Filosofia autentica

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compreender os seres humanos com base nos animais não humanos. Não há dúvida de que o ser humano tem em comum com os outros animais a “animalidade” (o fato de ser vivo, dispondo de um corpo dotado de diferentes capacidades). Todavia, o ser humano vive a “animalidade” a seu modo, o modo propriamente humano em que a “animalidade” é unida à racionalidade e à liberdade, e não de maneira idêntica aos animais irracionais. Aliás, sequer faz sentido dizer que o modo de os animais viverem a “animalidade” é idêntico para todos eles. Portanto, compreender a sexualidade humana em função do comportamento sexual dos animais não humanos parece algo sem justificativa. Um raciocínio a fortiori legítimo levaria a afirmar que, se mesmo entre os animais irracionais há alguns que vivem a prática sexual para além dos interesses reprodutivos, tanto mais os humanos (dotados da capacidade de refletir e de escolher) a separam da reprodução. A filósofa judia-alemã Hannah Arendt ( p. 117) refletiu sobre os equívocos da insistência em querer entender os seres humanos com base na observação dos animais. Em seu livro Sobre a violência,

Hannah Arendt estuda, como indica o título, o tema da violência, mas oferece uma chave de compreensão preciosa para pensar, por analogia ( p. 48), a sexualidade humana em comparação com o comportamento animal . Hannah Arendt, ao estudar a violência, problematiza uma ideia muito recorrente em sua época e ainda nos dias de hoje: os seres humanos são violentos porque são animais que vivem em grupos e defendem seu território. No dizer de Hannah Arendt, porém, essa ideia é fabricada; não é um dado “natural”. Trata-se de uma ideia ilegítima, pois entender os seres humanos como uma espécie dentro do gênero animal não obriga a explicar totalmente a espécie humana apenas com base nas outras espécies animais. Além disso, o pressuposto de que “animais violentos são em geral animais que vivem em grupos e precisam de um território” é um pressuposto que se aplica a todos os animais incluídos no sujeito (animais violentos), mas não se aplica a todos os animais incluídos no predicado (animais que vivem em grupos e precisam de um território). Dito de outra maneira, se todos os animais violentos são animais que vivem em grupo e precisam de

O comportamento humano é distinto do comportamento animal Hannah Arendt 1

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Embora eu considere fascinante a maior parte do trabalho dos zoólogos, não consigo ver como se pode aplicar esse trabalho ao nosso problema [da violência]. Para entender que o povo lutará por seu espaço, só com muita dificuldade poderíamos falar do instinto de “territorialismo grupal” de formigas, peixes e macacos; ou, para aprender que a superpopulação resulta em irritação e agressividade, não precisaríamos de experiências com ratos. Um dia numa favela de uma grande cidade já bastaria. Fico espantada, e na maioria das vezes feliz, quando vejo que alguns animais comportam-se como humanos, mas não entendo como isso poderia justificar ou condenar o comportamento humano. Não consigo entender por que nos pedem para “reconhecer que o ser humano comporta-se claramente como uma espécie grupal e territorialista”, em vez de dizer que são certas espécies animais que se comportam claramente como os humanos. [...] Por que nós, depois de termos libertado a psicologia animal de todos os antropomorfismos (se conseguimos ou não, essa é outra questão), deveríamos agora tentar saber o quanto teromorfo1 é o ser humano? Além disso, se definimos que o ser humano faz parte do gênero animal, por que deveríamos pedir a ele que adote padrões de comportamento de outras espécies animais? A resposta, infelizmente, é simples: é mais fácil fazer experiências com animais [...]; não é bonito pôr seres humanos em jaulas. Mas há um elemento de perturbação nisso tudo: o ser humano pode trapacear!

Filosofia e filosofias – existência e sentidos

ARENDT, Hannah. On violence. Nova York: Harcourt, Brage & World, 1969. p. 59-60. (Sobre a violência. Tradução nossa.)

1

Teromorfo: o que possui a forma de uma fera ou animal irracional de grande força.


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