Conceitos de Antropologia v.2

Conceitos e categorias fundamentais do ensino de

ANTROPOLOGIA VOLUME 2

Apoio

COLEÇÃO CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

CRISTIANO DAS NEVES BODART (Organizador)

Conceitos e categorias fundamentais do ensino de

ANTROPOLOGIA VOLUME 2

1º edição

Maceió-AL Editora Café com Sociologia 2022

Copyright © Editora Café com Sociologia LTDA, 2022.

1ª edição – 2022 Normatização e edição: Cristiano das Neves Bodart Diagramação: Cassiane da C. Ramos Marchiori Capa: Cristiano das Neves Bodart Revisão: Letícia dos Santos Rodrigues Realização: Café com Sociologia Apoio: Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo, SP) _________________________________________________________________________________________________________ B666ca Bodart, Cristiano das Neves (org.).

Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Antropologia / Organizador: Cristiano das Neves Bodart; Prefácio Thiago Ingrassia Pereira.--1. ed.-- Maceió, AL : Editora Café com Sociologia, 2022.

100 p.; tabs.; quadros. (Coleção Conceitos e Categorias do ensino das Ciências Sociais, v. 2).

ISBN 978-65-87600-23-9 1. Antropologia. 2. Ensino. 3. Pedagogia. 4. Prática Docente. I. Título. II. Assunto. III. Bodart, Cristiano das Neves.

CDD 301:371.3 21-30282004 CDU 572:37.013 __________________________________________________________________________________________________________ ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Sociologia - Antropologia - Política cultural / ideologia; Didática - Métodos de ensino instrução e estudo - Pedagogia.

2. Antropologia; Prática docente. __________________________________________________________________________________________________________ Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BODART, Cristiano das Neves (org.). Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Antropologia. 1. ed. Maceió, AL: Editora Café com Sociologia, 2022. (Coleção Conceitos e Categorias do ensino das Ciências Sociais, v. 2).

Editora Café com Sociologia CNPJ: 32.792.172/0001-31 Rua Manoel Fernandes da Silva, n. 23, Quadra E, Tabuleiro dos Martins Maceió-Alagoas CEP. 57081011 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro para fins comerciais sem prévia autorização da Editora. É permitida a reprodução parcial para fins didáticos pedagógicos sem fins lucrativos em instituições públicas.

CONSELHO EDITORIAL Cassiane da C. Ramos Marchiori - Chefe Téc. Editorial César Alessandro Sagrillo Figueiredo - Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), Brasil.

Cristiano das Neves Bodart - Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Brasil.

Fernanda Feijó- Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Brasil.

Igor Martinache- University Paris VII, Diderot, França.

Joaquim Fialho - Universidade Lusíada (CLISSIS), Portugal.

Marluci Menezes - Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), Portugal Ricardo Manuel Ferreira de Almeida - Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego (ESTGL), Portugal.

Roniel Sampaio-Silva – Instituto Federal do Piauí (IFPI), Brasil.

Thiago de Jesus Esteves - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), Brasil.

Thiago Ingrassia Pereira - Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Brasil.

COMISSÃO CIENTÍFICA DA COLEÇÃO Adriana Meira de Oliveira Alberto Alvadia Filho Alberto Alvaro Vasconcelos Leal Neto Aline Moraes da Costa Lins Aline Prado Atassio Amaro Xavier Braga Junior Ana Cíntia Moreira Sales Anderson Vicente da Silva André Carvalho Baida Antônio Alves de Santana Antonio Lindonberto Batista da Silva Breno Rodrigo de Oliveira Alencar Bruna Rossi Koerich Bruna Silva Araújo Carlos Eduardo Panosso César Alessandro Sagrillo Figueiredo Claudete Pagotto Danilo Jose Noronha Dayane Aparecida dos Santos Eder Mauricio Oliveira Barroso Edinei Marcos Grison Eduardo Salles Ulian Elizabeth José Campos Elizabeth José Campos Fabiana Nunes Travasso

Fabio Costa Peixoto Fabrício De Sousa Sampaio Fernanda Menezes Raposo Franciane Cardoso Almeida Francisco Jomário Pereira Frederico Alves Lopes George Michael Alves de Lima Guilherme Augusto Hilário Lopes Guilherme Eugênio Moreira Helton Silva Jonatã França Bittencourt José Ricardo Marques Braga Karla Luana Gomes Cunha Kirla Korina Anderson Ferreira Lígia Wilhelms Eras Louise Lanes Lemões Luciney Araújo Leitão Maquezia Suzane Furtado dos Santos Marcella Andrade Marcelo Cardoso da Costa Marcelo Fernando da Silva Mateus Marcos Abraão Fernandes Ribeiro Marcos Roberto Mesquita Mário Jorge de Paiva Matheus Bortoleto Rodrigues

Maurício Izelli Doré Maurício Sousa Matos Michelle de Paula Pupo Mizânia Mizilílian Pessoa Barradas de Brito Nayala Nunes Duailibe Nikolas Corrent Patrícia Rejane Froelich Paulo César Batista Paulo Vinícius Faria Pereira Pedro Barbabela Pedro Ernesto Zanani Priscilla dos Santos Vasconcelos Rafael Schultz Raquel Folmer Corrêa Regiane Smocowisk Miranda Renan Costa de Negri

Renato Kendy Hidaka Rilka Lucia de Jesus Bandeira Rodrigo Furtado Costa Rodrigo Umbelino da Silva Sandra Regina Giraldelli Ulrich Sara Esther Dias Zarucki Tabac Sergivano Antonio dos Santos Sheyla Charlyse Rodrigues de Oliveira Thiago Fescina Ribeiro Vanessa Ramos da Silva Walace Ferreira Waldinete da Silva Carvalho Wendell Marcel Alves da Costa Wesley Piante Chotolli Wilian Marques Dias Ygor Rafael Leite Pereira

Nota: Cada texto passou por avaliação de quatro pareceristas integrantes da comissão científica, sendo duas rodadas de avaliações. A primeira focada na qualidade teórica e conceitual dos textos. A segunda rodada foi voltada à qualidade da transposição didática dos textos.

OUTRAS OBRAS DA EDITORA CAFÉ COM SOCIOLOGIA Diálogos sobre o ensino de Sociologia, v. 1, Cristiano das Neves Bodart, 2019.

Diálogos sobre o ensino de Sociologia, vol.2, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2021.

O ensino de Humanidades nas escolas: Sociologia, Filosofia, História e Geografia, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2019.

O Ensino de Sociologia no Brasil, v. 1, Cristiano das Neves Bodart e Wenderson Luan dos Santos Lima (Orgs.), 2019.

O Ensino de Sociologia no Brasil, v. 2, Cristiano das Neves Bodart e Roniel Sampaio-Silva (Orgs.), 2019.

Sociologia e Educação: debates necessários, v.1, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2019.

Sociologia e Educação: debates necessários, v.2, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2020.

O ensino de Sociologia e os dez anos dos institutos federais (2008-2018), Roberta dos R. Neuhold e Márcio R. O. Pozzer (Orgs.), 2019.

O ensino de Arte e os dez anos dos institutos federais (2008-2018), Estevão da Fontoura Haeser e Márcio R. O. Pozzer (Orgs.), 2019.

O ensino de Filosofia e os dez anos dos institutos federais (2008-2018), Sérgio G. S. Portella e Márcio R. O. Pozzer (Orgs.), 2019.

O contexto da educação profissional técnica na América Latina e os 10 anos dos institutos federais (2008-2018), Márcio R. O. Pozzer e Roberta dos Reis Neuhold (Orgs.), 2019.

A importância do ensino das Ciências Humanas. Cristiano das Neves Bodart e Radamés de Mesquita Rogério (Orgs.), 2020.

Dicionário do ensino de Sociologia, Antonio Alberto Brunetta, Cristiano das Neves Bodart e Marcelo Pinheiro Cigales (Orgs.), 2020.

O ensino de História nos anos iniciais do ensino fundamental, Andréa Giordanna Araujo da Silva (Org.), 2020.

O ensino de Sociologia e de Filosofia escolar, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2020.

Filosofia e Educação no tempo/espaço que chamamos hoje, Junot Cornélio Matos e José Aparecido de Oliveira Lima (Orgs.), 2020.

John Locke e a formação moral da criança, Christian Lindberg Lopes do Nascimento, 2020.

Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Sociologia, vol. 1, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2021.

Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Sociologia, vol. 2, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2021.

Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Ciência Política, v. 1, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2021.

Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Ciência Política, v. 2, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2022.

Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Antropologia, v.1, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2021.

Conceitos e Categorias fundamentais do ensino de Antropologia, v.2, Cristiano das Neves Bodart (Org.), 2022.

Conquistas e Resistências do ensino de Sociologia: ENESEB 2019, Amurabi de Oliveira, Ana Martina Baron Engerroff, Diego Greinert e Marcelo Cigales (Orgs.), 2021.

O 2º tempo da vida do jogador de futebol: um olhar sociológico. Radamés de Mesquita Rogério, 2021.

Interpretações em conflito: Vol.1. Coleção Filosofias no chão da escola. Marcelo Alves Santos, 2021.

Escrever e experienciar filosofia: Vol.2. Coleção Filosofias no chão da escola. Gildmar Guilherme da Silva, 2021.

Sobre o esclarecimento e a maioridade em Kant: Vol.3. Coleção Filosofias no chão da escola, Catarina Andréa da Silva Quirino, 2021.

Filosofia [da] Perguntação: Vol.4. Coleção Filosofias no chão da escola, Junot Cornélio Matos, 2021.

O texto filosófico em sala de aula: Vol.5. Coleção Filosofias no chão da escola, Adailton Pereira de Melo, 2021.

Sociologia no chão de escola: investigações de vivências pedagógicas no Maciço de Baturité, Joana Röwer, Brena Kécia Andrade de Oliveira e Newton Malveira Freire (Orgs.), 2021.

Ciência Política para o ensino médio. Cristiano das Neves Bodart e César Alessandro Sagrillo Figueiredo, 2021.

Usos de canções no ensino de Sociologia. Cristiano das Neves Bodart, 2021.

Sumário Prefácio da coleção ................................................................................................. 11 Thiago Ingrassia Pereira

Apresentação ............................................................................................................. 13 Cristiano das Neves Bodart

O que é/são [...] ?

19 Alteridad e .....................................................................17 Andreia dos Santos Simone de O liveira Mestra

20 Amefricanidad e .........................................................23 Rosana da Silva Pereira

21 Antropologia urbana ..............................................27 Roberta dos Reis Neuhold

22 Cordialidade .................................................................35 Walace Ferreira Alberto Alvadia Filho

23 Cultura Popular .........................................................41 Anderson Vicente da Silva

24 Estranhamento ..........................................................47 Cristiano das Neves Bodart

25 Etnogênes e ....................................................................51 Marcos Rangel de Sousa Costa Caio dos Santos Tavares

26 Evolucionismo cultural .......................................57 Radamés de Mesquita Rogério Jonas Henrique de O liveira

27 Infância ...........................................................................63 Carine de Miranda Santos

28 Internet ...........................................................................69 Marcelo da Silva Araujo

29 Povos Indígenas ........................................................75 Ana Cláudia Gomes de Souza

30 Reciprocidade .............................................................81 Alexandre Barbosa Fraga

31 Relat ivismo Cultural .............................................87 Amanda Gomes Pereira Ana Caroline Amorim O liveira

32 Sincretismo Religioso Brasileiro .................93 César Alessandro Sagrillo Figueiredo

Autores e Autoras ................................................................................................................ 99

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CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

PREFÁCIO DA COLEÇÃO

O DIREITO E A NECESSIDADE DE ENTENDER A SOCIEDADE Thiago Ingrassia Pereira UFFS

A

compreensão crítica da sociedade é uma tarefa complexa e extremamente necessária, tendo em vista os desafios da convivência humana. De certa forma, as Ciências Sociais – Antropologia, Ciência Política e Sociologia – nascem, no contexto da modernidade ocidental, como uma resposta a esse desafio, buscando compreender e intervir no contexto social.

Ao se inscrever no campo científico, a área de Ciências Sociais busca compreender a sociedade por meio de teorias e aportes metodológicos, produzindo um discurso racional, sistemático e rigoroso. As diversas tradições teóricas ofertam instrumentos conceituais e categorias capazes de contribuir para o entendimento das circunstâncias que constituem a vida em sociedade.

Com o desenvolvimento das Ciências Sociais, tanto no meio universitário como na escola, o quadro teórico-conceitual de referência seguiu se expandindo e se diversificando, sinalizando para novos modos de explicar as relações interpessoais, a cultura, o Estado, o trabalho, a tecnologia, a economia, as instituições, os movimentos sociais etc. Por isso, já no I Congresso Brasileiro de Sociologia, em 1954, o sociólogo Florestan Fernandes escreve o texto “O ensino de sociologia na escola secundária brasileira” defendendo que o ensino de Ciências Sociais seria um mecanismo formativo de pessoas capazes de racionalmente estabelecerem a compreensão entre os meios e os fins em qualquer setor da vida social, exercendo uma cidadania consciente.

A chamada abertura política na década de 1980 gerou as condições para a nova Constituição Federal em 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, que lançou os fundamentos para a redação de uma nova Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996). Dentre os princípios que devem orientar o ensino no Brasil (art. 3º), destacam-se ao encontro da proposta do ensino de Ciências Sociais: liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte; e o saber e o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.

Contraditoriamente, o século XXI começa apresentando um aumento da literatura de autoajuda, do negacionismo científico e das chamadas fake news. A aceleração da tecnologia e do mundo virtual, por meio de suas redes, exige uma vigilância maior com as ideias que são criadas e divulgadas. Passamos a ter muita informação disponível na internet e a confundir opinião com conhecimento, o que gera um cenário muito desafiador.

Dessa forma, se atualiza a importância das Ciências Sociais e, sobretudo, de sua presença curricular nas escolas de Educação Básica. Vivemos uma onda de deslegitimação da ciência, de desconfiança dos resultados de estudos e pesquisas e, sobretudo, das reformas curriculares que potencializam a escola como apenas formadora de mão de obra para um mercado de trabalho flexível, instável e pautado no individualismo – no salve-se quem puder. Assim, a figura do(a) coaching parece tomar o lugar de professores(as) formados em universidades na condução de programas, estratégias e ações visando um objetivo específico.

CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

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Contudo, a educação e a relação de ensino-aprendizagem seguem necessitando de especialistas com a sensibilidade que o trabalho com pessoas exige, sendo capazes de superar dicotomias (teoria/prática, política/técnica, objetividade/subjetividade) e produzirem experiências pedagógicas pautadas pelo rigor científico e pela posição política democrática.

Dessa forma, a Coleção Conceitos e Categorias Fundamentais do Ensino de Ciências Sociais se apresenta como uma ferramenta que explora conceitos e categorias voltados ao suporte de aulas e atividades pedagógicas da disciplina de Sociologia no ensino médio. Portanto, é um material de apoio que, juntamente com os livros didáticos e outros recursos, procura atender à transposição didática, que consiste na transformação dos conteúdos do campo científico das Ciências Sociais para a construção da disciplina escolar.

Os conceitos e categorias que integram esta Coleção foram escritos por professores(as) e pesquisadores(as) com atuação no ensino escolar, profissional, técnico e universitário e são voltados a estudantes e docentes que atuam no ensino médio com a disciplina de Sociologia. Escritos em linguagem acessível, apresentam de forma objetiva a discussão e possibilidades de exercícios práticos sobre o conceito ou categoria das Ciências Sociais. Nesse contexto, com ensino remoto ganhando relevo, com a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a indeterminação da prática da Reforma do Ensino Médio, urge reafirmarmos o direito e a necessidade de entender a sociedade em que vivemos. O ensino de Ciências Sociais tem muito a contribuir para a formação de nossos(as) jovens, principalmente a partir de seus conceitos e suas categorias como ferramentas de uma educação crítica e voltada à prática da liberdade.

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CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO

CONCEITOS E CATEGORIAS DO ENSINO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS Cristiano das Neves Bodart UFAL A Coleção coleção “Conceitos e categorias do ensino das Ciências Sociais” é composta pelas obras “Conceitos e categorias do ensino de Sociologia”, volumes 1 e 2, “Conceitos e categorias do ensino de Antropologia”, volumes 1 e 2 e “Conceitos e categorias do ensino de Ciência Política”, volumes 1 e 2.

Trata-se de uma coletânea de textos didáticos voltados ao ensino médio ou iniciantes nas Ciências Sociais. Os textos foram produzidos por diversos autores e autoras e apresentam conceitos e categorias presentes no ensino médio brasileiro. Ao fim de cada texto são apresentadas dicas de leituras para estudantes de ensino médio e uma atividade didático-pedagógica que visa o ensino-aprendizagem do conceito ou da categoria abordada. Há, ao fim de alguns textos, sugestões de filmes, músicas e documentários.

A proposta da coleção surgiu a partir da constatação de que muitos docentes recorrem a textos complementares encontrados na internet, os quais nem sempre possuem qualidade de conteúdo, ou passaram por uma transposição didática voltada aos estudantes do ensino médio e aos iniciantes nas Ciências Sociais.

A

Conceitos e Categorias Os conceitos e as categorias das Ciências Sociais foram desenvolvidos em variados contextos sociais, econômicos, políticos e culturais. Visando explicar fenômenos sociais diversos, tornaram-se partes importantes na elaboração de múltiplas teorias sociais. Poderíamos, grosso modo, dizer que uma teoria é uma espécie de sistema explicativo – aparado por uma epistemologia – composto por conceitos, categorias e métodos.

Os conceitos se constituem por um conjunto de elementos que se articulam em uma unidade estruturada. Ou seja, trata-se de uma reunião e compilação de enunciados verdadeiros a respeito de um determinado objeto. Tais enunciados constituem as características do conceito em questão. Os conceitos são unidades que servem para delinear melhor um objeto de estudo e, por essa razão, são mais “precisos” do que categorias ou temas.

O conceito é uma tentativa de definição do objeto através da linguagem, originalmente acadêmica.

Seu uso visa facilitar o diálogo, já que simplifica um conjunto de elementos que constituem o fenômeno em questão. Um mesmo termo, estando em vertentes teóricas variadas, pode representar conceitos diferentes. Um exemplo emblemático é o termo “ideologia”. Este se difere, na teoria marxiana, daquele utilizado por Paul Ricoeur. Importa destacar que, os conceitos podem ser adaptados para fenômenos análogos, desde que “reelaborada” a reunião e compilação dos elementos (ou dos fenômenos) que os constituem. O conceito de habitus é um caso típico de reelaborações. Pensando nisso, os textos trazem tais transformações e reelaborações conceituais; isso quando o conceito ou a categoria apresenta notáveis mudanças e “re-usos”.

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A categoria representa uma classificação mais ampla que o conceito. Quando agrupamos um conjunto de coisas ou elementos a partir de aspectos previamente definidos, temos uma categoria. Mas não é um agrupamento qualquer. Em geral, uma categoria abarca um conjunto de conceitos correlacionados. É fruto de aspectos conceituais ou teóricos, sendo organizada a partir do diálogo entre esses. Como os conceitos são limitados (no sentido de ser específico) para explicar um determinado fenômeno social, se utiliza de uma categoria para referir-se a um conjunto desses conceitos. Às vezes um conceito acaba sendo, em um contexto mais amplo, uma categoria. Por exemplo, o trabalho é uma categoria, isso porque – além de ser um conceito – constitui-se de outros “sub-conceitos” que se articulam. Assim, trabalho escravo, trabalho doméstico, trabalho docente são conceitos que se agrupam na categoria trabalho.

O fato é que, os conceitos e as categorias são fundamentais para explicar os fenômenos sociais; no ensino das Ciência Sociais não deve ser diferente. Os professores e as professoras de Sociologia devem introduzir conceitos e categorias em suas aulas, a fim de fundamentar as explicações dos temas abordados, além de dotar seus alunos de ferramentas interpretativas do social. Sem o uso de conceitos e categorias das Ciências Sociais as aulas tenderão a distanciar-se do que denominamos ensino de Sociologia, podendo se transformar, por exemplo, em diálogos baseados no senso comum. Por isso, a presente coleção se mostra importante e colaborativa para qualificar o ensino de Sociologia.

Os objetivos da coleção A coleção visa contribuir para a qualificação do ensino de Sociologia escolar e para apresentar aos iniciantes nas Ciências Sociais conceitos e categorias que integram um conjunto de teorias das áreas de Antropologia, Sociologia e Ciência Política. Não se trata de um compêndio ou um manual escolar, mas de uma coletânea de textos complementares às aulas. Pensada para ser usada prioritariamente por docentes de Sociologia, a coleção visa ser um apoio pedagógico que se soma ao livro didático e aos demais recursos.

A elaboração da coleção Os textos foram produzidos considerando os conceitos e as categorias das Ciências Sociais presentes no ensino médio brasileiro. Todos os textos passaram por dois momentos de avaliação, que envolveu um conjunto de profissionais que integraram a comissão científica da coleção.

No primeiro momento cada texto foi avaliado por dois integrantes da comissão científica composta por graduados em Ciências Sociais e portadores de titulação de mestrado ou de doutorado. Foi analisada a qualidade do conteúdo, observando se os conceitos e as categorias se apresentavam em acordo com o conhecimento produzido nas Ciências Sociais. Os avaliadores e as avaliadoras apontaram aos textos aprovados, quando necessário, sugestões de ajustes.

Na segunda etapa cada texto foi enviado para dois outros integrantes da comissão científica composta por professores e professoras de Sociologia que atuam no ensino médio. Nessa etapa foi analisada a qualidade da transposição didática do texto, observando se as categorias e os conceitos estavam apropriados aos públicos destinados: estudantes do ensino médio e iniciantes nas Ciências Sociais. Os avaliadores e as avaliadoras apresentaram aos textos aprovados, quando necessário, sugestões de ajustes, especialmente no que diz respeito à linguagem e às sugestões de leituras e de atividades didático-pedagógica.

Nesse sentido, a coleção é resultado de um trabalho coletivo e colaborativo.

Utilizando a coleção Os textos da coleção podem ser utilizados de variadas formas: como texto básico, introdutório, complementar ou base para outras atividades didático-pedagógicas. O professor e a professora podem utilizar o texto como instrumento de leitura, podendo reproduzir o texto em fotocópia e disponibilizan-

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do aos alunos e alunas para que façam a leitura. Isso é possível por já estar recontextualizado ao ensino médio. Outra possibilidade é usar como base da regência oral, ou usar as atividades apresentadas, assim como as dicas de leituras. A partir dos textos é possível produzir outros materiais, tais como paródias, quadrinhos, fanzines, debates, teatros, etc.

A aprendizagem de conceitos e categorias envolve o desenvolvimento da capacidade de pensar abstrações e relacioná-las aos fenômenos concretos é uma maneira de dotá-la de sentido no ensino médio.

Os textos apresentam uma contextualização que justifica a importância do conceito ou da categoria, assim como uma seção destinada a apresentar seus usos. Nesse sentido, a leitura dos textos possibilita, em alguma medida, o uso do conhecimento abstrato em situações concretas. Contudo, cabe ao professor e a professora de Sociologia utilizá-los de maneira que melhor atenda as necessidades de aprendizagem dos estudantes.

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O QUE É

ALTERIDADE? Andreia Dos Santos Simone Mestre

I

magine a cena: você está em uma escola no Brasil e, de repente, vem caminhando na sua direção uma estudante com a cabeça coberta, usando um hijab1. Quantas coisas poderíamos pensar diante de uma cena dessa? Podemos fazer as seguintes indagações: “seria uma mulher árabe?”; “por que a estudante está toda coberta, inclusive a cabeça, em pleno verão?”; “como alguém vem à escola com essa roupa?”. Podemos, ainda, ter os seguintes pensamentos: “como ela é diferente de mim!”; “coitada, é oprimida!”; “que roupa estranha!”.

Quando estamos diante de uma situação na qual percebemos algo diferente do que estamos acostumados, temos a tendência de questionar e julgar o diferente a partir do que acreditamos ser o certo, ou seja, aquilo que é familiar para a nossa cultura. Ao fazermos isso, estamos sendo etnocêntricos2, pois estamos julgando uma pessoa ou uma situação com base no que acreditamos. O problema não é ter dúvidas ou curiosidade sobre uma pessoa diferente; o problema é julgar sem conhecer, sem buscar respostas para compreender aquilo que é incomum para a nossa realidade. Muitas vezes, esses julgamentos geram preconceitos e situações discriminatórias. Para evitar atitudes etnocêntricas e conhecer melhor culturas diferentes, a Antropologia utiliza a noção de alteridade, que permite compreender outras culturas que não a própria e interagir de forma positiva com pessoas dessemelhantes.

A definição da palavra “alteridade” vem do latim, como muitas outras palavras utilizadas por nós. Assim, alteridade é a condição de ser o outro. Conforme o dicionário Aurélio on-line (2021), o vocábulo “alter” referese ao “outro” (em contraposição ao “eu”). Como uma primeira definição, podemos entender que alteridade se refere ao outro, aquele que difere de mim.

Numa perspectiva social, podemos dizer que o “eu” – em sua forma individual – só existe porque tem contato com o “outro”, ou seja, com a sociedade que o rodeia, pensando o outro em uma perspectiva singular (características próprias) e subjetiva (concepções distintas). Dessa forma, alteridade é um dos princípios fundamentais para estabelecer uma relação amistosa e de interação com outros indivíduos, principalmente quando observamos aspectos culturais distintos dos nossos.

Também podemos considerar que a alteridade está relacionada a especificidades e particularidades expressas pelo fato de os sujeitos compreenderem hábitos e ações de outros indivíduos por meio de um olhar abrangente, buscando entender uma realidade muito distinta da nossa, ou seja, proporcionado por uma experiência cultural onde procuramos tornar familiar uma experiência diferente da que vivemos. Podemos reconhecer, assim, que alteridade é perceber que existem pessoas e culturas singulares e, ao mesmo tempo, subjetivas que refletem, estabelecem hábitos, agem e compreendem o mundo de acordo com sua própria cultura.

Hijab ou hijabe é o véu utilizado por mulheres islâmicas para cobrir a cabeça e o rosto. Na cultura do Islã, a vestimenta visa garantir a intimidade e o decoro das mulheres e simboliza a simplicidade.

2 Segundo o dicionário Aurélio on-line, a palavra “etnocentrismo” significa: “Visão de mundo própria da pessoa que considera a sua sociedade, sua nação, seu país ou grupo étnico superiores aos demais” (2022). Para maiores informações sobre o significado e a aplicação do termo, indicamos a leitura do capítulo 5 do livro Conceitos e categorias de Antropologia, v. 1, Editora Café com Sociologia, 2021.

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Observamos que a noção de alteridade possui um caráter multidisciplinar quando associada ao aprimoramento da compreensão dos sujeitos e das relações sociais. Isso porque o mundo contemporâneo possui muitos dilemas que se expressam por meio da pluralidade de diferentes grupos sociais. Alteridade também pode ser associada à compreensão da diversidade cultural presente em nossa sociedade, sendo necessário o entendimento desse conceito na ordem cotidiana das relações socioculturais, presente nas tensões entre os grupos étnicos, sexuais e de direitos sociais (MOLAR, 2008).

A

alteridade é um conceito importante para as Ciências Sociais. Segundo Mariza Peirano (1988, p. 2), alteridade “[...] é um aspecto fundante da antropologia, sem a qual a disciplina não reconhece a si própria”. Para a autora, a alteridade está na origem da disciplina, ou seja, é um conceito fundante e permanece como um importante direcionador de pesquisas. Sim, na Antropologia a metodologia de pesquisa é muito relevante, já que a alteridade permite que os olhos do(a) pesquisador(a) possam perceber os elementos da cultura, dos hábitos e dos valores. Portanto, [...] a característica mais marcante de nossa disciplina é tratar com a alteridade, com a diversidade cultural, com a variação de forma de vida, objetivo que só logramos alcançar em nossas próprias sociedades quando transformamos ‒ por meio de recursos de método ‒ o familiar em exótico, conseguindo, com isso, estranhar suficientemente tudo aquilo que nos é próximo, de maneira a poder alcançar uma distância mínima que nos habilite ao questionamento típico do olhar etnográfico (OLIVEIRA, 1998, p. 123-124).

Em outras palavras, estudar o outro, o diferente, o distante, o exótico3, desde o surgimento da disciplina, foi um empreendimento antropológico, reafirmando a noção de alteridade como um elemento essencial para a realização de uma pesquisa antropológica, conforme sinaliza o antropólogo brasileiro Marcio Goldman (2006, p. 167): Uma característica fundamental da antropologia seria o estudo das experiências humanas a partir de uma experiência pessoal. E é por isso penso, que a alteridade seja a noção ou a questão central da disciplina, o princípio que orienta e inflete, mas também limita, a nossa prática. Parte da nossa tarefa consiste em descobrir por que aquilo que as pessoas que estudamos fazem e dizem parece-lhes, eu não diria evidente, mas coerente, conveniente, razoável. Mas por outra parte consiste em estar sempre se interrogando sobre até onde somos capazes de seguir o que elas dizem e fazem, até onde somos capazes de suportar a palavra nativa, as práticas e os saberes daqueles com quem escolhemos viver por um tempo.

De acordo com o referido autor, podemos compreender a noção de alteridade como uma vivência compartilhada entre o eu e o outro durante a realização de um estudo de cunho etnográfico, no qual definimos como eu o(a) pesquisador(a), enquanto o(a) outra(a) seria aquele(a) que é o(a) interlocutor(a) da pesquisa.

Para que o vínculo estabelecido entre o eu e o outro seja baseado em uma relação de alteridade, é necessário que o(a) pesquisador(a) saia da sua área de conforto e mergulhe no universo dos seus(uas) interlocutores(as). Esse mergulho acontece por meio do que denominamos de “trabalho de campo etnográfico”. É por meio da observação participante4 que o(a) antropólogo(a) interage e compartilha experiências com os indivíduos que habitam o contexto estudado, buscando desenvolver estratégias de aproximação com o outro e que permitam tornar aquilo que é estranho e/ou desconhecido em algo familiar. Isso considerando que, segundo

Exótico é aquilo que é visto como incomum ou diferente. Segundo o dicionário Aurélio on-line (2022), “exótico” significa: “Não natural; que não nasceu no país nem na região onde habita; estrangeiro, importado: vegetação exótica”.

4 Podemos considerar que a observação participante é uma técnica de pesquisa de investigação antropológica em que o observador/pesquisador se insere, partilha das vivências de determinado grupo social, participando das rotinas, rituais, ocasiões relevantes, enfim, de tudo que uma comunidade ou grupo de interesse possa realizar. Assim, ele elabora sua análise a partir das observações e vivências realizadas nesse local de pesquisa.

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Sônia Weidner Maluf (2010), a alteridade pode ser compreendida como resultante de um evidente empenho da Antropologia em estabelecer um distanciamento e um estranhamento para a compreensão do outro.

