Lá no meu quintal – O brincar de meninas e meninos de Norte a Sul

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Copyright © 2019 Gabriela Romeu e Marlene Peret Copyright das fotografias © Samuel Macedo Copyright das ilustrações © Kammal João

Editora Renata Farhat Borges Projeto gráfico e diagramação Ana Costa Revisão Thais Rimkus e Mineo Takatama Tratamento de imagem M Gallego • Studio Artes Gráficas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD R763l Romeu, Gabriela Lá no meu quintal... o brincar de meninas e meninos de Norte a Sul / Gabriela Romeu, Marlene Peret ; fotografia de Samuel Macedo; ilustrado por João Kammal. - São Paulo : Peirópolis, 2019. 128 p. : il. ; 19cm x 25cm. – (Retratos de Criança) ISBN 978-85-7596-646-4 (impresso) 978-85-7596-647-1 (Epub) 978-85-7596-648-8 (KF8) 1. Literatura infantojuvenil. 2. Brincar. 3. Cultura da infância. 4. Patrimônio imaterial. 5. Relato de viagem. I. Peret, Marlene. II. Macedo, Samuel. III. Kammal, João. IV. Título. V. Série.

2019-1804

CDD 028.5 CDU 82-93

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil 028.5 2. Literatura infantojuvenil 82-93

1ª edição, 2019 EDITORA PEIRÓPOLIS LTDA.

Rua Girassol, 310f – Vila Madalena 05433-000 – São Paulo – SP - Brasil tel.: (55 11) 3816-0699 vendas@editorapeiropolis.com.br www.editorapeiropolis.com.br

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Às sete meninas cujas histórias de infância povoaram de brincares meu quintal de menina: minha mãe, Lena, e minhas tias Cida, Dete, Clara, Bela, Ima e Maria. Às duas meninas que me ajudam hoje a seguir quintalizando a vida: Clarice e Isabel. E às crianças dos Brasis que nos narram a essência do cres(ser).

À minha família e a todas as crianças (e todos os familiares) que nos acolheram em seus quintais para nos ensinar, como mestres, seus jeitos de brincar, vivenciar e perpetuar suas culturas.

Às raízes e também aos frutos, pai e mãe (Francisco e Maria), que me ensinaram desde sempre a olhar, e aos filhos (Ana e Ali), que agora me ensinam a ver. A Isa, minha mulher, e aos encontros que nos possibilitaram cada história e cada imagem que agora se revelam.



Muitas vezes brincamos antes mesmo de começarmos a brincar. Como? Tiramos par ou ímpar para decidir quem será o pegador, agitamos as mãos no joquempô para escolher aquele que vai se esconder ou cantamos “lá em cima do piano/ tem um copo de veneno,/ quem bebeu morreu,/ o azar foi seu!” para saber quem pulará corda antes. São diversas as “fórmulas de escolha”, esses brincares que iniciam o brincar. E como foi que a brincadeira de fazer este livro começou? Teve início numa longa viagem. De avião, de carro, de barco, de caminhão, de táxi. Às vezes, de carona. Uma viagem por muitos lugares: aldeias indígenas, comunidades ribeirinhas e terras quilombolas, entre outros lugarejos bem distantes das zonas urbanas. Em cada uma dessas localidades aonde chegamos, procuramos um quintal – às vezes o rio, a floresta e uma comunidade; outras, a quadra do condomínio, a varanda do prédio ou o próprio quarto de uma criança. Muita gente roda o Brasil para conhecer monumentos ou paisagens. Já nós decidimos percorrer os quintais para conhecer o lugar onde se brinca, e aprender, com meninos e meninas, jogos, versos e brinquedos. Essa incursão pelo brincar é uma visita a muitos Brasis.

