Filosofia berlendis

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livro do professor

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A crítica da aparência por Sócrates Vimos a questão levantada por Glauco no Livro II de República: quem é mais feliz, o justo que parece injusto, ou o injusto que parece justo? Na verdade, essa é uma pergunta retórica, pois Glauco já direciona a resposta conforme a maneira que formulou a questão. Bastará imaginar o destino reservado a ambos para responder que o injusto será mais feliz que o justo. Como acrescenta o próprio Glauco, aquele que aparenta ser virtuoso será recoberto de glória e admiração, embora, na verdade, seja injusto; o verdadeiramente justo, ao contrário, sofrerá “açoites e torturas”, e só ao fim da vida “compreenderá que não importa ser jus-

Os tipos e seu exagero característico Debate em sala de aula e apresentação de seminário

A literatura, o cinema e o teatro es-

tão cheios de tipos, de personagens que encarnam de maneira exagerada

determinadas características. E o que dizer, então, das telenovelas? Você certamente já viu, na tevê, tipos semelhantes ao homem injusto que parece ser justo, apresentado dialeticamente por Glauco. A personagem de Flora, representada por Patrícia Pillar em A favorita (2008-2009), telenovela criada por João Emanuel Carneiro, é apenas um exemplo dentre tantos outros.

• Em uma equipe de três a quatro integrantes, pesquisem, em sala de aula ou em casa, exemplos de tipos como aquele proposto por Glauco. Após sua caracterização, examinem se personagens assim são de fato possíveis na vida real. Caso a resposta seja positiva, apre-

sentem exemplos que comprovem suas conclusões. Caso seja negativa, examinem esta última questão: por que, então, as novelas, os romances, o cinema e o teatro sempre recorrem a essas caracterizações exacerbadas?

to, mas apenas aparentar sê-lo” (A república, II, 361e -362a, tradução nossa). Essa última conclusão de Glauco confirma a lição que ele havia extraído da história do anel de Giges. Trata-se de um elemento complementar, coerente com a argumentação sustentada por Glauco, e que podemos resumir assim: caso possamos ser injustos sem parecê-lo, seremos felizes. Ou seja, só somos justos, porque

A realidade da aparência página 167 Além de versão online (veja o sítio “Domínio público”), há tradução impressa desse texto publicada na Coleção “Os pensadores”: • J.-J. Roussseau, “Discurso sobre as ciências e as artes”.

Um importante autor do século XVIII se deu conta disso logo cedo em sua vida. Referimo-nos a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Nascido em Genebra, Rousseau se tornou conhecido em Paris, onde chegou aos 30 anos. Na segunda metade do século XVIII, Paris se tornara a capital da cultura e da civilização europeias: música, teatro, artes, o espírito de conversação, as festas nos grandes salões, tudo isso chama a atenção de todos que podem afluir para lá. Rousseau tampouco fica indiferente aos brilhos e à pompa dos costumes parisienses. Só que, ao invés de aderir a eles, torna-se pouco a pouco seu crítico ferrenho. A crer em Rousseau, a sofisticação dos costumes, o brilho da civilização, o decoro e os bons modos não apenas são dissociados da virtude, como também, muitas vezes, são adversários dela. Rousseau apresenta essas ideias em uma obra publicada em 1750, o Discurso sobre as ciências e as artes. O texto responde a uma questão levantada pela Academia de Dijon (França), que indagava se, tudo somado, o desenvolvimento das ciências e das artes promove ou não o aperfeiçoamento moral da humanidade. Na Unidade Continuidade e ruptura (módulo “ ‘Perfectibilidade’ e ‘desenvolvimento’”), você é apresentado ao conceito de “perfectibilidade”, tal como entendido por J.-J. Rousseau. Se quiser aprofundar sua compreensão de como Rousseau concebe a mudança histórica, recorra àquele trecho, articulando-o com a presente discussão sobre realidade e aparência. O que agora examinaremos é um ponto mais específico. Interessa-nos a avaliação negativa feita por Rousseau quanto ao desenvolvimento da civilização. Por que negativa? Porque, como ele escreve, o desenvolvimento das ciências e das artes, a sofisticação de nossos costumes, a busca pelo luxo e o requinte dos modos modernos – tudo isso fez com que uma distância insuperável se interpuses-