E

mbora estejamos tratando aqui da noção de alteridade para a Antropologia, quando falamos do conceito de alteridade em movimento, não podemos deixar de mencionar o seu caráter pluridisciplinar, uma vez que alteridade está presente em diversas disciplinas e áreas de pesquisa, tais como Filosofia, Psicologia, Educação, entre outras.

E quando falamos de alteridade enquanto uma noção pluridiscplinar, a primeira coisa a ter em mente é que cada uma das ciências mencionadas adota uma perspectiva própria e faz um uso diferente da noção de alteridade, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1 ‒ O conceito de alteridade em movimento.

Filosofia

O conceito de alteridade já ganhou diversos significados e apresenta intepretações diferentes dependendo da corrente teórica em questão. Isso dito, a concepção filosófica sobre alteridade está centralizada na interpretação metafisica entre “si mesmo” e “o outro” por meio de uma relação de contraste.

Psicologia

Baseada nas compreensões filosóficas e antropológicas sobre alteridade, a Psicologia percebe a alteridade como uma forma de conexão com o coletivo, por meio da qual é possível se conectar com o outro; não se trata do nosso ego (o eu/personalidade) e do nosso alter ego (o outro eu).

Educação

Partindo de uma perspectiva multiculturalista, a alteridade na educação é apontada como um elemento fundamental na construção de processos inovadores, visando ao reconhecimento da pluralidade de saberes e à sua integração para a promoção de uma pedagogia crítica e emancipadora.

Antropologia

Podemos definir a Antropologia como a ciência da alteridade, dado que ela é, entre todas as Ciências Sociais, a que se dedica ao estudo do ser humano e sua relação com o seu contexto cultural e histórico, posicionando como princípio metodológico o exercício de se colocar de forma crítica e analítica no lugar do outro na condução de uma pesquisa.

Fonte: produzida pelas autoras, 2021.

Como podemos perceber, embora haja uma visível conexão, a noção de alteridade será utilizada de forma diferente dependendo do contexto no qual será desenvolvida e aplicada em cada disciplina. Portanto, é importante ficar atento aos objetivos e usos específicos da noção em cada área, visto que, de um lado, a alteridade pode ajudar a Educação a promover processos educativos emancipatórios5 e, de outro, pode auxiliar a Psicologia a fornecer mecanismos para que um determinado indivíduo entenda e consiga conviver com as diferenças de outros sujeitos. Nesse sentido, Molar (2008) aponta que o conhecimento de alteridade recebe compreensões distintas, inclusive quanto ao significado da palavra. Assim, o historiador Molar indica que a Psicologia Quando mobilizamos estratégias de ensino-aprendizagem pautadas na construção de um conhecimento crítico sobre a realidade na qual estamos inseridos.

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compreende a alteridade como outro, mas contrário ao ego, enquanto para a Filosofia alteridade relaciona-se com ser outro ou constituir-se como outro.

importante distinguir empatia de alteridade. Embora tenham em comum o fato de serem habilidades

Éimportantes para o desenvolvimento de uma experiência compartilhada, são totalmente diferentes:

enquanto a empatia é a habilidade de se colocar na situação do outro em uma circunstância específica, a alteridade é a habilidade de reconhecer, de forma contínua, que o outro é diferente e adotar uma postura constante de respeito à sua singularidade.

Quando vivemos em um país com uma grande diversidade étnico-racial6 e uma imensa pluralidade cultural como o Brasil, tanto a ausência de alteridade quanto a de empatia resultam na expansão do etnocentrismo que, por sua vez, é definido como o processo no qual indivíduos e grupos sociais utilizam as diferenças culturais para se colocarem como superiores diante de outros por meio de discursos racistas e xenofóbicos, desencadeando conflitos sociais e ações de violência.

Por exemplo, é possível supor que as violações aos direitos humanos que foram e ainda são cometidas contra os povos indígenas do Brasil ‒ como a invasão de suas terras, assassinato e tortura de suas lideranças, ataques aos seus costumes, incêndios criminosos em suas aldeias, trabalho forçado, entre outras atrocidades ‒ são baseadas em pressupostos etnocêntricos. Por isso, estudar e exercitar a alteridade pode ser considerado o primeiro passo em direção à formação de uma sociedade justa e democrática, em que todos são capazes de expressar suas diferenças, compreendendo que estas não podem ser sinônimos de desigualdades, e sim de reconhecimento da nossa diversidade enquanto nação.

Por fim, podemos compreender a noção de alteridade como plural e híbrida. Dessa forma, ela não se encaixa em explicações generalizantes ou inflexíveis. O mundo contemporâneo já indica que a convivência entre grupos faz com que a alteridade seja uma ferramenta de superação dos preconceitos e xenofobias. Nesse sentido, entender a impessoalidade e a individualidade que caracterizam a modernidade e, muitas vezes, levam a condições negativas e de intolerância faz da alteridade uma indicação de mediação de conflitos. Quando compreendida e aplicada em ambientes escolares, torna-se uma potente possibilidade de construir relações igualitárias, reconhecendo “[...] que o outro guarda um segredo: o segredo de quem eu sou” (MOLAR, 2012, p. 1443).

Em síntese, alteridade é um conceito das Ciências Sociais crucial para a compreensão do mundo contemporâneo. É uma lente que permite aprender com os dilemas que cercam nossas vidas. Quando estabelecemos uma relação de alteridade é possível aprender com/e sobre as diferenças presentes em nossa comunidade, uma vez que passamos a repensar nossas condutas em relação àquilo que é distante do cotidiano. Ao mesmo tempo, compreendemos a diversidade como um elemento produtor de conhecimento e não como um sinônimo de distinção.

Diferente da perspectiva biológica sobre etnia e raça, as Ciências Sociais compreendem tanto o termo “etnia” quanto “raça” como categorias analíticas distintas. Dessa forma, quando usamos o termo “étnico-raciais” estamos enfatizando os diferentes grupos sociais presentes no contexto brasileiro e sua pluralidade. Para maior compreensão dessa discussão, indicamos a leitura do artigo: GOMES, Nilma Lino. "Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão." In: OUANE, Adama et al. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. 2005.

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GOLDMAN, Márcio. Alteridade e experiência: Antropologia e teoria antropológica. Etnografia, v. 10, n. 1, p. 161-173, 2006.

MALUF, Sônia Weidner. A Antropologia reversa e “nós”: alteridade e diferença. Revista de Antropologia, v. 12, n. 1, 2, p.

41-58, 2010.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo.

São Paulo: Unesp, 1998.

PEIRANO, Mariza Gomes e Souza. A alteridade em contexto: a Antropologia como Ciência Social no Brasil. Universidade de Brasília ‒ Departamento de Antropologia, 1999.

MOLAR, Jonathan Oliveira. A alteridade na educação: noção em construção. Revista Nupem, v. 3, n. 5, p. 61-72, 2012.

Fique comigo. Autora: Ayobami Adebayo, 2017. Gênero: romance (Nigeriano).

A vida não é útil. Autor: Ailton Krenak, 2020. Gênero: filosófico.

O perigo de uma história única. Autora: Chimamanda Ngozi Adichie, 2019. Gênero: não ficção.

Entre os muros da escola. Diretor: Laurent Cantet, 2008. País: França.

Como estrelas na Terra. Diretores: Aamir Khan e Amole Gupte, 2007. País: Índia.

O diário de uma babá. Diretores: Robert Pulcini e Shari S.Berman, 2009. País: Estados Unidos.

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amos exercitar nossa alteridade?

O objetivo deste exercício é praticar um uma reflexão sobre a alteridade por meio do relato da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. A atividade deverá ser realizada individualmente em sala de aula, com a duração média de 40 a 50 minutos, seguindo as orientações a seguir: Para realizar esta atividade, será necessário assistir à palestra “O perigo da história única”, da Chimamanda no TED. O vídeo está disponível tanto no YouTube quanto no site oficial do TED Talk, acessível por meio do seguinte link: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story Após assistir ao vídeo, escreva um texto expositivo no qual você relacione, obrigatoriamente, as informações sobre alteridade abordadas no texto com a reflexão que Chimamanda apresenta no vídeo sobre o perigo de uma história única. Além disso, relate como podemos perceber situações em seu cotidiano que se relacionem com a incapacidade de ver o outro – que é diferente de mim.

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O QUE É AMEFRICANIDADE?

Rosana da Silva Pereira

A

diversidade brasileira é a sua principal marca identitária. Basta analisar a escola, a sala de aula e os demais espaços do nosso território, nos quais podemos encontrar sujeitos com construções identitárias e culturais diferentes. Nesse sentido, observamos que a história brasileira é constituída a partir da mestiçagem vinculada aos processos de colonização e escravização. A dominação colonial está também atrelada a uma corrente de pensamento chamada “colonialidade”, na qual há uma ideologia que subalterniza e inferioriza, em todos os setores da sociedade, os sujeitos historicamente marginalizados ‒ indígenas e negros, por exemplo. Portanto, a colonialidade é uma progressão do colonialismo e será perpetuadora do racismo e da alienação, com fins de manutenção da lógica da supremacia branca. O conceito de amefricanidade, criado pela intelectual Lélia Gonzalez, é essencial para a discussão da contribuição negra e indígena na formação das sociedades, sobretudo nos territórios da América Latina. Torna-se um conceito contra-hegemônico e decolonial7 porque irá lutar contra as relações de opressão e visibilizar a relevância afro-latinoamericana na ciência, educação, cultura e demais setores das sociedades. O território brasileiro, de acordo com a autora, é a manifestação da amefricanidade.

O

século XX foi permeado por contribuições significativas no pensamento social brasileiro a partir das discussões sobre as relações étnico-raciais. Intelectuais negras e negros apresentam argumentos que tensionam o mito da democracia racial e apresentam perspectivas que denunciam as desigualdades entre negros e brancos. Mesmo após a abolição da escravidão, em 1888, e a Proclamação da República, em 1889, a população negra no país continuou sendo marginalizada do mercado de trabalho, da educação e da saúde. Nesse sentido, no cerne dos movimentos negros em pluralidade, intelectuais negros, em caráter de denúncia, apresentam perspectivas sobre a situação negra no país. Entre eles estão Abdias Nascimento, Guerreiro Ramos, Neuza Santos, Beatriz do Nascimento, Virgínia Bicudo, Luiza Bairros e Lélia Gonzalez.

Lélia Gonzalez (1935-1994), intelectual e antropóloga brasileira, contribuiu para o pensamento social brasileiro com a discussão sobre o racismo e o sexismo na cultura brasileira, refletindo as nuances e prerrogativas que condicionam a dupla violência das categorias de raça e gênero na vida das mulheres negras. Criti-

A decolonialidade é uma corrente de pensamento criada na América Latina, que tem como objetivo desconstruir os padrões de pensamento colonial. Critica a modernidade e o capitalismo, enquanto reconhece a importância dos grupos subalternizados historicamente, de assumirem suas potencialidades enquanto protagonistas de suas histórias.

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cando a democracia racial8, a intelectual e militante do movimento negro emerge na produção do conhecimento sobre as relações étnico-raciais e a América Latina.

Lélia discute a desumanização, a infantilização, a subalternização, a segregação da população negra e a apropriação dos saberes tradicionais e ancestrais dessa mesma população pelos sujeitos brancos. Acentua em suas obras os discursos de conservação do “lugar do negro” vinculado à inferioridade, ao racismo cientifico e à constante invisibilização da história afro-brasileira. Nesse sentido, a autora constrói argumentos que contribuem para o reconhecimento da identidade étnica e cultural da população negra como central para a constituição da nação e reforça que as lutas pela representatividade afro-brasileira devem continuar.

A

o construir o conceito de amefricanidade, Lélia Gonzalez (1988) remete primeiramente à constituição da América, ao criticar o imperialismo dos Estados Unidos e acentuando que o território é composto por diversos países. Além de apresentar a Améfrica e a América Ladina, remetendo aos ladinos, africanos e indígenas, a autora também atribui aos descendentes dos africanos a nomenclatura de “amefricanas” e “amefricanos”: Portanto, a América, enquanto sistema etnogeográfico de referência, é uma criação nossa e de nossos antepassados no continente em que vivemos, inspirados em modelos africanos. Por conseguinte, o termo amefricanas/amefricanos designa toda uma decadência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro como a daqueles que chegaram à América muito antes de Colombo. Ontem como hoje, amefricanos oriundos dos mais diferentes países têm desempenhado um papel crucial na elaboração dessa Amefricanidade que identifica, na Diáspora, uma experiência história comum que exige ser devidamente conhecida e cuidadosamente pesquisada.

Embora pertençamos a diferentes sociedades do continente, sabemos que o sistema de dominação é o mesmo todas elas, ou seja: o racismo, essa elaboração fria e extrema do modelo ariano de explicação, cuja presença é uma constante em todos os níveis de pensamento, assim com parte e parcela das mais diferentes instituições dessas sociedades (GONZALEZ, 1988, p. 77).

No texto “A categoria político-cultural de amefricanidade”, Lélia Gonzalez (1988) discute as problemáticas que o Brasil possui ao se afirmar exclusivamente a partir de elementos brancos e europeus. Com os seus estudos sobre a psicanálise, a autora conceitua o racismo por degeneração, que se constitui como uma prática discriminatória contra não brancos. Estes, negros e indígenas, são excluídos nos setores da sociedade brasileira e considerados inferiores. [...] Mas como já disse antes, é justamente a consciência objetiva desse racismo sem disfarces e o conhecimento direto de suas práticas cruéis que despertam esse empenho, no sentido de resgate e afirmação da humanidade e competência de todo um grupo étnico considerado ‘inferior’. A dureza dos sistemas fez com que a comunidade negra se unisse a lutasse, em diferentes níveis, contra todas as formas de opressão racista. Já nas nossas sociedades de racismo por degeneração, o processo é diferente, como também foi dito. Aqui, a força do cultural apresenta-se com a melhor forma de resistência. O que não significa que vozes solitárias não se ergam, efetuando análises/denúncias do sistema vigente (GONZALEZ, 1988, p. 75).

Mas é na amefricanidade que os sujeitos negros manifestam seus saberes e fazeres ancestrais. Para Luiza Bairros (1998, p. 7), Amefricanidade é então conceituada como ‘um processo histórico de intensa dinâmica cultural (resistência, acomodação, reinterpretação, criação de novas formas) referenciada em modelos africanos e que remete à construção de uma identidade étnica. [O valor metodológico desta categoria] está no fato de resgatar uma unidade específica, historicamente forjada no interior de diferentes sociedades que se formaram numa determinada parte do mundo’. Uma unidade que, sem apagar as matrizes africanas, resgata a experiência fora da África como central.

A democracia racial é uma concepção que defende que todas as pessoas são tratadas igualmente, inexistindo conflitos e discriminações raciais. Tal concepção é considerada um mito pela intelectualidade negra e defensora da promoção de políticas de combate ao racismo, à discriminação e à intolerância religiosa.

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Outra questão importante é o pressuposto de que toda linguagem é epistêmica. A contribuição africana é exemplificada a partir do “pretuguês” ‒ variações linguísticas afro-brasileiras. Nessa perspectiva, ao apresentar tal termo, Lélia Gonzalez denuncia o silenciamento dos processos de contribuição africana na cultura brasileira, e é no reconhecimento e na resistência do “pretuguês” que compõe a amefricanidade (RATTS; RIOS, 2010).

L

élia Gonzalez apresenta que a manifestação da amefricanidade se constitui na resistência cultural e ancestral, quando a população negra mantém saberes tradicionais, conhecimentos, religiosidades, variações linguísticas, vestimentas etc. Isto é, toda e qualquer manifestação que represente a ancestralidade africana e a humanidade negra. A amefricanidade está em nossas falas, gestos e expressões. Exemplos: •

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Simbolização da resistência negra: temos no Zumbi dos Palmares, a representação da resistência negra no período colonial. Em sua homenagem temos o dia 20 de novembro, data comemorativa da Consciência Negra; Capoeira: enquanto uma manifestação cultural que é patrimônio da humanidade, uma expressividade afro-brasileira que mescla artes marciais, música e dança; Religiões de matriz africana: são as manifestações religiosas, como o candomblé e a umbanda; Arte afro-brasileira: são manifestações artísticas produzidas por afro-brasileiros que, consequentemente, possuem um impacto cultural. Temos o grafite como exemplo; Literatura afro-brasileira: é a literatura produzida por afro-brasileiros. Autores como Carolina Maria de Jesus, Machado de Assis e Conceição Evaristo são importantes contribuições para essa literatura; Música afro-brasileira: temos o rap, o hip-hop, o reggae, o samba, o funk, o pagode, o jazz e o rock como exemplos de manifestações musicais que possuem em suas composições históricas a presença negra; Coletivos e irmandades: as coletividades negras demarcam os processos de luta negra no país; Feminismo negro decolonial: é uma corrente de pensamento de visibilidade das histórias de grupos sociais historicamente subalternizados. A decolonialidade no feminismo negro é justamente a promoção de ações teóricas, metodológicas e empíricas da visibilidade de atuação das sujeitas negras em seus processos; Aplicabilidade da Lei nº 10.639/2003 e da Lei nº 11.654/2008: o conhecimento da história afrobrasileira é essencial para a valorização da contribuição negra e indígena na composição da nação. A promoção da Lei nº 10.639/2003 diz respeito a esse ensino na educação básica e, posteriormente, é modificada no ensino na inclusão da história e cultura indígena a partir da Lei nº 11.654/2008.

A conclusão de Lélia Gonzalez é que a amefricanidade é um caminho importante para combater a colonialidade, o imperialismo, o racismo e o sexismo. É uma potencialidade de reconhecimento e valorização das contribuições africanas e indígenas na composição social, cultural e política da América. Mulheres e homens negros narrando suas próprias histórias, cultuando as suas religiosidades e movimentos culturais são a representação da manifestação da amefricanidade. Como diria a autora: “O lixo vai falar e numa boa!”.

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BARROS, Luiza. Lembrando Lélia Gonzalez, 1998. Disponível em: https://institutoodara.org.br/wpcontent/uploads/2019/07/LEMBRANDO_LeLIA_GONZAL EZ.pdf. Acesso em: 17 set. 2021.

GONZALEZ, Lélia. O conceito político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, jan./jun, p. 69-82, 1988.

RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. Retratos do Brasil Negro. São Paulo: Selo Negro, 2010.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira.

Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Orgs: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia. Editora Zahar, 2020.

Filme Em busca de Lélia. 2017. Duração: 15 minutos. Direção: Beatriz Santos Vieira.

Sinopse: o documentário apresenta a vida, os percursos intelectuais e militantes de Lélia Gonzalez.

Sinopse: o filme Em busca de Lélia retrata a busca da cineasta Beatriz Santos Vieira pela sua ancestralidade seguindo os passos de Lélia Gonzalez. A cineasta, portanto, apresenta a caminhada da intelectual e militante do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR) em prol da promoção da igualdade racial.

Documentário Amarelo. 2020. Duração: 89 minutos. Direção: Fred Ouro Preto

Documentário Amefricanidade. 2020. Duração: 25 minutos. Direção: Fiocruz.

Sinopse: o rapper Emicida, como personagem principal da obra, apresenta o show do álbum Amarelo no Theatro Municipal de São Paulo, celebrando a história e a cultura negra no Brasil.

1) Compreendendo o conceito de amefricanidade, elabore um texto de uma a duas laudas relacionando as suas vivências com o conceito.

2) A música é uma importante manifestação cultural. Trazendo diálogos sobre a história brasileira, muitas músicas são manifestos importantes para a reflexão da condição negra atualmente. Leia o trecho da música Faraó Divindade do Egito, primeiro samba-reggae gravado no país em 1987, e escreva um texto sobre a valorização da história, a cultura afro-brasileira e a promoção da igualdade racial.

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O QUE É ANTROPOLOGIA

URBANA?

Roberta dos Reis Neuhold

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iência social preocupada com a interpretação do mundo a partir dos códigos culturais e do cotidiano de diferentes comunidades e grupos sociais (FELDMAN-BIANCO, 2011), a Antropologia, em seus primórdios, ficou famosa pelos estudos sobre povos geografica e culturalmente distantes. Já no início do século XX, sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, antropólogas e antropólogos decidiram que não baseariam suas análises apenas em relatos de viajantes. Iriam eles próprios sair de seus gabinetes, nas universidades, para viver, às vezes durante anos, entre outros povos, com costumes e ritos diferentes daqueles cultivados em seus países, com línguas desconhecidas ou vestimentas que não se assemelhavam em nada com as usadas pelos seus conterrâneos. Somente depois de conhecê-los de perto, de ouvi-los, de acompanhar suas cerimônias, de entender seus valores é que escreveriam sobre eles. O polonês Bronislaw Malinowski (18841942) foi o pioneiro desse movimento, tendo passado anos com os trobiandeses da Papua-Nova Guiné. O inglês E. Evans-Pritchard (1902-1973), por sua vez, viveu no Sudão e na Etiópia, enquanto a antropóloga estadunidense Margaret Mead (1901-1978) transitou entre povos do Oceano Pacífico.

Mas seria estritamente necessário atravessar oceanos, buscar populações isoladas ou aquelas ditas “tradicionais” (como camponeses e habitantes de pequenas cidades) para realizar uma pesquisa antropológica? A Antropologia Urbana mostrou que não. Afinal, “[...] basta uma caminhada pelos grandes centros urbanos e logo se entra em contato com uma imensa diversidade de personagens, comportamentos, hábitos, crenças, valores” (MAGNANI, 1996, p. 18) que também merecem atenção. Tal foi a perspectiva daqueles pesquisadores que, sem abandonar os conceitos e instrumentos de pesquisa elaborados para entender as sociedades indígenas e tradicionais, aceitaram o desafio de investigar a vida urbana (MAGNANI, 1996).

Este texto aborda, justamente, o processo em que as cidades e, sobretudo, as metrópoles passaram a compor o campo de estudo da Antropologia, formando uma subárea denominada “Antropologia Urbana”.

S

ubárea da Antropologia, a Antropologia Urbana9 tem a cidade como campo de estudo. Seus pesquisadores, embora dialoguem com disciplinas como a Sociologia, carregam o legado teórico e metodológico da Antropologia (MAGNANI, 2003). Nesse sentido, mantêm a etnografia como o método de investigação por excelência e costumam ter a cultura e as formas de sociabilidade como foco de análise.

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Há todo um debate a respeito da possível imprecisão conceitual ao se falar em uma “Antropologia Urbana” no Brasil. Questiona-se se o que é feito é uma Antropologia “da” cidade – o que caberia denominar “Antropologia Urbana” (DURHAM, 2004) – ou “na” cidade (MAGNANI, 2002). Não vamos pautar essa discussão no presente capítulo, dada a sua finalidade e público-alvo, mas deixamos aqui assinalado que existem conflitos em torno dessa subárea da Antropologia.

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É verdade que, na Antropologia Urbana, o trabalho de campo muda um pouco se comparado aos estudos sobre povos indígenas e sociedades tradicionais. Se o antropólogo inglês Evans-Pritchard (1978) dizia que conseguia observar tudo o que acontecia na aldeia sudanesa Nuer da porta de sua barraca, no ambiente urbano tudo se torna mais complexo (MAGNANI, 1996). As populações são diversificadas, seus ritos, crenças e costumes variam, a dimensão das cidades (com suas ruas e becos, centros e periferias) é superlativa, as desigualdades sociais criam barreiras, modos de vida e estratégias de sobrevivência opostas. Todavia, a despeito dessas especificidades, a Antropologia Urbana não abriu mão de interpretar a diversidade cultural. O que fez foi identificá-la, também, nas grandes cidades, mostrando que não precisamos necessariamente ir para “longe” para viabilizar um estudo antropológico.

E por que investigar essas “outras” realidades, estejam elas “perto” ou “distantes”? São vários os motivos.

Um deles remete à oportunidade de conhecer o “outro” – o outro povo, a outra cultura – e de desconstruir classificações equivocadas que levam à suposição de que existam grupos mais “evoluídos” do que outros. Trata-se de exercitar a alteridade (tentando entender o “outro” a partir do ponto de vista dele) e de criticar o etnocentrismo (aquela postura que julga qualquer manifestação que destoe dos valores e costumes do pesquisador como inferior ou exótica). Mais um ponto alto desses estudos está no fato de permitirem, ao antropólogo, analisar sua própria cultura: ao observar que existem formas diferentes de estar no mundo, ele reconhece que seu comportamento é, na verdade, fruto da vida em sociedade e não da natureza. Margaret Mead (1969), por exemplo, concluiu que não havia um temperamento naturalmente feminino e outro masculino. Como? Transitando entre três povos da Papua-Nova Guiné, ela diagnosticou que, em dois deles, não existia diferenças marcantes entre homens e mulheres: entre os Mundugumor, indivíduos de ambos os sexos se mostravam agressivos e hostis, enquanto os Arapesh eram gentis, cooperativos e não violentos. Entre os Tchambuli, no entanto, Mead se deparou com uma sociedade em que homens e mulheres assumiam temperamentos distintos uns dos outros, os primeiros com preocupações mais estéticas, enquanto as mulheres se ocupavam das atividades produtivas. Veja, mais do que entender as especificidades daquelas três sociedades, Mead tinha em mãos um material que lhe permitia interpretar as relações de gênero nos Estados Unidos. Entendeu que comportamentos atribuídos tradicionalmente às mulheres – instabilidade emocional, vaidade, habilidade para as tarefas domésticas e para o cuidado com o outro etc. – ou aos homens – racionalidade, pragmatismo, aptidão para o trabalho etc. – não se baseavam no instinto de cada um. Afinal, se fosse assim, o mesmo temperamento seria observado entre todos os povos humanos. Tratava-se, isso sim, de um padrão cultural, transmitido entre as gerações por meio da educação.

Os estudos da Antropologia Urbana contribuíram para interpretar a cidade a partir da diversidade e como fruto de práticas culturais e da ação de seus habitantes (de diferentes gêneros, idades e classes sociais que moram, trabalham, divertem-se, militam, organizam-se no espaço urbano), e não apenas dos interesses econômicos e governamentais que parecem vir de fora e de longe (MAGNANI, 2013). A possibilidade de analisar a cidade “de perto e de dentro”, entendendo as dinâmicas de diferentes “atores” e como constroem e interagem com a cena urbana, desponta como uma das importantes contribuições da Antropologia Urbana.

A

noção de “cultura urbana” foi popularizada pela Escola de Chicago, formada inicialmente por professores da Universidade de Chicago que se dedicaram, sobretudo entre meados da década de 1910 e 1930, a investigar problemas sociais criados ou agravados com o rápido crescimento demográfico da cidade estadunidense de Chicago (MAGNANI, 1996). Eram estudos sociológicos sobre, por exemplo, a criminalidade, os bolsões de pobreza, a imigração, a prostituição. A cidade tornou-se, então, um campo privilegiado de estudos, muitos dos quais resultantes de pesquisas empíricas que usavam técnicas como a observação direta, a

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entrevista, a história de vida (VELHO, 2000) e, inclusive, a etnografia, método tão importante para a Antropologia. Ali, na Escola de Chicago, já foram desenvolvidas pesquisas antropológicas associadas ao fenômeno urbano, abordando, por exemplo, as “gangues” juvenis ou os grupos de jovens italianos, um bairro judeu, os salões de dança, as formas de moradia etc. (MAGNANI, 1996).

Essas não foram, porém, as primeiras investigações sobre a relação entre as metrópoles e os estilos de vida de seus habitantes. São famosos, por exemplo, os escritos do filósofo alemão Georg Simmel (1858-1918) acerca da vida urbana. Ele falava sobre a experiência do anonimato e da impessoalidade vivenciada pelo próprio autor na Berlim do século XIX. Anonimato porque, nas grandes cidades, o indivíduo pode transitar entre diferentes espaços e grupos sem ser reconhecido: “[...] essa experiência estimula e reforça uma percepção de si mesmo como ser independente” (VELHO, 2000, p. 18), desenvolvendo valores individualistas. Impessoalidade no sentido de distanciamento social, com perda de vínculo com familiares e vizinhos, apesar da proximidade física (na rua, no transporte público, nas festas etc.) tão característica dos populosos centros urbanos (VELHO, 2000).

Foi Simmel (2005) quem traçou o perfil do indivíduo metropolitano (descrevendo seu caráter reservado, intelectualístico e econômico-monetário), em contraposição aos moradores das pequenas cidades (que mantinham vínculos mais duradouros e emotivos entre si). Ele também dizia que o indivíduo metropolitano desenvolve um mecanismo de defesa à hostilidade do mundo. Chamava aquela quase “indiferença” ao frenético movimento das grandes cidades e às suas mazelas de “caráter blasé”. Afinal, imagine se as pessoas, expostas diariamente a inúmeros estímulos e situações de dor, angústia e conflito, reagissem a cada um deles com a energia esperada? Estariam mergulhadas permanentemente no caos e em um estado nervoso.

Outros autores clássicos da Sociologia, como Émile Durkheim (1858-1917), Max Weber (1864-1920) e Ferdinand Tönnies (1855-1936), também estavam atentos para as transformações das relações sociais nas grandes cidades. Como nos estudos empreendidos pela Escola de Chicago, no geral, eles apresentavam uma visão pessimista, para a época, sobre a cidade, destacando problemas advindos da industrialização, da urbanização, da crise de laços comunitários e de valores tradicionais. Ainda hoje, esse olhar negativo sobre a vida urbana tem força, com abordagens que destacam “[...] o colapso do sistema de transporte, as deficiências do saneamento básico, a falta de moradia, a concentração e desigual distribuição dos equipamentos, o aumento dos índices de poluição, da violência” (MAGNANI, 2003, p. 12) ou, ainda, que mostram como os saltos tecnológicos deterioram os espaços públicos e as relações humanas.

Quando comparada às demais Ciências Sociais, a Antropologia oferece ferramentas alternativas para se pensar a vida urbana. Isso não significa que ignore os problemas sociais. Aliás, no Brasil, a Antropologia Urbana ganhou projeção, a partir da década de 1970, com estudos sobre as periferias de grandes cidades, investigando as desigualdades sociais (MACEDO, 1979), as formas de lazer (MAGNANI, 1984) e o cotidiano de moradores e sua percepção sobre o poder e os poderosos (CALDEIRA, 1984). Contudo, a novidade trazida pelos estudos antropológicos residia na sua tentativa de entender as “[...] redes de parentesco e de vizinhança, modos de vida, estratégias de sobrevivência, formas de sociabilidade e representações políticas, com ênfase em dimensões cotidianas e em representações simbólicas” (FRÚGOLI, 2005, p. 141). Em outros termos, se a Ciência Política e a Sociologia entendiam os personagens urbanos como atores políticos, a Antropologia inseria esse ator político em um território da cidade e em uma rede de relações, investigando seu local de trabalho, de moradia, de lazer, sua vizinhança, sua bagagem cultural (DUTRA; RIBEIRO, 2013).

Desde a década de 1970, os estudos da Antropologia Urbana ampliaram-se. Acompanhando a produção do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (NAU/USP), a Figura 1 reúne temas estudados, a partir dos anos de 1990 até a atualidade, para ilustrar a diversidade da pesquisa antropológica.