No caminho, ao remar uma canoa ou atravessar estradas esburacadas, nos divertimos muito e registramos todo o processo em áudios, vídeos e fotos que agora desembarcam neste livro de retratos e histórias – e também de receitas, cantigas, versos e dizeres ensinados por meninas e meninos que transformam cada canto em quintal ou espaço de brincar: ação que desde sempre conecta tempos e territórios. Encontramos variações das mesmas brincadeiras com nomes diferentes em muitos cantos, descobrimos que os versos de uma cantiga de roda vão parar no pular corda, experimentamos regras distintas para jogos que só mudam de nome. As brincadeiras, veja só, viajam mais facilmente (e rapidamente) que a gente! Em cada quintal aprendemos mais que brincadeiras. Descobrimos como vivem as crianças de diferentes localidades e conhecemos as histórias narradas por pais e avós, os bichos criados por lá, os sons que se ouvem de manhãzinha, os caminhos percorridos até a escola, os frutos colhidos nas redondezas (a vila, o bairro, a aldeia). Bem, a viagem só começou, há muito mais por desbravar. Seguimos juntos!


Depois de navegar na voadeira, avistamos uma embarcação na beirada do rio. Na lateral do barco verde, uma inscrição nos avisava aonde chegávamos: Kwatinemu (Koatinemo), território do povo Asurini do Xingu. Nossa primeira parada: o quintal do menino Arawari, que tão logo nos encontrou nos convidou a conhecer um pouco da mata onde ele anda sem se perder e reconhece os sons dos bichos.

Os Asurini do Xingu há algum tempo habitam as margens de águas verdinhas de um rio grandão, o Xingu. Vivem na Terra Indígena Koatinemo. Falam asurini, da família linguística tupi-guarani. Asurini, que quer dizer “vermelho”, foi como vários outros grupos batizaram esse povo. Eles próprios, porém, se autodenominam Awaeté (“gente de verdade”). O território asurini fica perto da usina hidrelétrica de Belo Monte, um empreendimento enorme e polêmico, feito para levar energia a outras regiões do país. Os povos indígenas e as comunidades tradicionais da região sofrem com os impactos causados pela usina – há áreas de onde as pessoas tiveram que sair deixando suas casas, onde o rio secou ou onde o número de peixes (seu principal alimento) diminuiu consideravelmente.



Arawari tem uma floresta no quintal – ou seria um quintal na floresta? Tanto faz. É de lá que surgem brinquedos feitos de sementes, tocos de árvore e plantas: por exemplo, um cata-vento de folhas de mangueira. Já a folhagem da palmeira, enrolada com habilidade, dá brinquedos sonoros, apitos. E é da matéria do chão que o menino faz nascer os muitos bichos que habitam toda a floresta: com o mesmo barro usado por seu povo para esculpir vasos e vasilhas, ele cria papagaio, jabuti, tamanduá, paca, anta e outros animais grandes.

Bicho grande também parecia haver por perto quando entramos na mata, por uma trilha úmida e verde, para buscar o barro ideal para a produção de cerâmica com a família de Arawari: Tuwá, a mãe; Manduka, o pai e cacique da aldeia; e alguns dos irmãos. No caminho, ouvimos passos ligeiros e folhas secas estalarem. Não sabíamos se olhávamos para o chão, a fim de escapar de cobra e formiga, ou se olhávamos para cima, evitando nos enroscar em galhos que abraçavam atalhos. Ou, ainda, se ficávamos atentos aos sons da mata, quase todos indistinguíveis por nós.

Às vezes, Manduka, que já foi atacado por onça em caçadas pela mata, parava para escutar algo que nem sequer tinha chegado à nossa percepção. Seria algum bicho rondando? Um felino? Bem, esse animal só surgiu das mãos de Arawari, modelado com muito capricho no barro colhido na mata. É também na floresta-quintal ou no quintal-floresta que Arawari acompanha o pai, os tios e os avós em incursões para caçar. Para praticar essa atividade, desde bem pequenos, os meninos asurini aprendem com os mais velhos da aldeia, até ganharem pernas e braços compridos – ou seja, independência nas caçadas. O pequeno caçador nos contou que o grupo parte da aldeia para o centro da floresta à tardinha. Lá eles encontram um bom lugar para espreitar a caça – um porco-do-mato, por exemplo. Pode ser perto de uma árvore que dá frutos de que o animal goste. Eles sabem a que hora o bicho costuma comer e qual é seu alimento preferido. Em silêncio, todos os caçadores ficam à espreita. Conhecem os perigos: se o bicho está com filhote, fica bem bravo. Quando a caça é um animal grande, surge outro desafio: voltar para casa carregando o bicho nas costas. Ao chegar à aldeia, dependendo do tamanho, a carne é dividida entre as famílias. As crianças ficam alvoroçadas com a notícia, descem o barranco para ver de perto a novidade. E depois voltam a subir a ribanceira carregando a futura refeição.

