História da Psiquiatria - Século XX... em diante - Parte III

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Nossa narrativa histórica e cronológica dos caminhos do desenvolvimento da psiquiatria no século XX assinala, logo de início, a atuação de Kraepelin no cerne da dominante psiquiatria alemã, além de ser essa a nação preponderante no número de hospitais psiquiátricos e com fervilhantes estudos de neurologistas ilustres, tais como Hoche, Alzheimer e Nissl, particularmente na Universidade de Heidelberg, sobre as moléstias mentais. Ali perto, na Áustria, germinava, sob a tutela de Freud, outro baluarte da psiquiatria do século XX, o movimento que se tornou poderoso por décadas, a psicanálise, protagonizada inicialmente por grandes mestres, como Adler, Jung, Abraham e Stekel. No Brasil, a psiquiatria dava os primeiros passos com Teixeira Brandão e Juliano Moreira. Já na França, destacavam-se os estudos sobre hipnose, bem como outras descobertas com Binet e Janet, além de Sérieux e seus alunos, entre os quais Capgras, que descreviam novas formas de psicoses interpretativas crônicas. Na Rússia, por sua vez, pesquisas sobre reflexologia eram capitaneadas por Pavlov e Bekhterev. Narramos também o progresso da psicopatologia na Universidade de Heidelberg, com expoentes da psiquiatria alemã, como Kretschmer, Jaspers e Schneider. No Brasil, o local de estudo da psicopatologia foi o Hospital do Juqueri, criado por Franco da Rocha em conjunto com seus ilustres componentes, entre os quais Pacheco e Silva. No fim da primeira metade do século, a psicanálise foi se firmando com Anna Freud, Klein e Jones, enquanto Wagner-Jauregg descobriu a malarioterapia para o tratamento da sífilis cerebral. Logo, em seguida, surgiram a insulinoterapia, com Sakel, o cardiazol, com von Meduna, e a eletroconvulsoterapia, com Cerletti, para tentar melhorar os sintomas psiquiátricos. Mas foram os primeiros calmantes bem como a descoberta da clorpromazina por Delay e Deniker e do lítio por Cade que levaram os hospitais a um significativo esvaziamento, enquanto prosseguia a psiquiatria de consultório em larga escala, particularmente nos Estados Unidos, com projeção nacional de Menninger. O progresso da psicofarmacologia se deu com descobertas de inúmeros benzodiazepínicos, diversos tipos de antidepressivos, antipsicóticos e estabilizadores de humor, enquanto a psiquiatria clínica respondia cada vez mais aos ataques do movimento da antipsiquiatria, iniciado por Cooper. Assinalamos ainda todas as linhas psicoterápicas que foram sendo criadas: o psicodrama, com Moreno; as psicoses, com Schilder; a psicopatologia fenomenológica e o crescimento da fenomenologia existencial, com Binswanger; a abordagem corporal, com Reich; a fenomenologia francesa, com Henri Ey; a logoterapia, com Frankl; a Gestalt, com Perls; e a psicoterapia interpessoal, com Klerman. Por fim, destacamos o aparecimento das classificações diagnósticas e suas implicações, bem como salientamos os últimos progressos do século XXI, inclusive o Prêmio Nobel de Kandel.

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Marcos de Jesus Nogueira - Coordenador Psiquiatra clínico, membro titular da Sociedade Brasileira de História da Medicina, autor de vários livros de Psiquiatria com apelo visual de arte gráfica e ênfase pedagógica, mantém nesta obra uma visão cronológica da História da Psiquiatria.

Maurício Eugênio Oliveira Sgobi Psicólogo clínico, especializado em Transtornos de Substância e do Controle dos Impulsos, também é autor de outros livros juntamente com o coordenador desta obra.

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Marcos de Jesus Nogueira Coordenador

Marcos de Jesus Nogueira Maurício Eugênio Oliveira Sgobi Autores

HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA Século XX... em diante Parte III

1a. edição

Araraquara 2021

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© 2021

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio, sem autorização expressa, por escrito, da Hikma Editora. Capa Editora Cubo Ilustração da capa EMIL KRAEPELIN e SIGMUND FREUD - por Celso Ludgero Azevedo Projeto gráfico Editora Cubo Revisão e Diagramação Editora Cubo Revisão Ana Luísa Coletti Ricci Ilustrações Celso Ludgero Azevedo 1ª Tiragem 1.000 Impressão Gráfica Multipress

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nogueira, Marcos de Jesus História da psiquiatria Século XX-- em diante : parte III / Marcos de Jesus Nogueira, Maurício Eugênio Oliveira Sgobi. -- 1. ed. -- Araraquara, SP : HIKMA, 2021. Bibliografia ISBN 978-65-994868-0-7 1. Psiquiatria 2. Psiquiatria - História I. Sgobi, Maurício Eugênio Oliveira. II. Título.

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CDD-616.89009 NLM-WM 011 Índices para catálogo sistemático:

1. Psiquiatria : História

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LINHA DO TEMPO DA HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA - SÉCULO XIX – PARTE II Jean-Pierre Falret

Wilhelm Griesinger

Bénédict Augustin Morel

Gustav Theodor Fechner

1845

1845

1860

1860

Aperfeiçoamento da fundação da psiquiatria clínica e da patologia mental.

Início da escola clássica alemã e da psiquiatria científica moderna.

Estudos de causalidade, hereditariedade e degeneração.

Fundação da psicologia experimental.

Karl Ludwig Kahlbaum

Henry Maudsley

Cesare Lombroso

Richard Von Krafft-Ebing

1863

1867

1874

1879

Ideias em psicopatologia e em nosologia psiquiátrica.

Consistência dos fundamentos da psicopatologia e dimensão biológica da insanidade.

Introdução de métodos para os estudos da criminologia.

Primeiros estudos sobre perversões sexuais.

Wilhelm Maximilian Wundt

Valentin Jacques Joseph Magnan

Jean-Martin Charcot

1879

1885

1887

Consolidação da psicologia experimental e científica.

Retomada da teoria da degeneração.

Avanços da neurologia e sua fundamentação.

FATOS DA HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX – PARTE II

Cenário da metade do século XIX.

Esboço das descobertas científicas da época.

Que loucura é essa?

O controle social por meio do isolamento institucional.

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A virada alemã.

População asilar e fatores de demanda de internação.

Paralisia geral progressiva.

Teoria da degeneração.

Horrores asilares: O dilema da por fora “bela homossexualidade: viola”, por dentro doença ou pecado? “pão bolorento”.

Grandes sanatórios do período.

Os primeiros hospícios públicos para alienados no Brasil.

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SUMÁRIO 5 Louis Jules Ernest Séglas 6 Ambroise-Auguste Liébeault 7 Hippolyte Bernheim 8 Hipnose e Psiquiatria –

Pequena História 10 Começo...Meio...e...Kraepelin! 12 Emil Kraepelin 23 A Mudança Metodológica – Do Asilo ao Spa 26 Alfred Erich Hoche 27 Alfred Binet 28 Pierre-Marie-Félix Janet 29 Ivan Petrovitch Pavlov 30 Sedare Dolorem Opus Divinum Est 32 Gustav Aschaffenburg 33 João Carlos Teixeira Brandão 33 Juliano Moreira 34 Ferdinand Pierre Louis Ernest Dupré 35 Franz Alexander Nissl 36 O Nascimento da Psicoterapia 38 Sigmund Freud 54 Alois Alzheimer 55 Alfred Adler 57 Carl Gustav Jung 65 Karl Abraham 66 Wilhelm Stekel 67 Clifford Beers 68 Paul Sérieux 68 Vladimir Mikhaylovich Bekhterev 70 Paul Eugen Bleuler 74 Universidade de Heidelberg 79 Julius Wagner-Jauregg 80 Otto Rank 81 Karl Theodor Jaspers 87 John Broadus Watson 88 Sandor Radó 88 Ernst Rüdin 89 Oswald Bumke 89 Isador Henry Coriat 90 Charles Frederick Menninger 91 Hospital Psiquiátrico do Juqueri 99 Lima Barreto

LEGENDA DOS QUADROS

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99 Alfred Ernest Jones 100 Melanie Klein 101 Constantin Freiherr Von Economo

102 Morton Henry Prince 102 Paul Ferdinand Schilder 103 James Crichton-Browne 104 Primeira Metade do Século XX - Entreguerras

109 Hermann Rorschach 110 Jacob Levy Moreno 111 Gaëtan Gatian de Clérambault 113 Ernst Kretschmer 118 Hans Prinzhorn 119 Kurt Schneider 125 Jean Marie Joseph Capgras 125 Henri Charles Jules Claude 126 Sándor Ferenczi 127 Wilhelm Mayer-Gross 128 René Laforgue 128 Wilhelm Reich 130 Manfred Joshua Sakel 131 Eugène Minkowski 136 Jean William Fritz Piaget 137 Jacques-Marie Émile Lacan 138 Franz Gabriel Alexander 139 Karl Kleist 139 Juan José López-Ibor 140 Ladislas Joseph Von Meduna 141 Gabriel Langfeldt 141 James Wenceslas Papez 142 Hans Berger 143 Lauretta Bender 144 Tratamento... ou Desespero da Impotência Médica?!