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Figura 1 – Exemplos de estudos contemporâneos de Antropologia Urbana.

Fonte: Elaborado pela autora, a partir de textos disponíveis para leitura e download na página eletrônica do NAU/USP.

Vale lembrar que esses são apenas alguns estudos, sem nenhuma pretensão de dar conta de toda a produção dessa subárea da Antropologia. Importa notar que, com criatividade e um olhar atento para a cidade, é possível desenvolver estudos sobre os mais variados aspectos da vida urbana.

U

m dos estudiosos da Antropologia Urbana no Brasil é o professor José Guilherme Magnani, da Universidade de São Paulo, que ficou famoso por suas pesquisas a respeito do lazer na metrópole.

Ele investigou os circuitos de lazer no centro e na periferia da cidade de São Paulo, em estudos sobre o uso do tempo livre por diferentes “atores”. Seus trabalhos sobre o lazer serão usados aqui para exemplificar como pode ser feita uma etnografia da cidade, dando destaque para os instrumentos de pesquisa.

Magnani (1996) divide o trabalho de campo em duas etapas (Figura 2). A primeira consiste no reconhecimento de pontos da cidade onde são desenvolvidas práticas de lazer e entretenimento. A segunda envolve a seleção, pelo pesquisador, de uma localidade ou prática, entre todas as mapeadas, para um estudo mais aprofundado ou para o desenvolvimento de uma etnografia propriamente dita.

Figura 2 – Etapas do trabalho de campo e instrumentos de pesquisa utilizados em uma etnografia sobre o lazer na metrópole.

Fonte: Elaborado pela autora, a partir da metodologia desenvolvida por Magnani (1996).

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Vamos nos concentrar na primeira etapa e entender como delimitar um estudo. Esse é o momento em que se identificam equipamentos e espaços da cidade (ou em uma parte dela) nos quais há práticas de entretenimento e de lazer. Podem ser parques, lanchonetes, ruas, praças, salões de dança, terreiros, galerias, centros culturais, cinemas, bibliotecas etc. Identificados esses espaços, o pesquisador faz “caminhadas de reconhecimento” ao seu redor para mapear: a) os roteiros internos seguidos pelos “usuários” (por exemplo, um grupo de pessoas joga futebol em certo campo de várzea, depois se reúne na lanchonete vizinha e termina o dia na roda de samba); b) as fronteiras, ou seja, os limites desse roteiro, definidos por barreiras físicas (como uma grande avenida), naturais (como um rio) ou mesmo por lugares considerados perigosos, desconhecidos ou de domínio de grupos com os quais aqueles sujeitos não se reconhecem; e c) os pontos de ligação com outras áreas.

Caminhadas sistemáticas, observação direta e classificação são os instrumentos de pesquisa utilizados nessa primeira etapa do trabalho de campo (Figura 3). Como isso ocorre? A caminhada “[...] permite treinar e dirigir o olhar por uma realidade inicialmente tida como familiar e conhecida” (MAGNANI, 1996, p. 36) para então captar as formas de apropriação dos espaços, aquilo que se repete, ou seja, o padrão das práticas culturais. Para não arriscar caminhar sem foco, Magnani (1996) propõe um roteiro: fazendo uso de termos do teatro, o pesquisador deve ficar atento ao cenário, aos atores e, finalmente, ao script (Figura 3). E, para não esquecer o que observou, precisa anotar tudo no seu caderno de campo.

Figura 3 – Esquema para dirigir o olhar durante a caminhada de reconhecimento.

Fonte: Elaborado pela autora, a partir da metodologia desenvolvida por Magnani (1996).

A que se referem cada um desses termos do teatro na pesquisa antropológica? Primeiramente, o cenário é o território, o equipamento ou o espaço da cidade onde acontecem determinadas práticas sociais.

O que interessa não é uma descrição do espaço físico, mas sim da forma como as pessoas fazem uso, circulam e se apropriam dele. Já os atores são sujeitos e grupos que dão vida para aquele cenário. Quem são? O que fazem por ali? São transeuntes ou usuários assíduos daquele espaço? Por fim, o script diz respeito ao roteiro seguido, às regras de cada espaço. O que aqueles atores vestem? E por quê? Em que se assemelham? Que termos ou gírias usam? Para que estão ali? Que horas chegam? O que os une e os separa? O que pode ser feito ali e o que é proibido? Se a observação dá conta de captar as informações

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sobre o cenário e os atores, nem sempre ela é suficiente para desvendar o script e, por isso, o pesquisador pode recorrer a outros instrumentos de pesquisa, como as entrevistas.

Depois de escrever e analisar todo o resultado de seu trabalho de campo, o antropólogo começa a desvendar a dinâmica daquele espaço e a entendê-lo. Mais tarde, por meio de outras visitas ao local e do uso de instrumentos de pesquisa variados, ele irá se aproximar daquela realidade e entender as práticas culturais que lhe dão vida, para então escrever sobre elas.

Esse é um exemplo de como o contexto urbano pode se tornar objeto de estudo a partir das contribuições teóricas e metodológicas da Antropologia.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A política dos outros: o cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo: Brasiliense, 1984.

MAGNANI, José Guilherme. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11-19, 2002.

DUTRA, Rogério; RIBEIRO, Nádia. A Antropologia Urbana no Brasil. Teoria e cultura, Juiz de Fora, v. 8, n. 1, abr. 2003, p. 81-95.

MAGNANI, José Guilherme. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Brasiliense, 1984.

EVANS-PRITCHARD, Edward. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978.

FELDMAN-BIANCO, Bela. A Antropologia hoje. Ciência e cultura, São Paulo, v. 63, n. 2, p. 4-5, 2011.

FRÚGOLI JÚNIOR, Heitor. O urbano em questão na Antropologia: interfaces com a Sociologia. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2005, v. 48, n. 1, p. 133-165.

MACEDO, Carmen. A reprodução da desigualdade. São Paulo: Hucitec, 1979.

MAGNANI, José Guilherme. Antropologia Urbana e os desafios da metrópole. Tempo social, São Paulo, v. 15, n. 1, 2003, p. 81-95.

MAGNANI, José Guilherme. Da periferia ao centro: cá e lá. Anuário Antropológico/2012, Brasília, UnB, 2013, v. 38, n. 2, p. 53-72.

MAGNANI, José Guilherme. Quando o campo é a cidade: fazendo etnografia na metrópole. In: MAGNANI, José Guilherme Cantor; TORRES, Lilian de Lucca (Orgs.)

Na metrópole: textos de Antropologia Urbana. São Paulo: Edusp, 1996, p. 14-53.

MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva, 1969.

NÚCLEO DE ANTROPOLOGIA URBANA. Textos para download. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Disponível em: https://nau.fflch.usp.br/textos. Acesso em: 18 set. 2021.

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito.

Mana, v. 11, n. 2, p. 577-591, 2005.

VELHO, Gilberto. Individualismo, anonimato e violência na metrópole. Horizontes antropológicos, 2000, v. 6, n. 13, p.

15-29.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Enclaves fortificados: a nova segregação urbana. Novos Estudos, n. 47, p. 155-176, 1997. A antropóloga analisa o impacto do discurso acerca do medo da violência sobre as inter-relações entre as classes sociais, a arquitetura e o urbanismo, tomando como exemplo a construção dos enclaves fortificados (espaços privados de lazer, consumo, trabalho e moradia).

década de 1960. O choque cultural e a vida nos conjuntos habitacionais acabam por nos aproximar da discussão acerca dos impactos da vida urbana sobre as tradições e as redes de sociabilidade e de proteção social, além de ser um prato cheio para entender o etnocentrismo. Da mesma autora, recomendo Cidadã de segunda classe (também autobiográfico).

EMECHETA, Buchi. No fundo do poço. Porto Alegre: Dublinense, 2020. Livro de caráter autobiográfico, com passagens ficcionais, que narra a história de uma mulher nigeriana que deixou seu país para viver em Londres na

MAGNANI, José Guilherme. Relato de campo: caminhada etnográfica por dois roteiros no centro de Campina Grande. 2015. Um exemplo de relato de campo a partir de uma etnografia urbana.

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TURGUÊNIEV, Ivan. Pais e filhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. O conflito geracional, também assentado no choque entre a vida urbana e a rural, é ilustrada nesse

clássico da literatura russa por meio da relação entre pais e filhos.

CAPITÃO Fantástico. Direção de Matt Ross. Estados Unidos, 2016. 1 DVD. (118 min.).

EDIFÍCIO Master. Direção de Eduardo Coutinho. Brasil, Videofilmes, 2002. 1 DVD. (110 min.).

Sinopse: Casal estadunidense abandona a vida urbana para educar os filhos em conexão com a natureza e longe da violência, da superficialidade e do consumismo que marcam as sociedades capitalistas.

Sinopse: Documentário sobre o cotidiano de moradores de um edifício com 276 apartamentos e 12 andares, localizado em Copacabana, famoso bairro da cidade do Rio de Janeiro. Retrata histórias, sofrimentos, vaidades e expectativas de personagens da cena urbana.

A cidade. Intérprete: Nação Zumbi. Compositor: Chico Science. In: Da lama ao caos. [S.I.]: Sony, 2005. Faixa 4.

Tendo Recife como referência, a banda pernambucana Nação Zumbi problematiza as desigualdades sociais e o caos das grandes cidades.

As desigualdades sociais, a violência, o caos e as “maravilhas” do Rio de Janeiro são cantadas por Fernanda Abreu.

Rio 40 graus. Intérprete: Fernanda Abreu. Compositores: Fausto Fawcett, Fernanda Abreu, Allen Shambilin, André Young. In: SLA2 ~ be sample. [S.I.]: EMI, 2016. Faixa 6.

Trem das onze. Intérprete: Adoniran Barbosa. Compositor: Adoniran Barbosa. In: Adoniran Barbosa. Manaus: EmiOdeon Brasil, 2003. 1 CD. Faixa 7. A dificuldade de deslocamento para as periferias de São Paulo é exemplificada nessa famosa canção de Adoniran Barbosa.

F

aça uma caminhada de reconhecimento por uma área da cidade em que você mora, estuda, circula ou trabalha. Selecione um espaço onde as pessoas se reúnam para atividades de lazer ou entretenimento. Usando o esquema da Figura 3, tente se sentar em algum lugar que lhe permita observar o que está ocorrendo. Apenas observe, com bastante atenção. Se puder, faça a observação em dois dias diferentes, pois assim poderá comparar se aquelas práticas se repetem. Como é o cenário? E os atores que ali se reúnem? O que fazem e como? O que os aproxima e os afasta? Não é o momento de conversar com os atores, a não ser que você precise pedir permissão para estar ali (se necessário, diga que está fazendo um exercício escolar ou acadêmico e pergunte se pode ficar ali; precisamos ser sempre muito honestos quando estamos realizando uma pesquisa). Produza um relato, por escrito, apresentando com detalhes o que foi observado.

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O QUE É CORDIALIDADE?

Walace Ferreira Alberto Alvadia Filho

a onda modernista que atingiu o Brasil nas primeiras décadas do século XX, quando diversos pensadores desenvolveram chaves interpretativas do país, Sérgio Buarque de Holanda (19021982) se destacou com a publicação de Raízes do Brasil, em 1936. Os anos 1930 foram marcados pela chegada de Getúlio Vargas ao poder, trazendo consigo um projeto economicamente desenvolvimentista, politicamente centralizador e intelectualmente voltado a visões modernizadoras. É nesse contexto histórico que, influenciado pelos trabalhos de Max Weber (1864-1920), Sérgio Buarque buscou, no passado colonial, as razões culturais impeditivas para a entrada do Brasil na modernidade, apresentando o conceito de cordialidade como exacerbação de afeto tanto para a formação de laços comunitários quanto para sua ruptura violenta.

O conceito, desenvolvido no livro Raízes do Brasil, está relacionado com a palavra latina cordialis, ou seja, é relativa ao coração. Em vez de agir segundo a formalidade das relações sociais burocráticas típicas da vida moderna, o brasileiro se vale da espontaneidade e da aposta nos favores, sendo, portanto, avesso à impessoalidade e à separação entre o “público” e o “privado”. Trata-se de um inflacionamento da esfera íntima, do familiar, do privado em detrimento de modelos mais modernos de Estado e de cidadania (SCHWARCZ, 2008).

A despeito da contextualização do conceito, e da entrada do país no século XXI, as características descritas por Sérgio Buarque seguem sendo um importante referencial para a leitura sociocultural do Brasil, em tom de concordância ou de crítica.

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e acordo com Sérgio Buarque de Holanda, a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade, dando ao mundo o chamado “homem cordial”. Deste, são referências o bom trato, a hospitalidade e a generosidade, virtudes que chamam a atenção dos estrangeiros que visitam o país, definindo-as como traços do caráter desse povo. Tais atitudes são a influência ancestral dos padrões de convívio humano, formados no meio rural e patriarcal, caracterizando-se por expressões de fundo emotivo. No entanto, o ponto central na obra do autor é que cordialidade não deve ser confundida como “boas maneiras” ou civilidade, haja vista nossa forma cotidiana de convívio social ser, no fundo, o contrário da polidez10. Nesse sentido: Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem cordial’: é a forma natural e viva que se 10

“Polidez” significa uma maneira cortês e gentil de agir.

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converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.

Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas sua sensibilidade e suas emoções (HOLANDA, 2017, p. 176-177).

Então, para o “homem cordial” a vida em sociedade consiste numa verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Assim sendo, segundo Sérgio Buarque, nosso temperamento até admite algumas relações formais, e de bom trato, mas somente enquanto estas não impedirem a possibilidade de convívio com características de ordem familiar.

A regra, em geral, é de intimidade, ilustrada, por exemplo, no emprego de diminutivos ou de proximidade como forma de estabelecer vínculos de familiaridade com as pessoas, afrouxando o distanciamento formal em busca de algum benefício. Nomes como Roberto, Cláudio e Marcos são traduzidos em Betinho, Claudinho e Marquinhos, enquanto Santa Teresa de Lisieux virou, no Brasil, Santa Teresinha.

Até na política Anthony Matheus era conhecido por Garotinho e sua esposa Rosângela Matheus por Rosinha Garotinho. Do mesmo modo, chamamos um desconhecido de “meu querido”, “meu amigo” ou “chefe”. São estratégias para fazê-los mais acessíveis aos sentidos e de aproximá-los do coração, daí a expressão “cordialidade”.

A aptidão social do brasileiro estaria, assim, longe de constituir um fator favorável para a coesão coletiva, ligada ao plano formal das relações sociais, posto que a nossa conduta cotidiana denuncia frequentemente um apego a valores configurados pela pessoalidade. Com isso, cada integrante afirma-se diante dos seus semelhantes e age indiferente à lei geral quando esta contrariar suas afinidades emotivas.

São por essas características que historicamente alguns elementos anárquicos frutificaram aqui com facilidade, tendo a cumplicidade do que Sérgio Buarque qualificou como a indolência displicente das instituições e dos costumes. A falta de coesão em nossa vida social advém da tradição da colonização. Às nações ibéricas11 faltaria a racionalização da vida experimentada em terras protestantes como, por exemplo, nos Estados Unidos, país que teria construído a integração social por meio de leis e instituições modernas. Esse argumento de Holanda é inspirado em Max Weber que, na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, escrita em 1904, atribui à influência de uma cultura assentada no protestantismo calvinista, e na sua teologia da predestinação12, a principal razão para o seu enorme desenvolvimento econômico, tornando-se a principal potência do mundo na virada do século XIX para o século XX. Dessa maneira, ao contrário do trabalho livre capitalista estimulado culturalmente pela matriz religiosa calvinista dos Estados Unidos, tão logo superada a colonização inglesa, em 1776, a colonização brasileira, de base católica, teria inspirado uma moral ibérica de distância do culto ao trabalho. O trabalho no Brasil seria muitas vezes visto como ligado à escravidão e não como fonte de desenvolvimento individual e social. Conforme dito por Sérgio Buarque de Holanda (2017, p. 44): É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. O que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor.

A colonização do território brasileiro pelos portugueses foi, de acordo com esse intelectual paulista, uma missão menos de empreendimento metódico e racional, resultante de uma vontade construtora, planejada e enérgica, e mais uma ação com desleixo e certo abandono. A riqueza que o português veio Aqui estamos falando das principais nações da Península Ibérica: Portugal e Espanha.

De acordo com a teologia da predestinação do suíço João Calvino (1509-1564), os indivíduos já estariam predestinados à salvação ao nascerem e uma forma de eles mostrarem sua fé seria por meio do sucesso na vida pessoal e material.

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buscar na aventura do além-mar não consistia na riqueza auferida a partir do trabalho, mas na riqueza gerada pela ousadia, a mesma que se tinha acostumado a alcançar na Índia com as especiarias e os metais preciosos.

Somado a isso, a típica plasticidade social dos ibéricos, demonstrada pela mestiçagem e pelo contato tanto com os muçulmanos da África quanto com o restante da Europa, possibilitou a implantação da escravidão no Brasil e a própria ambientação do colonizador num território desafiador do ponto de vista climático e já ocupado por populações indígenas.

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a sociedade em que a cordialidade se faz elemento marcante das relações sociais, em que o “público” é tomado como um prolongamento do espaço privado, fenômenos como o coronelismo, o apadrinhamento, o jeitinho e a corrupção terminam por colocar os interesses pessoais acima do bem comum (BOMENY et al., 2013).

A antropóloga brasileira Lívia Barbosa, no livro O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual que os outros, de 1992, destaca a dificuldade de o brasileiro lidar com o princípio da igualdade, tentando superar um impedimento legal com uma espécie de “quebra-galho” ou “malandragem”. Recorre-se, para tal, a uma perspectiva de princípio emocional, como a simpatia, a comoção do interlocutor, a amizade ou a familiaridade.

Também o antropólogo Roberto DaMatta, em Carnavais, malandros e heróis, publicado primeiramente em 1979, destacou essa complicada relação entre esferas públicas e privadas de poder, mostrando a existência no Brasil de uma sociedade dual, onde conviveriam duas formas de conceber o mundo. Existe o mundo dos “indivíduos”, sujeitos à lei, e outro de “pessoas”, para as quais os códigos seriam apenas formulações distantes e destituídas de sentido. Essa dualidade pode ser resumida no ditado “aos inimigos a lei; aos amigos, tudo” ou “aos bem relacionados, tudo; aos indivíduos (os que não tem relações), a lei” (DAMATTA, 1997, p. 23). Dessa interface entre “indivíduo” e “pessoa”, em que apesar de acharmos importante o respeito à lei, mas simultaneamente estabelecermos uma hierarquia nas relações sociais, resultará a discussão conhecida por todos os brasileiros chamada “Você sabe com quem está falando?”

O conceito de cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda, entretanto, não é unanimidade nas Ciências Sociais do país. Uma das críticas de maior relevo é feita pelo sociólogo potiguar Jessé Souza. No livro A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato (2017), ele afirma que o uso do indivíduo protestante como parâmetro de comparação do brasileiro, atribuindo a este último uma afetividade nociva inserida nas relações sociais, assim como a referência dos Estados Unidos como ideal de modernidade feita por Holanda, não são correlações adequadas e corretamente explicativas da vida social brasileira.

Ademais, alega que os fundamentos do Brasil na herança cultural da sociedade portuguesa terminam por desconsiderar uma série de relações sociais construídas em solo brasileiro ao longo de séculos de sua formação sociocultural, principalmente o peso da escravidão. Diz ainda que é equivocada a generalização do brasileiro sob o signo da cordialidade, haja vista a complexidade gestada a partir das diferentes características das classes sociais que nos compõem. A tese de Holanda, que culpa a cultura pelos problemas nacionais, segundo Jessé Souza (2017), acaba impedindo a percepção de estruturas ocultas que movem as engrenagens do poder político e econômico do país, sendo as elites as verdadeiras alimentadoras da nossa desigualdade e dos nossos problemas sociais.

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S

érgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, teve a pretensão de elaborar um retrato do país cujo enfoque foi a cultura. A partir do conceito de cordialidade, concebeu que o brasileiro, em seu modo de ser, tem dificuldades de cumprir os padrões sociais formais, preferindo transitar numa estrutura pessoal e afetiva. Esse “homem cordial” hesita em racionalizar os espaços em que vive, não conseguindo separar nitidamente o “público” do “privado”, o que se evidencia na prioridade conferida às relações personalistas no lugar do rito universal da lei.

A constatação do problema da sociedade brasileira, levantada pelo autor, com a permanência de ranços relativos ao patrimonialismo e a imbricação entre elementos públicos e privados, demonstra que os pilares modernos e contemporâneos de racionalização da máquina administrativa continuam distantes, em pleno século XXI. Seguimos observando situações como o uso da política (interesse público) para objetivos familiares (interesse privado), desvio de dinheiro público e nomeação de parentes (nepotismo), além de relações promíscuas de agentes públicos que negociam cargos e favores em prol de interesses particulares. Também na iniciativa privada é recorrente a prioridade a familiares e amigos no lugar da livre concorrência, com o discurso do mérito mascarando as desigualdades sociais.

Dada a constatação da estrutura arcaica modeladora da sociedade brasileira que, segundo Sérgio Buarque, é a causa da sua modernidade incompleta e insuficiente, somente superando essa ordem doméstica e familiar é que conseguiremos avançar na separação entre o “público” e o “privado”, com os indivíduos transformando-se em agentes formais da sociedade.

BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual que os outros. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27. ed.

São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

BOMENY, Helena et al. Tempos modernos: tempos de Sociologia. 2. ed. São Paulo: Editora do Brasil, 2013.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sérgio Buarque de Holanda e essa tal de “cordialidade”. Revista IDE. São Paulo, v. 31, n.

46, p. 83-89, 2008.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma Sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato.

Rio de Janeiro: Leya, 2017.

AMADO, Jorge. Capitães de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SAIDENBERG, Ivan; CANINI, Renato. Um brasileiro chamado Zé Carioca (HQ). São Paulo: Editora Abril, 2015.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Porto Alegre: L&PM, 2017.

VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

KARNAL, Leandro. Todos contra todos: o ódio nosso de cada dia. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

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Deus é brasileiro (Cacá Diegues/2003)

Raízes do Brasil I e II (Nelson Pereira dos Santos/2004)

Sinopse: Cansado de tantos erros cometidos pela humanidade, Deus resolve tirar férias, procurando o Brasil para encontrar um substituto ideal;

Sinopse: Documentário a respeito da vida e da obra do escritor Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil;

O Auto da Compadecida (Guel Arraes/2000)

Tropa de Elite I (José Padilha/2007) e Tropa de Elite II (José Padilha/2010).

Sinopse: Conta as aventuras de João Grilo e Chicó, dois nordestinos pobres que vivem de golpes para sobreviver; Ópera do Malandro (Ruy Guerra/1985) Sinopse: Nos anos 1940, malandro do boêmio bairro carioca da Lapa explora uma cantora de cabaré e vive de pequenos truques enganadores;

Sinopse: Abordam o cotidiano da Polícia Militar do Rio de Janeiro e de um capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) frente a desafios que envolvem corrupção, violência, dilemas familiares e a relação com o tráfico de drogas e com as milícias.

Jeitinho brasileiro (composição e intérprete: Kayo Andrade; ano: 2014);

Que país é esse? (composição: Renato Russo; intérprete: Legião urbana; ano: 1987);

Malandro é malandro e mané é mané (composição: Neguinho Da Beija-Flor; intérprete: Bezerra da Silva; ano: 2000);

Pega Ladrão (Composição: Arnolpho Lima Filho, Gabriel O Pensador, Aninha Lima e Tiago Mocotó; Intérprete: Gabriel O Pensador; Ano: 2001).

O malandro (composição: Kurt Weill e Bertolt Brecht; intérprete: Chico Buarque; ano: 1977);

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filme Tropa de Elite (José Padilha, Brasil, 118min., 2007), que recebeu o prêmio Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim em 2008, retrata a trajetória do personagem Roberto Nascimento, um capitão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, interpretado pelo ator Wagner Moura. A obra oferece uma série de elementos para pensarmos o conceito de cordialidade, tanto no aspecto da pessoalidade quanto nos seus desdobramentos em instâncias burocráticas.

Nesse sentido, após as aulas sobre o conceito e a leitura do texto, formem grupos de até cinco estudantes, assistam ao filme e escolham um dos assuntos abaixo para ser debatido à luz da relação entre a película e o conceito de cordialidade, inclusive pesquisando outros exemplos cotidianos que reforcem seus argumentos. As conclusões dos grupos serão apresentadas em sala, numa aula específica, no formato de seminário.

Temas: a) corrupção; b) relação entre público e privado; c) apadrinhamento; d) jeitinho brasileiro; e) nepotismo.

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O QUE É CULTURA

POPULAR?

Anderson Vicente da Silva

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calendário anual está repleto de datas comemorativas, vivenciadas em festas, folguedos e rituais para lembrar um fato ou alguém importante em uma região ou grupo social. Quando brincamos Carnaval, dançamos quadrilha, acompanhamos os desfiles das escolas de samba ou participamos de uma festa religiosa contribuímos para manter viva a memória e os rituais dos antepassados daquele grupo, agregando muitas pessoas em torno do evento.

No Brasil, as manifestações festivas do povo estão sempre relacionadas à realidade social, à vida cotidiana. Observando a vida diária do povo, notamos as mais variadas formas de criação e recriação das interações sociais. As festividades populares representam uma maneira de fugir das dificuldades cotidianas. É também uma forma de reforçar a identidade sociocultural por meio da preservação da memória e da tradição.

No entanto, as festividades presentes no calendário anual não representam todas as manifestações do povo. A cultura resulta das diversas relações estabelecidas ao longo de nossa vida com pessoas que vivemos e convivemos diariamente. A cultura também enriquece e amplia nossa visão de mundo acerca dos fenômenos e dos fatos ocorridos por meio do contato social.

A música que faz sucesso, os passos de dança conhecidos por muitos, as comidas típicas de uma festa, os sentidos de uma expressão verbal ou corporal, a representação do mundo sociocultural por meio de desenhos ou pinturas e as transformações nos estilos de vida têm origem nos nossos hábitos, costumes, crenças e mitos. Todos esses aspectos só têm sentido se forem vividos e explicados por um determinado grupo de pessoas, que têm em comum os mesmos objetivos e a mesma percepção acerca do mundo.

Embora algumas manifestações culturais só façam sentido para certos grupos, elas se tornam representantes de uma ideologia criada para separar as produções culturais entre classes sociais diferentes.

Assim, o que torna o popular significativo é a sua capacidade de reinventar suas condições de vida, impostas pelas estruturas sociais, políticas e econômicas da sociedade moderna. Portanto, falar em cultura popular pressupõe compreender como os grupos sociais estão organizados e quais forças contribuem para manter as manifestações populares em múltiplas e constantes transformações.

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uitos antropólogos tentam definir o termo “cultura” partindo de uma visão universalista (ou geral) para uma visão particularista (ou específica), ou seja, a cultura é sempre compreendida como uma característica presente em todas as sociedades e as especificidades de cada grupo é definida a partir do todo. Para a Antropologia, cultura é um sistema complexo e conectado de padrões comportaCONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

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mentais aprendidos e transmitidos de uma geração a outra (BARRIO, 2005). Assim, essas condutas aprendidas e transmitidas fortalecem laços entre as pessoas, possibilitando a produção de manifestações simbólicas, que refletem o conhecimento e os modos de vida das pessoas.

Para entendermos a definição de cultura popular, faz-se necessário também compreender o significado de “popular”. Para Stuart Hall (1632-2014), esse termo corresponde a tudo que as massas escutam, compram, leem, parecendo estarem satisfeitas por consumirem (HALL, 2011). Os dicionários de língua portuguesa trazem muitos significados da palavra “popular”, porém é comum encontrar esse termo definido como aquilo adaptado à compreensão e ao gosto das massas.

Então, conceituar “cultura”, “popular” e “cultura popular” exige que pensemos sobre alguns aspectos. Esses são muitas vezes abstratos demais, porém são vivenciados diariamente por todos nós nas interações e nos processos de socialização, que nos torna membros ativos na produção e manutenção de nossa cultura.

Podemos utilizar o termo “cultura popular” para definir um “[...] conjunto de conhecimentos e práticas vivenciadas pelo povo, embora possam ser vividos e instrumentalizados pelas elites” (VANNUCCHI, 1999, p. 98). Assim, a cultura popular pode ser compreendida como um saber elaborado pelo povo de maneira espontânea, anônima, coletiva e livre de normas e leis estabelecidas pelas estruturas sociais das classes economicamente dominantes.

Além disso, a cultura popular está relacionada às experiências culturais do povo, apoiada numa concepção de mundo específica e na transmissão da tradição, transformada constantemente pelo contato com a cultura erudita (ou cultura da elite), mantendo as características próprias da classe popular (AYALA; AYALA, 2002). Por isso, esse sistema sociocultural é entendido como a interação dos diferentes saberes e valores, que nivelam as pessoas na estrutura social, hierarquizando-as em processos desiguais de acesso aos bens produzidos.

Como podemos perceber, a definição do termo “cultura popular” não é tão simples, pois envolve a compreensão do significado que damos à palavra “povo”. Segundo Roger Chartier (1995), o termo “povo” é uma categoria erudita, ou seja, é uma expressão criada pelos grupos elitizados para diferenciar as pessoas pelas suas condições socioeconômicas. E o que isso quer dizer? Os grupos que controlam o sistema econômico determinam o que deve ser consumido, diferenciando os que têm acesso daqueles que não têm. Essa situação provoca a reprodução da estrutura, ou seja, a continuidade das desigualdades entre a cultura do povo e a cultura da elite. Com isso, podemos perceber que “popular” e “erudito” são dois grupos sociais em permanente mudança, influenciando-se mutuamente.

Já para Edward Thompson (1998), a cultura popular deve ser compreendida como o comportamento manifestado com base nos costumes herdados das gerações anteriores e que narram o cotidiano dos trabalhadores. Nessa definição, o autor reforça a ideia de que a cultura popular é costumeira, composta por experiências diferentes daquelas das classes eruditas. Ela é transmitida por tradições orais, que vão sendo modificadas ao longo do tempo. Além disso, a cultura popular é reproduzida pelo exemplo e pela repetição, podendo ser percebida nos rituais e símbolos criados pelas pessoas para dar sentido às suas manifestações.

Diante de tudo isso, a cultura popular é o produto do processo de socialização entre pessoas de diferentes regiões, que tem como aspecto principal os complexos padrões de comportamento e crenças de um povo. Ela se refere aos conhecimentos acumulados pelo povo ao longo de sua história na sua relação com seus membros e o meio ambiente. Esses conhecimentos são formas de manifestar a compreensão do povo sobre o mundo que o cerca. Por isso, crenças, artes, moral, linguagem, ideias, hábitos, tradições, usos e costumes, artesanatos, folclore, dança, festas etc. são aspectos importantes e caracterizam a cultura popular.