Foi uma cena dessas que avistamos nos dias que passamos na aldeia de Arawari, que estava por ali, sabido e sorridente, explicando tudo aos curiosos visitantes. Os homens, ajudados pelas mulheres, dividiam uma anta que, para nós, era enorme – e, para eles, apenas grande. Depois da partilha, cada família, com ajuda das crianças, carregou as partes preferidas. Pouco tempo depois, algumas fogueiras nos arredores das casas já assavam a caça do dia, e o cheiro anunciava a refeição. Até nós ganhamos um bom pedaço, o que evitou que nosso jantar fosse mais uma vez macarrão, atum em lata e abobrinha.


Canoas, voadeiras e barcos ficam aportados às margens do Xingu, onde vive o povo Asurini. Nessa beirada de rio, as crianças se banham e brincam. Além disso, como lá há muitas pedras, de tamanhos diversos, a região por vezes parece um trampolim, perfeito para mergulhos. Elas apostam corrida de uma pedra até uma canoa esquecida na outra margem do rio e ficam apinhadas no pedral, saltando uma de cada vez, numa divertida sucessão de splashes.

As crianças do povo Asurini também mergulham no rio puxando barquinhos feitos de restos de madeira encontrados pela aldeia – seus corpos, como barcos a navegar nas águas, carregam outros barcos durante o mergulho.


Pelos quintais de Mare-é, saltita uma paca simpática. O animal de estimação foi presente de seu pai, que a capturou em uma caçada. Onde Mare-é pisa, a paquinha vai atrás. Vez ou outra, a menina para e a coloca no colo, como se fosse um bebê. Dócil, a paca agradece, agarrando-se à mãe postiça com dedos delicados, que logo se confundem com os de Mare-é. Com bigode comprido, que funciona como sensor, a paquinha fareja o tempo todo em busca de comida. A menina conta que o animal só se alimenta de leite, manga e jatobá e dorme sempre na cama de seu irmão.

Em alguns cantos da Amazônia já vimos crianças fazendo e rodando pião, brinquedo que por lá facilmente rima com contemplação. Certa vez, ouvimos um senhor que muito brincou de pião dizer: “Meu pião é feito de goiabeira, ele gira a noite inteira na palma da minha mão”. Na aldeia do Arawari, quem fez um pião foi Mauyra, parente que tem o mesmo nome do avô do menino e que também é conhecido como Paulinho. Num fim de tarde, Mauyra esculpiu o brinquedo em um pedaço de acariquara. “Agora vamos ver se vai rodar, né?”, comentou ao terminar a tarefa. Rodou e rodopiou que foi uma beleza!

Na aldeia Koatinemo, as casas são feitas de barro ou tábuas e cobertas com palhas de coqueiro. Algumas são maiores, outras, menores, dependendo do tamanho do núcleo familiar. Mas nenhuma delas chamou tanta atenção quanto a tavyve, uma casa gigantesca. Nela, o povo Asurini enterra seus mortos (há um cemitério nos fundos), mas também celebra a vida por meio de rituais como o toré. Essa casa nunca pode ficar deteriorada porque senão as crianças adoecem. E a manutenção dela é coletiva.