146 William Herbert Sheldon 146 Ludwig Binswanger 147 Leo Kanner 148 Stanley Cobb 148 Otto Fenichel 149 Primeiros Calmantes: o

Começo da Psicofarmacologia

151 Mary Jane Ward 152 A Descoberta do Tratamento do Lítio

154 Henri Baruk  neurologistas

154 Erik Erikson 155 René Arpad Spitz 156 Segunda Metade do Século XX 158 Henri Laborit 160 Jean-Louis-Paul Delay 160 Pierre Georges Deniker 161 Wilfred Ruprecht Bion 162 Maximilian Fink 163 Joel Elkes 163 Abraham Wikler 164 Roland Kuhn 164 Edgar Heinz Lehmann 165 Nathan Schellenberg Kline 166 Henri Ey 169 Max Hamilton 170 Anti... o quê!!!??? ... Psiquiatria 172 William Linford Llewelyn Rees 172 José Leme Lopes 173 Michael Shepherd 173 Aubrey Julian Lewis 174 Myrna Milgram Weissman 174 John Kenneth Wing 175 Donald Franklin Klein 176 Viktor Emil Frankl 181 Eliot Trevor Oakeshott Slater 181 Eli Robins 182 Yves Pélicier 182 John Preston Feighner 183 William Walters Sargant 184 Psicoterapia de Resultados 186 Timothy John Crow 186 Hans Jürgen Eysenck 187 George Libman Engel 188 Outros Progressos 189 Solomon Halbert Snyder 189 Samuel Barry Guze 190 Robert Spitzer 192 Gerald L. Klerman 192 Nancy Andreasen Coover 193 Prozac: Um Marco Histórico 194 Kenneth Kendler 196 Eric Richard Kandel 200 A Saga do Diagnóstico 203 New Age 206 Bibliografia

psicanalistas

psicólogos

psiquiatras

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1888

FRANÇA

LOUIS JULES ERNEST SÉGLAS (1856-1939) – Psiquiatra. Nascido na cidade de Évreux, região da Normandia, era um jovem modesto e simples. Seu profissionalismo se manifestou precocemente, e com 28 anos foi eleito para a Sociedade Médico-Psicológica, assumindo a presidência em 1908. Sua postura médica foi assinalada por ele mesmo no prefácio de suas Lições clínicas sobre doenças mentais e nervosas, no qual afirma: “Sempre tentei permanecer o mais simples possível, manter-me estritamente do ponto de vista da observação clínica”. Trabalhou no Hospital da Salpêtrière como assistente de Jules Falret e, a partir de suas ideias e teorias, influenciou, anos mais tarde, vários psiquiatras notáveis, como Henri Ey (1900-1977). No campo da psicopatologia, conduziu estudos sobre delírios, alucinações e pseudoalucinações, dando origem a uma nosologia detalhada desses fenômenos. Para Séglas, em nível metodológico, o estado delirante deve ser rejeitado como critério diagnóstico: “A fórmula não é tanto como a gênese de ideias delirantes que podem servir como elemento capital para o diagnóstico [...]. O diagnóstico completo deve incluir, por outro lado, todos os sintomas, somáticos e psíquicos, seu modo de aparência, sucessão, seus respectivos relacionamentos, bem como o modo de evolução de toda a condição”. Em seu artigo “L’hallucination dans ses rapports avec la fonction du langage” (tradução: A alucinação em suas relações com a função da linguagem), publicado no Progrès Médical, de 1888, n. 33-34, descreveu as alucinações psicomotoras verbais, apontando dois fenômenos importantes entre as alucinações psíquicas: 1) impulsos verbais do tipo onomatomania; e 2) alucinações psicomotoras divididas nos seguintes grupos: a) alucinações verbais motoras puras, apresentadas ao sujeito como sensações de movimentos articulares puros; b) alucinações motoras e auditivas verbais, nas quais um elemento sensorial auditivo se mistura; c) fenômenos pseudoalucinatórios manifestados como representações interiores de natureza sinestésica. Desta forma, Séglas previu que, com o tempo, o fenômeno alucinatório progredia para o delírio: do mais simples ao mais complexo, do som auditivo à alucinação psicomotora verbal, manifestada no final da progressão delirante. Em se tratando da ilusão sistematizada de perseguição, primeiramente, o sujeito ouve sons, depois vozes (alucinações auditivas verbais externas), antes mesmo de perceber vozes psicomotoras internas. Em função do grande e constante interesse a respeito da linguagem dos alienados, Jules afirmou acerca do fenômeno alucinatório: “É possível entrar em comunicação com o paciente sob seus diferentes modos e, tanto no homem alienado quanto no saudável, será sempre através do meio da linguagem, fala, escrita, gestos, modificações do pensamento e as diferentes emoções”. Em um primeiro momento, Séglas retomou a definição clássica de alucinação dada por Benjamim Ball, isto é, “uma percepção sem objeto”, apoiando-se também na formulação mais cautelosa de Jean-Étienne Esquirol, datada de 1817, de que a alucinação é “uma sensação atualmente percebida, enquanto nenhum objeto capaz de excitar essa sensação está ao alcance [dos] sentidos”. Entretanto, anos mais tarde, em 1934, Séglas começou a se distanciar da definição de Ball, tendo estudado as várias teorias de alucinação em vigor na época: sensoriais, psíquicas, mistas, perceptivas e, finalmente, localizadas (relacionadas aos centros corticais), para as quais atribuiu relevante importância.

Les troubles du langage chez les aliénés (1892) – (tradução: Distúrbios da linguagem na loucura).

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Louis Jules Ernest Séglas

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HIPNOSE E PSIQUIATRIA – Pequena História Na história da humanidade, as pessoas em estado hipnótico eram consideradas como possuídas por um demônio.

FRANZ ANTON MESMER (1734-1815)

JAMES BRAID (1795-1860)

Médico alemão, Mesmer desenvolveu uma teoria segundo a qual nosso corpo contém certo magnetismo, utilizado para curar doenças. Teorizou a existência de uma transferência de energia natural entre todos os objetos animados e inanimados, denominando-a “magnetismo animal”, posteriormente conhecida pelo termo “mesmerismo”. Para Mesmer, o “magnetismo animal” poderia ser ativado por qualquer objeto magnetizado e manipulado por qualquer pessoa treinada. 1773 - Primeira aplicação de imãs no corpo de uma paciente histérica, com convulsões, chamada Francisca Oesterline. Estabeleceu que os causadores de doenças nervosas eram os fluídos magnéticos desequilibrados. Obteve grande sucesso entre as histéricas sugestionáveis, por meio do tratamento magnético com as mãos. 1778 - Utilizou como técnica o baquet (banheira, em francês) no tratamento grupal em Paris. Mesmer desenvolveu ainda vários tratamentos terapêuticos para alcançar um fluxo harmonioso de fluidos e, em muitos desses tratamentos, atuou como um participante ativo e muito dramático. 1778 - Após uma cura prometida, porém não realizada, a uma famosa pianista, além de ter havido relatos de toque inadequado, foi acusado por médicos vienenses de fraude, deixando a Áustria para se estabelecer em Paris. Na França, continuou a ter uma prática altamente lucrativa, mas, novamente, atraiu a contrariedade da profissão médica. Em 1784, o rei Luís XVI nomeou uma comissão de cientistas e médicos para investigar os métodos utilizados por Mesmer. Entre os membros da comissão governamental se faziam presentes Benjamim Franklin, embaixador americano em Paris, Antoine Lavoisier e Joseph-Ignace Guillotin, médico francês. A investigação teve como resultado a conclusão de que o fenômeno se devia à imaginação e à crença dos pacientes, comprovando a incapacidade de Mesmer de sustentar suas alegações científicas, o que causou o enfraquecimento do movimento mesmerista.

Médico escocês, Braid formulou a hipótese de inibição neural capaz de promover uma condição semelhante ao sono, pois constatou o fato de os comportamentos dos indivíduos hipnotizados serem muito influenciados pelas ideias e expectativas transmitidas pelo hipnotizador. Foi o responsável por cunhar o termo “hipnose”, influenciando importantes estudiosos.

JAMES ESDAILE (1808-1868)

Médico escocês, Esdaile realizou mais de três mil cirurgias com anestesia hipnótica.