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CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

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origem do conceito de cultura popular é bastante imprecisa. Segundo Bakthin (1993), ela nasce das grandes festividades cômicas ocorridas durante a Idade Média. De acordo com o autor, todas as manifestações populares eram visíveis nas praças das cidades e tinham a organização cômica como elemento essencial. Esses ritos e festas populares na Idade Média apresentavam uma visão de mundo diferente daquela determinada pelos reis, pela igreja e pela nobreza como sendo oficial. Em outras palavras, as manifestações do povo durante esse período eram uma maneira de criticar a desigualdade entre os grupos sociais, reivindicando igualdade social.

Nessa perspectiva, observamos que a cultura popular cômica cria uma linguagem própria, mostrando a criatividade do povo em elaborar uma ideia sobre o mundo em que vive com base em palavras, gestos e trocadilhos. Estes alimentam o riso e constituem o mundo popular.

O folclore é outra fonte de cultura popular importante para compreender a utilidade e o movimento das manifestações populares na vida sociocultural. De acordo com Carlos Rodrigues Brandão (2006, p. 23), “[...] na cabeça de alguns, folclore é tudo que o homem do povo faz e reproduz como tradição.

Na de outros, é só uma pequena parte das tradições populares”. No entanto, devemos compreender o folclore como parte das produções culturais do povo. Embora alguns pesquisadores discutam as diferenças e semelhanças entre folclore e cultura popular, devemos levar em consideração que ambos são produtos da interação das pessoas, que tentam dar sentido à vida em grupo por meio da reprodução e das transformações de tradições, rituais, crenças, festividades etc.

Nessa perspectiva, a oralidade e a imitação são aspectos fundamentais para que a cultura popular ganhe o movimento necessário para sua perpetuação ao longo da história. Sobre isso, Brandão (2006, p.

105) chama atenção para “[...] quem quiser compreender porque alguns fatos [...] desaparecem, migram ou se transformam no país, ao invés de buscar explicações entre os mistérios da cultura, procure [...] nos sinais vivos da vida social dos sujeitos”.

Existe, ainda, outro movimento que torna a cultura popular uma manifestação cultural visível socialmente ao se afirmar como um espaço de controle social das camadas elitizadas. Para Marilena Chauí (1990), a expressão “cultura popular” é lembrada para designar a identidade nacional, como uma forma de encobrir os conflitos entre as classes sociais. Ao afirmar que o conhecimento do povo contribui para pensarmos numa cultura de raiz, associamos essa “pureza” e "ingenuidade" cultural à vida no campo, que permite às pessoas uma relação mais comunitária e uma conexão mais respeitosa com o ambiente.

Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor Adorno (1903-1969) analisaram a influência dos meios de comunicação de massa sobre a vida das pessoas e concluíram que eles funcionam como uma indústria de produtos culturais. Foi a partir desses autores que surgiu o termo “indústria cultural” (COSTA et al., 2003). De acordo com Adorno, a indústria cultural tenta integrar cultura popular à cultura erudita por meio do consumo dos bens culturais produzidos.

Max Horkheimer nasceu em Estugarda, no dia 14 de fevereiro de 1895. Foi um filósofo e sociólogo alemão integrante da "Escola de Frankfurt" que realizou importantes pesquisas sociais. Dentre seus principais trabalhos está a obra Dialética do Esclarecimento (1947), escrita em colaboração como Theodor Adorno. Horkheimer faleceu em Nuremberga, no dia 7 de julho de 1973.

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Theodor Adorno nasceu em Frankfurt am Main, no dia 11 de setembro de 1903. Foi filósofo, sociólogo, musicólogo e um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt.

Foi um grande crítico do fascismo. Dentre seus trabalhos estão aqueles dedicados a estudar à indústria cultural, a música e a teoria da arte. Faleceu em Visp, no dia 6 de agosto de 1969.

Com base nessa ideia, podemos pensar que a comercialização da cultura por meio da indústria cultural impulsiona as pessoas a comprar os produtos sem refletir acerca da verdadeira necessidade de consumir tal mercadoria, gerando lucro. Assim, os meios de comunicação possuem a função de tornar acessíveis as informações necessárias para assegurar o acesso e o consumo dos bens culturais por meio de músicas, propagandas e notícias, que induzem mais do que conscientizam as pessoas sobre o consumo.

Em síntese, a indústria cultural é um “[...] conjunto de meios de comunicação como o cinema, o rádio, a televisão, os jornais e as revistas, que formam um sistema poderoso para gerar lucros e por serem mais acessíveis às massas, exercem um tipo de manipulação e controle social [...]” (COSTA et al., 2003, p.

14). Com isso, a cultura popular se torna um objeto manipulado para seduzir e satisfazer as massas com o objetivo de esconder a exploração que o povo sofre nas relações de produção econômica, produzindo mais riqueza para as classes elitizadas.

Poderíamos pensar a cultura popular nesse contexto como uma maneira de compreender as forças sociais e políticas que organizam as relações entre as pessoas, reproduzindo ou criando ideologias que refletem um saber particular dos grupos.

A

cultura popular vem sendo utilizada para compreender os diferentes fenômenos socioculturais que envolvem a aglomeração de pessoas em torno de hábitos e costumes compartilhados, considerados enraizados e representativos da identidade cultural dos antepassados, sendo reproduzidos e transformados pelos seus descendentes. Nesse contexto, ao observarmos os eventos sociais que reúnem milhares de pessoas, poderíamos perguntar: o que efetivamente as motivam a estar em torno de um determinado fenômeno coletivo, caracterizado pela vivência de costumes tão diferentes, mas que ao mesmo tempo nos une em um sentimento de coletividade?

Em cada região do país encontramos manifestações populares representando a coletividade, a união de grupos em prol de tradições, que dão sentido às suas relações. O colorido das festas, a devoção e a dedicação dos fiéis aos rituais religiosos, as histórias e o imaginário coletivo, as danças e seus ritmos são exemplos da nossa capacidade de criar e representar o mundo à nossa volta. No entanto, a cultura popular é criada por um povo, que também é excluído e oprimido pelos sistemas políticos e econômicos.

O povo sempre foi visto pelas políticas nacionais como um conjunto de pessoas que precisam ser orientadas, disciplinadas e governadas para que possamos tornar a sociedade melhor para todos, mas que devem obedecer aos interesses dos grupos de poder com base no “conflito” ideológico. Para Stuart Hall (2011), entender a cultura popular permite criar um espaço de resistência e luta a favor ou contra a cultura dos poderosos.

Quando somos bombardeados por comerciais de produtos utilizados pela elite econômica do país, somos forçados a obedecer a determinadas regras do sistema de produção para consumir. Ao contrário, o que é produzido pelas massas, pelo povo é sempre visto sob dois aspectos importantes: ou é rejeitado

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como algo comum demais para ser consumido, ou é parte de uma identidade nacional que deve ser preservada e mantida como a raiz cultural do país.

No entanto, a cada dia o conceito de cultura popular se transforma, ganhando novos elementos e influenciando a classe erudita a adotar os hábitos e costumes da classe popular, permitindo o consumo de seus saberes e produtos, alimentando o modo de produção. Como foi afirmado anteriormente, essa relação econômica aumenta as desigualdades sociais entre aqueles considerados populares e os “eruditos” (a elite), pois sempre há uma imagem fixada de que a produção cultural popular carrega um conjunto de símbolos e significados que evidenciam as relações de poder.

Assim, ao nos depararmos com um texto de cordel, uma música sertaneja, um prato típico do São João, uma letra de samba, um passo de frevo, uma história de medo, uma lenda ou um mito da floresta, uma reza ou um ritual de cura, estaremos sempre em contato com a nossa cultura. Portanto, a cultura popular se torna um conceito agregador de diversos aspectos, que compõem nossas vidas enquanto membros de uma sociedade, formando-se e mantendo-se pela memória, tradição, exclusão, transformação, mudança, luta e valorização do que é culturalmente produzido por todos em contextos diversificados.

AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil. São Paulo: Ática, 2002.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília, EdUNB, 1993.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore? São Paulo: Brasiliense, 2006.

BARRIO, Angel-B. Espina. Manual de Antropologia Cultural. Recife: Editora Massangana, 2005.

CHARTIER, Roger. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, p. 179-192, 1995.

FRANÇA, Marcos. Para rir até chorar... com a cultura popular.

São Paulo: Editora FMC, 2015.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1990.

COSTA, Alda Cristiana Silva et al. Indústria cultural: revisando Adorno e Horkheimer. Movendo ideias, Belém, v.

8, n. 13, p. 13-22, 2003.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VANNUCCHI, Aldo. Cultura brasileira: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

AZEVEDO, Ricardo. Cultura da terra. São Paulo: Moderna, 2008.

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Viva a cultura popular. Adriano Aguiar, Geovane Bastos e Guto Kawakami (compositores). Boi Caprichoso (intérprete). 2012.

Foguete. Roque Ferreira e J. Veloso (compositores). Maria Betânia (intérprete). 2009.

T

odas e todos os estudantes deverão fazer um levantamento das manifestações populares existentes na comunidade (bairro) onde residem; Vocês poderão organizar grupos de trabalho para discutir a divisão de tarefas, bem como escolher um estudante do grupo que irá escrever todas as informações coletadas e reunir todo o material para a atividade final; Após esse momento, vocês precisam pesquisar fotos, imagens, vídeos e até relatos de pessoas com mais tempo de residência na comunidade, que apresentem os tipos de festas populares existentes atualmente e em outras épocas. Aproveitem para pesquisar em que época do ano e como se originou a referida festividade; Depois de reunir todas essas informações e material, o estudante responsável por registrar deverá reunir tudo que foi coletado para elaborar um painel apresentando as ideias do grupo sobre a cultura popular da sua comunidade. Atenção: não se preocupem caso os grupos tenham colhido informações sobre as mesmas festas. O que importa é como cada grupo irá apresentar no painel as informações que todas e todos conseguiram; Para ampliar as interpretações expostas nas imagens, vocês poderão produzir textos que serão expostos também no painel, apresentando as características da vida cotidiana desse grupo comunitário, assim como os aspectos da memória, das festividades e das tradições formadoras da identidade de grupo.

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O QUE É ESTRANHAMENTO?

Cristiano das Neves Bodart

A

s coisas percebidas por nossos sentidos podem ser recepcionadas com estranheza ou familiaridade. Imaginemos duas situações hipotéticas que nos ajudam a entender essas formas de recepção. Na primeira, ao adentrar na sala de estar de sua casa, você vê seu irmão de 13 anos olhando fixamente para a tela do computador e com um controle de videogame nas mãos. Na segunda, sua avó, de 78 anos, é vista na mesma situação. O segundo caso lhe suscitará dúvidas sobre o que sua avó está fazendo e o porquê. Já no primeiro caso não haverá dúvidas do que está acontecendo; possivelmente a situação seria tão “natural” que nem seria percebida. Note que situações e coisas que nos são estranhas provocam questionamentos e nos induzem a melhor observar os fenômenos ou as coisas.

Os antropólogos fazem um esforço de olhar para as ações humanas e seus resultados com estranheza, chamando essa atitude de “estranhamento”. Essa prática os possibilita empreender maiores reflexões sobre seus objetos de estudo. Trata-se de um conceito que ajuda a entender o outro e sua cultura. Assim, é sobre o conceito de estranhamento que trataremos neste capítulo.

E

stranhamento, no sentido usado pelos cientistas sociais (antropólogos, sociólogos e cientistas políticos), é uma atitude de pensamento diante do objeto13 de conhecimento. Trata-se de um esforço de desfamiliarizar o que nos é familiar, tornando-o exótico, já que muitos fenômenos estão petrificados e “naturalizados” em nossas consciências, não nos levando a fazer perguntas que ampliem substancialmente nosso conhecimento (DAMATTA, 1978). Perguntamos “que horas são”, mas raramente “o que é o tempo” ou “por que contamos o tempo em horas”. Já ouviu a expressão “estar no automático”? Pois é, na maioria das vezes vivemos no automático e vamos fazendo as coisas ou as conhecendo sem grandes reflexões ou questionamentos. Os cientistas sociais devem aprender a pensar fora do “automático”, pois suas tarefas são justamente produzir perguntas e respondê-las, ainda que sobre questões aparentemente triviais. Assim, estranhamento é uma atitude que visa a ampliação da compreensão do que já é, em alguma medida, conhecido, alargando a visão de horizontes interpretativos. Para Damatta (1978, p. 30), “a transformação do familiar em estranho é realizada fundamentalmente por meio de apreensões cognitivas [...]. É necessário um desligamento emocional, já que a familiaridade do costume não foi obtida via intelecto, mas via coerção socializadora”.

Trata-se de um recurso metodológico muito usado pelos antropólogos para se distanciar das regras sociais, da visão de mundo estabelecida, a fim de provocar dúvidas e questionamentos nos estudos culturais. Contudo, o estranhamento é uma atitude fundamental para todas as Ciências e para a Filosofia, já que “Não há ciência sem estra-

Todas as ciências possuem seus objetos particulares de estudos (alguns compartilhados com mais de uma ciência). Objetos de estudos são as coisas ou os fenômenos que são estudados. No caso dos cientistas sociais, seus objetos são os fenômenos sociais.

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nhamento; o questionamento das impressões primeiras, das aparências, é uma atitude científica e não apenas do pensar sociológico” (BODART, 2021, p. 144).

O

estranhamento (ostraniene) como um conceito aparece pela primeira vez em estudos ligados à literatura e à arte, mais especificamente na obra intitulada Iskusstvo kak priem (A arte como processo), de Viktor Chklovski, de 1917 (BODART, 2021). Estava associado à atitude de olhar e enxergar para além da aparência imediata, o que seria provocado pela literatura e pela arte.

Assim, “A ideia de estranhamento tem sua origem em múltiplos campos do conhecimento e essa diversidade, por sua vez, impregna-a de significados divergentes, quando não completamente opostos” (RABELO, 2004, p. 3). Na interpretação marxista, por exemplo, o fenômeno da estranheza (Fremdheit) é compreendido sob uma perspectiva diferente desta que apresentamos, sendo relacionada ao conceito de alienação (Entfremdung) e ao fato de o(a) trabalhador(a) não se ver relacionado(a) ao produto que produz, estando em situação de estranhamento, distante e não pertencente a ele(a). Trata-se, aqui, de obstáculos que os próprios homens e as mulheres criam ao seu processo de autoconstrução (LOPES, 2006). Em geral, essa abordagem é utilizada quando são estudadas as relações entre produtores, produtos e capitalismo.

O conceito de estranhamento pode ser visto na prática etnográfica, ou seja, nas pesquisas de campo da Antropologia que buscam descrever aspectos da cultura de grupos sociais. Foi justamente na Antropologia que o conceito ganhou notoriedade no campo científico.

O estranhamento foi tema de poema de Bertolt Brecht (1898-1956), A exceção e a regra (1990), escrito em 1930, no qual assim registrou: Estranhem o que não for estranho.

Tomem por inexplicável o habitual.

Sintam-se perplexos ante o cotidiano.

Tratem de achar um remédio para o abuso Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra. [...]

Façam sempre perguntas Caso seja necessário Comecem por aquilo que é mais comum [...]

Para que nada seja considerável imutável Nada, absolutamente nada Nunca digam: isso é natural

Brecht não toma o estranhamento como uma atitude exclusiva dos cientistas sociais, mas recomenda que seja uma prática de todas as pessoas, o que corrobora para sua popularização. Por meio do ensino de Sociologia, o conceito vem sendo apresentado aos(às) estudantes, o que também tem contribuído para popularizar a prática. Inclusive, o conceito já aparecia, em 2006, nas orientações curriculares para o ensino de Sociologia como um princípio epistemológico que deve estar presente nas aulas dessa disciplina: O movimento do estranhamento é o ato de estranhar no sentido de se admirar, de se espantar diante de algo que não se tem conhecimento ou costume; pode se alcançar o ‘estranho’ ao perceber algo ou alguém de forma diferente do que se conhece, ao assombrar-se em função do desconhecimento de certos fatores, ao se sentir incomodado diante de um fato novo ou de uma nova realidade, ao não se conformar com algo ou com a situação em que se vive; ao não se acomodar (MORAES; GUIMARÃES, 2010, p. 46).

O conceito que inicialmente estava restrito ao uso dos cientistas sociais é apontado como uma prática a ser promovida na escola e fora dela, o que ocorre pelo reconhecimento de seu potencial como estratégia de aprendizagem e não apenas de pesquisa. Estranhar é, sobretudo, um ato político diante de um mundo onde tudo é hierarquizado, classificado, selecionado e avaliado a partir de arbitrários estabelecidos, geralmente por

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grupos sociais mais influentes e com maior capacidade de exercer o poder político, econômico, religioso e cultural.

O

que vemos e encontramos em nosso cotidiano quase sempre nos é familiar, mas não necessariamente conhecido (VELHO, 1978). Se diante das experiências cotidianas não nos espantamos, nos assombramos e não realizamos indagações, continuaremos a desconhecer muitas coisas. Vale enfatizar que debaixo de uma impressão de familiaridade há muitos aspectos do observado que não conhecemos.

Dizia o antropólogo Gilberto Velho (1945-2012) que “[...] o processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente e mesmo emocionalmente diferentes versões e interpretações existentes a respeitos dos fatos, das situações” (VELHO, 1978, p. 131).

A ação de estranhamento não é uma prática exclusiva dos cientistas sociais. Ela pode ser praticada por todos. Na verdade, como apontamos no início deste capítulo, o estranhamento é uma prática presente em nossas experiências cotidianas; precisamos torná-lo recorrente e consciente, o que ajudará a ampliar nossos conhecimentos e questionar aspectos presentes no mundo social que não contribuem para uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva. Nesse sentido, a atitude de estranhamento, como utilizada pelos cientistas sociais, nos possibilita pensar questões antes não pensadas, o que expande nossos horizontes e nos torna agentes sociais críticos. É útil saber que horas são, mas também o é, por exemplo, compreender a noção de tempo, qual a necessidade de fragmentá-lo em horas, como essas horas influenciam em nossas rotinas, quais os interesses envolvidos em sua existência, como somos levados a “gastar” nosso tempo etc.

O poema Nada é impossível de mudar, de Bertholt Brecht, aponta para a importância do estranhamento, de desconfiar do trivial. Assim registrou: Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.

O estranhamento é importante para desconfiar do que historicamente foi tomado como normal. Podemos citar expressões que eram usadas de forma recorrente e que auxiliavam na reprodução do racismo, tais como “ele é um negro de alma branca”, “seu cabelo é ruim”, “não quero ser denegrido”, entre outras frases.

Hoje essas frases vêm sendo combatidas, justamente porque passamos a estranhá-las e a uma consequente análise de seus sentidos e origens, compreendendo tratar-se de expressões racistas, preconceituosas e depreciativas.

No trajeto de sua casa até a escola, experimente olhar a cidade como um turista que busca, procura e quer ver o que está para além da aparência primeira ou como se estivesse pela primeira vez diante de seus sentidos. Certamente isso lhe trará curiosidades e inquietações antes não sentidas, abrindo espaço para alcançar novos conhecimentos. A busca por uma atitude de estranhamento nos afasta da alienação e da mera reprodução de “visões de mundo naturalizadas”, aquelas que são entendidas como sempre existentes, como

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resultados de processos quase naturais, o que dificulta uma leitura crítica de mundo e nos faz reproduzir práticas que devem ser questionadas.

BODART, Cristiano das Neves. O ensino de Sociologia para além do estranhamento e da desnaturalização: por uma percepção figuracional da realidade social. Latitude. v. 15. Edição especial. 2021.

DAMATTA, Roberto. O ofício de etnólogo ou como ter Anthropological Blues. Boletim do Museu Nacional. Nova Série, Rio de Janeiro – Antropologia, n. 27, p. 1-12, 1978.

LOPES, Fátima Maria Nobre. Lukács: estranhamento, ética e formação humana. 2006. 177f. Tese (doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas. 2006.

MORAES, Amaury Cesar; GUIMARÃES, Elisabeth da Fonseca. Metodologia de ensino de Ciências Sociais: relando

as OCEM-Sociologia. In: MORAES, Amaury Cesar (Org.).

Sociologia: ensino médio. Brasília: Ministério da Educação Básica, 2010 (Coleção Explorando o ensino). p. 45-62.

VELHO, Gilberto. Observando o familiar. In: Oliveira, Edson (Org.). A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

BRECHT, Bertolt. A exceção e a regra. In: Teatro completo Vol. IV, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. (12 volumes). p.

129-160.

BRECHT, Bertolt. Nada é impossível de mudar. In: Antologia poética. Rio de Janeiro: ELO Editora, 1982.

BODART, Cristiano das Neves. O ensino de Sociologia e a importância de desnaturalizar a naturalização. Blog Café com Sociologia, 2021.

BODART, Cristiano das Neves. Onacirema: ritos corporais entre os nativos. [Adaptação do texto “Ritos corporais entre Onaciremas”, de Mine R. Holace]. Blog Café com Sociologia.

2013.

Episódio “O tal do estranhamento”. Mundaréu: um podcast de Antropologia. Série mundo na sala de aula. Disponível em: https://mundareu.labjor.unicamp.br/wpcontent/uploads/2020/08/transcricao_ep3.pdf

Expediente: Apresentação: Melissa Bevilaqua e Ana Noronha. Produção: Melissa Bevilaqua, Ana Noronha e Soraya Fleischer

I

nspirado no texto “Onacirema: ritos corporais entre os nativos”14, ou no texto original “Ritos corporais entre Onaciremas”15: a) Produza um texto descrevendo com estranhamento uma prática social, de modo a transformar o trivial em algo a ser refletido e problematizado; b) Elabore uma lista de questões indicando o seu estranhamento realizado ao produzir o texto.

14 15

Disponível em: https://cafecomsociologia.com/onacirema-adaptado-de-ritos-corporais/ Disponível em: https://cafecomsociologia.com/wp-content/uploads/2021/11/Ritos.pdf

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O QUE É ETNOGÊNESE?

Marcos Rangel de Sousa Costa Caio dos Santos Tavares

O

que vem à sua mente quando pensa em povos indígenas? Você irá se lembrar das aulas de História quando foi ensinado sobre a colonização portuguesa a partir de 1500. Em algum momento, você ouviu que os povos indígenas foram vítimas de vários tipos de violência e até de extermínio. Aqueles que sobreviveram tiveram que passar pelo processo de “aculturação”, ou seja, se adaptar a uma cultura diferente da sua (CARVALHO, 2006).

Essa compreensão sobre os povos nativos é amplamente divulgada até hoje, na escola ou nos meios de comunicação. No entanto, neste capítulo, pretendemos apresentar uma visão diferente e que contempla uma análise que não pensa os “[...] povos indígenas americanos como um conglomerado de sociedades estáticas e isoladas que estavam totalmente desprovidas de recursos para lidar com as mudanças maciças postas em movimento durante o período colonial” (HILL, 1996, p. 7).

E o que isso significa? Significa que é preciso considerar a violência sofrida pelos povos indígenas, mas que devemos, também, mostrar a sua resistência, tendo em mente que “[...] a violência da conquista e da colonização não os impediu de agir, mobilizando as possibilidades a seu alcance para atingir seus interesses que se transformaram com as novas situações vividas” (ALMEIDA, 2011, p. 10). Nesse sentido, nossa explicação permitirá a você refletir sobre esses povos não como indivíduos passivos, assujeitados e fracassados, mas como indivíduos ativos que tiveram participação fundamental no processo de formação da sociedade brasileira (OLIVEIRA, 1999). Há exemplos de indígenas que contribuem com a nossa sociedade, como o cacique Raoni Metuktire, líder indígena que luta pelos povos tradicionais e pela defesa da Amazônia, e Daniel Munduruku, que é professor, filósofo, historiador, psicólogo e possui diversos livros publicados, sendo indicado, inclusive, à Academia Brasileira de Letras com o apoio de escritores importantes como Alice Ruiz, Chico Buarque, Pedro Bandeira e outros (RASCUNHO, 2021).

Apesar de viverem em um contexto de extrema violência que visou aniquilar sua cultura e seus corpos (MONTEIRO,1994), mesmo com toda a hostilidade sofrida, os povos indígenas demonstraram, ao longo dos cinco séculos da história do Brasil, uma capacidade de “[...] resistência cultural do cotidiano, através de gestos, práticas, atitudes que quebraram uma suposta totalidade, hegemonia da dominação colonial” (SILVA, 2003, p. 2). Com isso, a luta pela sobrevivência do povo indígena é marcada por um intenso processo de acordos, alianças, adaptações e reinvenções.

As lutas indígenas passaram a ser travadas em suas comunidades, em confrontos de terra, por meio dos mecanismos legais, como figuras indígenas ocupando espaços políticos e culturais na busca por ampliar esferas de participação para garantir suas vozes e, assim, mostrarem-se como figuras ativas que estão em ação lutando pelos seus direitos constantemente.

Assim, entender as interações sociais estabelecidas pelos povos originários é fundamental para compreendemos a construção da identidade nacional brasileira (ALMEIDA, 2011). Pois a cultura indígena faz parte de diversas práticas culturais que realizamos diariamente como festas populares, culinária CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

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e o nosso idioma, a língua portuguesa.O conceito de “etnogênese” que iremos aprender neste capítulo nos ajudará a entender um pouco mais sobre a cultura e a resistência indígenas. Então, vamos iniciar a nossa viagem antropológica discutindo essa definição.

E

mbora “etnogênese” pareça um conceito complicado, não é preciso se assustar. Vamos compreendê-lo juntos. O autor Miguel Alberto Bartolomé utiliza esse termo no plural – etnogêneses – e afirma que o processo de etnogênese representa as capacidades que grupos étnicos, como as comunidades indígenas, possuem de se reinventar e se reconfigurar diante da sociedade nacional, apresentando-se como um povo vivo, de cultura viva que resistiu ao tempo, ao genocídio e ao etnocídio sofridos quando indígenas foram mortos ou obrigados a abandonar seu território e os aspectos de sua cultura para aprender costumes da cultura do homem branco e colonizador (BARTOLOMÉ, 2006). E está no plural porque as formas que esses grupos podem utilizar para resistir e sobreviver podem ser inúmeras, não necessariamente por meio de uma única forma de resistência.

Nesse sentido, podemos compreender o conceito de etnogênese como as formas de grupos étnicos se reorganizarem e reafirmarem a sua identidade, superando a crença de que eles estariam exterminados, que não existem mais ou que perderam a sua cultura. Muitos povos indígenas têm se reorganizado dessa forma, reafirmando a cultura do seu povo, suas tradições e sua identidade como personagens que participam ativamente da construção da sua história, com uma organização própria que supera o senso comum, segundo o qual nunca evoluíram ou saíram do lugar (BARTOLOMÉ, 2006).

Um exemplo que podemos citar é o da população indígena Tabajara, localizada no norte do Piauí, em Lagoa do São Francisco16. Por muito tempo, reproduziu-se nas escolas e no imaginário popular que no Piauí (e em várias outras regiões do Brasil) não existem mais grupos indígenas, que todos foram mortos pelos colonizadores ou, então, perderam sua cultura quando passaram a conviver com os costumes dos brancos. Contudo, os indígenas Tabajaras mostram que no Piauí ainda há povos tradicionais que resistem à colonização e, graças aos processos de etnogêneses podem, hoje, mostrar-se como comunidade indígena viva, contrariando o que se acreditava antes sobre eles.

Casos como esse nos mostram que a miscigenação não apaga um povo, seus costumes e sua cultura.

Usar celular, internet, redes sociais ou qualquer outra tecnologia não torna um indígena menos indígena.

Como afirmou o autor Bartolomé (2006, p. 44-45), “[...] o ‘mito da miscigenação’ [...] alimentou também a ideologia segundo a qual os índios tinham desaparecido e agora todos os habitantes de cada Estado eram homogêneos graças a esse processo”. Não existe “cultura pura”: cada região brasileira, cada povo, cada comunidade, cada sociedade é formada por trocas culturais graças às interações entre povos diferentes. Ainda que os povos indígenas tenham sido forçados a abandonar seus costumes durante a colonização, esse processo não os fez deixarem de ser indígenas. E o processo de etnogênese permite que se reinventem e renasçam frente a essas dificuldades, tentativas de extermínio e invisibilidade de sua história e cultura.

Conforme matéria no site de notícias G1: https://g1.globo.com/pi/piaui/piaui-deriquezas/noticia/2020/08/22/indigenas-mantem-tradicao-de-tribo-viva-com-dancas-pinturas-corporais-e-ate-museu-nopiaui.ghtml 16

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O

autor Guillaume Boccara afirma que o termo “etnogênese” é pouco utilizado na França, sendo empregado com maior frequência na literatura antropológica norte-americana, inicialmente usada pelo autor William Sturtevant em um artigo seu de 1971 (BOCCARA, 2005). Leandro Fontella enfatiza essa informação ao reforçar que, ao cunhar o termo pela primeira vez em 1971, Sturtevant “[...] analisou as origens da etnia seminole do sudeste norte-americano a partir da migração forçada de uma facção creeck” (FONTELLA, 2020, p. 4), que se mesclou com outras identidades étnicas de indígenas e negros escravos fugidos. Após esse artigo, vários estudiosos passaram a utilizar o termo “etnogênese”, em especial na Antropologia e na História.

Inicialmente, as primeiras investigações a partir do conceito de etnogênese davam conta de processos que levavam em consideração traços puramente biológicos nas reorganizações de grupos humanos.

Porém, com o tempo e os novos estudos, estas investigações passaram a ganhar dimensões culturais e políticas identitárias nas organizações. A partir de então, os estudiosos questionam a ideia de uma pureza étnica de grupos indígenas que existiria antes dos primeiros contatos com os colonizadores, pureza esta que se perdia no processo de aculturação, que é quando um grupo supostamente perde a sua cultura ao ter contato com outra.

Foi então que perceberam que o conceito de etnogênese dava conta das reorganizações internas dos próprios grupos culturais que se refaziam e absorviam traços culturais de outros povos antes mesmo da colonização, demonstrando que os processos de etnogênese se dão em diversos contextos e situações.

Com isso, grupos étnicos, como povos indígenas, não perdem a sua cultura ao ter contato com outra, mas combinam traços e características das duas, promovendo um rearranjo cultural de resistência e pluralidade cultural.

Hoje, o conceito de etnogênese é amplamente utilizado pela Antropologia e pela Historiografia ao tratar de povos tradicionais, tais como indígenas e quilombolas. Ao falar de povos tradicionais, essas ciências apontam que a colonização não representa a dizimação de um povo, ainda que o escravize e/ou o mate. Muito menos consideram que povos tradicionais perdem sua cultura num processo de “aculturação”, quando são colonizados e obrigados a aprender costumes de uma cultura diferente da sua. Ao falar desses povos e de suas estratégias de resistências, a Antropologia, por exemplo, utiliza-se do termo “etnogênese” para que possa representar de forma leal a cultura viva de povos tidos como extintos, sem deixar de abordar o contexto das violências a que foram submetidos.

