Rússia) foi dividido entre Espanha e Portugal. O Brasil ocupa hoje a porção oriental, a mais extensa do vale; e as repúblicas andinas do Peru, Colômbia, Equador, Bolívia e Venezuela ocupam a parte ocidental. O Amazonas é o maior rio do mundo; todo o sistema fluvial, talvez com um total de cem mil quilômetros de rios navegáveis, bem como seus afluentes e subafluentes, dá acesso a um enorme território de florestas e planícies, onde ainda não há nem estradas de rodagem, nem ferrovias. Devemos ter em mente que até o presente momento o interior da América do Sul é o menos conhecido dos continentes. Grandes áreas de seu imenso território ainda estão praticamente inexploradas. O estado de atraso do vale amazônico deve-se, em grande parte, ao fato que durante 300 anos, sob o domínio de Portugal, o rio Amazonas ficou fechado comercialmente aos demais países estrangeiros. O comércio de escravos feito pelos colonizadores portugueses e brasileiros seguiu adiante sem qualquer interferência da Justiça. Além disso, os colonizadores ainda lutaram e destruíram as missões jesuíticas, que haviam sido estabelecidas pelos humanos e devotados sacerdotes. Todo 12


Introdução

o vale amazônico vivia sob uma nuvem negra, desde o momento em que, em 1540, Orellana, o primeiro homem branco, tenente-general do exército de Gonzalo Pizarro, desceu os rios Napo, Marañon e Amazonas de Quito ao oceano Atlântico. Em 1638, Pedro Teixeira realizou seu grande feito subindo o rio Amazonas do Atlântico até Quito, e descendo novamente em 1639, uma das explorações de maior destaque na historiografia da Amazônia. Exageros de selvagerias dos índios e os perigos do clima dissuadiram os colonizadores em tempos posteriores. Portanto, o território do Putumayo ficou praticamente desconhecido até a última década do século XIX. Provavelmente o nome “Amazonas” seja resultado das experiências de Orellana e seus seguidores, que foram atacados por um grupo de índios, cujos cabelos longos e o uso de trajes que cobriam as partes íntimas levaram os exploradores a pensar que seus inimigos fossem mulheres guerreiras, ou as “Amazonas”. Não há nenhuma prova da existência de qualquer império governado por mulheres na América do Sul, embora haja esse mito. O rio Putumayo nasce perto de Pasto, nos Andes colombianos, e atravessa uma extensa região, uma das áreas menos conhecidas da superfície da Terra. Esse rio possui cerca de mil quilômetros de extensão, uma corrente de águas que atravessa um território reivindicado tanto pelo Peru quanto pela Colômbia. O rio atravessa a linha do equador em seu curso superior. A notória região de seringueiras, que se estende às margens do Putumayo e seus principais afluentes – o Igaraparaná e o Caraparaná – encontra-se no interior de uma extensa área conformada pela linha do equador, a norte, segundo paralelo de latitude ao sul, e a 72 e 74 graus de longitude, a oeste de Greenwich. Como a maioria dos afluentes do Amazonas, o Putumayo e seus dois afluentes são navegáveis na maior parte de seus cursos, dando acesso fluvial até o sopé da Cordilheira dos Andes; e o transporte de borracha é feito em barcos a vapor e em canoas. Os rios Caraparaná e Igaraparaná, ambos fluindo do noroeste, correm paralelamente por cerca de 400 milhas em meio a florestas contínuas e fechadas, desaguando no Putumayo, o primeiro a cerca de 600 milhas e o segundo aproximadamente a 400 milhas acima da confluência desse rio com o Amazonas. Alguns mapas tornam claras essas condições, e pode-se verificar que essa região fica a uma distância considerável de Iquitos, quase mil quilômetros por água, e os navios de pequeno calado e de viagens esporádicas dos comerciantes de borracha gastam duas semanas na viagem; e parte do curso do rio se encontra na hidrovia brasileira. Uma rota muito mais direta pode ser feita do Putumayo pelo rio Napo, que desemboca no Amazonas 13


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cerca de 50 milhas abaixo de Iquitos. Portanto, a região do Putumayo deve ser considerada como uma região extremamente afastada da sede do governo do Peru, com dificuldades de acesso e de governança. Os nativos que habitam a região são principalmente os Huitoto, com outras tribos com características mais ou menos semelhantes, mas com nomes diferentes. Essas tribos indígenas, embora conhecidas como infieles e salvages, isto é, “infiéis” e “selvagens” – não podem ser descritas como selvagens no sentido comum do termo. Não têm nada em comum com os sanguinários selvagens da África e de outras partes do mundo. Suas armas não são adaptadas para tirar a vida quanto são para a caça e, embora as tribos do vale amazônico sempre tenham guerreado entre si e tenham reduzido o número de indivíduos em conflitos inter-tribais, geralmente não são grandes e fortes, e o uso da zarabatana silenciosa é comum no derramamento de sangue de indígenas de outras terras. Todavia, os Agarunas do rio Marañon constroem pontos de observação para se defender, como fazem algumas outras tribos. O tunday ou manguaré, instrumento notável de percussão que serve para enviar mensagens na mata, é usado por várias tribos do vale amazônico. A maioria das tribos vive em grandes casas-comunitárias, as malocas. Em geral, os índios do vale amazônico são dóceis e têm boas características físicas; são naturalmente livres da imoralidade e de doenças; têm forte afeição por suas mulheres e filhos e grande respeito pelo idoso. Portanto, são dignos de preservação e poderiam ter sido valiosos para o desenvolvimento dessa região. O número de índios da região do Putumayo diminuiu muito desde o boom da “indústria” da borracha, como tem sido em todo o vale amazônico; calcula-se que no Putumayo foram reduzidos de quarenta ou cinquenta mil para menos de dez mil, em parte por abusos e massacres, em parte por fugas para regiões mais remotas da selva, longe de seus perseguidores. As condições locais que tornaram possíveis as atrocidades no rio Putumayo encontram-se, em primeiro lugar, no caráter dos povos ibéricos e ibero-descendentes da América do Sul, e, em segundo lugar, na formação topográfica do território. Deve-se ter em mente que essa região da floresta amazônica se encontra, em todos os sentidos, separada da região montanhosa e do litoral. A região da costa do Peru, fronteiriça com o Pacífico, é uma terra sem chuva e sem árvores, onde a vegetação só é possível por meio de irrigação, mas é uma terra em que a moderna civilização peruana floresce; Lima, a capital do país, situa-se apenas a alguns quilômetros do mar. À leste dessa região europeizada ficam as cadeias de montanhas da Cordilheira dos 14


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