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Hipnose e Psiquiatria – Pequena História

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JEAN-MARTIN CHARCOT (1825-1893)

Charcot afirmava que a hipnose era semelhante à histeria, ou seja, originava-se de uma fraqueza neurológica, passando pelas seguintes fases: letargia, catalepsia e sonambulismo.

AMBROISE-AUGUSTE LIÉBEAULT (1823-1904)

SIGMUND FREUD (1840-1919)

MILTON H. ERICKSON (1908-1980)

HIPPOLYTE BERNHEIM (1840-1919)

Estudou a hipnose em Paris e em Nancy, mas não deu prosseguimento à técnica por falta de adaptação. Tentava acessar memórias reprimidas, seguindo a teoria do trauma psicológico. Essa técnica caiu no esquecimento até o período das grandes guerras, sendo impulsionada pelos estudos promovidos nos Estado Unidos e na Inglaterra, onde adotaram a hipnose como tratamento auxiliar em meados da década de 1950.

Psiquiatra americano, Erickson estudou profundamente a hipnose e seus fenômenos. Revisou a forma clássica da hipnoterapia, reformulando toda a compreensão sobre o assunto, bem como suas induções e as formas de trabalhar com seus fenômenos. Em seu método, o indivíduo é apenas sugerido a se hipnotizar e, em vez de obedecer a ordens, recebe sugestões do que pode buscar em sua mente. Erickson é considerado, portanto, o grande aperfeiçoador da hipnose.

História da Psiquiatria - Parte III

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(ESCOLA DE NANCY) Afirmavam que a hipnose era um fenômeno normal (rejeição da histeria como causa), distinguindo-se pelo modo como a sugestão interferia nas ideias que levavam a ações motoras. Essa concepção tornou-se a base para os estudos posteriores da hipnose.

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ALEMANHA

PAI DA PSIQUIATRIA MODERNA.

1899

EMIL KRAEPELIN PSIQUIATRA 15/02/1856 - NEUSTRELITZ

07/10/1926 - MUNIQUE

LINHA DA VIDA Kraepelin cresceu no seio de uma família culturalmente rica, embora seu pai, que era ator, cantor de ópera, professor de música e recitador, fizesse uso abusivo de álcool. Seus pais se separaram em 1870, e, tendo apenas 14 anos, Kraepelin permaneceu sob a tutela de sua mãe. Durante sua vida toda, esteve em contato com seu irmão mais velho, Karl, que se tornou professor de botânica e, posteriormente, diretor do Museu Zoológico de Hamburgo. Em 1871, durante o serviço militar, ficou noivo de Ina Schwabe, com quem se casou em 1874, iniciando, nesse mesmo ano, seus estudos em medicina. Dois anos mais tarde, frequentou o laboratório de psicologia experimental de Wilhelm Wundt, em Leipzig. Já em 1878, finalizou seu curso na Universidade de Wurzburg, cujo trabalho de pesquisa deu origem à tese intitulada “O lugar da psicologia na psiquiatria”. Recém-formado, tornou-se médico no asilo do distrito da Alta Baviera, em Munique. Aos 27 anos, publicou a primeira edição de seu Psychiatry Compendium (1883), obra reescrita História da Psiquiatria - Parte III

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Emil Kraepelin

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durante trinta anos1. Publicado em formato de bolso, esse livro, contendo 380 páginas, obteve rapidamente fama internacional. Em 1885, Kraepelin publicou seu artigo “Sobre a psicologia do cômico” no jornal Philosophische Studien, editado em Leipzig por Wundt. Esse breve artigo foi citado pelo filósofo Henri Bergson em sua obra O Riso (1900), sendo mencionado ainda por Freud, cinco anos depois, em seu livro Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Após um curto período de trabalho em Leubus (na Silésia, sudoeste da Polônia) e em Dresden, Kraepelin foi nomeado, em 1886, professor de psiquiatria na Universidade Russa Imperial de Dorpat (atual cidade de Tartu, na Estônia), onde permaneceu até retornar à Alemanha em 1891. Nos 13 anos que se seguiram, atuou como professor na Universidade de Heidelberg. No ano de 1903, mudou-se para Munique, seguido de Alois Alzheimer, assumindo a cadeira de psiquiatria da universidade, além de dirigir a nova clínica universitária: a Königliche Psychiatrische Klinik. Nessa clínica, eram recebidos cerca de mil pacientes por ano, além de numerosos médicos visitantes, proporcionando ao estabelecimento uma fama internacional. No final desse mesmo ano, Kraepelin, ao lado de seu irmão, Karl, fez uma viagem para Java, ilha da Indonésia, onde realizou exames sobre a população local e escreveu um livro sobre a psiquiatria transcultural, Psychiatry from Java, publicado em 1904. Em 1918, criou o Instituto Alemão de Pesquisa Psiquiátrica – futuro Instituto Max Plank de Psiquiatria –, graças a um financiamento generoso de James Loeb, um banqueiro judeu germano‑estadunidense. No período de 1909 a 1926, foi indicado em oito ocasiões para o Prêmio Nobel em razão da importância teórica de seu trabalho e da consequente ampliação de pesquisas, o que contrastava com sua reduzida elegibilidade, haja vista a carência de resultados práticos e de evidências concretas. Faleceu em 1926, vítima de pneumonia, e está sepultado no Cemitério das Montanhas, em Heidelberg.

CONTRIBUIÇÕES • Kraepelin, pai da psiquiatria científica moderna, tem seus estudos e pesquisas enraizados na essência da psiquiatria atual, determinando, inclusive, suas classificações. Sua obra monumental, mencionada anteriormente, traz para o início do século XX um rico conteúdo sob o qual foi construída toda a nosologia psiquiátrica a partir de elementos anatomopatológicos objetivos, anulando a causalidade e hipóteses subjetivas. Observador rigoroso e disciplinado, Kraepelin direcionou toda a sua pesquisa para catalogar e estudar o curso e a evolução da doença nervosa, bem como nortear tanto seu diagnóstico quanto seu tratamento. Apesar dessa visão organicista e taxonômica, que lhe rendeu o atributo de “rotulador” por alguns, acentuava o espaço para o estudo da história pessoal e social de seu paciente. • O início promissor de sua atuação profissional se deu no laboratório de psicologia experimental do grande mestre Wilhelm Wundt, quando frequentou, em 1876, um curso em Leipzig e, por consequência, passou a estagiar naquele laboratório, acontecimento decisivo para a sua carreira. No ano de 1878, após a conclusão do curso de medicina, aprendeu as técnicas experimentais, utilizando-as para desenvolver estudos sobre os efeitos do álcool e outras condições fisiológicas, particularmente as das doenças. 1

A partir da segunda edição do Compendium der Psychiatrie (Compêndio de psiquiatria), em 1887, a obra passou a se chamar Psychiatrie: Ein Lehrbuch für Studierende und Aerzte (Psiquiatria: livro didático para estudantes e médicos) e teve nove edições revisadas e ampliadas (entre 1883 e 1927), sendo oito em vida do autor.

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Emil Kraepelin

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IMPÉRIO AUSTRO-HÚNGARO

PAI DA PSICANÁLISE.

1905

SIGMUND FREUD NEUROLOGISTA (PSICANALISTA) 06/05/1856 - FREIBERG

23/09/1939 - LONDRES

LINHA DA VIDA Sigmund Freud nasceu em 6 de maio de 1856 em Freiberg, na Morávia (no Império Austro-Húngaro), hoje localizada na República Tcheca, com o nome de Sigismund Schlomo Freud. Ele foi o primogênito de oito filhos. Seus pais eram o comerciante judeu de lã Kallamon Jacob Freud, de 41 anos, e Amalia Nathansohn Freud, vinte anos mais nova. Freud tinha irmãos do primeiro casamento do pai, que eram aproximadamente vinte anos mais velhos. Como filho mais velho de sua mãe, ele também era seu favorito, sendo tratado como o “Siggie de ouro”. Amalia tinha grandes expectativas em relação a seu filho. Certa vez, Freud disse: “Descobri que as pessoas que sabem que são preferidas ou favorecidas por suas mães evidenciam em suas vidas uma peculiar autoconfiança e um otimismo inabalável que muitas vezes trazem sucesso real a seus possuidores”.