Segundo Claiton Santos, “[...] a Etnohistória17 demonstra que, no transcorrer das práticas coloniais, os nativos reformularam suas identidades e trajetórias em sintonia com os ‘invasores’” (PAIVA, 2009, p.

2). Assim, muitos povos indígenas, por exemplo, como ato de resistência de seu povo, passaram a conviver em sintonia com a colonização do homem branco na intenção de permanecer vivo, por exemplo, e de garantir a continuidade e a existência do seu povo. Assim, podemos compreender bem a aplicação do conceito de etnogênese, cujo processo “[...] constitui uma reconfiguração cultural e identitária dos indivíduos ou de uma comunidade” (PAIVA, 2009, p. 4). Os processos de etnogênese também se dão no aspecto legal, quando grupos étnicos se apropriam de dispositivos legais e políticos da sociedade não indígena, intensificando as relações e permitindo seu uso a favor de suas lutas por direitos legais de comunidades e grupos indígenas (FERNANDES, 2018).

O termo “etnohistória” tem sido utilizado desde a década de 1940 por antropólogos culturais, arqueólogos e historiadores norte-americanos para designar suas pesquisas e estudos sobre os povos indígenas no Novo Mundo (COHN, 1998).

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C

hegou a hora de pensarmos o conceito de “etnogênese” de forma prática. Então, imagine a seguinte história: um jovem menino indígena vai para o seu primeiro dia de aula em sua nova escola localizada no centro da cidade, fora de sua comunidade de origem. Quando chega à escola, vestindo a camiseta do uniforme escolar e usando uma calça jeans, chama atenção das outras crianças. Algumas pessoas começam a rir e apontar o dedo em sua direção, outras ficam assustadas e tem, ainda, aquelas que balançam a cabeça com olhar de reprovação.

Diante disso, o jovem indígena chamado Kauã fica desnorteado com aquele cenário. Chega a ir ao banheiro para chorar e, saindo de lá, encontra outros dois alunos da escola que se chamam Thiago e Bruno. Os dois garotos pararam Kauã e iniciam o diálogo: Thiago: Achei que pessoas como você já tinham desaparecido.

Kauã: Não! Apesar de milhões de indígenas terem sido assassinados nos últimos séculos, nossa população vem aumentando nos últimos anos18.

Bruno: Nossa, não sabia! Cara, se não fosse esse rosto pintado ninguém iria perceber que você era indígena. Por que você não tira essa tinta do rosto? Isso é estranho!

Kauã: Deixa-me explicar! Essa pintura expressa a identidade cultural da minha comunidade. Eu não considero como algo estranho, mas como uma forma diferente em relação a vocês. Ou seja, nem pior nem melhor, apenas diferente.

Thiago: Agora, se você é índio mesmo, por que veste calça jeans?

Kauã: Antes de responder, me diz: você usa celular?

Thiago: É claro!

Kauã: Então... você sabia que antigamente seus pais, para fazerem uma ligação, tinham que ir até um telefone instalado na calçada da rua para conseguir conversar com outra pessoa?

Thiago: É! Mas as coisas mudam, né?

Kauã: Você mesmo disse: “as coisas mudam”. Então, a cultura indígena também passa por um processo constante de mudança. Não estamos presos ao passado. Estamos sempre nos adaptando e criando formas de viver no mundo de acordo com o contexto. Assim, a nossa forma de vestir, conversar, alimentar, entre outras coisas, passou por transformações, mas nem por isso deixamos de ser indígenas.

Bruno: Eu nunca tinha pensado dessa forma. Acho que você, Kauã, tem muito a ensinar sobre a cultura indígena para nós.

Thiago: É verdade!

Kauã: Fico feliz que vocês tenham interesse em saber mais sobre mim e o meu povo.

Agora, vamos para a sala, o professor de Sociologia já deve ter iniciado a aula de hoje.

Por fim, a visão que Thiago e Bruno tinham sobre a cultura indígena não levava em consideração a capacidade que os povos indígenas têm em se adaptar às novas sociedades, mantendo suas características e traços culturais (BOCCARA, 2005). Portanto, pensavam que os povos originários não se modificavam com o decorrer do tempo. Temos que estar atentos ao fato de que a cultura está sempre em constante 18

Segundo o Censo 2010, a população indígena aumentou em 205% desde 1991.

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processo de alteração e que o respeito à diversidade cultural é fundamental para uma convivência respeitosa entre os povos.

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010.

AUTORES ASSINAM carta em apoio à candidatura de Daniel Munduruku à ABL. Rascunho. Curitiba, PR. 2021.

BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. As etnogêneses: velhos atores e novos papéis no cenário cultural e político. Mana [online]. 2006, v. 12, n. 1.

BOCCARA, Guillaume. Mundos nuevos en las fronteras del Nuevo Mundo. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. n. 1, 08 février 2005.

CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. Etnogênese Mbayá-Guaykuru: notas sobre emergência identitária, expansão territorial e resistência de um grupo étnico no vale do rio Paraguai (c. 1650-1800). Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, [s. l.], v. 3, n. 4, p. 1-20, 2006.

COHN, Bernard S. “O que é etnohistória?”. Cadernos de Etnohistória. Rio de Janeiro, PEPI/UERJ, n. 1, 1998.

FERNANDES, Fernando Roque. Cidadanização e etnogêneses no Brasil: apontamentos a uma reflexão sobre as emergências políticas e sociais dos povos indígenas na segunda metade do século XX. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 31, n. 63, 2018.

HILL, Jonathan. Introduction: Ethnogenesis in the Americas, 1492-1992. In: HILL, Jonathan D. (Ed.). History, Power, and Identity: Ethnogenesis in the Americas, 14921992. Iowa: University of Iowa Press, 1996.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Instituto Brasileiro De Geografia E Estatística (IBGE).

MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.

OLIVEIRA, João Pacheco de. A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena.

Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1999.

PAIVA, Adriano Toledo. Os conceitos de Etnogênese: uma abordagem historiográfica. In: Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história?

Ouro Preto: Edufop, 2009.

SILVA, Edson. Povos indígenas no Nordeste: uma contribuição a reflexão histórica sobre os processos de resistência, afirmação e emergência étnica. ANPUH – XXII Simpósio Nacional de História – João Pessoa, 2003.

FONTELLA, Leandro Goya. O conceito de etnogênese: o dinamismo histórico das identidades coletivas. Rev. História, Debates e Tendências. v. 20, n. 1, 2020.

SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. Coleção primeiros passos. 16. ed. 1996.

DA MATTA, Roberto. Você tem cultura?

Volte para o seu lar. Interprete: Marisa Monte. Antoine Midani, 1991. Composição: Arnaldo Antunes.

Quinhentos anos de quê? Interprete: Belchior. BMG Brasil, 1999. Composição: Belchior e Eduardo Larbanois.

PORFÍRIO,

Francisco.

Cultura.

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Brasil

Escola.

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V

ocê acha que um indígena, por morar em uma casa de alvenaria ao invés da famosa oca de palha, por usar celular, além de outros eletrônicos, e também usar roupas como as nossas, é menos indígena? Vamos refletir?

Forme grupos de cinco membros com seus colegas e pesquisem em jornais, revistas, internet e redes sociais (em perfis de pessoas indígenas) por hábitos e elementos que não fazem parte de sua cultura, mas que eles fazem uso. Pesquise também por elementos e hábitos indígenas que fazemos uso em nosso cotidiano.

Exponha os resultados em uma cartolina e debata com os colegas de classe: nós nos transformamos em indígenas por usar elementos e hábitos de sua cultura? Eles deixam de ser indígenas por usarem elementos e terem hábitos que não são de sua cultura? Aprofunde sua pesquisa com o uso do seu livro didático de Sociologia e de textos na internet sobre cultura.

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O QUE É EVOLUCIONISMO

CULTURAL?

Radamés de Mesquita Rogério Jonas Henrique de Oliveira

Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder.

Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazer a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com ‘em segundo lugar’.

Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente (ADICHIE, 2009).

P

oucos fatos são tão claramente constatáveis como a diferença. Olhe para o seu lado agora, observe os seus colegas de classe, seus vizinhos, seus familiares, seus amigos. Assista a um vídeo no celular, analise os filmes e as séries que você mais gosta, leia qualquer livro e tenha certeza: os seres humanos são diferentes.

Temos diferentes tonalidades de pele, formatos diferentes de corpo, rosto e tom de voz. Temos crenças bem diversas; inclusive podemos não as ter. Temos sentimentos, afetos e sensações bastante diversificados. Pertencemos a uma multiplicidade de grupos étnicos. Moramos na cidade ou no campo, em cidades grandes, pequenas ou médias, muito urbanizadas ou não, mais ou menos desiguais. Alguns amam ouvir um tipo de música, enquanto outros têm preferência por diferentes gêneros musicais. As diferenças são muitas.

A Antropologia é uma ciência que analisa a diversidade cultural humana e os antropólogos, em geral, compreendem os fenômenos ligados à cultura quando transformam o “exótico em familiar” e o que é “familiar em exótico”. Explicando melhor: faz parte do trabalho dos antropólogos estranhar experiências que lhes são comuns como, por exemplo, a análise dos comportamentos dos torcedores de times de futebol (mesmo que o próprio antropólogo seja um torcedor apaixonado), e se aproximar de experiências distantes, como estudar práticas religiosas no Parque Nacional do Xingu19. A compreensão da diversidade cultural se torna mais acessível ao conhecimento produzido no campo da Antropologia quando os profissionais se aproximam e/ou se distanciam dos sujeitos ou grupos humanos estudados.

O evolucionismo está na origem da Antropologia. Ao se depararem com a diversidade, a diferença entre os povos e as mais variadas comunidades, os evolucionistas culturais (falaremos melhor deles adiante) tomaram por referência suas próprias sociedades como modelos de um estágio último da humani-

O Parque Nacional do Xingu é uma terra indígena localizada ao nordeste do estado de Mato Grosso que abriga mais de 5000 indígenas de 14 etnias diferentes.

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dade. Mas e as sociedades que não compartilhavam dos mesmos costumes, hábitos, rituais, relações de parentesco e mitos e que foram consideradas como estando em “estágios anteriores ou inferiores”.

Assim, utilizando o método comparativo, os evolucionistas objetivaram realizar a reconstituição do grande caminho da evolução cultural humana, desconsiderando as particularidades e as especificidades das culturas e dos povos. “Contaram a história do outro” fazendo uso do poder de classificar, hierarquizar costumes, tradições, modos de ser, fazer, pensar, criando uma escala, não só evolutiva, mas classificatória que nos levaria da selvageria à civilização, passando pela barbárie. O evolucionismo cultural foi a primeira forma a partir da qual a Antropologia pensou uma parte essencial daquilo que nos funda enquanto humanidade: a diferença.

Como qualquer ciência que se proponha a entender as relações entre os homens, a Antropologia se propõe a compreender “outro”. Os antropólogos, em geral, estudam povos e pessoas que não pertencem ao seu grupo sociocultural na busca por um olhar de quem está de fora20. Esse é um grande poder que pode gerar consequências devastadoras como, por exemplo, a legitimação e a justificativa da exploração e destruição de povos e comunidades inteiras.

Vamos entender melhor agora como o evolucionismo cultural se constituiu como uma teoria da Antropologia no final do século XIX e início do século XX. Além disso, buscaremos refletir como esse pensamento teórico ajudou a produzir uma perspectiva reducionista, contribuindo para o surgimento de ideias preconceituosas que permanecem até hoje em nossa cultura. Importa considerar que as histórias não podem ser contadas de qualquer jeito, pois como diz aquele dito popular: “Quem conta um conto, aumenta um ponto”.

O

evolucionismo cultural é fruto do processo da expansão ultramarina europeia que, a partir do século XVI, fez com que os europeus tivessem contato com povos da África, Ásia, Oceania e América. Esse contato contribuiu para que os europeus impusessem sua visão de mundo aos povos conquistados, configurando o que mais tarde se convencionou chamar de “eurocentrismo”.

Precisamos compreender que o evolucionismo cultural pode ser caracterizado como um conjunto de ideias formuladas no século XIX, que procuravam analisar as diferenças culturais, objetivando construir uma história única da humanidade. Devido a isso, diferentes autores compartilhavam a convicção de que alguns povos estavam em estágios mais avançados de evolução, enquanto outros estavam em etapas menos avançadas e, exatamente por isso, fazia sentido para os defensores do evolucionismo tratar as sociedades como superiores e inferiores ou atrasadas.

O postulado básico do evolucionismo em sua fase clássica era, portanto, que, em todas as partes do mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios, numa trajetória basicamente unilinear e ascendente. [...] Toda a humanidade deveria passar pelos mesmos estágios, seguindo uma direção que ia do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado (CASTRO, 2009, p. 28).

Você que está lendo este texto pode estar se perguntando como os evolucionistas chegaram às suas conclusões. A resposta está no método. Eles utilizavam o método comparativo; até aí não havia problema algum. O problema estava no modo como faziam as comparações. Existe uma expressão comum no Brasil que diz: “não confunda alhos com bugalhos”. Ou seja, apesar da semelhança, "alho" e “ bugalho”

É importante destacar que há antropólogos que estudam os grupos de sua cultura ou o seu próprio grupo social, como ocorre na Antropologia Urbana e em outras áreas da Antropologia.

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são diferentes. A expressão ajuda a compreender as críticas feitas aos autores evolucionistas que comparavam fenômenos que apesar de semelhantes, não eram comparáveis.

O método comparativo fundamentou a ideia de uma história unilinear. Os fenômenos semelhantes tinham, na visão dos evolucionistas, causas semelhantes. Os processos históricos internos eram desconsiderados e “[...] toda a humanidade faria a mesma trajetória na história e as mesmas causas naturais implicadas ao homem resultariam em efeitos idênticos” (SOILO, 2014, p. 254). Uma ideia que ajuda a compreender o pensamento dos evolucionistas é a de “sobrevivências”, pois buscava explicar como práticas antigas permaneciam vivas entre as modernas sociedades europeias, quase como uma relíquia de um passado distante.

Desse modo, costumes, superstições e crendices populares, que não eram percebidas como práticas racionais ou com alguma função social, poderiam ser considerados exemplos de sobrevivências de um estágio cultural anterior ainda presente nas sociedades “modernas”. Na visão dos evolucionistas, a partir desses “vestígios” seria possível reconstruir o curso da evolução cultural humana (CASTRO, 2009) A ideia de sobrevivências era importante porque qualquer fenômeno sociocultural presente nas sociedades “avançadas” e caracterizado como primitivo era considerado uma sobrevivência de estágios anteriores. A própria palavra “primitivo” era utilizada para se referir a sociedades e grupos apontados como socioculturalmente inferiores à sociedade europeia da época. Como podemos observar, os evolucionistas eram amplamente influenciados por uma visão etnocêntrica na forma como produziam sua pseudociência no século XIX. Os principais autores evolucionistas foram Lewis Henry Morgan (1818-1881), Edward B. Tylor (1832-1917) e James George Frazer (1854-1941). Apesar das diferentes abordagens, eles compartilhavam a ideia de que as sociedades humanas caminham para o progresso ou para o estágio civilizatório. Embora existissem povos primitivos e civilizados, superiores e inferiores, o ponto final era uma sociedade urbana e industrializada, semelhante à sociedade dos pensadores evolucionistas. Por outro lado, eles consideravam a natureza humana uma só e que a estrutura cognitiva do selvagem e do civilizado não eram diferentes, defendendo o princípio da unidade psíquica da humanidade.

A

compreensão do evolucionismo cultural passa também pela compreensão do racismo, do etnocentrismo e do relativismo cultural, que são conceitos muito importantes para a Antropologia. Para esta, o evolucionismo cultural tornou-se relevante porque retratou a forma como ela deu seus primeiros passos na área das Ciências Sociais.

Os antropólogos estão mais do que convencidos de que os autores evolucionistas estavam equivocados em muitas de suas análises. Apesar disso, o evolucionismo ainda se apresenta como uma corrente de ideias que influencia o comportamento sociocultural de muitos grupos na atualidade.

Podemos visualizar as bases do evolucionismo cultural todas as vezes que a diversidade é questionada ou quando determinados grupos sociais se declaram como superiores. Desse modo, negar a diversidade de grupos e indivíduos, assim como de suas práticas culturais, pode estar muito próximo da base compartilhada pelos autores evolucionistas.

A diversidade das culturas é a regra e não a exceção. Assim, quando grupos negam ou menosprezam a diversidade de pensamentos, de culturas ou de práticas religiosas, estão mais próximos das ideias evolucionistas do que imaginam. Quando os países africanos são considerados atrasados ou quando uma região é considerada atrasada em relação a outra, encontramos nessa ideia de “atraso” uma forte base CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

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etnocêntrica ou preconceituosa, que caracteriza o pensamento evolucionista. Da mesma forma, quando os povos indígenas são tidos como inferiores aos demais povos ou grupos, na verdade também estamos lidando com essa forma de pensar.

Isso acontece porque as ideias não funcionam como “máquinas” que podemos ligar ou desligar quando queremos. Ideias possuem força e podem ser acionadas de tempos em tempos. Daí resulta o seu poder e a sua capacidade de influenciar grupos e indivíduos que estão em posições sociais dominantes.

“

Um só caminho, uma mesma humanidade”, este é, segundo Castro (2009), o princípio básico do evolucionismo cultural, mas o que implica pensar dessa forma? Qual o legado que temos, enquanto sociedade, ao aceitarmos essa formulação teórica-conceitual? Há dois aspectos principais que precisam ser considerados: a) a ideia de que a diferença é um dado revelador de estágios superiores e inferiores de um único caminho (de “desenvolvimento”) compartilhado por todos os povos; e b) a consequente ideia de que aquilo que não corresponde ao padrão, ao modelo de referência, não é simplesmente uma forma diferente, mas sim algo que é indesejável na medida em que pode ser considerado “primitivo” ou “inferior”.

Se você está lendo este texto agora, você é um professor ou um estudante que tem a escola como um lugar/instituição frequente em seu cotidiano. Se perguntarmos para que serve a escola, é provável que você responda que é para ensinar e aprender, ou seja, a escola é o espaço da educação.

Sob o ponto de vista do evolucionismo cultural, podemos tomar a escola como a instituição educacional correspondente ao último estágio evolutivo da humanidade; correspondente, portanto, à civilização. Seguir esse raciocínio, que encontra tanto eco em nosso cotidiano, significa afirmar que as comunidades e povos que não têm esse entendimento e se estruturam de outra forma não o fazem porque são “inferiores” e “atrasadas”; assim, só poderão progredir se adequando a esse modelo de educação.

Vejamos, entretanto, o que diz o líder indígena, filósofo e escritor brasileiro Ailton Krenak (1996, p.

95). [...] aquela gente [os povos indígenas] precisa ter a oportunidade de construir a sua própria educação. Inclusive porque a gente vem de uma tradição muito, muito antiga. Provavelmente anterior à ideia de escola. E é preciso que a gente que tem uma ideia anterior a escola se comunique com a ideia da vida de uma maneira que não bloqueie seu pensamento, não suprima a liberdade de criar.

A reflexão aqui é muito profunda e importante: o autor está, dentre outras coisas, nos dizendo que povos com tradições milenares, anteriores à própria ideia de escola, precisam ter a liberdade de pensar a educação para além dela, pois a simples transferência de um modelo para o outro significaria um bloqueio do pensar, do viver, do relacionar-se com o mundo e com o outro e não o seu contrário. A escola estruturada sob bases espaciais e temporais que a delimitam e a estruturam como “[...] um espaço social autônomo fechado e separado do ambiente comunitário” (TARDIF; LESSARD, 2011, p. 50) não é o estágio superior ao qual deveríamos levar os povos indígenas para propiciar-lhes condição de progresso.

Modelos de escolarização que não se baseiam nessa mesma estrutura citada, muito comum no sistema escolar brasileiro, podem coexistir em paralelo, bem como podem se fundir a outros. À ideia de progressão entre estágios, consideremos olhar atentamente os diferentes contextos e compreender que as trajetórias são múltiplas. O que é evolução? A história da humanidade é um sucessivo processo de progressão de fases e estágios dos mais simples aos mais evoluídos? Quem conta essa história? Quem determina qual é o modelo de educação?

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No texto que citamos no início, do livro intitulado O perigo de uma história única, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie reflete sobre como suas referências de leitura na infância, todas elas limitadas a uma literatura britânica e estadunidense, a fizeram ter uma visão sobre si mesma que a retirava do seu lugar e, consequentemente, a colocava em um espaço sociocultural que não fazia parte do seu cotidiano. Explicando melhor: quando ela começou a escrever, aos 7 anos, seus personagens comiam maçãs, eram brancos de olhos azuis e sempre estavam se felicitando pelo fato de o sol ter aparecido. Mas ela, sua comunidade e seus familiares comiam mangas, eram, em sua grande maioria, negros e não comemoravam os dias de sol, visto que o protagonismo solar nos dias nigerianos não é propriamente comemorado. A partir daí, a autora elabora uma reflexão que nos faz entender os perigos de contar e estabelecer uma “história única”.

A ideia acima nos ajuda a compreender melhor o pensamento evolucionista. Conforme um de seus principais pensadores, Edward B. Tylor, a cultura deveria ser compreendida como singular, única, seguidora de um dado modelo referencial, distanciando-a de aspectos que a caracterizam como inferior. Isso significa contar uma história única.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Tradução de Julia Romeu. 1. ed. Companhia das Letras, 2019. 64 p.

CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Tradução de Maria Lúcia de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rocco. RJ, 1983.

LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. 11. ed.

Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1997.

KRENAK, Ailton. A educação indígena: as relações entre cultura e identidade. In: DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos olhares sobre a educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996. p. 92-95.

TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência enquanto profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2011.

SOILO, Andressa Nunes. Do evolucionismo clássico ao particularismo histórico na Antropologia: principais ideias. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 1, p. 251-261, 2014.

Uma conversa com Ailton Krenak sobre o tempo e a educação.

Povir, 2020.

Revoltados, eleitores disparam contra nordestinos no Twitter. Portal Terra, 2014.

O elo perdido. Direção: Régis Wargnier. Produção: Farid Lahouassa. África do Sul – França – Inglaterra: Vertigo Productions, 2005. DVD (122min).

Sinopse: África Central, 1870. Acompanhado por um grupo de caçadores indígenas, o antropólogo escocês Jamie Dodd (Joseph Fiennes) atravessa a floresta tropical à procura de uma nova espécie. Ao encontrar uma tribo de

pigmeus, Jamie acredita ter achado o "elo perdido" que faria a ponte evolucionária entre o homem e o primata.

Ele captura dois pigmeus chamados Toko (Lomama Boseki) e Likola (Cécile Bayiha) para apresentá-los na Academia de Ciência de Edimburgo. A amizade que surge entre os três termina colocando em risco a carreira do cientista.

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A Massai Branca. Direção: Hermine Huntgeburth.

Produção: Günter Rohrbach e Mark Woods. Alemanha: Bayerischer Banken-Fonds - Constantin Film, 2005. DVD (2h 11min).

Sinopse: Carola Lehmann (Nina Hoss) está em férias no Quênia. Quando faltam poucos dias para retornar, ela

conhece Samburu (Jacky Ido), um guerreiro Lemalian que usa armas e roupas tradicionais. Fascinada, ela logo se apaixona. Carola decide cancelar o voo de volta e mandar Stefan (Janek Rieke), seu namorado, retornar sozinho, enquanto ela própria percorre o Quênia tentando reencontrar Samburu.

1. Você já deve ter ouvido alguém mais velho do que você dizer: “no meu tempo isso era muito melhor”. Escolha de dois a três itens da lista que segue para perguntar aos seus pais ou avós se no “tempo deles” era melhor ou pior. Você pode perguntar sobre: • • • • • •

Brincadeiras infantis; Relação entre pais e filhos; Alimentação; Música; Relações conjugais; Eletrodomésticos.

Apresente suas respostas em sala, de forma que todos possam saber das respostas uns dos outros. A partir daí, vocês podem debater sobre a “evolução” dos costumes e relações, inferioridades e superioridades.

2. O Brasil tem cinco regiões e você mora em uma delas. Existem muitos estereótipos que acabam por criar visões que percebem inferioridade em umas e superioridade em outras. Pesquise reportagens que reforçam os estereótipos sobre a região do país em que você mora. Em sala, forme um mural com os diferentes exemplos trazidos e debata com seus colegas e professor sobre as consequências desses estereótipos para a região.

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O QUE É INFÂNCIA?

Carine de Miranda Santos

O

lá, pessoal! Neste texto vamos refletir um pouco sobre o conceito de infância. Falar da infância, talvez seja um assunto muito familiar para todos vocês que já passaram por essa fase da vida. Quais as lembranças que vocês têm da infância? Conseguem recordar das vivências relacionadas às brincadeiras, passeios, primeiras descobertas, amizades e processos de aprendizagens na fase da escolinha, por exemplo? É claro que apesar dessas recordações mais comuns sobre a infância, cada um de nós passou por experiências particulares, muitas delas envolvendo a organização familiar, religiosa, econômica e educacional. Aqui vamos refletir sobre o quanto o conceito de infância pode ser diverso a depender da sociedade, da cultura e do momento histórico em que se vive.

Vamos lá!

Nem sempre a nossa compreensão da infância, normalmente, encarada como uma etapa específica do desenvolvimento das crianças, esteve presente nas sociedades. Somente a partir da modernidade, nos séculos XVIII e XIX, período de intensas transformações políticas, econômicas e relacionadas ao conhecimento, é que a infância começa a ser tratada como uma fase que requer cuidados, como proteção, saúde e educação. A partir do século XIX, diversas áreas do conhecimento e, especificamente, a Antropologia, buscam compreender os sentidos sociais atribuídos à criança, assim como à categoria infância. Segundo Clarice Cohn (2005), pensar a infância pelos olhares da Antropologia é encarar esse fenômeno em diferentes perspectivas e contextos sociais e culturais.

Qualquer categoria simbólica ou social a ser analisada, deve ser estudada e compreendida por seu valor no interior do sistema, no contexto simbólico e social em que é gerado. Por isso, não podemos falar de crianças de um povo indígena sem entender como esse povo pensa o que é ser criança e sem entender o lugar que elas ocupam naquela sociedade – e o mesmo vale para as crianças de uma metrópole (CLARICE CONH, 2005, p. 9).

Essa difícil tarefa em compreender a infância representa um esforço por estudar os diversos entendimentos e olhares das sociedades sobre o “ser criança”. Observem que as pessoas vão construindo a sua existência a partir dos muitos elementos subjetivos do seu dia a dia. Segundo Postman (1999), no caso específico da infância, as relações de poder, de educação, de organização familiar e religiosa de uma época, contribuem para a compreensão desse objeto de estudo. Imaginem que a infância tem sido criada e recriada a partir das disputas de espaços sociais ligados ao poder político, econômico e de produção do conhecimento.

O

sentimento de infância foi assumindo diferentes significados ao longo da história. Observem que a pessoa, hoje representada por uma criança, sempre existiu na humanidade, mas a ideia que possuímos de um ser frágil e que requer determinados cuidados para o seu desenvolvimento é uma conceituação da modernidade, como já dissemos, engendrada entre os séculos XVIII e XIX.

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Philippe Ariès (2017) teve um papel importantíssimo no processo de compreensão social e cultural da infância no Ocidente, sendo um dos pioneiros nessa discussão sobre infância e trazendo muitas contribuições. Várias concepções sobre a infância começaram a ser pensadas a partir de seus estudos. Em sua obra “História Social da Criança e da família”, apresenta relatos históricos que evidenciam o quanto o conceito e a compreensão sobre a infância foram sendo elaborados ao longo do tempo na Europa, juntamente com as mudanças na composição familiar materna, paterna e no cotidiano da vida das crianças, inclusive pelas vivências da educação escolar.

Outra tentativa importante de conceituação da infância se deu a partir dos estudos realizados por Clarice Cohn (2005) que ao tratar da antropologia da criança, deixa evidente que “criança” e “infância” são conceitos diferentes, sendo a infância um modo particular e não universal de pensar a criança. A infância refere-se aos contextos culturais, aos períodos históricos, aos sentimentos compartilhados entre as pessoas de uma época e ao jeito de ser das crianças em um mundo social em constante transformação; já a criança é um ser biológico, com certa estrutura física e que representa a fase inicial da vida.

Considerando os conceitos atribuídos por Philippe Ariès e Clarice Cohn, não podemos deixar de evidenciar que a infância é uma fase específica da criança, representada por um ser social que tem uma história, pertencente a uma dada sociedade, que compõe uma determinada classe social, que vivencia um determinado contexto familiar e educacional, ou seja, um ser profundamente complexo e de difícil conceituação.

C

omo podemos observar, a compreensão sobre a infância e sobre o seu lugar no ambiente social e na organização familiar pode ser estudada tendo como parâmetro um determinado momento histórico.

Na Idade Média, por exemplo, existia uma ausência de representação da infância: era grande o sentimento de indiferença e insensibilidade em relação à criança. Segundo Ariès (2017), durante muitos séculos, as crianças foram deixadas de lado em relação aos cuidados e à atenção no que se refere à qualidade de vida. Por existir um desconhecimento sobre as etapas de desenvolvimento físico e cognitivo, eram constantemente tratadas como “adultos em miniatura”.

Ariès (2017), pesquisou a infância na Europa da Idade Média, analisou em obras de artes a imagem de famílias e crianças, observou as transformações familiares ao longo dos tempos. “A criança por muito tempo não foi vista como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias, e sim, homens de tamanho reduzido” (ARIÈS, 2017, p.18). Exemplo disso, eram os altos índices de mortalidade infantil e de infanticídio praticado pelas mulheres na Idade Média. É certo que fatores como a falta de saneamento básico, a idade das mães e a medicina pouco desenvolvida, contribuíram em alguma medida, para esses números crescentes. Era bastante comum entre as famílias, perdas de filhos ainda pequenos, episódios apontados por Ariès como eventos naturais, pois as crianças logo poderiam ser substituídas por outras.

O processo de reconhecimento de uma infância como uma etapa específica da vida dos indivíduos começa lentamente a ser observado e estudado na Europa a partir da literatura, das pinturas e das obras de artes em geral.

Ao longo do tempo as crianças vão ganhado espaço e a sociedade passando a vê-las com outros olhos.

No período da Primeira Revolução Industrial, entre os séculos XVI e XVIII, além de alterações sociais relacionadas ao trabalho e aos estilos de vida em geral, observamos também uma mudança de postura das famílias. O sentimento de família é fortalecido e a criança passa a ser foco de interesse dos adultos, já que a educação das crianças garantiria o desenvolvimento econômico familiar. Esse contexto contribuiu para a necessidade de se preparar os filhos para a vida por meio da educação escolar, pensada com base na disciplina, nos castigos e restrita aos meninos de classes favorecidas. Já as crianças pobres, segundo Sarmento (2007), foram “entregues” à racionalidade econômica e capitalista, sendo inseridas de sol a sol em oficinas e fábricas. Ou seja, as crianças pobres não teriam direito a uma educação de qualidade e ficariam expostas desde cedo ao mundo do trabalho.