Uma cena curiosa: enquanto o antigo cacique Manduka trabalha, um jacamim passeia pela aldeia. Entretido em esculpir um banquinho de madeira, o pai de Arawari imita o canto da ave. O menino então agarra o jacamim pelas asas e acaricia-lhe o pescoço torto. Quieta, a ave vai se encolhendo e ficando mansinha. O jacamim que aparece por lá é preto, tem a cabeça pequena, as pernas finas e compridas, a cauda curta e as asas caídas. Mesmo assim, voa. E voa alto para dormir na copa das árvores. Outras aves grandes também passeiam pela aldeia. Entre elas, o jacu-de-papo-vermelho, que é da mesma família do mutum-de-penacho. Jacamins, jacus e mutuns são aves que os Asurini caçam nos arredores ou criam como bichos de estimação. Além da carne saborosa, suas penas servem para fazer flecha e até peteca.

Na aldeia Koatinemo, Tuwá, mãe de Arawari, vai longe buscar o barro do açaizal para fazer cerâmicas. Acompanhada dos filhos e dos netos, de manhã cedo ou à tardinha, quando está mais fresco, ela esculpe panelas. E é assim, brincando, que as crianças aprendem a fazer e a perpetuar a arte asurini. As meninas confeccionam panelinhas. Como a mãe, Tuwá, Tiá tira primeiro as pedras do barro. Depois, cuidadosamente molda o recipiente. No fim, uma espátula feita de caroço de manga alisa o material até que vire uma panelinha uniforme. Quando o barro seca, a menina usa sua arte para brincar com as outras crianças da aldeia.


Confira o vĂ­deo de Arawari em seu quintal.


Na aldeia Xikrin do Bacajá, as petecas são confeccionadas com esmero. O brinquedo é feito de palha de milho, alinhavado com embira tingida de urucum e arrematado com penas coloridas de arara, gavião e mutum. Depois do calor escaldante, uma chuvinha fresca caiu para deixar o chão de terra batidinho para uma boa partida de pêikrã. É assim que eles chamam o brinquedo na língua caiapó. Naquele dia, adultos e crianças brincaram até o anoitecer. E o jogo era difícil. A peteca não podia cair. Quem deixasse o brinquedo tocar o chão pagava uma prenda (ou castigo).

Na região do Médio Xingu, vivem diversos povos indígenas, como Asurini, Arara, Xikrin e Araweté, esta última etnia tupi-guarani que habita as margens do rio Xingu, de águas claras e encachoeiradas, onde homens e mulheres, meninas e meninos costumam se banhar, lavar roupa, pescar e brincar. Nos arredores da aldeia, as crianças araweté também nos convidaram para conhecer seu imenso quintal-floresta. Por trilhas cheias de cipós e árvores caídas, em locais que já tinham sido roçados daquele povo, caminhamos até um ponto onde as crianças podem coletar cacau, penduradas no topo de árvores altas. Como escalar e alcançar o fruto? Elas rapidamente nos mostraram como se faz a colheita. As crianças maiores, em duplas, subiam na árvore, enquanto as menores ficavam logo abaixo, para pegar os cacaus jogados lá de cima.

Depois, com agilidade, as meninas teceram com folhas de palmeira um pequeno paneiro, perfeito para guardar e carregar os frutos até a aldeia. Com facões em mãos, transformaram a floresta em oficina e esculpiram aviões e barquinhos de miriti. Por sua vez, o caminho de volta era cheio de surpresas: sementes de urucum para pintar rostos e corpos e flor de bananeira-do-brejo que vira brinquedo sonoro. Depois do passeio pela mata, todos rumaram para o rio, onde se divertiram em canoas grandes e com os barquinhos feitos na mata. Uma bacia de plástico perdida por ali também virou uma embarcação improvisada para descer no ritmo da correnteza.

Se ouvir a palavra “pira”, a dica é correr! É que na região Norte pega-pega é conhecido como pira, que ganha variações, como pira no alto ou pira na água. Para brincar de pira na água, as crianças do povo Suruí da aldeia Lapetanha, localizada em Cacoal, Rondônia, se dividem em dois grupos. Um grupo é o pegador e tem que nadar para pegar os integrantes do outro, formado por “fugitivos”. O pique, a área neutra em que o participante não pode ser pego, fica embaixo d’água. Ou seja, para escapar dos pegadores, os fugitivos devem mergulhar. Quando todos são pegos, os participantes trocam de papel: pegadores viram fugitivos, e vice-versa.