Em 1860, aos 4 anos de vida de Freud, após o fracasso dos negócios de seu pai por causa de problemas econômicos, a família mudou-se para Viena, onde se estabeleceu no bairro judeu de Leopoldstadt, após rápida passagem por Leipzig. Os meios-irmãos de Freud emigraram História da Psiquiatria - Parte III

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Sigmund Freud

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para Manchester, Inglaterra, desligando-o de seu companheiro “inseparável” de sua primeira infância, John, filho de Emmanuel. Em Viena, nasceram quatro irmãs e um irmão: Rosa, Marie, Adolfine, Paula e Alexander. Em 1865, aos 9 anos, entrou no Leopoldstädter Kommunal-Realgymnasium, uma importante escola secundária, na qual Freud foi o primeiro em sua classe, formando-se com distinção aos 17 anos. Ainda jovem, era apaixonado por literatura e proficiente em vários idiomas, como alemão, francês, italiano, hebraico, grego e latim. Ele também era um dedicado leitor das obras de Shakespeare. Entrou na Universidade de Viena em 1873, aos 17 anos. Ele tinha planejado estudar direito, mas ingressou na faculdade de medicina, na qual seus estudos incluíam filosofia, com Franz Brentano, fisiologia, com Ernst Brücke, e zoologia, com Carl Claus. Em 1876, Freud passou quatro semanas na estação de pesquisa zoológica de Claus, em Trieste, dissecando centenas de enguias em uma busca inconclusiva por seus órgãos reprodutores masculinos. Nesse ano, conheceu sua namorada, Martha. No ano seguinte, em 1877, Freud mudou-se para o laboratório de fisiologia de Ernst Brücke, onde passou seis anos comparando os cérebros de humanos e outros vertebrados com os de sapos e invertebrados. Seu trabalho de pesquisa sobre a biologia do tecido nervoso mostrou-se fundamental para a descoberta subsequente do neurônio, na década seguinte. O trabalho de pesquisa de Freud foi interrompido em 1879 pelo dever de realizar o serviço militar obrigatório de um ano. No período de 1880, para obter algum recurso financeiro, traduziu três ensaios de Stuart Mill para a edição, em alemão, das obras completas daquele filósofo. Concluiu o doutorado em março de 1881 e continuou trabalhando até 1882, ano em que também ficou noivo e iniciou sua carreira médica no Hospital Geral de Viena. Seu trabalho de pesquisa em anatomia cerebral o levou a publicar um artigo sobre os efeitos paliativos da cocaína, em 1884, e seu trabalho sobre afasia seria a base de seu primeiro livro, “Sobre as afasias: um estudo crítico”, publicado em 1891. Em mais de três anos, Freud trabalhou em vários departamentos do hospital, inclusive na clínica de Meynert. Suas pesquisas permitiram sua promoção para professor de neuropatologia, sem salário, mas autorizado a dar palestras na Universidade de Viena, em 1885, e a realizar pesquisas de anatomia cerebral, concluindo suas pesquisas sobre medula cerebral. Nesse mesmo ano, escreveu “Projeto para uma Psicologia Científica”, após sua visita, com bolsa de três meses do governo, ao Hôpital de la Salpêtrière, em Paris, onde Jean-Martin Charcot lecionava e clinicava. Lá, Freud observou mulheres com doença mental sem causas orgânicas (histeria). Nesse período, Charcot e Freud desenvolveram estudos também sobre a hipnose. Fascinado pelos estudos de Charcot sobre a histeria, Freud se ofereceu para traduzir as obras de Charcot para o alemão. No ano de 1886, casou-se com Martha, que era neta de um rabino de Hamburgo, com quem teve seis filhos: Mathilde, Jean-Martin, Oliver, Ernest, Sophie e Anna. Morou na rua Berggasse, nº 19, em Viena, local também de seu consultório, aberto pela falta de perspectiva por uma rápida carreira científica, com o objetivo de oferecer à sua futura esposa uma vida de classe média. Em 1890, passou a anotar seus sonhos, porque tinha a convicção de que eles poderiam lhe dar pistas para o conhecimento psicológico que o livro “A Filosofia do Inconsciente”, de Karl von Hartmann, de 1893, havia sugerido. Com isso, fazia tentativas de autoanálise, que foram auxiliadas pela correspondência com um dos poucos interlocutores que haviam lhe restado: o otorrinolaringologista Wilhelm Fliess. Já em 1893, Freud conheceu Josef Breuer, médico que aceitou compartilhar com ele o método chamado de “catarse” para a recordação de traumas, o que levaria à cura. Juntos,

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Sigmund Freud

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UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG

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undada em 18 de outubro de 1386 pelo príncipe-eleitor Ruperto I, com aprovação do Papa Urbano VI, a Universidade de Heidelberg foi a primeira da Alemanha e uma das mais antigas universidades do mundo, tendo sido a terceira estabelecida no Sacro Império Romano. Em 1803, passou por uma reorganização pelo duque Karl Friedrich von Baden e, em 1805, assumiu o nome latino Ruperto Carola Heidelbergensis. Quando foi criada, a instituição oferecia os cursos de teologia, direito e filosofia. O curso de medicina foi efetivado em 1388, e, a partir de 1752, foram oferecidos também os cursos de matemática e física experimental. A criação da Faculdade de Matemática e Ciências Naturais, no entanto, só ocorreu em 1890. Além disso, célebres pesquisadores lecionaram na universidade, entre os quais o filósofo Karl Jaspers, o sociólogo Max Weber e o químico Robert Bunsen. Estabelecida na pequena cidade de Heidelberg, no estado de Baden-Württemberg, foi e é uma das seis instituições de ensino superior da Alemanha mais prestigiadas no mundo, especialmente nas áreas de medicina, matemática e direito. A universidade é formada por 12 faculdades que oferecem programas de graduação, pós-graduação e pós-doutorado em 100 disciplinas. Heidelberg compreende três áreas de conhecimento principais: 1) humanidades - cursos dessa área estão localizados na Cidade Velha de Heidelberg; 2) ciências naturais e medicina - no bairro Neuenheimer Feld; e 3) ciências sociais - no subúrbio de Bergheim. O idioma do ensino é Ruperto I (1309-1390), predominantemente o alemão, mas um número conde palatino do Reno, a Universidade de considerável de cursos de graduação também é fundou Heidelberg em 1386. oferecido em língua inglesa e francesa. A Universidade de Heidelberg prioriza a pesquisa e, e por ela passaram 55 ganhadores do Prêmio Nobel. A cada ano, forma aproximadamente 1.000 doutores, dos quais mais de 1/3 é proveniente de outros países. Ainda, mais de 20% de todo o seu corpo docente é representado por Selo Ruperto Carola profissionais de cerca de 130 países. Referência em atividades acadêmicas, Heidelbergensis. “SEMPRE APERTUS” além dos cursos propriamente ditos, em outubro de 2007 a universidade (“Sempre aberta”) é o foi selecionada para fazer parte do programa governamental alemão de lema de Ruperto, desde a incentivo à pesquisa. fundação em 1386.

IMPORTÂNCIA NO CONTEXTO RELIGIOSO E POLÍTICO No período da Baixa Idade Média, entre os anos de 1414 e 1418, professores de teologia e jurisprudência da universidade participaram do Concílio de Constança (16º concílio ecumênico da Igreja Católica) e atuaram como conselheiros de Luís III, então governante do Reino da Alemanha e do Sacro Império Romano. Os acadêmicos compareceram a esse concílio como representantes do imperador e magistrados-chefes do reino, de modo que isso resultou no estabelecimento de uma boa reputação para a universidade e seus docentes. A cultura humanística foi implantada pelo chanceler e bispo Johann von Dalberg, no final do século XV, e era representada na Universidade de Heidelberg pelos professores Rudolph Agricola, Conrad Celtes, Jakob Wimpfeling e Johann Reuchlin. História da Psiquiatria - Parte III

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Eneas Silvius Piccolomini foi reitor da Universidade, em que sempre a favorecia em razão de sua amizade e boa vontade com Papa Pio II . Em 1482, o Papa Sisto IV autorizou que leigos – homens casados – ​​fossem nomeados professores de medicina por meio de uma dispensa papal. Mais tarde, em 1553, o Papa Júlio III sancionou a atribuição de benefício eclesiástico aos professores seculares. Antes da Era Moderna (1453-1789), a universidade passou por altos e baixos, além de ter sofrido as consequências de distúrbios causados p ​​ ela Revolução Francesa (fim da Era Moderna) e, particularmente, por causa do Tratado de Lunéville. Após isso, a universidade perdeu todas as suas propriedades à margem esquerda do Reno, de modo que se esperava sua completa dissolução, o que não ocorreu, ainda que essa crise tenha perdurado até 1803. Com o fim do Romantismo (por volta de 1815), Heidelberg se tornou um centro do liberalismo e do movimento a favor da unidade nacional alemã. As modernas escolas científicas de medicina, ciências naturais e, particularmente, astronomia se tornaram modelos em termos de construção e equipamentos. A escola de direito também era bem-conceituada. Os professores de Heidelberg eram importantes apoiadores da Vormärz (termo utilizado para designar os anos que antecederam as Revoluções de Março nos estados alemães da Confederação Alemã, em 1848), e O antigo salão da assembleia, ou “grande salão”, foi reformado em 1886, em comemoração ao muitos deles eram membros do primeiro parlamento quingentésimo aniversário da universidade. alemão, o Parlamento de Frankfurt. Durante o final do século XIX, a universidade adotou o modelo liberal, influenciada por Max Weber, Ernst Troeltsch e um grupo de amigos próximos. Em fevereiro de 1900, o Grão-Ducado de Baden emitiu um decreto que dava às mulheres o direito de acessar as universidades do estado. Com isso, as Universidades de Freiburg e Heidelberg foram as primeiras a permitir que mulheres ingressassem nos cursos. Como um todo, a universidade em questão tornou-se um modelo para a transformação das universidades americanas de artes, especialmente para a recém-criada Universidade Johns Hopkins.