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A partir do século XX, os estudos sobre a infância ganharam uma maior legitimidade. Legisladores, antropólogos, educadores, psicólogos, entre outros, e a sociedade como um todo estão atentos às condições das crianças na atualidade. A infância já é encarada como uma fase importante com todas as suas especificidades. Surge a ideia de menoridade com todas as proteções e direitos estabelecidos por lei. “A cultura infantil tem uma nova conotação na sociedade contemporânea, tendo características próprias, como a vestimenta, a alimentação, a linguagem e principalmente as brincadeiras” (POSTMAN, 1999, p. 34). Essa condição não é necessariamente presente em todas as culturas, pois não podemos esquecer que a compreensão sobre infância não é e nunca será universal. “O conceito de infância está longe de corresponder a uma categoria universal, natural, homogênea e de significado óbvio” (SARMENTO, 2007, p. 62).

Se pensarmos nas condições das crianças brasileiras, por exemplo, assim como na Europa, os estudos sobre a infância foram deixados de lado por muito tempo, por motivos relacionados aos interesses econômicos, de exploração das populações indígenas e dos povos africanos durante o processo de colonização do país. Historicamente, o Brasil sofre as consequências geradas pela colonização portuguesa e pela interferência de outros povos e interesses econômicos e mercantis. Com isso, as crianças indígenas e, posteriormente, as africanas e afro-brasileiras tiveram que conviver com a interferência e a desvalorização dos seus hábitos culturais por conta da imposição da cultura de seus colonizadores.

“No Brasil Colônia boa parte das crianças indígenas estavam sob os cuidados dos padres da Companhia de Jesus, responsáveis por sua catequização e educação” (LINHARES, 2016, p.32). Assim como as crianças indígenas, as crianças vindas do continente africano eram impedidas de vivenciar as suas culturas, sendo separadas dos seus familiares e ficando entregues ao trabalho escravo. Como todos os aspectos culturais das populações indígenas e africanas eram negados e representavam atraso para os colonizadores (visão de uma superioridade da cultura europeia), as suas tradições culturais e religiosas foram desumanizadas e desvalorizadas. Por conta disso, sofremos até hoje com a dificuldade de resgate e de valorização dessas culturas que pertencem a todos nós!

Figura 1 - Infância negada

Figura 2 - Infância da classe trabalhadora na I Revolução Industrial.

Figura 3 - Infância de Direitos.

Fonte: Tricurioso.com

Fonte: pixnio.com

Fonte: pxhere.com

Figura 4 - Infância indígena no Brasil Colônia.

Fonte: Flickr.com

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egundo Lojolo (2006), existe sempre uma oscilação, um movimento conceitual, a vida representa uma eterna mudança. Podemos perceber que a infância significa uma coisa aqui, lá e acolá, ontem, hoje, amanhã, seja quantas forem as ideias, práticas e falas em torno dela. Mas como podemos pensar a infância que vivemos atualmente? Quais são as diferentes infâncias que convivem entre nós na sociedade brasileira?

Para refletirmos as infâncias contemporâneas é importante considerar toda uma construção e experiências de vida que são muito particulares. A depender da condição econômica, social, familiar, educacional, da inscrição de gênero e de raça/etnicidade, entre outras, a criança pode sofrer uma série de dificuldades no seu processo de socialização, que seria o ato de aprender a conviver socialmente com outros indivíduos. Se a criança vem das classes menos favorecidas, onde a pobreza é um fator crucial que a leva precocemente ao trabalho, ou se é das classes burguesas, onde as crianças não possuem carências materiais, isso pode representar toda uma diferença de como esses indivíduos vivenciam a infância e, sobretudo, o processo educacional.

Infelizmente, apesar das legislações que protegem a infância, como a Constituição Federal de 1988 que buscou assegurar às crianças e adolescentes uma estrutura legal de garantia de direitos, a exemplo da proibição do trabalho infantil e o acesso à educação, elas ainda não atingem, efetivamente, o cumprimento desses direitos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado no ano de 1990, ofereceu avanços relacionados à proteção das crianças, porém na prática, no Brasil, ainda é negada a condição de infância, baseada na proteção à vida, educação, saúde, liberdade, convivência familiar e lazer, principalmente, entre as menos favorecidas.

No Brasil, as crianças negras, pobres e moradoras de áreas periféricas sofrem com um olhar estigmatizante da sociedade. O conceito de estigma desenvolvido por Goffman oferece uma série de interpretações, mas nesse caso entendemos que se trata de uma infância desrespeitada. São crianças que não têm a sua vulnerabilidade levada a sério pela sociedade. São crianças marcadas por uma exclusão legitimada, indiretamente, pelos poderes públicos e pela sociedade em geral. Basta observarmos quantas crianças estão sujeitas a abordagens policiais violentas ou que chegam a perder a vida nas calçadas dos seus bairros, e até mesmo dentro de suas residências, por conta dos confrontos entre o crime organizado nos grandes centros urbanos no Brasil.

De acordo com Zélia Melo (1999), o estigma era a marca de um corte ou uma queimadura no corpo e significava algo de ruim para a convivência social. Essa é a exclusão vivenciada por essas crianças. A sociedade não discute qual o tipo de infância que está sendo oferecida para grande parte das crianças negras que vivem em áreas periféricas. Elas vivem riscos reais que enfrentam diariamente na busca pela sobrevivência. Riscos por conta da falta de assistência médica, do crime organizado, da falta de proteção familiar, educacional etc.

No lugar de debates sobre políticas públicas que venham a contribuir para uma infância mais segura, uma parcela da sociedade insiste em discutir a redução da menoridade penal para 16 ou até 14 anos. Discussão que não leva em consideração todo o ambiente de exclusão e de violência a que alguns jovens estão sendo expostos desde a infância. Será que o nosso sistema carcerário está pronto para um trabalho de reeducação de jovens envolvidos em crimes? A redução da menoridade penal é o caminho mais curto encontrado por uma elite que não conhece ou não se importa com a realidade das populações pobres. As crianças e adolescentes de áreas periféricas precisam é de qualidade de vida e de educação.

Outra questão que deve ser colocada em evidência nas realidades vivenciadas pelas crianças é o fato de, ainda, serem pouco ouvidas. Apesar de todos os avanços na compreensão dessa fase infantil, as crianças continuam sendo ignoradas. No imaginário dos adultos, ainda representam um ser que pouco ou nada tem a dizer.

Talvez por esse silenciamento historicamente construído, educadores contemporâneos afirmam que as crianças ainda sofrem por silenciarem as suas emoções em situações de abusos, violências e bullying.

Perceberam quantas realidades envolvem a infância no Brasil e no mundo? Por hora, ficamos por aqui!

Foi muito bom refletir com vocês os conceitos, as representações e as realidades sobre a infância!

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CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução de Dora Flakman. Rio de Janeiro: LTC, 2017.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Distrito Federal: Congresso Nacional, 1988.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, 1990.

COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. 2005.

GOFFNAM, Erving. A representação do eu na vida cotidiana.

Petrópolis: Vozes, 2002.

LOJOLO, Marisa. Infância de papel e tinta. In. FREITAS, M. C. (Org.). História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2006.

MELO, Zélia Maria. Os estigmas: a deterioração da identidade social POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. São Paulo: Editorial, 1999.

SARMENTO, Manuel. Visibilidade Social e estudo da infância. In: VASCONCELLOS, Vera Maria; SARMENTO, Manuel (Orgs.). Infância (in)visível. Araraquara: Junqueira e Marin, 2007.

LINHARES, Juliana. História Social da Infância. Sobral: INTA, 2016.

ARAÚJO, Silva Maria. Educação, escola e transformação social.

Sociologia: volume único: ensino médio. São Paulo: Scipione, 2016.

MACHADO, Igor José de Renó. Sociologia hoje: ensino médio.

Volume único, São Paulo: Ática, 2016.

C

omo vimos neste capítulo, Philippe Ariès (2017), na realização de seus estudos sobre a infância, utilizou obras de arte da Idade Média como referência para analisar a condição da infância naquela época. Tomando essa experiência como inspiração, trabalhe com a observação de imagens seguindo as seguintes orientações: 1. Forme uma equipe com no máximo três colegas. Estude o conteúdo deste texto. Pesquise na Internet imagens que representam a infância em cada período abaixo: i) Infância negada no período da Idade Média; ii) Infância entre indígenas e africanos escravizados no Brasil Colonial; iii) Infância no período da Primeira Revolução Industrial; iv) Infância de direitos, representada atualmente.

2. Faça a impressão das quatro imagens e elabore um cartaz com base no modelo abaixo, respondendo as seguintes questões: 3. Em sala de aula, apresente o cartaz elaborado pelo seu grupo na data proposta pelo(a) professor(a).

Imagem

Qual título vocês dariam para O que vocês veem nessa Como imaginam a infância essa imagem? imagem? dessa(as) criança(as)?

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O QUE É INTERNET?

Marcelo da Silva Araujo

N

ão é novidade que a internet é um dos recursos mais utilizados no mundo. Por isso, ela pode ser, entre outros usos, fonte de expressões (memes, gírias etc.) e de comportamentos em meio aos mais jovens. Mas como será que esse tema é tratado pelas Ciências Sociais?

Essa discussão é mais comumente trabalhada pela Sociologia, e conceitos como “Sociologia da internet”, “e-Sociologia” e, o mais popular, “Sociologia digital”, acompanharam o deslocamento de perspectiva dos atuais estudos sobre a internet. Contudo, a Antropologia pode, a partir do seu ponto de vista diferenciado, prestar sua contribuição para o entendimento deste universo.

Posicionadas as áreas das Ciências Sociais que se interessam pelo tema da internet21, lembramos, para contextualizar, que o século XX foi palco de grandes inovações médicas – como a descoberta, em 1928, da penicilina ‒ e bélicas ‒ a exemplo da criação e uso, em 1945, da bomba atômica. Entretanto, foram outros avanços, como a ida ao espaço sideral (1969) e a criação da internet (1969), que promoveram alguns dos mais assombrosos saltos qualitativos e quantitativos.

A internet foi um projeto militar dos Estados Unidos durante a Guerra Fria22 e tinha como propósito instalar um sistema que possibilitasse a circulação segura de mensagens, evitando que estas fossem decifradas até sua chegada ao receptor (MEDEIROS; MEDEIROS, 2010).

Com o tempo, a internet extrapolou o ambiente militar e ocupou espaço nas universidades e centros de pesquisa. Desse modo, evoluiu até chegar ao que conhecemos hoje, ligando o local ao global e transportando o global para o local. Face a isso, não podemos deixar de nos questionar: estaremos diante de uma virtualização do espaço público e da multiplicação das formas de mediação? Mas e você, leitor(a), no dia a dia, se relaciona com mais intensidade no mundo real ou no cotidiano da existência virtual?

Refletiremos sobre a internet e seu uso como veículo de organização e modelação da escrita, do discurso e da sociabilidade. Assim, relativizaremos as noções de espaço e de tempo, percebendo-as como construídas de acordo com flutuações e variações psicológicas e sociais. O conceito de cibercultura, constante na obra O que é o virtual? (1996), do filósofo tunisiano Pierre Lévy, será nossa referência.

No caso da Sociologia, o trato com a internet pertence a um subcampo em que os pesquisadores se concentram em como essa ferramenta desempenha um papel na mediação e na facilitação da comunicação, e em como ela afeta, e é afetada, pela vida social (cf. DWYER, 2010). Já para a Ciência Política, o assunto tem tido particular preocupação, por exemplo, pelas temáticas da Governança da Internet (GI) e Governança Digital (GD), especificando suas definições conceituais e tendências, bem como apontando possibilidades futuras (cf. FREITAS e MONTENEGRO, 2021).

22 Uma disputa com a União Soviética (URSS), entre 1947 e fins da década de 1980, intensificando as rivalidades, sem, contudo, iniciarem um conflito armado direto.

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ecnicamente, a internet pode ser conceituada como um sistema global de redes interligadas de computadores. Para isso, é utilizado um conjunto de protocolos que servem usuários no mundo inteiro. Mas daremos um passo atrás.

Na história da comunicação, os indivíduos passaram muito tempo utilizando-se predominantemente da linguagem oral. À medida que outras técnicas se desenvolvem, a escrita passa a ser o modo majoritário de registro. Como meio de comunicação, a escrita tem o efeito de marcar e de reter melhor as informações. Nos encontros, quando um dos sujeitos possui o recurso da escrita e o outro não, como ocorreu nos processos de colonização da África e da América, esse conhecimento pode ser um instrumento de poder, utilizado até em estudos etnográficos (modalidade de estudos antropológicos que seguem uma metodologia que valoriza a pesquisa da cultura e do comportamento de determinados grupos sociais) sobre esses povos – na segunda metade do século XIX e na primeira do século XX, as nações imperialistas enviavam estudiosos às colônias para pesquisarem e entenderem o modo de vida dos locais.

Ao contrário dos europeus, o conhecimento entre os colonizados ocorria quase exclusivamente por meio da transmissão oral, a qual estava sujeita a perdas, esquecimentos e interpretações.

Da oralidade dos tempos antigos à escrita na internet, populações indígenas que se utilizam intensamente dessa tradição oral a ressignificam a partir da operacionalização da tecnologia multimídia. E a internet é o veículo que permite essa recomposição. Desse modo, essas populações retêm sua cultura e sua história, uma vez que buscam não somente transmitir suas práticas e representações às gerações futuras, mas também mostrá-las a outros povos. Para ter acesso a uma porção da cultura indígena não é obrigatório ir até uma aldeia; basta um clique na web e podemos adentrar numa tribo.

Você, leitor(a), notou que tratamos de tecnologia. A ciência antropológica, em sua gênese, na segunda metade do século XIX, tematizou preferencialmente as sociedades não ocidentais, povos isolados ou grupos subordinados e, para estes, tópicos como ciência e tecnologia, da forma que o Ocidente os caracteriza, podem ser distantes. A ciência é tida como a forma mais ocidental de pensar o mundo, detendo, na sociedade contemporânea, a crença no monopólio da verdade sobre a natureza (MEDEIROS; MEDEIROS, 2010). A tecnologia, por sua vez, é percebida como a legitimadora desse monopólio e, dessa forma, é pensada como a prova de que a ciência é capaz de compreender, prever e intervir na realidade como nenhuma outra forma de conhecimento.

Mas, o que tudo isso tem a ver com a internet?

Avançando no tempo, a escrita na internet, diferentemente do citado período inicial da escrita, provoca mudanças na percepção do que seja um texto. Hoje, temos blogs, fotologs, fóruns de discussão, comunidades, chats, mensagens postadas em páginas pessoais e um sem-número de possibilidades de escrita. Com o blog, o indivíduo não apenas cria um texto: ele é “postado”, lido e comentado por vários outros, levando à troca de experiência e a uma socialização que poderíamos classificar como diferenciada (“socialização diferenciada” aqui entendida como a que não se dá obrigatoriamente no espaço, no tempo e com a presença física compartilhada entre os indivíduos em contato).

Com toda essa mudança tecnológica ‒ e, consequentemente, linguística ‒, devemos, na análise da escrita, considerar não só a cultura oral e gráfica, mas, por vezes, a tão volátil “cibercultura”. Inspirado em Pierre Lévy (1996), o conceito é, etimologicamente, a junção das palavras “cibernética” e “cultura”, em que “ciber” representa a ciência voltada para uma tecnologia avançada e, assim, relaciona a referida tecnologia ao virtual e à cultura. Com a formatação “internética” do pensamento atual, vemo-nos obri-

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gados a aceitar que o processo de modernização implica em abandonar alguns preceitos passados e na incorporação de novos.

A internet permitiu uma maior integração entre os textos orais, escritos e visuais. Do advento da comunicação mediada pela oralidade até a mediação por e-mails e tweets, os vários sistemas de comunicação coexistem e são mutuamente dependentes.

Tal qual essa mediação “tradicional”, real, a comunicação a partir da internet, com o armazenamento e a transmissão de textos on-line, depende da escrita e da oralidade, e não irá condená-las ao esquecimento. A grande diferença entre a oralidade “tradicional” e a orientada pela internet é a de estarem longe da cena os mediadores no processo de construção da comunicação escrita – como ocorre em jornais, televisão e revistas, os quais via de regra funcionam como disseminadores do texto para um grupo de indivíduos –, possibilitando a comunicação direta.

A

comunicação massiva ocorre de forma mediada: por meio de revistas e jornais impressos ou a partir de telejornais. Ela sempre se vinculou a um espaço físico e a um tempo determinados.

Com a invenção do rádio, pessoas se juntavam ao redor dele, num horário determinado, para ouvirem notícias novas. Com a televisão, deu-se um processo parecido, com a diferença de que ela, devido à evolução tecnológica em termos de telefonia e de formas outras de transmissão de mensagens, passou a oferecer informações quase em tempo real.

A internet quebra essa relação entre espaço e tempo: ela produz uma junção entre escrita, desterritorialização (caracterizada como uma espécie de desligamento entre o espaço físico ou geográfico e a temporalidade do relógio e do calendário) e conhecimento distante. Para ter acesso a qualquer informação, de qualquer local, basta apenas digitar, no teclado do computador ou smartphone, a palavra ou a expressão desejadas – e, naturalmente, dispor de conexão com a rede on-line. E não há hora nem lugar para isso: pode-se estar em casa, no cinema, no restaurante, no ônibus ou na praia. Parafraseando um antigo jingle publicitário do jornal carioca O Globo: “Online, on time, full time!”.

Com o advento da internet implantam-se mecanismos de debate e de participação algo singulares em relação às mediações colocadas pelas mídias tradicionais. Em tempos de Wi-Fi, o desprendimento de uma localização fixa para expressar opiniões potencializa uma democratização. É possível doar quantias em dinheiro (Criança Esperança), votar pela eliminação de um participante (Big Brother Brasil), enviar perguntas a um entrevistado (diversos programas de TV e rádio) ou consultar dados pessoais (proventos ou processos judiciais).

Esse mesmo desprendimento, agora compreendido por outro prisma, será ele mesmo, e não a geografia comum, o definidor dos interesses que vão determinar a diversidade das relações. Vive-se, desse modo, uma situação paradoxal de topos e atopos, respectivamente lugar ou posição e não lugar. Essa afirmação tem um duplo significado: por um lado, o sujeito está simultaneamente enraizado num lugar físico, por outro, está suspenso na pluralidade de lugares que a navegação na rede possibilita.

O tema do “não lugar” é de importante interesse para a internet, quando investigada a partir da Antropologia. O antropólogo Marc Augé (1994, p. 62) é quem melhor o explora: [...] os não-lugares mediatizam um conjunto de relações consigo próprios e com os outros que só indiretamente dependem dos seus fins: tal como os lugares antropológicos são produtores de social orgânico, os não-lugares criam uma contratualidade solitária.

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“Produtores de social orgânico” e “contratualidade solitária” no sentido de que existe, na internet, a dimensão de um espaço antropológico construído pela transferência simbólica e relacional. Isto é, a partir da virtualização, os símbolos e os processos de relacionamento que constituem a vida em sociedade são transferidos para o espaço virtual, podendo ser caracterizados pela “[...] pesquisa solitária de informação no silêncio do diálogo do sujeito consigo próprio, tal como acontece com quem faz compras no hipermercado ou transações bancárias num caixa automático” (AUGÉ, 1994, p. 67).

A

lém de reter a escrita, a internet propicia a sua reprodução. Isto é, uma mensagem textual, visual ou sonora é postada na web e seu acesso pode ser disponibilizado a todos, automaticamente. Na reprodução de mensagens, existem dois contextos que impactam diretamente no processo de sociabilidade (sociabilidade que, na Antropologia, é um conceito que diz, genericamente, respeito ao estar relacionado a outros indivíduos) pelo qual nos interessamos: um primeiro, no qual a mensagem é postada e todos têm acesso irrestrito para cópia e difusão, e um segundo contexto em que, apesar de todos terem acesso para leitura e visualização, somente os membros pertencentes àquele grupo possuem permissão para copiá-la e difundi-la.

Como dissemos, com a internet ocorre um distanciamento espaço-temporal. O distanciamento espacial se dá na medida em que a mensagem “circula” sem o deslocamento do emissor (tal qual a carta e o rádio) e o distanciamento temporal tem seu impacto na medida em que a mensagem pode, tal qual uma gravação, ser retida, emitida e recebida em momentos diferentes.

Com a internet, as mensagens são codificadas em uma nova linguagem, a qual requer novas capacidades cognitivas de seus receptores. Assim como a compreensão oral de uma língua é o resultado de um processo de socialização linguística, a compreensão dos códigos da internet necessita de uma socialização específica (MENDES, 2007).

A internet é um instrumento de virtualização: qualquer indivíduo com um aparelho de celular capta uma imagem e pode publicá-la na web. Dessa forma, nem precisamos mais ir a um comício, a uma missa ou culto ou a um show para termos acesso às informações lá produzidas. Toda experiência que vivemos ao longo de nossas vidas é única: não importa se estávamos a sós ou com a participação de outras pessoas. Mas o fato de a experiência emocional, afetiva ou social vivida ser única não implica na inexistência de personagens inventados, atuando nas interações cotidianas do mundo real ou do virtual. A grande diferença é que, na vida real, fica difícil manter a representação inventada por muito tempo.

No ciberespaço, podemos ser quem desejarmos, desde que consigamos manter uma representação adequada dessa personagem. Um exemplo emblemático, e hoje clássico, dessa possibilidade de viver “mil vidas” é o fornecido pelo ambiente virtual Second Life, cuja utilização tornou-se uma verdadeira febre no início dos anos 2000. Em sua página eletrônica de apresentação, os dizeres “imagine um mundo em que você pode ser o que quiser, fazer o que desejar e transformar-se naquilo que sempre sonhou...” concretizavam, em termos de simulação, os limites do possível.

Com uma representação convincente, podemos interagir e construir relações e vínculos sociais permanentes. Tais vínculos são, porém, limitados a esse universo, aprofundando, em certo sentido, a tese central da obra A representação do eu na vida cotidiana (1999), do sociólogo canadense Erving Goffman (1922-1982).

Nesse livro, Goffman discute as interações que dão forma à teatralização da vida social, às máscaras e fachadas da vida de todo dia: aqui, essa vida, por não se dar no plano concreto, real, dificilmente será

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desmanchada pelos aspectos não verbais ou posturais da interação. Isso porque, se estreitarmos esses laços de tal modo que ultrapassem o ciberespaço, indo para o espaço real, corremos o risco de sermos desmascarados.

Para Pierre Lévy (1996), a relação que ocorre sem a presença física é chamada de “virtualização como êxodo”. Ela rompe com a conexão espaço-tempo, proporcionando uma forma de sua recriação, a partir da “fuga da vida real”. Essa nova “vida” é conduzida de forma segura e agradável, a fim de evitar os imponderáveis e os dissabores do cotidiano.

O virtual é algo que “não está presente” em termos físicos, mas que está vinculado ao físico, ao concreto, ao real. Se tomarmos como exemplo a venda de produtos pela internet (as lojas “.com”), veremos que o processo de aquisição de bens é realizado a partir da página www e, como seus elementos são “nômades”, a posição geográfica torna-se secundária (LÉVY, 1996).

Como ensina Lévy (idem), a internet não substitui a interação face a face. Ela aprofunda, isso sim, os conhecimentos dos fatos, qualificando opiniões, ajudando na formação de cidadãos. Há, naturalmente, controvérsias sobre essa afirmação. Dentre estas, a existência dos boatos (com, muitas vezes, a destruição de reputações), a desinformação (como no caso das fakenews de toda ordem) e a produção de conteúdos, que têm no ódio seu combustível (a disseminação dos haters), são elementos suficientes para comprovar o quão esperançosa e ingênua é a afirmação do pensador.23 Ao que tudo indica, a internet potencializa a comunicação pelas vias tradicionais (ou seja, os processos usuais de fala, de escrita e o do ouvir). Isso porque ela traz refinamentos a essas modalidades, propiciando, além das formas oral e textual, a interação e a sociabilidade. Parece, pois, haver uma estreita associação que se processa entre a internet e as condutas sociais. Assim, a sociabilidade mencionada, “virtual”, é cultivada e promove um estreitamento da dimensão on (conforme exemplificado, no caso dos escritos a que podemos ter acesso), marcando, com isso, a vivência dos internautas. É a presença da interface gráfica tornada mediadora dos encontros sociais.

Historicamente, os primeiros escritos a que tivemos acesso foram os desenhos e pinturas rupestres (representações artísticas pré-históricas) gravados em rochas. Após eles, o papiro, “cadernos” que lembram os nossos livros atuais, e, atualmente, os textos postados em sites, especialmente os acadêmicos e de revistas científicas. Temos acesso a textos escritos em Taiwan e proferidos, em inglês, numa conferência em Budapeste. Podemos, não importa de onde, acessá-los, baixá-los e usá-los. Conseguimos participar de videoconferências, apresentando nossas pesquisas e descobertas acadêmicas para indivíduos em qualquer ponto do globo.

Retomando o que dissemos no item “Contextualizando”, à Antropologia cabe o papel de contribuir para a compreensão do virtual. Auxiliando-nos a tomar partido no que diz respeito às direções que desejamos dar ao desenvolvimento científico e tecnológico (cf. MEDEIROS e MEDEIROS, op.cit.), essa ciência nos mostra que os grupos que se reúnem e mantêm uma vida em comum por meio da comunicação via internet podem, também eles, ser agrupamentos legíveis pela ótica do conceito de cultura (recomenda-se ler o capítulo “O que é cultura”, indicado nas Referências), uma vez que possibilita a exploração pessoal e grupal de emoções e identidades, criando, com isso, novos comportamentos e formas de sociabilidade. A troca na internet implica em reciprocidade, o “dar, receber e retribuir”, fórmula imortalizada pelo antropólogo francês Marcel Mauss (ver capítulo “O que é corpo”, 2021, p. 20). Mas isso é tema para outros escritos.

A tradução da expressão fakenews é de difícil definição. Porém, algo como “desinformação” talvez seja, aproximadamente, a melhor forma de convertê-la para o nosso idioma. Já “hater” tornou-se uma gíria que quer dizer grosso modo a pessoa que dissemina, por hábito, gosto ou por opção consciente, baseada em uma antipatia prévia ou oportunista, o ódio. No âmbito da internet, isso se dá na forma de comentários repletos de negatividade, por meio de ataques, de preconceitos ou de agressões.

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AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade, 3. ed., São Paulo: Papirus, 1994.

BOCCHETTI, André; MAÇAIRA, Júlia Polessa. O que é corpo. In: BODART, Cristiano das Neves. Conceitos e categorias fundamentais do ensino de Antropologia, vol.1. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2021.

DWYER, Tom. Sociologia, Tecnologias de Informação e Comunicação. In: MORAES, Amaury César (Coord.).

Coleção Explorando o Ensino: Sociologia, v. 15. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

SILVESTRE, Célia Maria Foster; FONSECA, Denis Renan. O que é cultura. In: BODART, Cristiano das Neves. Conceitos e categorias fundamentais do ensino de Antropologia, vol.1. Maceió: Editora Café com Sociologia, 2021.

WAGNER, Flávio Rech; CANABARRO, Diego Rafael.

A Governança da Internet: definição, desafios e perspectivas. In: PIMENTA, Marcelo Soares; CANABARRO, Diego Rafael. Governança Digital. Porto Alegre: EdUFRGS, 2014.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana.

Petrópolis: Vozes, 1999.

FIGUEIRA, Maria. Second Life: febre na rede. In: Sociologia, ciência e vida, n. 9, 2008.

MEDEIROS, José Adelino; MEDEIROS, Lucília Atas. O que é tecnologia, 2. ed., São Paulo: Brasiliense, 2010.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico, 14. ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

MENDES, Carolina de Aguiar Teixeira. “Os primeiros passos da internet”. edição 424, 2007.

A

simulação virtual de uma vida alternativa, uma “segunda vida”, é uma questão instigante. Ela junta alguns dos problemas nas Ciências Sociais, como a discussão sobre organização, regras e ordem social, com elementos que põem em causa como seria a vida com o auxílio de tecnologias avançadas. Alguns longas-metragens (O demolidor, 1993; Admirável mundo novo, 1998; Equilibrium, 2002, entre outros) exploram o futuro como tema, trazendo para o debate as maneiras de controle da realidade, das opressões e liberdades.

Que tal agora fazermos um exercício? Assista, com seus colegas, ao filme Substitutos, de 2009 (ver sinopse em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-127136/), que trata da substituição de pessoas por robôs, visando garantir o conforto e a segurança dos indivíduos. Após assisti-lo, discutam, em grupos de cinco estudantes, sobre os limites dessa segurança e desse conforto para a sociabilidade: quais são os limites do uso da internet? Qual a necessidade, possibilidade ou impossibilidade de manter os laços a partir de contatos primários, a fim de se garantir o bem-estar psíquico, emocional e social? Registrem, ao longo das discussões do seu grupo, as interpretações e os conceitos construídos. Ao final, troquem suas construções com os demais grupos. Dessa troca, surgirão aproximações e distanciamentos que devem ser anotados em cartazes e afixados nas paredes da sala de aula ou mesmo em áreas de acesso comum e de grande circulação.

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O QUE são

POVOS INDÍGENAS?

Ana Cláudia Gomes de Souza

O

s povos indígenas se constituem em uma temática recorrente na Antropologia. A diversidade dessas populações é investigada por pesquisadores e pesquisadoras que se utilizam da Antropologia como ferramenta teórico-metodológica para dar conta de explorar as diversas possibilidades de análise sobre esse tema.

Vale ressaltar que as realidades das populações indígenas são excelentes exemplos para refletir alteridade, relativismo cultural, cultura, tradição, movimentos sociais, território, pluralismo jurídico, relação com o Estado e outras categorias relacionadas à Antropologia. É relevante lembrar que a temática indígena oportuniza a aprendizagem em sala de aula de diferentes epistemologias24 e cosmologias25; trazendo para a escola debates sobre distintas formas de pensar o mundo, inclusive a partir de concepções decoloniais de saberes26, além de podermos ampliar o conhecimento sobre os povos originários.

Os conteúdos que giram em torno da temática indígena são uma oportunidade de contato com a história e a cultura indígena no ensino de Sociologia no ensino médio e fundamental, assim como preconiza a Lei nº 11.645, de 2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena.

O

s povos indígenas representam um vasto conjunto de comunidades que têm como característica marcante o fato de serem descendentes de povos originários. Esses que aqui estavam antes da ocupação, exploração e expropriação resultantes dos projetos coloniais colocados em curso em todo o continente americano a partir do fim do século XIV. Conceituar os povos indígenas, desse modo, significa tratar de diversas possibilidades de vivenciar essa experiência indígena, que é diferente para cada povo.

