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APRESENTAÇÃO

Em 1824, J. B. Jeter ouviu John Dagg pregar em Romanos 1.14. A ocasião era uma reunião de uma Sociedade Missionária. O local era Richmond. Jeter descreveu assim o estilo da pregação de Dagg: Sua conduta era calma e pausada; sua voz era nítida e solene; seu estilo era puro, concentrado e vigoroso; seus gestos eram poucos, mas apropriados; e seu raciocínio era pertinente, convincente e impressionante.

Mude tal descrição para descrever o meio escrito em vez do oral e, novamente, as palavras corretamente descrevem John Dagg. Em clareza, convergência e fidedignidade das expressões, nenhum teólogo do Século 19 supera John L. Dagg. Assim celebro o surgimento desses volumes como uma bênção de Deus para a igreja. Esta edição da Teologia de Dagg é singular. Ela traz em si ambas as partes de seu clássico: Manual de Teologia e Manual de Eclesiologia1. As duas obras refletem o espírito genuinamente cristão do autor. Em ambos os tratados, o vibrante calvinismo prático de Dagg cativa o espírito do leitor e abre sua mente para considerar a magnitude da graça de Deus.

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1 John Dagg, Manual de Eclesiologia (Rio de Janeiro: Pro Nobis, 2022).

Dagg, nascido em 1794, em Loudoun County, Virgínia, viveu mais de 90 anos. Ele faleceu em junho de 1884, como um dos homens mais respeitados no cenário batista e permanece como um dos pensadores mais profundos que sua denominação produziu. A diversidade de seus trabalhos demonstra isso.

Além dos mencionados tratados teológicos, Dagg escreveu um livro-texto sobre ética cristã, intitulado The elements of moral science (Os elementos da ciência moral, 1860), além de uma defesa da fé cristã intitulada The evidences of Christianity (As evidências do cristianismo, 1869).

A quantidade volumosa de escritos, a persuasão de seus argumentos e a relevância de seus insights revelam essas obras como algo extraordinário para um homem em condições normais de saúde. Contudo, quando se descobre que Dagg era praticamente cego, mudo e aleijado no momento de sua maior produtividade, tal conquista excede a compreensão.

John Broadus tinha em alta conta o caráter de Dagg e beneficiou-se significativamente de seus escritos. Em Memoir of James Petigru Boyce, Broadus afirma:

O Dr. Dagg era um homem de grande habilidade e um caráter amável. Seus trabalhos são dignos de um estudo meticuloso, especialmente seu pequeno volume Manual de Teologia, que é digno de nota quanto a suas declarações claras de verdades profundas e sua doçura devocional. Perdoem o autor dessas Memórias ao reconhecer que, depois de muito labutar, em seus primeiros anos como pastor, com as obras de Knapp e Turretin, Dwight e Andrew Fuller, assim como outros teólogos complexos, encontrou alegria nesse Manual e tem sentido um prazeroso impulso dado por ele à reflexão e às pesquisas teológicas.2

A teologia de Dagg tem sido classificada como “calvinismo-agostinianismo moderado”. Tal nomenclatura não deve deixar a impressão de que as doutrinas teológicas e soteriológicas de Calvino fossem rejeitadas ou estivessem escondidas de qualquer forma. Entendida corretamente, a frase revela Dagg como um calvinista prático, não apenas como um teólogo escolástico. A evidência estrutural mais notável da aplicabilidade da teologia de Dagg é sua combinação impressionante e nítida das verdades do dever e da graça.

O dever do homem é apresentado na introdução de cada “livro” da pesquisa teológica. Na verdade, a introdução do Manual declara a obrigação do homem de estudar a verdade religiosa.