Em Altamira, onde os muitos rios, igapós e igarapés viram vias aquáticas, as crianças criam barquinhos com o que encontram nos arredores. As capembas, cascas que envolvem os coquinhos das palmeiras, têm uma forma que lembra canoa. Algumas são grandonas, perfeitas para abrigar uma criança. Então, quando essas folhas se desprendem do alto das árvores e caem no chão, viram barquinhos prontos para navegar. Há quem brinque na terra mesmo: uma criança se senta na folha e outra corre puxando o canoeiro.

Veja vídeo de meninos construindo uma jangada de aninga.



Se para chamar os pássaros, Arawari faz apitos com a folha do babaçu, Percival, menino quilombola de Porto de Moz, faz apito de taboca, bambu fino e fácil de achar por aquelas bandas. Com o facão sempre em punho, ele corta pouco mais de um palmo de taboca, faz um pequeno furo próximo da junta do bambu, e está pronto o apito. É só soprar ou dedilhar como flauta, assim nos mostrou o menino.

Na comunidade de pescadores de Vila Nova, localizada no município de Senador José Porfírio, Pará, as crianças sempre encontram brinquedos no chão. É que os caroços de frutos como mucajá colhidos aqui e ali são usados num divertido jogo, o “bole-bole”. Se você é de outra região do país, já ouviu falar em pedrinhas, cinco-marias, saquinhos, xibiu ou capitão? Se sim, então você conhece o bole-bole. É uma brincadeira tão disseminada que tem muitas variações de nome e de regra. Para jogar, são usados caroços, pedras, saquinhos de pano recheados com arroz… Voltando à comunidade ribeirinha do Pará, a menina Samira vive numa vila onde o chão é um verdadeiro convite a se sentar para brincar. E, quando o sol está forte, o chamado é ainda maior, pois nada melhor do que sombra e brisa. Enquanto os barquinhos passam lentamente pelo rio, ela brinca de bole-bole debaixo de uma imensa mangueira, entre suas raízes.

Veja como se joga, aqui e ao lado.


Ainda em Vila Nova, se não têm corda, Jô e Manuela nem se preocupam. Elas entram no mato, arrancam pedaços de cipós, amarram um no outro bem apertadinho e vão brincar na beira do rio Xingu. Numa tarde de vento fresco, elas pularam até cansar. E cantaram “Senhoras e senhores” e “Suco gelado”. E até levaram para a corda os versos de uma cantiga de roda bem bonita e conhecida na região (“A dança da carochinha”). Em dupla, requebraram, sacudiram a saia e se abraçaram, tudo isso pulando corda e cantando os versos:

Ouça os versos da corda de cipó.

Em Manacapuru, Amazonas, muitas crianças brincam de touro no recreio da escola. No entanto, convém brincar depois de lanchar, pois é preciso ter energia para vencer o animal (ou fazer as vezes do bicho na brincadeira). A brincadeira funciona assim: uma criança é escolhida para ser o touro, e as demais formam uma roda em volta do “animal”. O touro tenta escapar, rompendo a “cerca” formada pelas mãos das outras crianças. Se romper a cerca, ele vai correr e ser perseguido por todo o grupo. Quem capturar o fugitivo vira o próximo touro.

É bem comum surgir das mãos inventivas de meninos e meninas do Norte do Brasil uma variedade de barquinhos, aviões e helicópteros, entre outras máquinas de navegar e voar. É que na Amazônia há muitas vias de água e muitas rotas aéreas. Um desses brinquedos de natureza inspirados pela água, pela terra e pelo vento é o helicóptero feito de folha, uma espécie de cata-vento, bom para dias de ventania.