No site do Instituto Socioambiental (ISA), vamos encontrar: A expressão genérica povos indígenas refere-se a grupos humanos espalhados por todo o mundo, e que são bastante diferentes entre si. É apenas o uso corrente da linguagem que faz com que, em nosso país e em outros, fale-se em povos indígenas, ao passo que, na Austrália, por exemplo, a forma genérica para designá-los seja “Epistemologia” significa a produção de explicações sobre diversos conhecimentos. Podemos definir como a teoria do conhecimento. Quando nos referimos a epistemologias indígenas, estamos ressaltando que os saberes indígenas podem ser estudados e podem estar presentes nos currículos escolares.

25 Podemos definir como sendo teorias ou explicações do mundo. As cosmologias indígenas representam modelos que expressam suas concepções a respeito da origem do universo e das coisas que existem no mundo.

26 Saberes decoloniais partem da ideia de uma ciência que considera necessário que as categorias explicativas tomem como referência outras perspectivas de produção de conhecimento, e não apenas a perspectiva científica, pautada no modelo eurocentrado e ocidental de fazer ciência. Como afirma Francielly Baliana, saberes decoloniais representam outras possibilidades de construção de conhecimento, articulando diálogos com interlocutores de diversos locais e que ocupam diferentes papéis (BALIANA, 2020).

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aborígines. Indígena ou aborígine, como ensina o dicionário, quer dizer ‘originário de determinado país, região ou localidade; nativo’. Aliás, nativos e autóctones são outras expressões usadas, ao redor do mundo, para denominar esses povos (ISA, 2021).

O antropólogo e professor Gersem Luciano, da etnia Baniwa27, faz uma importante afirmação para nos ajudar a compreender os povos indígenas após o contato: A partir do contato, as culturas dos povos indígenas sofreram profundas modificações, uma vez que dentro das etnias se operaram importantes processos de mudança sociocultural, enfraquecendo sobremaneira as matrizes cosmológicas e míticas em torno das quais girava toda a dinâmica da vida tradicional (BANIWA, 2006, p. 18).

E como também nos lembra Gersem Luciano Baniwa, foram 521 anos de domínio colonial, e não obstante toda a violência que caracterizou e ainda caracteriza o contato, a participação dos povos indígenas no Brasil não pode ser apreendida apenas pela ausência. É por meio da luta que será marcada a relação dos povos com a sociedade envolvente, com o Estado ou com as populações regionais. Ou como ressalta Gersem Baniwa (2006, p. 18), as comunidades indígenas estão mais vivas do que nunca “[...] para lembrar e viver a memória histórica e, mais do que isso, para resgatar e dar continuidade aos seus projetos coletivos de vida, orientados pelos conhecimentos e pelos valores herdados dos seus ancestrais, expressos e vividos por meio de rituais e crenças”.

Ressaltamos que devemos combater a ideia do índio genérico, destacando sempre a sociodiversidade, que representa cada etnia e que, no caso do Brasil, representa mais de 300 povos, com suas especificidades e tradições, modos de vida, cosmologias e línguas. Para o efetivo conhecimento desses povos, teremos sempre que nos aproximar de cada um deles, a exemplo do Pataxó, Kiriri, Tupinambá, Yanomami, Tuxá, Guarani, Krenak, Maxacali, Anacé, Munduruku, entre tantos outros.

N

os últimos anos, os movimentos indígenas têm feito críticas aos termos que historicamente foram utilizados para denominar os povos originários. Assim, expressões como “tribos” e “índios” são rechaçados (ou passam por uma revisão) por reproduzirem uma ideia genérica, colonial, estereotipada e de subalternidade, não ecoando a extensa diversidade que significam esses povos. Em substituição a essas categorias, podemos utilizar “aldeia”, “comunidade indígena”, “povos originários”, “povos indígenas”, ou apenas, “indígenas”.

No Brasil, segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), a população indígena é de 896.917 pessoas. Essas vivem em cidades e áreas rurais, correspondendo aproximadamente a 0,47% da população total do país. Já com relação às línguas indígenas, são mais de 180 línguas faladas por esses povos.

Os povos indígenas ocupam todo o território brasileiro. Vários desses povos também habitam países vizinhos. Estima-se que 49 grupos têm parte de sua população residindo em outro(s) país(es), como Peru, Venezuela e Bolívia (ISA, 2021). No Brasil, a grande maioria das comunidades indígenas vive em terras coletivas, declaradas pelo Governo Federal como propriedades de usufruto exclusivo, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988.

Os conflitos em torno das terras indígenas marcaram historicamente a relação com a sociedade nacional.

Apesar dos direitos constitucionais conquistados, ainda existem inúmeros conflitos territoriais devido à invasão das terras indígenas por vários setores da sociedade brasileira, bem como grupos que vivem marginalizados nas áreas urbanas.

O povo Baniwa está localizado na fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, em aldeias localizadas às margens do rio Içana e no Alto Rio Negro, ocupando também os centros urbanos dos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos, no estado do Amazonas (ISA, 2021).

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Esses dados nos ajudam a ter uma ideia sobre a contemporaneidade da questão indígena, pois devido à desinformação, uma parcela da sociedade brasileira apreende essas comunidades na chave da estagnação histórica e por uma percepção estática de tradição. Os povos indígenas são tão contemporâneos quanto os não indígenas.

Coabitamos o mesmo contexto histórico, o que, em parte, explica as dinâmicas que também atingem suas culturas e suas relações com as mais diversas referências da contemporaneidade, como as tecnológicas, científicas, acadêmicas, políticas e econômicas.

E

studar a temática indígena nos proporciona conhecer e discutir diversos aspectos e dimensões sobre esses povos. Muitos dos conteúdos referentes à cultura e à tradição indígena representam uma importante fonte sobre a sociodiversidade que nos cerca, tendo as comunidades indígenas como seus representantes, a respeito das quais ainda conhecemos muito pouco. Poderemos, então, a partir dos povos indígenas, passar a conhecer mais sobre: diversidade sociocultural; sistemas escolares; historiografia; processos identitários; cosmologias; epistemologias; noções sobre território; relações de parentesco; diversidade linguística; produção de tecnologias; direito indígena; direito indigenista; Constituição de 1988 (Capítulo VIII, arts. 231 e 232); saúde indígena; arte indígena; músicas indígenas; educação indígena; movimento social indígena; povos indígenas e a mídia; a luta dos povos indígenas; povos indígenas e pandemia; Lei nº 11.645/08. E essas são só algumas das inúmeras possibilidades.

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje.

Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

BALIANA, Francielly. Sobre Saberes Decoloniais, 2020. Dossiê Colonialidades, Revista com Ciência, 09 de novembro de 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

ISA – INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental (ISA), 2021.

ISA – INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Baniwa. Povos Indígenas no Brasil. São Paulo: Instituto Socioambiental (ISA), 2021.

SILVA, Aracy Lopes; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (orgs.).

A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília, MEC/Mari/Unesco, 1995.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.

THOMAZ, Omar Ribeiro. A Antropologia e o mundo contemporâneo: cultura e diversidade. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luis Donisete Benzi (org). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC, 1995. p. 425-441.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

TUXÁ, Felipe. Reflexões de um tuxá antropólogo sobre o dia do índio. Biblioteca Virtual Consuelo Pondé.

POTIGUARA, Eliane. Tembeta: conversas com pensadores indígenas. São Paulo: Azougue, 2019.

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Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges. Disponível em: https://www.facebook.com/abia.indigena/

Instituto Socioambiental – Terras Indígenas no Brasil. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/

Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro da Universidade Federal da Bahia . Disponível em: http://www.pineb.ffch.ufba.br/

Projeto Vídeo nas Aldeias. Disponível em: http://www.videonasaldeias.org.br/2009/) Daniel Munduruku - http://danielmunduruku.blogspot.com/

Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: http://laced.etc.br/sobre/

Aiton Krenak. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa641357/ailtonkrenak

Associação Nacional de Ação Indigenista. Disponível em: http://anai.org.br/

Ex-pajé (2018) (1h 21min, direção de Luiz Bolognesi) Sinopse: Documentário e ficção se confundem nesse retrato de Perpera Suruí, um ex-xamã que foi obrigado a renunciar aos seus poderes quando seu povo foi evangelizado no Brasil.

Falas da terra: documentário sobre a cultura indígena no Brasil (2021). Produzido pela Globoplay Sinopse: A série apresenta a questão indígena por um olhar contemporâneo, com ênfase na diversidade linguística e cultural e na luta por direitos. Contou com profissionais indígenas em

A vida que eu levo. Brô MC's. CD “Memória Viva Guarani”.

Coral Infanto-Juvenil Guarani, 2005.

todo o processo de criação, a exemplo de Ailton Krenak, líder e escritor; Ziel Karapató, artista e ativista; Graciela Guarani, cineasta; Olinda Tupinambá, jornalista e documentarista; e Alberto Alvarez, cineasta e realizador.

Série Índios do Brasil (2000). Produção: MEC/TV Escola Sinopse: A série traça um perfil da população indígena brasileira e mostra a relação dessa população com a natureza, a história, suas línguas, seus direitos e os não índios. Os programas são apresentados por Ailton Krenak com a participação de interlocutores e entrevistados indígenas e não indígenas.

CD Pataxó “IHIXÚ XÔHÃ SUNITA’IRÁ IÕP PAHÃTÊ – cantando sonhos de uma nação guerreira” . Professores indígenas da Escola Indígena Pataxó Coroa Vermelha, 2007

1. Pesquisem nas redes sociais Facebook e Instagram, as páginas dos movimentos indígenas Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges e relatem algumas das pautas de suas lutas identificadas nas postagens das páginas.

2. Após assistirem ao documentário Índios: quem são eles (http://www.videonasaldeias.org.br/2009/video.php?c=83), organizem grupos de discussões para debaterem sobre como a sociedade brasileira vê os povos indígenas. E, a partir da análise do documentário, debatam sobre o que poderá ser feito para uma maior compreensão da sociodiversidade indígena.

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O QUE É RECIPROCIDADE?

Alexandre Barbosa Fraga

A

o longo de sua vida, certamente você já deve ter recebido um presente de que não gostou, mas precisou disfarçar para não magoar ou ofender a pessoa que lhe deu, agradecendo e tentando não esboçar um sorriso forçado. Da mesma forma, em algumas datas comemorativas, como aniversário, Natal ou Dia dos Namorados, você já deve ter se preocupado, gastado tempo e dinheiro para escolher algum presente que fosse “a cara daquela pessoa”, que a agradasse, que a fizesse se lembrar de você e que, ao ser ofertado, carregasse mais do que o valor material, servindo, sobretudo, como um veículo para a expressão de seu afeto. De acordo com reflexões antropológicas sobre as trocas, estabelecidas na interação entre Antropologia e Economia, o conceito de reciprocidade é um elemento fundamental para entender essas e outras situações. Daí a importância de compreendê-lo.

O

antropólogo Franz Boas (1858-1942), alemão radicado nos Estados Unidos, publicou em 1895 um estudo sobre os índios Kwakiutl, que viviam no noroeste da América do Norte.

Com o auxílio de um interlocutor nativo, descreveu uma forma de troca ritual existente entre eles, chamada de potlach. Eram cerimônias realizadas entre comunidades que rivalizavam umas com as outras, muito marcadas por disputa e competição, nas quais se distribuíam e destruíam bens acumulados (como a queima de cobertores e o lançamento ao mar de placas de cobre ricamente decoradas), aumentando com isso a honra do organizador e de todo o seu clã.28 O chefe rival, buscando competir e ocupar uma posição social superior à do outro anfitrião, precisava destruir ainda mais riquezas. Sendo assim, apesar de aparentemente espontâneo, esse tipo de troca envolvia a reciprocidade, isto é, a obrigatoriedade de dar, receber e retribuir.

Também se debruçando sobre o estudo das formas de troca, o antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942) publicou, em 1922, o livro Os Argonautas do Pacífico Ocidental, etnografia escrita sobre os nativos das Ilhas Trobriand, na Melanésia, região da Oceania. Nele, analisou o ritual chamado de kula, que consistia em um longo sistema de trocas de braceletes de conchas brancas (mwali) e de colares de conchas vermelhas (soulava) entre as ilhas, tendo como base uma série de regras e convenções sociais.

Essas relações, organizadas por meio de expedições marítimas, eram marcadas pela parceria, havendo uma reciprocidade, de forma que aquele que oferecia colares podia ser retribuído com braceletes, por exemplo. Sendo assim, como no potlach, a aparente espontaneidade revelava, de fato, uma obrigatorieda-

Conjunto de famílias que têm ou presumem ter uma ascendência comum e, portanto, fazem ou presumem fazer parte de um mesmo grupo de parentesco.

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de de dar, receber e retribuir, e essas trocas materiais consistiam muito mais em um sistema de obtenção de prestígio, ou seja, permitiam demarcar a posição social de cada um.

Adotando uma abordagem etnográfica, os trabalhos de Boas (1895) e Malinowski (1984) estudaram trocas mais do que materiais, simbólicas, as quais não poderiam ser reduzidas a um simples intercâmbio de produtos em um mercado. Por que os índios Kwakiutl destruíam, no potlach, tantos bens preciosos para eles? Por que os nativos das Ilhas Trobriand faziam, no kula, essas longas transações se os objetos trocados não tinham uma utilidade prática evidente e eram muito pouco utilizados? O que esses dois antropólogos mostraram é que, para além de uma perspectiva unicamente comercial, tais objetos tinham valor por atribuírem prestígio a quem os possuía e por permitirem uma renovação constante dos laços sociais estabelecidos entre esses grupos. Não seriam práticas irracionais, como muitos teóricos da época argumentavam, mas racionais em seus contextos sociais. Apesar de existir uma expectativa por parte do doador de receber uma retribuição de valor equivalente ao presente ofertado, como resposta do receptor, não havia negociação ou devolução, nem essa equivalência era imposta, diferentemente de uma troca estritamente econômica. Dar e ser generoso, compartilhando bens e objetos acumulados, revertiam-se em posição social (renome e respeito diante dos demais membros da comunidade).

O antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950), em seu Ensaio sobre a dádiva (2003), publicado em 1925, revisitou os trabalhos etnográficos de Boas e Malinowski buscando investigar essas diferentes transações humanas. Por que as coisas dadas eram retribuídas? O autor observou que algo supostamente espontâneo se revelava, na realidade, uma obrigação. Com base no estudo das trocas, como a distribuição e destruição de bens acumulados (potlach) e o intercâmbio de braceletes e colares (kula), Mauss (2003) formulou o princípio da reciprocidade: quando, aparentemente sob o signo da voluntariedade, pessoas ou grupos são compelidos pela tripla obrigação de dar, receber e retribuir. A primeira obrigação é dar, ou seja, distribuir parte de seus bens e riquezas para obter consideração e estima. A segunda obrigação é receber, pois recusar a dádiva oferecida é retirar-se antecipadamente da relação, ameaçando o prestígio já acumulado naquele grupo. Por fim, a terceira obrigação é retribuir, isto é, renovar a aliança e estabelecer uma nova primeira prestação, o que exige, reiniciando o ciclo, uma nova retribuição. Essas três etapas, continuamente seguidas, formam o sistema da dádiva.

E

m Ensaio sobre a dádiva (2003), Marcel Mauss, preocupado em compreender o que obriga uma pessoa a não apenas aceitar um objeto ofertado, mas a retribui-lo, contraindo uma espécie de dívida, defendeu que o potlach e o kula têm em comum uma característica própria do sistema de trocas da dádiva e distinta do sistema de trocas mercantil: uma mistura de almas e coisas. Ao buscar entre os próprios nativos a explicação para a obrigatoriedade da troca, aparentemente espontânea, examinou, por exemplo, a categoria de hau, presente entre os maori, que significava o “espírito da coisa”, ou seja, cada objeto envolvido nessas trocas seria habitado por um espírito. A coisa dada a uma pessoa carregaria o hau, o qual perseguiria todos que passassem a deter esse objeto (podendo trazer coisas boas ou até mesmo um mal sério), sendo necessário retribui-lo até que ele voltasse ao primeiro doador, e o hau, então, retornasse à sua origem.

Com base nessa ideia nativa, Mauss atribuiu como característica da reciprocidade seu caráter obrigatório, explicando-o devido às coisas dadas em sistema de trocas da dádiva portarem algo de seu doador, ligarem-se à pessoa que as deu. Além de hau, ele chama essa propriedade espiritual do doador ou força de ser do doador, existente na coisa dada, de mana, conforme utilizado pelos polinésios. De forma dife-

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rente das trocas comuns no mercado, predominantemente materiais, nesses casos há aspectos imateriais nas coisas trocadas, como sentimentos expressados nos presentes, o que mistura as fronteiras entre pessoas e coisas, entre riquezas materiais e espirituais. Nesse sentido, Mauss não separa a esfera econômica da esfera moral, demonstrando, ao contrário, que elas operam em conjunto e que a economia está sempre imersa nas relações sociais, ainda que, nas sociedades contemporâneas, pessoas e coisas, matéria e espírito estejam, em geral, mais separados.

O princípio da reciprocidade pode ser observado também nas relações sociais vivenciadas no capitalismo moderno. Enquanto entre os índios Kwakiutl nos Estados Unidos havia a troca ritual do potlach, caracterizada pela queima de cobertores e destruição de placas de cobre, em uma competição por prestígio, em nossa sociedade há competição para saber, por exemplo, quem deu a maior festa, o “casamento do ano”, com mais comida e bebida, mais convidados, melhores atrações e decorações. Esse segundo caso revela um grande e rápido consumo de dinheiro, seja acumulado pelas famílias de maior poder aquisitivo, seja guardado, com muito esforço, pelas famílias mais pobres, ambas buscando se destacar no grupo do qual fazem parte.

Na mesma direção, entre os nativos das Ilhas Trobriand, na Melanésia, havia o ritual do kula, constituído pela troca de colares e braceletes, no qual circulavam não apenas as coisas, mas o “espírito das coisas” (hau), em um sistema de obtenção de prestígio. Na nossa sociedade, algo semelhante ocorre em casamentos, aniversários, Natal, amigo secreto/oculto e outras datas, quando nos vemos envolvidos na obrigatoriedade de dar, receber e retribuir presentes, os quais carregam algo do próprio doador, como o afeto. Essas situações descritas contemplam, então, tanto sentimentos de competição quanto desejos de cooperação.

O

conceito de reciprocidade é importante para refletir sobre as trocas não apenas nas sociedades estudadas por Franz Boas, Bronislaw Malinowski e Marcel Mauss, mas também na nossa.

Nesses dois contextos, as trocas, para além de atividades estritamente econômicas e comerciais, permitem a construção e a manutenção de laços sociais entre pessoas e grupos. No entanto, segundo Karl Polanyi (1980), nas sociedades capitalistas modernas, a ideia de uma economia de mercado como um sistema autorregulável parece inverter essa lógica: ao invés de a economia estar enraizada nas relações sociais, seriam as relações sociais que estariam submetidas ao sistema econômico. Nesse sentido, para o autor, os estudos de caráter etnográfico realizados por esses antropólogos trazem a constatação empírica de que os sistemas econômicos sempre estiveram enraizados nas relações sociais, e não o contrário.

Apesar de esse enraizamento se aplicar a ambos, é possível diferenciar dois sistemas de trocas distintos: o mercantil e o da dádiva. O primeiro é constituído por trocas predominantemente materiais, regidas pela regra da impessoalidade, em que a coisa é inerte, o valor dado é equivalente ao valor recebido em bens ou serviços e nas quais a retribuição é obrigatória. Nas ilhas Trobriand, pode ser assim caracterizado o gimwali, uma troca de diferentes mercadorias com fins apenas comerciais. Na nossa sociedade, o ato de comprar um celular pela internet, por exemplo, pode ser, da mesma forma, classificado como uma troca mercantil, já que serve a propósitos sobretudo econômicos. Por sua vez, o sistema da dádiva extrapola a materialidade daquilo que é trocado. As coisas dadas não são inertes e carregam algo do próprio doador (sentimentos, tempo gasto preparando, escolhendo, gosto, entre outros), de forma que a equivalência entre o valor dado e recebido nunca é completa. Estão em jogo relações pessoais e dimensões rituais e simbólicas, em que dar, receber e retribuir são essenciais para manter o prestígio e CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

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possibilitar a continuidade da relação, sendo, então, atos aparentemente espontâneos, mas de fato obrigatórios. Nas Ilhas Trobriand, havia o kula, a troca cerimonial de braceletes e colares, que pode ser assim caracterizado.

Um primeiro exemplo do sistema de trocas da dádiva em nossa sociedade é a reciprocidade entre vizinhas. Em pesquisa realizada (FRAGA, 2016, p. 171), encontrei esse tipo de relação ao estudar as estratégias adotadas por trabalhadoras domésticas para articularem o cuidado dos próprios filhos ao trabalho na casa dos patrões. A vizinhança foi muito enfatizada como possibilidade de auxílio não remunerado, mas retribuído em ocasião posterior, quando necessário: Isso é muito comum onde eu moro. Hoje eu fico com os filhos da minha vizinha, amanhã ela fica com os meus.

Uma mão lava a outra (Sônia, 31 anos, casada, natural da Paraíba).

Quando a minha vizinha sabe que naquele dia eu estou muito enrolada e que não consegui preparar nada para deixar para os meus filhos, ela os chama para almoçar lá na casa dela. No final de semana, eu preparo algum doce bem gostoso e mando para ela (Antonia, 35 anos, casada, natural do Rio de Janeiro).

Por fim, um segundo exemplo do sistema de trocas da dádiva é a oferta de presentes no aniversário, Natal, amigo secreto/oculto e demais datas comemorativas. Conforme analisado pela antropóloga Maria Claudia Coelho (2006), nessas ocasiões as trocas não são apenas materiais, mas funcionam como veículos para a expressão de sentimentos e afetos. Nelas, há uma reciprocidade, em que é esperado pelo doador que o receptor retribua, demonstrando a importância dessa relação e o desejo de levá-la adiante.

BOAS, Franz. The social organization and the secret societies of the Kwakiutl Indians. In: Report of the United States National Museum for the year ending. Washington DC: USNM, 1895. p. 309-738.

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FRAGA, Alexandre. O serviço doméstico sob os holofotes públicos: alterações na articulação entre trabalho produtivo e reprodutivo no Brasil (Estado, mercado e família). 2016, 216f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

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SERTÃ, Ana Luísa; ALMEIDA, Sabrina. Ensaio sobre a dádiva. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2016.

CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

A

s tarefas propostas têm como objetivo articular a dimensão conceitual e abstrata à dimensão empírica vivenciada cotidianamente por você em suas relações sociais. Nesse sentido, a primeira tarefa exercita a sua capacidade de ouvir relatos de seus interlocutores e de interpretá-los teoricamente; habilidade essencial para o fazer antropológico. A ideia é que você reflita sobre as características da reciprocidade com base em um trecho de entrevista realizada pela antropóloga Maria Claudia Coelho.

Por sua vez, a segunda tarefa permite a análise das diferenças entre dois sistemas de troca nos quais você está inserido: o da dádiva e o mercantil. A ideia é chegar às características específicas de cada um dos sistemas.

1) A antropóloga Maria Claudia Coelho entrevistou Roberta sobre a prática, comum em nossa sociedade, da troca de presentes. A entrevistada relatou a vez em que presenteou uma pessoa e, algum tempo depois, recebeu dela o mesmo presente de volta. Leia o trecho da fala de Roberta e o interprete com base no que você aprendeu sobre o conceito de reciprocidade, buscando responder às questões.

“Uma amiga uma vez me deu uma coisa que eu tinha dado pra ela. Fiquei muito triste, sabe, porque, eu escolhi, eu normalmente demoro, eu sou uma pessoa, eu sou muito, eu não sou muito objetiva, então eu tenho dificuldade pra comprar. Tudo. Sabe, eu fico, eu demoro, eu escolho, porque eu vejo pessoas que vão lá e pá, pá, pá, e compram, eu não sou assim. Então, quer dizer, as coisas pra mim levam um tempo, eu vou lá, eu gasto meu tempo, eu escolho, eu custo, não, isso aqui eu acho que a pessoa vai gostar, então eu levei um tempo pra comprar, e achei muito indelicado da pessoa, nem saber que eu tinha dado e me devolveu o presente, então eu achei horrível. (...)

Não, eu acho que não foi em seguida. E nem, eu acho, eu gosto muito dessa pessoa, então não acho que tenha sido proposital. Mas foi muito chato. [Como reagiu?] Não, não falei nada, agradeci, muito obrigada, gostei muito. Eu não teria coragem de falar. (...) Foi muito decepcionante, eu me senti um pouco rejeitada, me senti meio mal com aquilo, sabe, assim uma desatenção, não rejeitada, eu achei que foi uma desatenção” (COELHO, 2006, p. 42).

a) Quais são as características da reciprocidade para Marcel Mauss? Como elas podem ser percebidas, em geral, na troca de presentes em nossa sociedade? b) Por que receber o mesmo presente de volta, como no caso relatado por Roberta, quebra a lógica da dádiva, de dar, receber e retribuir? c) Explique a decepção de Roberta levando em consideração a expectativa do presente como forma de expressão do afeto e de continuidade de uma relação.

2) Reflita sobre a seguinte situação. Você quer presentear, no Natal, uma pessoa especial para você, de sua família. Vai até uma loja, ou pela internet, e compra um presente do qual acredita que ela irá gostar. No dia certo, você o entrega a essa pessoa e também recebe um presente dela. Perceba que essa situação envolve dois sistemas de troca inter-relacionados. O primeiro é o sistema mercantil, quando você trocou seu dinheiro por um objeto ou produto da loja. O segundo é o sistema da dádiva, quando você trocou presentes com esse(a) familiar. a) Compare o sistema de troca mercantil com o sistema de troca da dádiva. Em que eles são diferentes? Têm algo de semelhante? Para responder, observe, entre outros, os seguintes elementos: pessoalidade/impessoalidade; caráter obrigatório/espontâneo; reciprocidade; troca material/imaterial (afeto); valor equivalente/aproximado; e coisa trocada inerte ou que carrega consigo algo do doador (fronteiras borradas entre pessoas e coisas).

CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

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O QUE É

RELATIVISMO CULTURAL?

Amanda Gomes Pereira Ana Caroline Amorim Oliveira

S

abemos que existem várias culturas que se diferenciam entre si. Umas mais, outras menos. A partir disso, é possível, então, considerar que existem culturas superiores e culturas inferiores?

Se fizermos tal julgamento estaríamos avaliando a partir de qual ponto? Do nosso? O que julgamos ser “melhor” é melhor para qualquer grupo e em qualquer contexto cultural, geográfico ou histórico? Esse julgamento contribuiria para compreender as diferentes formas de organização social? Tais questões já pensadas por muitos estudiosos dedicados aos estudos culturais, em especial, os antropólogos.

A Antropologia, ciência que se dedica a compreender a diversidade humana, traz conhecimentos que nos ajudam a enfrentar essas questões, principalmente, por meio de uma de suas categorias centrais: o relativismo cultural. O que significa esse conceito? É uma espécie de “olhar” que considera não haver hierarquia valorativa entre as diversas culturas existentes. Sob tal “olhar”, todas as culturas são ricas, complexas e permeadas de conhecimentos e pontos de vista sobre a realidade do mundo.

primeiro pensou esse conceito foi o antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942) que, Quem identificando essa relatividade nas noções mais básicas, como a de “pessoa”, elaborou o conceito de “relativismo cultural”.

A partir da visão relativista, os hábitos e as práticas humanas são vivenciados pelas sociedades de formas diferenciadas. Por exemplo, em algumas sociedades indígenas a passagem da infância para a idade adulta ocorre por meio de um ritual, após a menarca (primeira menstruação) para as meninas e após a mudança da voz para os meninos, momento no qual a menina irá receber ensinamentos para se tornar uma mulher pronta para casar e constituir família e o rapaz irá receber os conhecimentos para se tornar um caçador, xamã(pajé) e poder constituir família. Nessas sociedades não existe a fase da puberdade ou adolescência, como ocorre nas sociedades europeias e norte-americanas.

Outro exemplo é quando, ao serem aprovados em um vestibular de ingresso à universidade, os calouros passam pelo trote, que marca um ritual de mudança de status social. Em outros contextos, tradições semelhantes delimitam estágios da vida ou papéis sociais. Frente a tantas formas culturais de organização e comportamento, destacou Turner (2013, p. 20): “‘A vida imaginativa’ e ‘emocional’ do homem é sempre, e em qualquer parte do mundo, rica e complexa”.

Para Franz Boas (2004), o relativismo não representaria um simples instrumento e fundamento metodológico, mas o principal recurso dos estudiosos da cultura para se acessar e perceber a “diversidade cultural”. Esse conceito revolucionou a compreensão ocidental que se tinha até então, baseada na ideia

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de povos ou sociedades tidas como superiores (em virtude de alguns aspectos, como a tecnologia) e outras como inferiores (em virtude da ausência de instituições, como o Estado ou a Igreja), justificadas pela ideia da “raça”. Muitas dessas ideias se originavam da corrente de pensamento não científico conhecida como “evolucionismo cultural”, a partir da qual a humanidade se dividiria em estágios evolutivos: primitivos, bárbaros e civilizados. Tal teoria já foi refutada no meio acadêmico pois nunca obteve comprovação empírica, entretanto, está presente no imaginário social do Ocidente até os dias de hoje.

Novamente, foi Boas (2004) quem primeiro afirmou a existência da raça humana como única e a diversidade cultural e biológica como sua característica. Dessa forma, o autor questionou a base “científica” do racismo e o estabeleceu como simples ideologia colonizadora utilizada para legitimar as ações dos colonizadores europeus em países do continente africano, assim como em algumas partes do continente americano ‒ incluindo o Brasil.

Em uma das expedições do antropólogo Franz Boas entre os esquimós (povo que se autodenomina Inuits), ao passar um período convivendo com eles, caçando e partilhando de seus costumes, chegou à seguinte conclusão: Frequentemente me pergunto que vantagens nossa ‘boa sociedade’ possui sobre aquela dos ‘selvagens’ e descubro, quanto mais vejo de seus costumes, que não temos o direito de olhá-los de cima para baixo. Onde, em nosso povo, poder-se-ia encontrar hospitalidade tão verdadeira quanto aqui?... Nós, ‘pessoas altamente educadas’, somos muito piores, relativamente falando... Creio que, se esta viagem tem para mim (como ser pensante) uma influência valiosa, ela reside no fortalecimento do ponto de vista da relatividade de toda formação [Bildung] [...] (BOAS, 2004, p. 9).

É a partir dessa conclusão que o autor irá refutar as noções de “bárbaro” ou “selvagem” para se referir aos povos nativos. Outra tese que Franz Boas desmentiu foi a do “determinismo geográfico”, segundo a qual o ambiente natural determinaria os hábitos, as linguagens, as vestimentas e os costumes de um povo. Ao conviver com os esquimós (Inuits), Boas compreende que o grupo social realiza escolhas culturais e que seu ambiente geográfico não era determinante para a definição de suas práticas.