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realidade e aparência

Após a caracterização desses dois tipos, Glauco lança-nos a questão decisiva: qual deles você diria ser o mais feliz – o injusto que aparenta ser justo, ou o justo que aparenta ser injusto? Não é difícil notar que essa questão e a argumentação que a prepara constituem uma variante da narrativa do anel de Giges, apresentada por Glauco pouco antes. Só que, em lugar da fábula de Giges descobrindo o anel mágico que o torna invisível, Glauco agora nos propõe imaginarmos uma oposição de tipos cujas características são definidas sem recurso à fabulação e ao mito. Você bem pode indagar se, na vida real, existe alguém que seja tão perfeitamente injusto que pareça a todos o mais justo dos homens. Mas o essencial, aqui, é a caracterização de um tipo, o do homem injusto que sabe fazer com que suas ações tenham a aparência enganosa da virtude. Note que a apresentação desse tipo possui uma função conceitual. É pensando no fato de que os exageros podem auxiliar na abordagem e compreensão de um problema que Glauco, personagem de Platão em A república, lança mão desses dois homens fictícios: o perfeitamente justo e o perfeitamente injusto.

Sugira-lhes que imaginem fazer parte do diálogo redigido por Platão, participando do debate em torno da natureza da justiça. Peça-lhes que suponham estar de acordo com Glauco. Que considerem, por conta própria, outros argumentos que corroboram a tese conforme a qual a justiça é fruto de um cálculo. Faça-os enumerar esses argumentos e, em seguida, identificar o estatuto de cada uma das contribuições que imaginaram a favor de Glauco. Trata-se de um caso verídico que ilustra a tese defendida por ele? Ou de uma fábula ou história que, assim como a alegoria do anel de Giges, reforça a conclusão de que a justiça é resultado de um cálculo? Possivelmente os estudantes encontrem na sua própria experiência de vida motivos favorecendo a posição de Glauco. Peça-lhes, então, que deem a esses motivos a formulação mais ampla possível, de modo a conferir à lembrança ou situação evocadas um valor exemplar, isto é, que também possua validade para os demais. Veja também se os argumentos que eles imaginaram a favor da tese de Glauco não admitem uma formulação impessoal, a mais geral possível.

John Malkovich encarna o sedutor Visconde de Valmont em Ligações perigosas (Direção de S. Frears. EUA:1988), filme baseado no romance homônimo de P. C. de Laclos (1741-1803).

se entre o que somos realmente e nossa aparência exterior. Com isso, a sociedade atual criou um abismo entre ser e parecer. A aparência se tornou estranha à virtude, diz Rousseau. Nem sempre foi assim, ele acrescenta em seguida. Nos tempos primitivos, quando não havia a preocupação em parecer ser o que não se é, os indivíduos exibiam sua natureza mais íntima: “Antes que a arte tivesse polido nossas maneiras e ensinado a nossas paixões a falar uma linguagem artificial, nossos costumes eram rústicos, porém naturais. E a diferença no comportamento anunciava, imediatamente, a diferença dos caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor. Mas os homens encontravam sua segurança na facilidade de se perceberem reciprocamente, e essa vantagem, da qual não conhecemos mais o preço, lhes economizava muitos vícios.” (J.-J. Rousseau, Discurso sobre as ciências e

realidade e aparência

injusto que parece ser justo e do justo que parece injusto vão nesse sentido. A diferença entre ser e parecer justo se articula em torno do peso que possui, na vida dos homens, a opinião que fazemos uns dos outros. Parecemos justos ou injustos aos olhos dos demais. Segundo Glauco, é o juízo feito sobre nossas ações o que, em última análise, decide sobre nossa felicidade. Quanto melhor o juízo que se fizer de um homem, mais estimado e honrado ele será, e vice-versa. Se, portanto, o homem injusto souber esconder sua verdadeira natureza e parecer justo, será feliz. Como diz Glauco, a argumentação que ele expõe reflete “a opinião da maioria” (República, II, 358d). A refutação que Sócrates empreende do argumento de Glauco consistirá em defender que a felicidade não se subordina à representação que os demais fazem de nós. Sócrates terá de mostrar que a “opinião” (dóxa, em grego) é um critério instável para decidir sobre a moralidade dos homens. Se a “opinião” não é o conhecimento da verdade, como, então, apoiar-se nela para decidir sobre a justiça e a felicidade humanas? Nessa direção, Sócrates irá concluir que, embora o injusto possa construir a aparência da virtude, a aparência, enquanto simulacro, diferencia-se da verdade tanto quanto o erro. Ou seja, parecer justo não assegura felicidade a ninguém. É preciso, ao contrário, ser realmente justo, para poder alcançar a verdadeira felicidade. E, para ser justo, é preciso conhecer a justiça e imitá-la, mesmo que isso contrarie as expectativas da “opinião” sobre nossa conduta. Com base nesse esquema do argumento que será apresentado por Sócrates no decurso de A república, você pode propor aos alunos a seguinte atividade.

6/30/17 11:22 AM


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