Ouça sons dos quintais cheios de natureza das crianças do Norte.



Entre os muitos aprendizados da viagem, ao percorrer os quintais do Brasil, descobrimos que o brincar é uma espécie de língua-mãe da infância, é das primeiras coisas que aprendemos a falar e que nos conecta com o outro e com o mundo. E foi falando essa língua tão especial que “conversamos” com crianças de diversas beiradas de rios, de grandes centros urbanos, de comunidades quilombolas, de povos indígenas, de regiões periféricas. Essa jornada pelos quintais já acontece há algum tempo – mais precisamente, dez anos. A largada se deu quando incursionamos pelo país para registrar brincadeiras das crianças para o Mapa do Brincar, projeto realizado pelo jornal Folha de S.Paulo, iniciativa do extinto suplemento “Folhinha”. Premiado, o Mapa do Brincar é um grande acervo de brincadeiras registradas no início do século XXI, dividido por categorias (amarelinhas, cantigas de roda, jogos de mãos…) e regiões, com vídeos, fotos e ilustrações. Em 2011, criamos o Infâncias (www. projetoinfancias.com.br), projeto que registra não só o brincar como também o cotidiano e o imaginário de meninos e meninas dos muitos Brasis. Diversas das brincadeiras que aprendemos com as crianças durante a pesquisa para o Mapa do Brincar também foram encontradas em outros quintais, ou em outras localidades brasileiras, durante nossas novas andanças pelas estradas,

de terra e de água. E não deixamos de trazer nesses registros, que resultam de encontros cheios de trocas com as crianças, alguns dos brincares que aprendemos no início dessa viagem, no Mapa do Brincar, e que também ajudamos a espalhar por aí. Para fim de conversa (mas não de brincadeira), vale destacar outra história. Quando mexemos em nosso “baú” de narrativas infantis, nos registros dessas viagens, vemos os meninos e as meninas dos quintais no exato momento de nosso encontro: Valdecir no sobe e desce com seu carretão, Milena na mangueira de seu terreiro. Se o calendário indicava que alguns já nem eram mais crianças, estavam bem crescidos, as imagens (estáticas ou em movimento), no entanto, registram aquele exato instante. Assim, este livro recheado de narrativas infantis reais traz o relato de um momento na vida das crianças retratadas, celebrando um presente que já escapou. Hoje, essas crianças que nos contaram suas peripécias cotidianas em seus quintais enfrentam outras aventuras do viver. Elas cresceram… Talvez diversas delas sigam brincando, pois muita gente grandinha cultiva a semente brincante bem em seu interior. Lá no meu quintal… foi o nosso jeito de convidar meninas e meninos, pequenos ou crescidos, do Norte ou do Sul, a conjugar um verbo tão da infância (e do sempre): o brincar.


Amigos e amigas que fizemos nesta estrada do brincar, que sempre nos inspiraram e também indicaram muitas rotas e caminhos: Adriana Friedmann, Lydia Hortélio, Gandhy Piorsky, Selma Maria, Renata Meirelles, David Reeks, Adriana Klisys, Adelsin e Roquinho. Parceiras do Mapa do Brincar, com quem compartilhamos muitos brincares narrados pelas crianças Brasil afora: Patricia Trudes da Veiga, Bruna Fontes, Gabriella Mancini e Camilla Costa.

Antonia Melo da Silva, Allyne Mayumi Rodolfo, Clarice Cohn, Comunidade de Pescadores de Vila Nova (Senador José Porfírio/PA), Comunidade de Moradores do Bairro Açaizal (Altamira/PA), Comunidade Quilombola Buiuçu (Porto de Moz/ PA), Cris Rabello, Denise Graça, Eneida Melo, Fundação Tocaia, Funai — Coordenação Regional Centro-Leste de Altamira/PA, Gabi Prado, Ivonete Ferreira, ISA (Instituto Socioambiental — Altamira/PA), Jocélio Ferreira, Kézia Oliveira, Lua Damasceno, Marcelo Salazar, Maria Cirene de Jesus Nascimento Serra, Maria Elena de Araújo Silva, Mariana Andrioni, Movimento Xingu Vivo, Núbia Vieira, Pedro Duarte do Porto, pilotos (Cilas, seu Chico e seu Nelson), povos Asurini do Xingu (aldeias Koatinemo e Itaaka), Araweté (aldeia Paratatim) e Xikrin (aldeias Bacajá e Potykrô), Rafael Poccia Costa, Rodrigo Costa, Rosamaria Loures, Socorro Damasceno (Help), Tyr Peret, UFPA (Universidade Federal do Pará) e Valdson Paixão.