A UNIVERSIDADE NO PERÍODO NAZISTA Com o advento do Terceiro Reich em 1933, a Universidade de Heidelberg apoiou os nazistas, assim como todas as outras instituições alemãs da época, de modo a demitir um grande número de funcionários e estudantes por razões políticas e raciais, além de muitos colegas dissidentes terem que emigrar. Ainda, a maioria de seus professores judeus e comunistas que não deixaram a Alemanha foi deportada. Pelo menos dois docentes da instituição foram diretamente vítimas do terror nazista. Em 17 de maio de 1933, membros do corpo docente da universidade e estudantes participaram da queima de livros na Universitätsplatz (praça da universidade), momento em que Heidelberg acabou se tornando parte do Partido Nazista. A universidade estava também envolvida na eugenia: as esterilizações obrigatórias eram realizadas na clínica das mulheres e na

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Entrada principal do edifício da universidade, com o lema: “O Espírito Vivo”. Acima, o busto de bronze de Atena, a deusa grega da sabedoria.

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1912

ÁUSTRIA

OTTO RANK (1884–1939) – Psicólogo (psicanalista). Otto Rank (Otto Rosenfeld) nasceu em 22 de abril de 1884 na cidade de Viena e tinha dois irmãos, ambos mais velhos. Rank nunca se deu bem com seu pai, pois este era alcoólatra e muito violento. Em sua juventude, aos 21 anos, entrou para o círculo de amizade e grupos de discussão de Freud e, em 1906, tornou-se secretário da Sociedade Psicanalítica de Viena. Em 1912, obteve o doutorado em filosofia pela Universidade de Viena. Daquele ano até 1924, foi editor do Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse (Jornal Internacional de Psicanálise) e, em 1919, foi o fundador de uma editora, da qual foi presidente, dedicando-se unicamente à publicação de trabalhos em psicanálise. Em 1926, partiu para Paris, onde foi professor na Universidade de Sorbonne, tornando-se analista de artistas, entre os quais Henry Miller e Anaïs Nin, a última com quem teve uma relação amorosa. Entre os anos de 1926 e 1936, deu aulas e fazia consultas nos Estados Unidos, assim como na Europa, especialmente em Paris. Psicólogo, psicanalista, filósofo, escritor e professor, foi um dos primeiros discípulos de Sigmund Freud, com quem trabalhou por 20 anos. Rank, em seu trabalho, desenvolveu o conceito de vontade como força condutora no desenvolvimento da personalidade, o que acabou por dar origem à “terapia da vontade”. Acreditava que a vontade podia ser um elemento positivo para controlar e utilizar a atividade instintiva da pessoa para o desenvolvimento da personalidade. Ele também considerava a personalidade como uma unidade completa, que se desenvolveu em quatro fases, denominadas: família, social, artística e espiritual. Investigou também o conceito de inconsciente social, tema que divergia da visão de seu mentor, Freud, que dava significativa importância ao complexo de Édipo. Já Rank compreendeu o trauma como o fator principal na psiconeurose, pois considerava que a ansiedade neurótica era uma repetição do trauma do nascimento. Preconizava uma psicoterapia de tempo mais limitado e não tão ligada ao passado, sendo a finalidade terapêutica liberar a vontade do paciente. Otto Rank produziu vários livros, entre os quais se destacam: “Der Mythus von der Geburt des Helden”, de 1909 (tradução livre: “Mito do nascimento do herói”); “Das Trauma der Geburt”, de 1924 (tradução. livre: “O trauma do nascimento”); “Kunst und Künstler”, de 1932 (tradução livre: “Arte e Artista”), entre outros. Segundo Rank, a psicoterapia não foi uma mudança intelectual, mas sim uma mudança emocional.

Otto Rank (1884-1939). Rank foi um autor psicanalítico produtivo e influente nos anos de formação do movimento psicanalítico. Seus escritos incluíam arte, música, literatura, antropologia, história, ciência e filosofia.

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Otto Rank

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ALEMANHA

PSICOPATOLOGIA GERAL E PSIQUIATRIA FENOMENOLÓGICA.

1913

O D R O J E A H SPERS T L R A K PSIQUIATRA E FILÓSOFO 23/02/1883 - OLDEMBURGO

26/02/1969 - BASILEIA

LINHA DA VIDA Karl Theodor Jaspers nasceu na cidade alemã de Oldemburgo, próxima ao litoral do Mar do Norte, em uma família abastada. Sua mãe era de família de políticos ligados ao liberalismo e protestantismo, estabelecidos ao norte da Alemanha, assim como seu pai, advogado e diretor de banco, que também vinha de uma família proeminente e dona de riquezas, o que permitiu a Jaspers uma abrangente formação intelectual. Desde a infância, Jaspers sofria de bronquiectasia crônica, o que comprometeu sua capacidade física e tomava muito de sua manhã para a higiene pulmonar, exigindo-lhe tempo e disciplina. Posteriormente, seu diretor da clínica psiquiátrica, Franz Nissl, poupou-o de esforços físicos e o colocou para trabalhar na biblioteca. Em 1908, graduou-se em medicina pela Universidade de Heidelberg. Nesse mesmo ano, publicou sua tese de doutorado, com o título Heimweh und Verbrechen (Saudade e Crime). Após formar-se, foi trabalhar na clínica psiquiátrica da Universidade de Heidelberg. No ano de 1909, iniciou seus estudos em psiquiatria. Casou-se em 1910 com Gertrud Mayer (1879-1974), de família judia, irmã de seus amigos Gustav e Ernest, e assistente no sanatório do psiquiatra História da Psiquiatria - Parte III

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Karl Theodor Jaspers

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1929

SUÍÇA

JEAN WILLIAM FRITZ PIAGET (1896–1980) – Psicólogo e biólogo. Nascido em Neuchâtel, na Suíça, em 9 de agosto de 1896, Jean era filho de Artur Piaget, professor doutor de língua e literatura medieval, e de Rebecca Suzane, uma das primeiras socialistas suíças. Piaget viveu sua infância e adolescência nessa cidade, onde, aos 11 anos de idade (1907), publicou seu primeiro relato sobre um pardal albino. Nesse mesmo ano, trabalhou como assistente do diretor do Museu de História Natural da cidade onde vivia e, aos 14 anos, ingressou no “Clube dos Amigos da Natureza”, escrevendo os primeiros artigos sobre “taxonomia malacológica” para revistas especializadas em 1911. Aos 18 anos, optou pela formação universitária em biologia, pois, desde jovem, amava e estudava os animais. Estudou na Universidade de Neuchâtel e, aos 20 anos, especializou-se em malacologia, um ramo da biologia que estuda os moluscos. Jean Piaget recebeu um convite para trabalhar no laboratório de Binet. Por meio do trabalho de padronização dos resultados de testes de inteligência, deparou-se com um espaço de trabalho privilegiado, no qual pôde analisar não somente os resultados dos testes realizados por ele, mas a regularidade das respostas das crianças e a análise verbal do raciocínio delas. Depois, em 1921, retornou à Suíça, trazendo consigo dados interessantes que deram início à construção da Teoria da Epistemologia Genética. O seu trabalho sobre o assunto teve rápida repercussão mundial, o que aconteceu quando ainda era jovem e publicava os seus primeiros livros, que representavam, na verdade, um esboço da teoria em questão. Por essa e outras pesquisas, ele recebeu mais de 30 doutoramentos honoris causa. Posteriormente, dedicou-se à área de psicologia, epistemologia e educação, tendo sido professor de psicologia na Universidade de Genebra de 1929 a 1954, quando se tornou mundialmente reconhecido pela sua revolução epistemológica. Além das pesquisas, Piaget manteve suas atividades como professor e assumiu as cadeiras de filosofia da ciência, de psicologia e de sociologia na Universidade de Neuchâtel. Em 1929, assumiu também a cadeira de história do pensamento científico, período em que continuou ensinando psicologia da criança no Instituto Jean-Jacques Rousseau, do qual foi diretor na década de 1920. Foi também nesse ano que o estudioso suíço assumiu a direção do Bureau International de L’Éducation, vinculado à Unesco – da qual foi subdiretor-geral na década de 1940. Além disso, foi, por um período, encarregado de um departamento no Ministério de Educação da Suíça. Na obra “O juízo moral na criança” (1932), enfatizou que a criança, ao se relacionar com outras crianças e com adultos, constrói o conhecimento das regras que organizam a convivência com os outros e consigo mesma. O autor explicou ainda que a educação moral é fruto das relações que os adultos estabelecem com as crianças, uma vez que os pequenos nascem sem qualquer conhecimento sobre o certo e o errado. Piaget chamou a fase do desenvolvimento infantil dos 2 e 3 anos de idade, algo feito em relação ao desenvolvimento moral, de Anomia. Ele explicou que o processo da gênese da moral se inicia com o sentimento de obrigação que a criança desenvolve em relação aos mais velhos, especialmente seus pais e professores. Além disso, as crianças pequenas mantêm, pelos mais velhos, pais e professores, diversos sentimentos, como afeto e temor, o que o autor chamou de respeito e que é o sentimento de ingresso da criança no mundo da moralidade. Nessas afeições, ela inicia o desenvolvimento da imitação das regras recebidas dos outros ao observá-los, utilizando individualmente esses elementos aprendidos, sendo anterior à fase da anomia (fase da ausência total de regras), que o autor denominou Heteronomia. Por meio de minuciosa e criteriosa observação dos seus filhos, como também de outras crianças, Piaget impulsionou a Teoria Cognitiva, em que propôs a existência de quatro estágios de desenvolvimento cognitivo no ser humano: inteligência sensório-motora (inteligência prática, manifestada em ações; esquemas de ação; “início da construção das categorias de objeto, espaço, tempo e causalidade; o sujeito passa de uma anterior indiferenciação eu-mundo exterior para o reconhecimento dessa relação); pré-operatória (momento em que se observa o pensamento indutivo, presença do animismo e do artificialismo no raciocínio, assim como do egocentrismo; indiferenciação entre o ponto de vista próprio e o dos outros; rigidez e irreversibilidade do pensamento; expressão do interesse como prolongamento da necessidade; sentimentos de respeito – resultado da soma dos sentimentos de afeição e temor – pelos mais velhos; obediência; moral heterônoma); operatório concreto (passagem para a lógica do concreto; momento do início da descentralização; capacidade de perceber a reversibilidade