O estudo da verdade religiosa deveria ser empreendido e continuado com base no senso do dever, tendo como escopo o aprimoramento do coração. Uma vez aprendida, essa verdade não deveria ser guardada em uma estante, como se fosse um objeto de pesquisa; antes, deveria ser implantada profundamente no coração, onde o seu poder santificador pode ser sentido. Essa é a postura e a forma de toda a obra:

• no Livro II, “Doutrina concernente a Deus”, a primeira seção começa com uma explicação do dever de amar a Deus;

• o Livro III, “Doutrina concernente à vontade e às obras de Deus”, começa com um tratado sobre “o dever de nos deleitarmos na vontade e nas obras de Deus”;

2 John Broadus, Memoir of James Petigru Boyce (New York: A. C. Armstrong and Son, 1893), p. 112-113, n1.

• o Livro IV, “Doutrina concernente à Queda e ao estado atual do homem”, inicia-se com uma declaração sobre o dever do arrependimento;

• o Livro V, “Doutrina concernente a Jesus Cristo”, começa com uma admoestação quanto ao dever de crer em Jesus Cristo;

• o Livro VI, “Doutrina concernente ao Espírito Santo”, começa com o dever de viver e andar no Espírito;

• o Livro VII, “Doutrina concernente à graça divina”, inicia afirmando o dever da gratidão pela graça divina;

• o Livro VIII, “Doutrina concernente ao mundo vindouro”, tem em sua introdução uma declaração acerca do dever de preparar-se para o mundo futuro.

Paralelamente ao dever ou obrigação do homem, Dagg insere a graça de Deus. Enquanto um homem deve realizar todo o seu dever para com Deus, ele não pode fazê-lo à parte da graça de Deus. Da mesma forma, enquanto, somente pela graça, alguém pode arrepender-se e crer, essa realidade não o isenta da obrigação de cumprir tais deveres. Dever designa a relação do homem com Deus; sem a livre graça, não é possível realizar nenhum dever.

A doutrina de que a salvação é pela graça não é uma especulação sem proveito; antes, está no âmago da experiência cristã, e a fé que não a reconhece também não recebe a Cristo da maneira como ele é apresentado no evangelho. Dagg enxerga o amor de Deus como a causa eficiente que produz fé dentro do pecador.

Está claro, portanto, que o amor de Deus atua como uma causa eficiente, antes de operar como um motivo para a santidade...

A fé é produzida pelo poder eficiente desse mesmo amor...

Essa operação divina, que é uma adição ao poder motivador da verdade, provém daquilo que se tem denominado como a influência direta do Espírito Santo.

Assim, a fé, um dever, é gerada pelo amor de Deus sob a atuação direta e efetiva do Espírito Santo.

Dagg é quase despretensioso demais. Ele cita poucos autores – e, mesmo assim, praticamente só em Manual de Eclesiologia. Essa atitude baseia-se no propósito de apresentar uma exposição direta e sistemática dos ensinos das Escrituras, em vez de analisar a crença de outros homens. As Escrituras são citadas abundantemente, e nenhuma proposição sustenta a si mesma sem suporte do ensino das Escrituras. Ele tem o propósito de evitar “a região espinhosa das polêmicas teológicas”.

Não se deve concluir disso que Dagg não estivesse ciente da teologia e dos argumentos de outros homens. Ele estava claramente informado das posições que divergiam de suas próprias e apresenta tais argumentos diferentes de forma justa. Ele, então, procede para desmantelar o ponto mais forte da oposição com as fortes e convincentes ferramentas da exposição bíblica, interpretando a Escritura de acordo com a gramática, história e analogia da fé. Ele, contudo, não menciona nomes, pois estava resoluto a não se envolver em controvérsias, “senão com a incredulidade dos nossos próprios corações”.

Em seu Manual de Teologia, Dagg demonstra muito bem a coerência entre, de um lado, teologia e cristologia ortodoxas e, de outro lado, uma soteriologia evangélica reformada. Sua discussão sobre os atributos de Deus lança sólido fundamento para sua exposição da soberania da graça. Sua discussão sobre a pessoa de Jesus Cristo é fundamental para seu entendimento da obra de expiação de Cristo.

No entanto, seu tema dominante é o Espírito Santo como agente de transformação do coração humano, por e para as verdades do evangelho. Cristãos de todas as convicções podem se beneficiar grandemente de suas lúcidas argumentações.

Seu Manual de Eclesiologia será especialmente proveitoso para os batistas, visto ser uma das mais coerentes defesas da visão batista sobre a igreja. Além disso, aqueles de convicção batista verão esse como um complemento necessário para uma soteriologia reformada. A defesa que Dagg faz da igreja universal é significativa no contexto da crescente influência do landmarquismo3 na sua geração. O autor, porém, não se aprofundou nesse tratado com o mesmo deleite que o acompanhou no anterior, sobre doutrina; mas, em conformidade com sua própria posição teológica, ele seguiu pelo senso de dever.