Bizunga e família, Comunidade Carcará, Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, Helio Filho, Irenice Macedo, Jefferson Bob e mestre Antônio Luiz.

Angelo Rabelo, Clea Cabrera, Funai Corumbá/ MS, Glawber dos Santos Lima, Hemerson Matheus Chiele Andrelevicius, Instituto Homem Pantaneiro, Instituto Moinho Cultural Sul-Americano, Jana Kelly de Lima, Janete Conceição, Jheovana Lima, Márcia Rolon , Maria Madalena Magalhães, Mestre Agripino Soares de Magalhães, seu Feitosa (piloto), Povo Guató (ilha Ínsua/MS) e Viviane Fonseca Moreira.

Abraço (Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos de Campo Buriti), Aérica Gomes dos Santos, Artesol (Associação dos Artesãos de Coqueiro Campo), Comunidade de Moradores de Campo Buriti (Turmalina/MG), Coqueiro Campo, Cansanção e Bem Posta (Minas Novas/ MG), Comunidade Quilombola da Lapinha (Matias Cardoso/MG), Deuzani Santos, Faustina Lopes da Silva, Isabel Lopes Alecrim, Joaquim Gomes dos Santos (em memória), Juvenil Gomes de Souza, Marcilene Santos, Maria Aparecida Lopes da Silva, Ortelina Gomes de Souza (em memória) e Vladimir Dayer Moreira.

Argemiro Rocha, Comunidades Rurais de Rodeio Bonito/RS, Comunidade de Moradores de Barra do Quaraí/RS, Escola Estadual de Ensino Fundamental José André Acadroli (Rodeio Bonito/RS), Fernando Pertuzzati, ONG Atelier Saladero (Barra do Quaraí/RS), Paulo Rodrigo Szadkoski e Ticiana Robin Szadkoski.


Uma das mais fortes imagens que tenho dos tempos de menina é de um pé de chorão, uma grande árvore com galhos e folhas caídos, mirando o chão – talvez daí o seu nome. Foi a árvore da minha infância, o pique em volta do qual brincávamos de pega-pega, descalços, às vezes até tarde da noite. Talvez o meu desejo de incursionar pelo país para registrar o brincar das muitas infâncias tenha começado a brotar bem debaixo dessa generosa árvore, num bairro onde as crianças eram também as donas dos quarteirões e das praças, circulando para cá e para lá montadas em bicicletas, verdadeiros cavalos Rocinantes. Quando cresci, decidi ser jornalista e trabalhei um bom tempo num suplemento para crianças, o extinto caderno “Folhinha”, do jornal Folha de S.Paulo. Entre pautas sobre crianças que vivem em manguezais ou vão para a escola remando barquinhos, surgiu o desejo de saber como brincam as crianças deste século (sim, nasci no século passado...). Foi assim que surgiu o Mapa do Brincar (www.mapadobrincar.com.br), projeto que coordenei e foi premiado pelo Grande Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo em 2010, e depois o Infâncias (www.projetoinfancias.com.br), que documenta a vida de meninos e meninas pelo país. Nessa trajetória pelo universo das infâncias, tenho contado as narrativas das crianças em documentários, instalações e livros como Terra de cabinha – Pequeno inventário da vida de meninos e meninas do sertão (Peirópolis, 2016).