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das operações, explicações causais, noções de permanência de substância, peso e volume; sentimentos de respeito mútuo e de justiça – distributiva e retributiva –, moral da cooperação; aparecimento da vontade como regulação da ação); operatório formal ou abstrato (acesso à lógica operatória abstrata, quando a descentralização se completa; pensamento proposicional e hipotético-dedutivo; esquemas formais de lógica combinatória e de proporções; construção da autonomia). Defendia também uma abordagem interdisciplinar para a investigação epistemológica, fundando a Epistemologia Genética, uma teoria do conhecimento com base no estudo da gênese psicológica do pensamento humano. O objetivo da pesquisa foi definir, a partir da perspectiva biológica, como o sujeito passaria de um conhecimento menor anterior para um nível de maior conhecimento. As principais obras que alicerçaram a teoria epistemológica genética são: “Seis estudos de psicologia” (1964), “Psicologia da criança” (1970) e “Epistemologia genética” (1970). Além dessas publicações, Piaget produziu uma vasta obra, com mais de 50 livros e 300 artigos. Ele faleceu em Genebra em 16 de setembro de 1980.

Piaget observa crianças em atividades, com auxílio da psicóloga Constance Kamii.

1930

FRANÇA

JACQUES-MARIE ÉMILE LACAN (1901–1981) – Psiquiatra (psicanalista). Nascido em Paris, em uma família de classe média alta, estagiou nos hospitais psiquiátricos de sua cidade e orgulhava-se de trabalhar com Gaëtan Gatian de Clérambault, considerando-o como seu “único professor”. Em 1932, após sua defesa de doutorado sobre a psicose paranoide, Lacan se tornou chefe de clínica e médico assistente de Henri Claude (1869-1945) no Hospital Sainte-Anne. Nesse mesmo ano, passou por um período de análises conduzidas pelo psicanalista americano Rudolph Loewenstein (1898-1976) e, dois anos mais tarde, integrou a Sociedade Psicanalítica de Paris, sendo eleito membro titular em 1938. Em 1936, no Congresso da International Psychoanalytic Association, em Marienbad, hoje República Tcheca, Lacan discursou sobre um artigo em que tratava daquilo que chamou de “fase do espelho” do desenvolvimento infantil, iniciando a partir de então uma longa trajetória de escrita e palestras. Em 1953, com um grupo de dissidentes, deixou a Sociedade Psicanalítica de Paris para fundar a Sociedade Francesa de Psicanálise, em razão da sua controversa técnica de encerrar as sessões psicanalíticas abruptamente, de forma não convencional, algo que causava desconforto nos tradicionalistas. Em 1963, saiu dessa sociedade para fundar sua própria sociedade, a chamada Escola Freudiana de Paris, a qual se dissolveu um ano antes de sua morte. Um fato curioso, também em 1963, foi o episódio em que Lacan precisou mudar o local de suas tão concorridas palestras no Hospital Sainte-Anne, pois Jean Delay, psiquiatra e neurologista francês, em uma atitude de ressentimento com Lacan, negou-lhe o uso da sala de reuniões. Ao longo de seu percurso intelectual, Lacan utilizou-se de vários pensamentos filosóficos de ilustres autores, como Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Martin Heidegger, Alexandre Koyré e Jean-Paul Sartre. Jacques Lacan foi um dos grandes intérpretes de Freud e, seguindo sua ciência, estabeleceu o nascimento de uma corrente nova psicanalítica, denominada lacanismo, a qual sofreu – e sofre – várias críticas por ser considerada obscura ou mesmo indecifrável. Lacan definitivamente dedicou-se muito mais aos conteúdos da psicanálise do que aos da psiquiatria clínica.

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1952

VIETNÃ

HENRI LABORIT  (1914-1995) – Neurobiologista. Henri Laborit nasceu em 21 de novembro de 1914 em Hanói, Vietnã, então parte da Indochina Francesa. Seu pai era médico e oficial das tropas coloniais francesas. Henri foi médico da marinha no Serviço de Saúde Naval, em Bordeaux, e, durante a Segunda Guerra Mundial, estava alojado no torpedeiro Sirocco, testemunhando a evacuação dos soldados aliados em Dunkerque (norte da França), antes de o navio ser afundado pelos alemães. Laborit foi resgatado por um barco inglês. Por seus serviços prestados, recebeu a Cruz Guerra. Em 1949, foi nomeado para trabalhar no Hospital Val-de-Grâce, em Paris, e depois foi diretor do Laboratoire d’Eutonologie no Hospital Boucicaut, também na capital francesa. Em 1952, Laborit foi essencial para o desenvolvimento do medicamento clorpromazina, sendo o primeiro a reconhecer o potencial uso psiquiátrico dessa droga, a qual foi comercializada como Largactil no final de 1952. Para comprovar seu trabalho, convenceu três psiquiatras a testar a clorpromazina em pacientes psiquiátricos no mesmo ano de sua descoberta. No período em que viveu em Bizerte, na Tunísia, Laborit se interessou pelo uso do anti-histamínico prometazina, com a finalidade de deixar os pacientes mais relaxados (anestesiados) antes das cirurgias, permitindo também as observações e práticas, que foram aspectos precursores de seu interesse posterior pela clorpromazina. Ainda no campo da anestesiologia, Laborit estudou uma mistura de um analgésico opiáceo e um hipnótico da classe dos anti-histamínicos para induzir uma desconexão farmacológica do sistema neurovegetativo. Também apresentou uma teoria sobre a necessidade de neutralizar as consequências negativas dos mecanismos de defesa durante a anestesia ou inibição comportamental. Com Pierre Huguenard (anestesiologista e pesquisador), Laborit inventou o coquetel lítico, uma combinação de medicamentos que poderia ser administrada a pacientes para reduzir o choque e o estresse que sentiriam durante e após a cirurgia. Laborit acreditava que colocar os pacientes em um estado de hibernação artificial evitaria as reações de estresse, e essas drogas fariam com que os corpos interrompessem suas reações ao resfriamento. Ele também sugeriu à empresa farmacêutica Rhône-Poulenc que criasse anti-histamínicos que otimizassem a estabilização do sistema nervoso central. Ainda que apresentasse efeitos colaterais graves, a clorpromazina colaborou para o tratamento de doenças mentais graves e permitiu que muitos pacientes vivessem fora dos manicômios. Com isso, nos Estados Unidos, a população de pacientes internados em instituições mentais caiu de 559 mil em 1955 para 452 mil em 1965. Em 1957, Laborit dividiu o prestigioso Prêmio Lasker-DeBakey de Pesquisa Médico-Clínica com Pierre Deniker e Heinz Lehmann, por contribuições para o uso geral da clorpromazina, porém não foram os ganhadores do Prêmio Nobel pela descoberta. O comitê de avaliação não reconheceu a contribuição específica de Jean Delay, que trabalhava no Hospital Sainte‑Anne e também fazia parte do comitê do Nobel. Em razão disso, Delay se opôs a entregá-lo a Laborit, o que criou um conflito entre Laborit e a equipe do Sainte-Anne. Em 1981, ele recebeu o Prêmio Anokhin, da antiga União Soviética, e, em 1989, aceitou a cadeira do Instituto de Psicossomática de Torino, Itália. Considerado um dos fundadores da neuropsicofarmacologia e anestesiologia moderna, Laborit publicou vários livros sobre fisiologia, farmacologia, etologia e questões sociais, sendo um dos pensadores inovadores no século XX na França. Em 1992, em uma comemoração organizada pela farmacêutica Henri Laborit, no Laboratoire francesa Rhône-Poulenc, foram dados os créditos a Laborit pelo d’Eutonologie, onde passava a maior parte trabalho no campo da anestesia e aos pesquisadores Deniker e do tempo lendo publicações científicas. Em sua mesa, estátua da Vitória de Samotrácia Delay pela aplicação de clorpromazina na área da psiquiatria. (Prêmio Lasker). Foto cedida por: Comité Laborit morreu em Paris em 18 de maio de 1995. français de rádio‑télévision.