Em 1879, a Convenção Batista do Sul endossou, de forma expressiva, a posição teológica básica de Dagg. Sob a liderança de W. H. Whitsitt, a Convenção decidiu que “um catecismo fosse desenvolvido, contendo a essência da fé cristã para instrução de crianças e servos e que o irmão John L. Dagg fosse designado para escrevê-lo”.

Minha oração é que esse volume renove o compromisso teológico entre os batistas e, mais do que isso, que o espírito desse homem fique tão evidente, que cheguemos a compartilhar de seu caloroso compromisso experimental com as realidades de Deus, como ele expressou em sua autobiografia:

Para encorajar gratidão a Deus, eu desejo mencionar a bondade do Senhor para com a nossa família. Todos os meus cinco filhos professaram a Cristo. Dois deles já estão no céu e os três restantes estão no caminho. 17 dos meus netos professaram a Cristo e são verdadeiros discípulos, eu espero. Se todos esses 22 são herdeiros da herança incorruptível, a qual vale mais do que todos os reinos da terra, que família rica somos! Vamos todos nos unir em gratidão a Deus por suas bênçãos sem fim. Mas não nos esqueçamos de que há ainda nove netos e oito bisnetos que precisam de Cristo e sua grande salvação. Por eles, devemos orar fervorosamente, para que todos sejam trazidos para os braços de Cristo e o sirvam fielmente na terra, unindo-se aos demais, para formar uma família inteira no céu.

3 N. T.: Influência das ideias do artigo An old landmark reset, escrito por J. M. Pedleton em 1854.

Tom Nettles Fort Worth, Texas, EUA Outubro de 1981

Este volume foi projetado para ser usado por aqueles que não têm tempo nem oportunidade de estudar obras mais volumosas sobre teologia. Ao prepará-lo, o meu propósito foi apresentar o sistema de doutrinas cristãs com clareza e demonstrar, a cada passo, a sua veracidade e a sua tendência para santificar o coração do crente. Indivíduos dotados de inclinação e talento para pesquisas profundas talvez prefiram discussões mais laboradas. No entanto, se a pessoa iniciada na religião cristã obtiver, através deste livro, ajuda na tarefa de determinar no que consiste a verdade e qual o seu uso apropriado, então, a principal meta desta obra terá sido alcançada.

Ao delinear a verdade divina, podemos expô-la segundo diferentes aspectos e relações. Podemos encará-la como proveniente de Deus, dotada de suprema autoridade; ou, então, como um sistema revelado por Jesus Cristo, cujas suas partes se conjugam harmoniosamente umas às outras, agrupando-se em torno da doutrina da cruz, que é o ponto central; ou, ainda, como verdade que penetra no coração humano através da agência do Espírito Santo, transformando-o segundo a imagem de Deus. Esforcei-me, sobretudo, para que este último aspecto se tornasse o traço mais proeminente destas páginas. O princípio moral e religioso do homem requer uma influência adequada para que se desenvolva e aperfeiçoe; nas verdades aqui descritas, encontra-se tal influência. A capacidade de uma doutrina em produzir esse efeito é aqui considerada como prova de sua veracidade e de sua origem divina. De acordo com isso, até certo ponto, podemos deduzir os “artigos da fé” pelos exercícios da piedade no íntimo.