Quando criança, brincava de vendinha com os restos de um armazém da família. Arrumava as prateleiras azul-turquesa com latas, caixas e vidrinhos usados. Tampinhas de garrafa eram moedas, e folhas de laranjeira, notas. E as gavetas desse armazém escondiam um verdadeiro tesouro: livros de capa dura que meu pai usava para fazer a contabilidade. De tanto espiá-los, acabei ganhando um. Era uma espécie de caderneta que eu usava para registrar peripécias. Nela também anotava receitas de minha mãe, as quais depois eu experimentava num pequeno fogão esmaltado. Morava numa casa grande que tinha horta e pomar. Era um quintal que se misturava com a rua, num tempo em que muro não era preciso e o brincar era demorado. À noite, já cansada, adormecia abraçada à caderneta que me fez tomar gosto pela escrita. O tempo passou, virei jornalista. Entre outros trabalhos, implantei e coordenei o Prêmio Empreendedor Social, do jornal Folha de S.Paulo. Por muitos anos, viajei pelo país para documentar projetos sociais, vários deles ligados à infância. Outros encontros com as crianças surgiram quando participei do Mapa do Brincar. Mais tarde, uma parceria com Gabriela Romeu fez nascer o projeto Infâncias, que funciona como uma brincadeira de palmas. Para ele, colhemos a quatro mãos os versos, as narrativas e as brincadeiras das crianças de norte a sul do Brasil. E haja caderneta para anotar tantas histórias!

No sertão, o sol costuma ir embora mais cedo. Quando menino, eu corria no lusco-fusco da tarde para a porta da igreja. Ali, na transição entre o dia e a noite, brotavam crianças de todos os lados. E não bastava apenas uma rua para brincar. Era preciso lotear todos os espaços, tamanha a quantidade de cabinhas (ou crianças). No escurão da noite, até que o sono chegasse, virávamos donos da cidade pequenina. Então, de manhã bem cedo, eu ia para a oficina do meu avô. Entre tantos inventos que ele construiu para mim, o escurinho de uma caixinha fez meus olhos brilharem mais. Era uma máquina fotográfica que tinha o princípio da câmara escura. Com ela, eu saía fotografando e filmando, mas as histórias só ficavam gravadas em minha imaginação. Foi assim meu despertar para a fotografia, que mais tarde tornou-se realidade na Fundação Casa Grande, escola de comunicação e gestão cultural para meninos do sertão. Foi onde me tornei fotógrafo, cinegrafista e músico. Aos 12 anos, criei a TV Casa Grande, laboratório de mídias sociais que já produziu documentários para os canais Cultura e Futura. De lá para cá, participei de vários ensaios fotográficos, entre eles o “Mestres navegantes”, até que encontrei o Infâncias, projeto que me faz correr atrás de meninos e meninas que reinam em muitos quintais do Brasil, sempre com uma “câmara escura” na mão.

Apesar de ter crescido numa cidade grande como o Rio de Janeiro, sempre morei perto da floresta e do mar. Talvez por isso goste tanto de cheiro de mato molhado e de ficar salgado o dia todo. Em 2010, quando me formava em comunicação visual, viajei seis meses pelo interior do Brasil, e, ao longo dessa viagem, mandava cartas desenhadas para o meu irmão Amir, na época com 7 anos. As cartas viraram um livro, que foi publicado pela A Bolha Editora. Agora, neste livro, tive a oportunidade de revisitar alguns lugares por onde passei e conhecer um pouco mais outros lugares, aonde ainda quero ir. Atualmente, além do trabalho de ilustrador, facilito o projeto Cadernos e Caminhos, que leva pequenos grupos para viagens de desenho pelo interior do Brasil e propicia a pesquisa das relações entre desenho, corpo e sensações.


Este livro, impresso nas oficinas da Gráfica Santa Marta na primavera de 2019, é o primeiro volume da coleção, que reúne os muitos saberes populares, como as brincadeiras, os folguedos, as festas e as comidas, narrados por meninos e meninas de vários cantos do Brasil, um país que brinca, canta, dança, festeja e conta muitas e muitas histórias.


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