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Henri Laborit

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Jean Delay (à esquerda) e Pierre Deniker (à direita).

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Henri Laborit

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OUTROS PROGRESSOS

O

s psiquiatras clínicos, não dispõem de exames complementares, entretanto, os pesquisadores em laboratórios farmacêuticos ou nos ambientes acadêmicos começaram a contar com alguns sofisticados exames de neuroimagem, em que até a década de 1970, não dispunham destes inovadores exames. O máximo com que se podia contar era o raio X, descoberto por Röntgen no século XIX, muito utilizado em cirurgias do sistema nervoso para localização das patologias tumorais. A ele agregaram-se técnicas adicionais, como a ventilografia – também chamada de pneumoencefalografia –, com injeção de ar nos ventrículos, técnica desenvolvida em 1918 pelo cirurgião Walter Dandy e que seguiu com sua utilização por décadas, apesar das dificuldades em empregá-la. Em 1927, Egaz Moniz usou a arteriografia ou angiografia cerebral para mostrar as artérias, algo que podia fazer com ajuda de uma injeção de solução de iodeto de sódio nas carótidas. Também era utilizada a planigrafia, de Des Plantes, em 1931, denominada tomografia linear, precursora da tomografia axial. Mais tarde, com o advento dos computadores na década de 1970, desenvolveu-se a tomografia axial computadorizada, só possível pelo trabalho de um engenheiro escocês, Godfrey Hounsfield, que, em 1967, desenvolveu um aparelho para sua aplicação, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel em 1979. O primeiro aparelho de tomografia computadorizada foi lançado em 1970, mas, no geral, eram lentos, imprecisos e de pouca acurácia. Em 1974, a General Electric comprou a sua patente e foi aperfeiçoando o aparelho com as técnicas associadas para aplicação clínica, passando a dominar o mercado médico das imagens. Porém, o primeiro tomógrafo com capacidade funcional de fato foi desenvolvido em 1977 pelo médico Raymond Damadian, aperfeiçoado em 1980 e batizado de The Indomitable, hoje peça de museu em Washington. Então, outros pesquisadores e inventores diversificaram o exame com novas formas de obter as imagens do cérebro. Surgiram, assim, as imagens funcionais, como as tomografias de emissão de fótons (SPECT) e de pósitrons (PET). Enquanto isso, a tomografia de ressonância nuclear magnética (NMR) perdeu o nome “nuclear” e passou a ser chamada de ressonância magnética (MRI), mas, com a evolução do uso das substâncias contrastantes usadas para alterações das imagens, foi nomeada, a partir de 1990, de ressonância magnética funcional (FMRI). Marcus Raichle e Peter Fox, em 1986, e o grupo Seiji Ogawa, em 1992, passaram a demonstrar, em estudos concomitantes, o aumento do fluxo cerebral e metabolismo de oxigênio quando da estimulação da ativação neuronal, comparando a imagem de repouso com a da estimulação cerebral, seja qual fosse o estímulo. Isso fez com que a FMRI passasse a ser a técnica preferida dos pesquisadores de funções mentais – e o constante refinamento dessas técnicas já permite a visualização de imagens tridimensionais e em movimento. Outro importante avanço no auxílio para o exercício da psiquiatria clínica foi o uso dos ensaios chamados duploscegos (ocultavam-se o paciente e o médico) randomizados (escolha aleatória da amostra) com placebo (fármaco a ser investigado). Antes disso, só havia os ensaios clínicos em revistas físicas que eram fornecidas pelos propagandistas dos laboratórios farmacêuticos, junto com suas amostras. Com o advento da internet, foi possível acessar mais material de atualização farmacológica e ter contato com as pesquisas de métodos terapêuticos mais seguros para escolher a melhor evidência de resultados. Trata-se de um método muito importante, pois permite descobrir se determinado medicamento, terapia ou procedimento tem realmente efeito terapêutico ou não. Levando-se em conta o tempo de seguimento da pesquisa (follow-up), é possível ver se foi suficiente para avaliação do evento final.

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Outros Progressos

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1978

ESTADOS UNIDOS

SOLOMON HALBERT SNYDER  (1938-) – Psiquiatra e neurocientista. Em 1962, Solomon H. Snyder graduou-se na Escola de Medicina da Universidade de Georgetown, em Washington. Mais tarde, em 1966, ingressou no corpo docente da Johns Hopkins. Fundou o Departamento de Neurociência, atuando como seu diretor de 1980 a 2006. Ele também é associado do programa de pesquisa em neurociência e membro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Snyder contribuiu com suas pesquisas pioneiras na identificação de receptores para neurotransmissores e drogas e na elucidação das ações de agentes psicotrópicos. Ele propõe ainda explicar as ações de drogas psicoativas, como o bloqueio de receptores de dopamina por medicamentos antipsicóticos, e descreveu novos neurotransmissores atípicos, como os gasotransmissores óxido nítrico (NO), monóxido de carbono (CO), sulfeto de hidrogênio (H2S) e os D-isômeros de aminoácidos, incluindo D-serina. Uma atenção especial foi dada em alvos a jusante de NO e H2S e ao papel da sulfidratação da proteína parkin na fisiopatologia da doença de Parkinson. Solomon Snyder recebeu o Prêmio Albert Lasker de Pesquisa Médica Básica em 1978, por seu estudo sobre o receptor de opioides. Além disso, ganhou outros inúmeros prêmios, entre os quais: nove títulos de doutor honoris causa, Prêmio da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos em Neurociência, a Medalha Nacional de Ciência, Prêmio Albany de Medicina e Prêmio da Fundação Wolf em Solomon no laboratório. Medicina, pelos importantes trabalhos realizados.

1979

ESTADOS UNIDOS

SAMUEL BARRY GUZE  (1923–2000) – Psiquiatra. Foi estudante do City College de Nova Iorque em 1941 e formou-se em medicina pela Washington University, em St. Louis, em 1945. Foi um dos primeiros psiquiatras a desenvolver estudos sobre gêmeos como forma de investigar o papel da hereditariedade na doença mental e contribuiu para o conhecimento da vulnerabilidade genética ao alcoolismo e à esquizofrenia. Na década de 1950, propagou a visão de que os problemas psiquiátricos deveriam ser diagnosticados por meio do uso de um modelo científico e de uma abordagem biológica, rejeitando o modelo biopsicossocial proposto pelo psiquiatra George L. Engel. Em parceria com Donald W. Goodwin, publicou a obra “Diagnóstico

Psiquiátrico” (1974). Com Eli Robins e George Winokur, Guze promoveu o avanço na psiquiatria ao estabelecer os critérios para diagnóstico. Um pequeno artigo de Guze e Robins apresentava uma discussão sobre a autenticidade de uma perspectiva médica, com cinco fases de pesquisa – descrição clínica, estudos laboratoriais, delimitação de outros transtornos, estudos de acompanhamento e estudos familiares – que permitiram demonstrar que um conceito diagnóstico representava uma doença. O “sistema Guze” levou a importantes avanços na confiabilidade do diagnóstico, ou seja, a concordância no diagnóstico pelos médicos seria teoricamente mais frequente. Esses trabalhos proporcionaram o que se denominou Critérios de Feighner, o que permitiu, em 1980, a compilação do Manual de Diagnóstico e Estatístico para Transtornos Mentais (DSM-III).

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Solomon Halbert Snyder

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ÁUSTRIA

PRÊMIO NOBEL - ESTUDOS DA TRANSMISSÃO SINÁPTICA.