Entretanto, não se dependeu exclusivamente desse método para demonstrar a veracidade das doutrinas. Também foram examinadas outras fontes de conhecimento religioso, sobretudo a Bíblia, na qual a verdade de Deus é diretamente conhecida. O apelo final sempre é feito ao Livro Santo, o padrão supremo; a harmonia de suas estipulações com as deduções extraídas de nossa experiência interna é sempre observada para confirmação da nossa fé. Mesmo que esse sistema seja aqui visto como algo que emanou de Deus e que agora atua sobre o ser humano, não temos dirigido a nossa atenção exclusivamente para a sua origem ou sua conclusão. Não foi negligenciada a convergência de todas as suas linhas para o glorioso centro, que é a cruz de Cristo. Espero que o leitor ache provas, nestas páginas, do fato de que a doutrina da cruz é o ensino segundo a piedade. Não fez parte de meu propósito conduzir o humilde interessado à região espinhosa das polêmicas teológicas. Evitar tudo que estivesse sujeito às controvérsias era impossível, porquanto cada aspecto da verdade divina tem sido atacado. Porém, planejei acompanhar o curso das investigações sendo afetado o menos possível pelos conflitos dos disputantes religiosos e não entrando em disputa alguma, senão com a incredulidade dos nossos próprios corações. Foram examinadas as questões capazes de deixar perplexos os inquiridores sinceros; e, se elas não puderam ser totalmente elucidadas ou respondidas para a satisfação de todos, espero que tenham sido tratadas de tal maneira que a mente do investigador descanse pacificamente sobre a verdade claramente revelada, esperando com paciência pela luz mais forte da eternidade, a qual dissipará toda e qualquer treva restante.

Nos assuntos religiosos, os homens parecem mui naturalmente inclinados para aquilo que é difícil e obscuro; talvez porque fujam da inquietante verdade plenamente revelada. O próprio iniciante, abandonando assuntos claros, gosta de mergulhar em investigações profundas, em raciocínios difíceis, os quais o teólogo habilidoso sente ser mais sábio evitar. Surge a frequente necessidade de relembrar ao investigador que existem temas que se prolongam até muito além dos limites de sua compreensão e que, se ele se esforçar por explorá-los além do ponto até onde é guiado pela revelação divina, corre o risco de confundir a verdade de Deus com meras hipóteses ou com as deduções de raciocínios enganosos. Uma hipótese pode ser legitimamente admitida com o propósito de remover objeções, contanto que jamais nos esqueçamos de que uma hipótese é apenas uma hipótese. Um raciocínio complexo deve ser permitido quando for necessário penetrarmos em labirintos, com o propósito de desembaraçar dali os que neles se perderam. Não obstante, quando se trata de provas diretas, atinentes a todo e qualquer artigo de fé, este livro depende das declarações expressas da Palavra de Deus ou daquelas deduções que podem ser utilizadas por mentes práticas e destituídas de complicações. Qualquer pessoa que deseje examinar uma história das opiniões religiosas não a encontrará neste volume. A religião é uma transação que se efetua entre cada indivíduo e o seu Deus; cada indivíduo deveria buscar a verdade com independência, sem importar quais sejam as opiniões de outras pessoas. Tenho sido guiado pelo alvo de procurar orientar a mente do leitor diretamente às fontes do conhecimento religioso, incitando-o a investigar essas fontes por si mesmo, sem qualquer consulta a autoridades humanas. Ele poderá conhecer, através da ajuda aqui oferecida, quais são os meus pontos de vista. Todavia, desejo acautelá-lo, de uma vez por todas, a não adotar qualquer opinião que eu porventura apresente, além daquilo que estiver solidamente sustentado pela Palavra de Deus. Se o meu desejo fosse fixar a fé do investigador na autoridade humana, eu me teria utilizado de citações de escritores célebres em apoio às minhas opiniões; mas preferi não o fazer. O meu desejo é que, no que concerne à autoridade humana, o leitor não enxergue nas doutrinas aqui expostas senão a mera opinião de um verme falível; mas que, no que diz respeito ao apoio da Palavra de Deus, ele as receba como a verdade divina. Este volume não contém coisa alguma referente aos aspectos externos da religião. A forma da piedade é tão importante quanto o seu poder, e a doutrina referente à piedade é uma porção integrante do sistema cristão; todavia, fui incapaz de incluí-la na presente obra. Caso esta humilde tentativa de beneficiar a outros não alcance sucesso, ainda assim, ela não terá sido inútil para mim mesmo. Diante da eternidade que já se aproxima, senti ser vantajoso reexaminar os alicerces sobre os quais repousa a minha fé. Se o manuseio destas páginas proporcionar ao leitor tanto proveito e deleite quanto propiciou ao autor a sua preparação, então, no mundo futuro, acharemos motivos para nos regozijarmos juntos pelo fato de que amigos cristãos tenham demandado esse pequeno serviço em favor da causa do nosso Redentor.

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