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R D A H K C A I NDEL R C I R E PSIQUIATRA (NEUROCIENTISTA)   07/11/1929 - VIENA

LINHA DA VIDA De uma família judia, Eric nasceu em 1929 em Viena, na época em que Freud tinha 73 anos e morava na capital da Áustria. O pai de Kandel era proprietário de uma loja de brinquedos, e, quando a Áustria foi anexada à Alemanha, em março de 1938, houve o confisco das propriedades de seus cidadãos, o que incluiu o estabelecimento da família. Além disso, a perseguição nazista aos judeus assolava a região. Após o incidente, Kandel, então com 9 anos, e seu irmão, com 14 anos de idade, foram enviados de navio para os Estados Unidos, partindo da Antuérpia, na Bélgica, rumo a Nova Iorque, sendo abrigados por um tio no bairro do Brooklyn. Um pouco depois, seus pais se juntaram a eles, também fugidos da pátria. Eric realizou seus estudos em instituições judaicas de ensino e formou-se em 1944. Em seguida, foi para Harvard para estudar história e literatura, o que lhe permitiu desenvolver uma compreensão sobre a natureza humana, especialmente aquela que emergiu por ocasião do holocausto. Em seus estudos sobre psicologia, mostrava-se insatisfeito com a teoria behaviorista proposta por Skinner. Na época, o rapaz namorava uma jovem de nome Anna Kris, filha de

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imigrantes vienenses com formação em psicanálise e que integravam o grupo íntimo de Freud. Eric sentiu-se muito influenciado pelos pais de Anna e, por essa razão, foi estudar psicanálise, observando que o substrato teórico dela poderia ter ligações biológicas. Assim, em 1952, iniciou seus estudos em medicina na Universidade de Nova Iorque, tendo como objetivo desenvolver pesquisas sobre o cérebro. Para essa finalidade, procurou Harry Gunfes, um neurobiólogo da Universidade de Columbia, que o estimulou a estudar, antes de tudo, o neurônio. Como assistente de pesquisa no laboratório de Gunfes, Kandel se convenceu de que os circuitos neurais continham o segredo das doenças mentais. Eric Kandel casou-se com Denise Bystryn em 1956, pesquisadora judia e imigrante, com quem teve dois filhos. Em 1960, iniciou sua residência psiquiátrica no Centro de Saúde Mental de Massachusetts, núcleo freudiano onde também completou sua formação psicanalítica em 1965. Desinteressado pela prática clínica, optou pela carreira de pesquisador, com interesse pelos estudos da memória. Foi quando lançou mão de uma estrutura viva, porém simples, para estudar o neurônio e suas sinapses: a lesma-do-mar, ou Aplysia californica, molusco de sistema nervoso simples, com menor número de neurônios – se comparado a outros animais, porém grandes o suficiente para que pudesse analisar os reflexos condicionados na aprendizagem. A partir daí, observou que uma memória de curto prazo poderia se transformar em uma de longo prazo por meio de novas conexões sinápticas acrescentadas pelas novas experiências. O médico vienense desenvolveu o estudo com a lesma-do-mar a partir de uma proposta de pesquisa de Ladislav Tauc, neurocientista de Paris que lhe apresentou o animal. Depois publicou os resultados de pesquisa da potencialização pré-sináptica como forma de aprendizado. Em 1966, com a colaboração de James Schwartz, Kandel estudou as mudanças bioquímicas nos neurônios ligados ao aprendizado e armazenamento da memória. Em 1971, descreveu, com Tom Carew, a memória de curto prazo. Em 1972, descobriu, nos gânglios da lesma, o mecanismo da molécula do segundo mensageiro cíclico (cAMP), que mostra o envolvimento na formação da memória de curto prazo. No ano de 1974, mudou seu laboratório para a Universidade de Columbia, criando ali o Centro de Neurobiologia e Comportamento. Em 1980, após o descobrimento do neurotransmissor serotonina, relacionou os efeitos dela com todo o mecanismo eletrofisiológico sináptico alterado e, em 1981, realizou a Aplysia californicao estudo do condicionamento clássico. Em Columbia, em 1983, o psiquiatra austríaco criou o Howard Hughes Research Institute e, logo em seguida, recebeu o Prêmio Lasker de Pesquisa Médica. Em 1988, ganhou a Medalha Nacional da Ciência e, em 2000, o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina.

CONTRIBUIÇÕES • Seguramente a grande contribuição de Kandel foi o estudo sobre a memória, o que permitiu demostrar que toda a vida é armazenada em um acervo único e permanente no cérebro e que é possível acessá-lo a qualquer instante pela atividade sináptica e, assim, estabelecer contato com o que já tenha sido vivido. • Suas descobertas a respeito dos mecanismos biológicos da memória tornaram-se os fundamentos mais importantes da neurociência moderna, possibilitando significativos estudos sobre os transtornos de ansiedade, dependência química, depressão e esquizofrenia. Inclusive, Kandel isolou o gene RbAp48, proteína ligada à formação da memória no hipocampo. • Todas essas descobertas, por meio de pesquisas celulares e moleculares, possibilitaram a formação de uma nova geração de psiquiatras a partir da década de 1970, além de viabilizar importantes estudos sobre psicofármacos e pesquisa biomédica. Essas pesquisas e

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Nossa narrativa histórica e cronológica dos caminhos do desenvolvimento da psiquiatria no século XX assinala, logo de início, a atuação de Kraepelin no cerne da dominante psiquiatria alemã, além de ser essa a nação preponderante no número de hospitais psiquiátricos e com fervilhantes estudos de neurologistas ilustres, tais como Hoche, Alzheimer e Nissl, particularmente na Universidade de Heidelberg, sobre as moléstias mentais. Ali perto, na Áustria, germinava, sob a tutela de Freud, outro baluarte da psiquiatria do século XX, o movimento que se tornou poderoso por décadas, a psicanálise, protagonizada inicialmente por grandes mestres, como Adler, Jung, Abraham e Stekel. No Brasil, a psiquiatria dava os primeiros passos com Teixeira Brandão e Juliano Moreira. Já na França, destacavam-se os estudos sobre hipnose, bem como outras descobertas com Binet e Janet, além de Sérieux e seus alunos, entre os quais Capgras, que descreviam novas formas de psicoses interpretativas crônicas. Na Rússia, por sua vez, pesquisas sobre reflexologia eram capitaneadas por Pavlov e Bekhterev. Narramos também o progresso da psicopatologia na Universidade de Heidelberg, com expoentes da psiquiatria alemã, como Kretschmer, Jaspers e Schneider. No Brasil, o local de estudo da psicopatologia foi o Hospital do Juqueri, criado por Franco da Rocha em conjunto com seus ilustres componentes, entre os quais Pacheco e Silva. No fim da primeira metade do século, a psicanálise foi se firmando com Anna Freud, Klein e Jones, enquanto Wagner-Jauregg descobriu a malarioterapia para o tratamento da sífilis cerebral. Logo, em seguida, surgiram a insulinoterapia, com Sakel, o cardiazol, com von Meduna, e a eletroconvulsoterapia, com Cerletti, para tentar melhorar os sintomas psiquiátricos. Mas foram os primeiros calmantes bem como a descoberta da clorpromazina por Delay e Deniker e do lítio por Cade que levaram os hospitais a um significativo esvaziamento, enquanto prosseguia a psiquiatria de consultório em larga escala, particularmente nos Estados Unidos, com projeção nacional de Menninger. O progresso da psicofarmacologia se deu com descobertas de inúmeros benzodiazepínicos, diversos tipos de antidepressivos, antipsicóticos e estabilizadores de humor, enquanto a psiquiatria clínica respondia cada vez mais aos ataques do movimento da antipsiquiatria, iniciado por Cooper. Assinalamos ainda todas as linhas psicoterápicas que foram sendo criadas: o psicodrama, com Moreno; as psicoses, com Schilder; a psicopatologia fenomenológica e o crescimento da fenomenologia existencial, com Binswanger; a abordagem corporal, com Reich; a fenomenologia francesa, com Henri Ey; a logoterapia, com Frankl; a Gestalt, com Perls; e a psicoterapia interpessoal, com Klerman. Por fim, destacamos o aparecimento das classificações diagnósticas e suas implicações, bem como salientamos os últimos progressos do século XXI, inclusive o Prêmio Nobel de Kandel.

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Marcos de Jesus Nogueira - Coordenador Psiquiatra clínico, membro titular da Sociedade Brasileira de História da Medicina, autor de vários livros de Psiquiatria com apelo visual de arte gráfica e ênfase pedagógica, mantém nesta obra uma visão cronológica da História da Psiquiatria.

Maurício Eugênio Oliveira Sgobi Psicólogo clínico, especializado em Transtornos de Substância e do Controle dos Impulsos, também é autor de outros livros juntamente com o coordenador desta obra.

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