Sob esse prisma, a tradição etnográfica iniciada por Franz Boas e a definição elaborada por ele acerca do “relativismo cultural” representam uma virada epistemológica em um período em que o conceito de raça era utilizado para justificar e legitimar projetos imperialistas, civilizacionais e coloniais.

N

a região leste do Maranhão, nos municípios de São Bernardo e Magalhães de Almeida, para um jovem tornar-se um bom caçador (status importante compartilhado pelo grupo dos garotos, além de ser um elemento constituidor de discursos acerca dos padrões de masculinidade) recomenda-se que, ao abater um beija-flor, ele coma o coração desse pássaro. Existe, assim, a tradição passada por gerações de que esse ato garante aos adolescentes uma pontaria mais certeira.

No interior de Minas Gerais, em municípios de pequeno porte, até tempos recentes, as crianças eram ensinadas a benzer-se a cada vez que passavam em frente a uma Igreja Católica. Para quem conhece o estado, pensemos a quantidade de vezes que esse ato era repetido durante o dia. Esses são costumes que demonstram a diversidade de formas humanas de ser e habitar o mundo.

Mas será que todas as pessoas que residem em diferentes partes do globo terrestre possuem o mesmo entendimento de distinguir quais comportamentos são diferentes ou fora do comum?29 Há hoA produção audiovisual sobre a diversidade cultural dos povos e sociedades é uma importante ferramenta para a ampliação do nosso olhar. Os filmes Os deuses devem estar loucos, de Jamie Uys (1980), Avatar, de James Cameron (2009), e Waapa, de David Reeks, Paula Mendonça e Renata Meirelles (2017) possibilitam uma reflexão sobre as diferenças culturais e os desencontros de entendimento.

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mogeneidade na percepção do humano principalmente em seus discursos e práticas? Nesse ponto, queremos chamar atenção para outro conceito muito importante na Antropologia que está diretamente relacionado ao de relativismo cultural: o “etnocentrismo”. Mas afinal, o que significa esse termo tão incomum?

Esse termo que aparentemente parece denominar algo difícil, complexo e nebuloso, refere-se a uma prática e a um entendimento que, em certa medida, todas e todos nós já tivemos ao nos depararmos com práticas e comportamentos socioculturais e históricos diferentes dos nossos. A primeira reação que temos é pensar que as práticas e os comportamentos segundo os quais fomos criados(as) são os “corretos” ou “melhores” do que os dos outros.

Em um primeiro momento, nossos sentidos são afetados quando nos aproximamos dos outros e isso ocorre porque no processo de socialização – da infância até a fase adulta – incorporamos determinadas práticas e atitudes. Sendo assim, nossos corpos reagem, consciente e inconscientemente, a tudo que nos parece estranho ou estrangeiro e que nos provoque um “choque cultural” e, posteriormente, uma “desnaturalização” de nossas categorias, regras e normas sociais criadas para ordenar a vida cotidiana, servindo como parâmetro para nossas relações sociais.

Contudo, esse processo de desnaturalização não é simples. Em boa parte das vezes, necessita de um esforço doloroso de “estranhamento” acerca do que nos ensinaram durante nossa vida como sendo a realidade e a “verdade” dos fatos. Esse estranhamento ocorre, por exemplo, por meio da linguagem.

No Maranhão, tomamos juçara (palmeira nativa da Mata Atlântica) com farinha e camarão ou peixe frito; no Pará, eles conhecem essa palmeira e seu fruto pelo nome açaí e o consomem com peixe frito.

No restante do país, o açaí é saboreado com tapioca e outros ingredientes, tais como morango, granola e até mesmo alguns doces. No Maranhão, essa prática cultural é tão presente que ocorre anualmente a Festa da Juçara30, quando é celebrada a fartura dessa palmeira característica do estado.

O

conceito de relativismo cultural tem como base o de cultura. Adentramos, agora, em outro conceito fundante da Antropologia, o de “cultura”. Essa ideia significa toda essa diversidade de práticas e comportamentos humanos presente em diferentes partes do globo, países e comunidades, produzida em coletividade por pessoas. Daí o entendimento do relativismo cultural de que toda cultura é relativa e não hierarquizável.

O antropólogo Roque de Barros Laraia (2009), em seu livro Cultura: um conceito antropológico (referência para pensarmos o debate central na Antropologia estabelecido na relação entre natureza e cultura), apresenta como ocorre essa conciliação entre o biológico e a grande diversidade cultural da espécie humana, explicando no segundo momento do livro como opera a cultura.

As características da cultura são expressas no ato de comer, de se vestir, de andar, nas práticas religiosas e sagradas, nas regras de parentesco e de casamento, assim como em tantas outras práticas. Ao observarmos essas práticas, percebemos a “diversidade cultural” existente no globo de forma geral e, de forma particular, no nosso país, no nosso estado e, também, nos nossos municípios (LARAIA, 2009) ‒ como já apontamos anteriormente com o exemplo da juçara no Maranhão e do açaí no Pará. Tais diferenças de práticas culturais passam a ser significadas a partir de uma distinção entre cultura “erudita” ou Veja o vídeo da Festa da Juçara no disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3CrWK5MgPRU. Para saber a diferença entre a juçara e o açaí, veja a reportagem da TV Brasil https://www.youtube.com/watch?v=m59jny_SzeA. 30

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no

link:

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“superior” e uma cultura “popular” ou “inferior”. Essas distinções ocorrem para diferenciar as desigualdades socioeconômicas em termos culturais, como identifica Laraia (2009).

Tais características e práticas culturais de cada povo e/ou sociedade também são compreendidas a partir de outro conceito, o de “identidade”. Esse conceito, muito próximo do conceito de cultura, se refere às características étnico-culturais e de gênero/sexualidade de um grupo ou coletividade.

A identidade não é uma essência, ao contrário, é um processo contínuo de reconstrução do passado e transformação do presente. Stuart Hall (2006) e Homi Bhabha (1994) vão utilizar os termos “identidades” e/ou “identificação” para marcar o caráter de transformação e multiplicidade dos processos identitários dos sujeitos ao longo de sua trajetória. Por exemplo, uma pessoa pode participar de vários grupos distintos que compõem as suas identidades, como ser negra, ser de uma religião afrodescendente e/ou ser trabalhadora assalariada. Todos esses pertencimentos caracterizam esse sujeito marcando-o social e culturalmente e, também, politicamente. Uma mulher negra, do candomblé e empregada doméstica pode, por exemplo, ser alvo de ações machistas e racistas em seu ambiente trabalho, no qual não recebe nem mesmo um salário mínimo nem tem sua carteira de trabalho assinada. Tais marcadores sociais da diferença atravessam tal pessoa em sua trajetória de vida. Esses marcadores sociais da diferença são objetos de estudo da Antropologia31.

Algumas intelectuais feministas negras realizam uma abordagem interseccional em suas análises sobre mulheres por compreender que tais marcadores se inter-relacionam, interseccionam e compõem as trajetórias femininas, não podendo destacar e separar um ou outro aspecto de sua vida.

Analisar, compreender o Outro, se transpor para a vida do Outro para poder traduzir a “alteridade” em textos etnográficos é uma das características da metodologia da ciência antropológica. A etnografia é uma ferramenta da Antropologia que se caracteriza pelo olhar minucioso do cotidiano, das pessoas, dos grupos e, mais recentemente, das universidades, das escolas, das empresas, do capitalismo, dentre tantos outros campos e objetos de estudo. No uso dessa ferramenta, o “olhar” do relativismo cultural é extremamente importante.

A Antropologia é uma disciplina que, ao longo da sua história, construiu conceitos para explicar a diversidade cultural humana, entendendo-a não como algo negativo, mas sim como uma potência criativa da humanidade. A partir de conceitos como relativismo cultural, diversidade, etnocentrismo e etnografia, a disciplina se dedicou a romper com os preconceitos diante da diferença cultural.

Notamos que a Antropologia nos auxilia a compreender o Outro, a alteridade em seu sentido mais radical, pois esse “Outro” não é somente o que é diferente e distante simbolicamente de nós, podendo ser aquele que está geograficamente perto, mas que vivencia outro mundo existencial. A Antropologia traz como contribuição a compreensão das características dos humanos, auxiliando no convívio respeitoso como possibilidade real e nos convidando ao exercício da tolerância – essencial em uma sociedade democrática e plural.

Segundo o Mapa da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, no último censo de 2017, foram registrados 3.288 homicídios de mulheres negras. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/142. No último relatório sobre as denúncias de discriminação religiosa, divulgado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) em 2018, foram registrados 506 casos. As religiões mais atingidas foram as de matriz africana: umbanda (72) e candomblé (47), seguidas de outras religiões. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/ptbr/assuntos/noticias/todas-as-noticias/2019/junho/balanco-anual-disque-100-registra-mais-de-500-casos-de-discriminacaoreligiosa.

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CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de dezembro de 1996.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação (CNE). Resolução n. 3, de 26 de junho de 1998. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 ago. 1998.

CASTRO, Celso. Textos básicos de Antropologia- cem anos de tradição: Boas, Malinowski, Lévi-Strauss e outros. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2016.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2009.

BOAS, Franz. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

MAUSS, Marcel. O ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Editora Cosac e Naify, 2003.

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008.

TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 2013.

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BRASIL. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade: Laced, Museu Nacional, 2006.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2019.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

YOUSAFZAI, Malala. Eu sou Malala (Edição Juvenil): como uma garota defendeu o direito à educação e mudou o mundo. São Paulo: Editora Seguinte (Selo Companhia das Letras), 2015.

A

tividade: O meu lugar...

A partir da frase “O meu lugar”, elabore um cordel narrando os costumes particulares (regionais) compartilhados por gerações em sua comunidade, vilarejo, cidade ou estado. Posteriormente, transforme esse cordel em um podcast.

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O QUE É

SINCRETISMO RELIGIOSO BRASILEIRO?

César Alessandro Sagrillo Figueiredo

A

o dialogarmos acerca do tema religioso e suas práticas, constatamos quantas interpretações podem ser suscitadas a partir das diferentes matrizes religiosas, sobretudo quando destacamos o âmbito nacional. O conceito de sincretismo torna-se fundamental, pois vivemos num país multiétnico e plurirreligioso, onde está assegurada, na Constituição Federal de 1988, a liberdade irrestrita de culto, logo sendo inadmissível qualquer ato de discriminação contra a religião e a fé individual dos cidadãos.

Amparados pela legislação, portanto, podemos pensar que trilhamos um processo religioso aparentemente harmonioso e sem conflito. Ledo engano, uma vez que a nação brasileira fora construída por meio de uma longuíssima tradição do catolicismo como religião dominante oficial, eminentemente ligado ao Estado brasileiro desde o período do Brasil Colônia.

Nesse gradiente, enfatizamos que o processo de “misturas” religiosas se deu com muitos conflitos, haja vista a formação do povo brasileiro: a) o português, como povo dominante; b) o africano, sequestrado e escravizado; e c) o indígena, expulso da sua terra e subjugado. Por conseguinte, todo esse processo de organização de uma nação construída pela força gerou, como era de se esperar, severas disputas religiosas e traumas coletivos, bem como o apagamento, a acomodação forçada e a resistência dessas diversas culturas. Destacamos, nesse cenário, a importância do estudo da religião, uma vez que esta pode ser considerada como uma das grandes matrizes produtora de valores e que ajudou a fomentar a identidade nacional.

O estudo da religião torna-se um instrumento para diversas áreas do conhecimento como a Teologia, as Ciências da Religião e as Ciências Sociais, principalmente no tocante à Antropologia e suas interfaces entre etnologia e religião. Dentro desse campo da Antropologia, realçamos como terreno fértil de pesquisa o caráter sincrético religioso da sociedade brasileira, muito explorado por diversos autores que se debruçaram sobre o tema desde as primeiras décadas do século XX. Contudo, mesmo com uma profunda base teórica, esse ainda é um tema muito discutível na literatura antropológica por suscitar tantos debates sobre a caracterização da sociedade brasileira e, mais precisamente, pela forma como foi elaborado o conceito e apropriado com muitas disputas dentro do campo acadêmico.

A

partir desse debate precisamos, primeiramente, compreender o significado e a raiz etimológica da palavra “sincretismo”. Mediante pesquisa no dicionário32, sincretismo significa a “junção

32

Fonte: https://www.dicio.com.br/sincretismo/ CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

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ou mistura de cultos ou de doutrinas religiosas distintas, atribuindo um novo sentido aos seus elementos”. Ainda, a expressão original synkretismós provém do grego clássico e significava a reunião de vários povos da ilha de Creta contra um inimigo comum. A palavra foi sendo absorvida e trabalhada na história da humanidade e, a longo prazo, foi dando conotações para outros sentidos, também sendo apropriada para as caraterizações de conflitos, choques e misturas de processo interétnicos e religiosos.

Podemos, inclusive, refletir que o próprio catolicismo fora produto de um processo sincrético, pois provém do Oriente Médio e recebeu toda a matriz cultural religiosa judaica do Velho Testamento, vindo a se consolidar, mais adiante, como a religião dominante no Ocidente a partir da passagem da Antiguidade para a Idade Média, objetivamente pela incorporação do catolicismo pelo Império Romano. Nesse período, a Europa passou a viver dentro de uma perspectiva teocêntrica, melhor dito, com Deus como o centro do mundo e a Igreja Romana regrando o aparelho institucional. Os Estados Nacionais europeus, que mais tarde protagonizaram o processo de colonização e expansão imperial, adotaram o catolicismo como religião oficial. Como consequência, todos seguiram esses processos rituais bem sincréticos adaptando-os de acordo com as práticas de cada lugar. Posteriormente, reelaborando a fé católica nas diferentes regiões e recebendo influências distintas de devoção de santos, celebrações de cultos, realizações de festejos e práticas rituais alimentares.

Ao chegar ao Brasil, o Estado português já trazia consigo toda essa formação entre o estamento burocrático e o clero, dando o contorno da religião mandatária (FAORO, 1991). Tal processo tornar-se-ia altamente conflitivo, pois da convergência forçada das denominadas três raças formativas do Brasil nasceu a mescla de uma religiosidade extremamente complexa como fruto da imposição colonial e religiosa europeia, sobretudo às crenças étnicas indígenas e os cultos dos povos africanos. Reiterando: somente o catolicismo era a religião oficial, por conseguinte, as demais expressões do sagrado deveriam ser ocultadas ou violentadas. Por razões óbvias, esse processo conflitivo iria fomentar novas configurações nativas e gerar uma tensa construção religiosa sincrética, indo ao encontro das diferentes características étnicas regionais brasileiras. Nessa perspectiva, portanto, torna-se muito pertinente a seguinte apropriação teórica: O sincretismo pode ser visto como caraterística do fenômeno religioso. Isto não implica em desmerecer nenhuma religião, mas em constatar que, como os demais elementos de uma cultura, a religião constitui uma síntese integradora englobando conteúdos de diversas origens. Tal fato não diminui, mas engradece o domínio da religião, com ponto de encontro e de convergência de tradições distintas (FERRETI, 1998, p. 183).

Embora saibamos desse antigo processo sincrético em curso, contudo, pouco ou nada se discutia a respeito dessas práticas no Brasil Colônia e Império, uma vez que a religião subalternizada do Outro não era aceita e tampouco era tolerada pela classe dominante. Relembramos, também, que no século XIX começaram a aportar novas denominações religiosas trazidas por parte dos imigrantes europeus, ainda que com restrições de cultos, mesmo sendo ramificações religiosas cristãs (SEYFERTH, 1986). Do mesmo modo, havia povos que eram proibidos de emigrar ao Brasil em virtudes de práticas religiosas distintas do catolicismo. Assim, se para os imigrantes europeus brancos (cristãos ou não) havia distinção e restrições às práticas de cultos, os africanos ‒ na condição de povo escravizado ‒ ou os indígenas, por conseguinte, tinham as suas práticas tradicionais de culto ao sagrado terminantemente criminalizadas e perseguidas nesse período.

Essas distinções começaram a ser discutidas somente no início do século XX no Brasil, ainda com severos preconceitos inculcados e com teorias racistas divulgadas pela ciência da época, ou seja, as discussões começaram a ser debatidas dentro dos limites intelectuais daquele momento. Torna-se pertinente relembrar a figura de João do Rio, famoso jornalista e cronista que, nos primórdios do século XX, fez uma grande reportagem sobre as religiões existentes no Rio de Janeiro naquele período. De acordo com a pesquisa do autor, ficou constatada a existência de uma verdadeira babel religiosa. Obviamente, tal

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empreitada gerou uma série de críticas e transformou-se num verdadeiro escândalo, haja vista que a elite dominante julgava que a única religião existente era o catolicismo (RIO, 2015).

As análises se davam com prejuízo e descrédito da cultura do Outro, isto posto, analisando o sincretismo como um elemento altamente pernicioso à cultura brasileira, visto que essa precisava ser eminentemente branca, cristã e desapegada de valores considerados de modo errôneo como primitivos. Em síntese, seria a visão do dominador que intencionava formatar uma cultura nacional, visando apagar os entrecruzamentos que já existiam há séculos e estavam latentes na cultura do país, realçando, portanto, um forte viés ideológico para um conceito que ainda estava em processo de formação e carecendo de melhores estudos.

Nesse sentido, devemos apontar que o conceito foi apropriado pela academia desde o seu nascedouro, de forma unilateral e sem espaço para críticas num primeiro momento, incorporando preconceitos e sensos comuns; a posteriori, porém, buscou revelar outras teorias e novas interpretações da cultura.

Devemos enfatizar a contribuição de Pierre Sanchis (1995, p. 3), que salienta que a construção ideológica do conceito de sincretismo deve ser analisada, sobretudo, mediante a interpretação dos processos inscritos na história. É importante destacar a contribuição e análise de outros autores acerca da obra de Sanchis, conforme citação: “[...] o sincretismo não é próprio do campo da religião, mas da cultura, e procede de uma relação desigual entre duas culturas ou religiões. Essa desigualdade é consequência de relações históricas de dominação” (SANCHIS, 1995 apud ARAUJO et al., 2016, p. 202).

Mediante exposto, esse processo histórico e cultural deu origem à modulação do conceito de sincretismo, mesmo com as limitações de interpretação na sua origem. Torna-se pertinente, também, evidenciar que não existe uma estabilidade do conceito de sincretismo religioso, pois ele pode ser modelado de acordo com a formação histórica, étnica e pela apropriação acadêmica. Especificamente quanto ao mundo acadêmico, observamos que em determinados períodos houve a evidência e a importância do conceito, assim como em outros ocorreram críticas que o colocaram como um tema esvanecido; talvez, pelas implicações ideológicas que poderiam suscitar os debates intelectuais. Além das questões acadêmicas, é relevante refletirmos sobre o sincretismo no nosso cotidiano e a partir da perspectiva de como ele fora apropriado, bem como nas situações sociais que vivemos, em que as relações precisam ser mediadas em face das distintas diferenças religiosas.

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o estudo realizado pela própria Antropologia, podemos colocar alguns marcos de diálogo e apropriação do conceito e, de igual modo, as formas e a ênfase com que fora trabalhado. Via de regra, o traço distintivo mais forte, quando se enunciava acerca de sincretismo religioso, era para enfatizar os pontos de contatos, conflitos, absorção e esvanecimento da cultura afro-religiosa frente à religião oficial católica. Havia pouca discussão sobre o próprio catolicismo e as suas distintas apropriações no espaço geográfico nacional. Igualmente, havia pouca análise sobre o contato com a religião indígena.

Para essa análise do processo do sincretismo religioso brasileiro, vamos refletir a partir das discussões de Sergio Ferreti em Repensando o sincretismo (1995), obra em que o autor aponta cinco fases desse estudo.

Conforme já evidenciado, o primeiro momento reporta ao início do século XX, mais precisamente para a década de 1930, e versava no diálogo acerca do sincretismo esboçado a partir de uma perspectiva evolucionista e racista, ainda sob as discussões póstumas elaboradas pelo médico Nina Rodrigues (18621906). De acordo com a literatura daquela época, essas discussões careciam de um melhor apuro acerca da Antropologia, pois Nina Rodrigues abordava que a manutenção da afro-religião se dava em virtude da

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inferioridade do negro. Essas discussões travadas respondiam à própria inabilidade da academia em compreender o Outro e demonstrava apenas a interpretação de um falso cientificismo.

Posteriormente, a segunda fase ainda tentava compreender a afro-religião como algo exótico e estranho em relação à cultura religiosa católica. Contudo, nesse período a academia já buscavam interpretações mais harmoniosas para apontar que houve um processo de aculturação, embora evidenciando os percalços do processo da escravidão brasileira. De acordo com Ferretti (1995), surgem novos autores brasileiros dispostos a desvendar o enigma do processo sincrético brasileiro, assim como aflui uma nova corrente de antropólogos norte-americanos dispostos a fazer campo de pesquisa no Nordeste. Ferreti (1995) enfatiza que ocorreram, no período, lançamentos de livros e novas interpretações, sobretudo querendo desvendar o Outro a partir de pesquisas mais robustas33.

A terceira fase diria respeito aos autores que procuravam evidenciar o ponto de “cisão” dentro do sincretismo religioso brasileiro, marcadamente ainda no campo afro-religioso, tendo Roger Bastide como o seu principal expoente. Melhor explicando a teoria, procuravam evidenciar em que ponto poderia haver a separação entre ser católico e ser do candomblé, pois segundo Ferreti (1995), na maioria das vezes, essas religiões divergentes e os seus adeptos poderiam se comunicar confirmando o aludido caráter sincrético.

Já a quarta fase caminhava justamente em direção contrária, pois se as outras correntes buscavam demonstrar evidências de aculturação, assim como pontos de cisão e contatos, a partir dos anos 1970 e 1980 as religiões afros vão buscar a pureza perdida e o retorno à África, que seria precisamente a própria negação do sincretismo e a elaboração teórica de uma construção mais ortodoxa. Segundo Ferreti (1995, p. 68) “[...] os antropólogos tornam-se avalistas da ortodoxia e personagens da hegemonia nagô”. Nesse cenário, era a academia que atestava qual casa religiosa seria a mais pura em relação às tradições africanas e, isto posto, a menos sincrética de misturas com outras religiões.

A quinta fase do sincretismo religioso brasileiro seria a síntese e o amadurecimento desses diálogos, buscando se distanciar das discussões do passado sem cientificidade, bem como fazendo um balanço crítico da busca da pureza ideal. Dialogando com Ferreti (1995), também apontamos novas ramificações no cenário religioso, colocando, como já era esperado, outras religiões, assim como “redescobrindo” o próprio sincretismo incluso no catolicismo brasileiro. Fechando, destaca-se a transnacionalidade religiosa34 e a emergência dos neopentecostais35. Contudo, das três raízes formativas nacionais, ainda percebemos um distanciamento e a pouca apropriação da herança dos cultos indígenas.

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odemos ver como ocorreu o diálogo do conceito de sincretismo religioso brasileiro, principalmente no seu processo de negação, ocultação intencional ou esvanecimento conceitual por considerar ser uma tipologia teórica do passado. Contudo, podemos colocar em destaque o atual momento em que é realçada a multiplicidade de uso do sincretismo – desfocando dos outros apontamentos ideológicos de dominância durante o processo de formação do Estado nacional, e igualmente, da questão da pureza ritual idealizada. Assim sendo, podemos evidenciar pontos positivos, uma vez que pressuSegundo Ferreti (1995), um dos autores internacionais mais destacados no período foi Merville Herkovitz, tendo uma produção extremamente relevante ao estudar as relações religiosas no Brasil.

34 Momento em que ocorre a influência ou a penetração de matrizes religiosas brasileiras em outros países.

35 O termo “neopentecostalismo” designa a denominada “terceira onda” do movimento pentecostal. É um movimento dentro do cristianismo evangélico que surgiu em meados dos anos 1970 e 1980, evoluindo com forte expressão no cenário religioso a partir dos anos 2000.

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pomos que todas as religiões possuem pontos sincréticos, haja vista que o diálogo religioso sempre esteve presente na história da humanidade e, portanto, não pode ser ocultado.

O que colocamos em realce para o estudo é justamente compreender a posição de alteridade do Outro; dito de outra forma, a posição de cada religião na sociedade e o respeito que devemos ter com as outras manifestações que lidam com o campo do sagrado. Verificamos, por exemplo, que alguns setores da própria Igreja Católica tentam buscar um caminho convergente e dialogam com a teologia africana, almejando abranger parcelas do movimento negro e pregando um ecumenismo via Pastoral Negra e “missas afros”. Também verificamos que há uma ressignificação e/ou apropriação de expressões culturais pela Igreja Evangélica com a denominação “gospel”. Não obstante alguns avanços, apontamos ainda a existência latente de tensões como um reflexo da permanência histórica da perseguição e da violência contra as religiões de matriz africana.

A partir dessas discussões, refletimos sobre o sincretismo na nossa própria vida cotidiana, uma vez que somos fruto desse processo histórico formativo. Desse modo, percebemos que temos amigos, colegas e conhecidos de várias matrizes religiosas. Portanto, assim como recebemos reflexos de várias culturas e etnias, também incorporamos influências de distintos cultos; o que inclusive podemos observar nos nossos próprios modos de fazer festa ou de realizar comemorações. Exemplificamos que o Carnaval é um reflexo do próprio sincretismo religioso, pois: a) remonta à Antiguidade; b) foi apropriado pelo catolicismo, visto que antecede a quaresma; c) mais adiante, foi adaptado pela cultura portuguesa e trazido para o Brasil; e, finalmente, d) integrou-se à cultura negra com forte expressão no samba.

De igual modo, podemos visualizar o uso sincrético religioso na nossa própria alimentação, uma vez que vários alimentos rituais se transformaram em refeições de muitas famílias. Por exemplo, o milho, na sua origem, era um alimento sagrado para os indígenas, mas agora está na mesa de todos, bem como algumas comidas diretamente oriundas da África e servidas em rituais para orixás que, atualmente, se transformaram em iguarias nas esquinas do Brasil, como é o caso do acarajé. Em síntese, são vários os alimentos que podemos comprovar o uso entrecruzado do sincretismo religioso na nossa vida cotidiana, evidenciando o quanto eles estão presentes e são importantes, mesmo que não saibamos as origens étnicas rituais de determinadas comidas.

ARAÚJO, Silvia Maria de et al. Sociologia: volume único: ensino médio. São Paulo: Ed. Scipione. 2016.

DICIONÁRIO. https://www.dicio.com.br/sincretismo/.

Acesso em: 14 jan. 2022.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 9. ed. 2 v. São Paulo: Editora Globo, 1991.

FERRETTI, Sergio. Repensando o sincretismo: estudo sobre a Casa das Minas.

São Paulo: Edusp; São Luís: FAPEMA, 1995.

FERRETI, Sergio. Sincretismo afro-brasileiro e resistência cultural. Horizontes Antropológicos. ano 4, n. 8, p. 182-198, 1998.

RIO, João do. As religiões no Rio. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

SANCHIS, Pierre. As tramas sincréticas da história. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 28, p. 123-130, 1995.

SEYFERTH, Giralda. Imigração, colonização e identidade étnica (notas sobre a emergência da etnicidade em grupos de origem europeia no sul do Brasil). Revista de Antropologia. v. 29, p. 57-91, 1986.

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AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. São Paulo: Claro Enigma, 2011.

ALVES, Rubem. O que é religião. (Coleção Primeiros Passos). São Paulo: Abril cultural brasiliense Loyola, 198

1. Convidamos vocês a refletirem sobre sincretismo religioso brasileiro por meio do cinema, principalmente nos documentários e filmes que foram fartos em tentar explicar a relação da diversidade religiosa no Brasil. No filme O pagador de promessas (1962), por exemplo, há os conflitos e o choque entre a Igreja Católica e o personagem principal que almeja pagar uma promessa realizada num terreiro de candomblé. A partir da visualização da obra, questionamos: a) como se dá os pontos de contato/cruzamento entre as figuras religiosas do candomblé e da Igreja Católica? b) de que forma o conflito fica latente e quem está evidenciado na história como figura dominante e subalterna?

Responda as questões acima dialogando, sobretudo, com as cinco fases do sincretismo (FERRETTI, 1995).

2. Na perspectiva das discussões suscitadas, também estimulamos as pesquisas na internet sobre a alimentação religiosa e a apropriação dessas comidas na nossa vida cotidiana. Exemplificando, podemos enfocar as influências das comidas oriundas dos festejos religiosos católicos, dos rituais indígenas ou das oferendas para os orixás do candomblé, verificando, assim, como se estabeleceram as influências na própria cultura alimentar brasileira, deslocando do seu caráter sagrado e trazendo para a nossa vida diária.

Sugerimos o preenchimento do quadro a seguir de acordo com o exemplo: Alimento Gefilte Fish Peixe recheado

Etnia/religião/origem Judaica – Leste europeu

Significado religioso Gefilte fish é considerado um prato de feriados, consumido no sábado, no Sêder (jantar cerimonial) de Pessach (Páscoa judaica) e no Rosh Hashaná (Ano Novo judaico)

Indígena Afro-religiosa Católica

O PAGADOR de Promessas. Direção de Anselmo Duarte. Salvador: Cinedistri, 1962. (91min).

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AUTORES E AUTORAS Alberto Alvadia Filho é doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor EBTT de Sociologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro, campus Pinheiral. Membro da gestão da Unidade Regional do Rio de Janeiro da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (2020-2022). E-mail: alberto.filho@ifrj.edu.br

Alexandre Barbosa Fraga é doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro e da Faculdade de Educação da UFRJ. E-mail: alexbfraga@yahoo.com.br

Amanda Gomes Pereira é doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora de Sociologia no curso de Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus São Bernardo. E-mail: agpereiramg@gmail.com

Ana Caroline Amorim Oliveira é doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade-Pgcult (UFMA). E-mail: oliveira.ana@ufma.br

Ana Cláudia Gomes de Souza é doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia. Professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. E-mail: anacla@unilab.edu.br.

Anderson Vicente da Silva é doutor em Antropologia. Professor de Metodologia do Ensino em Ciências Sociais da Universidade de Pernambuco. E-mail: anderson.silva@upe.br

Andreia Dos Santos é Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), mestre e doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). E-mail: andreiasantos@pucminas.br

Caio Tavares dos Santos é graduado em Ciências Sociais na modalidade licenciatura pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Atualmente é integrante do grupo de pesquisa “Ensino dos conhecimentos das Ciências Sociais” (ConsCiencias-Sociais), da UFAL, e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFAL. Além disso, atua como docente na disciplina de Sociologia nas escolas vinculadas à Secretaria da Educação do Estado do Ceará. E-mail: caiotavares_@hotmail.com

Carine de Miranda Santos é cientista social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Professora de Sociologia pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia. E-mail: carine.mir123@gmail.com

César Alessandro Sagrillo Figueiredo é docente do curso de licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal do Norte do Tocantins, campus Tocantinópolis. Doutor em Ciências Políticas pela Universidade CONCEITOS E CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DE ANTROPOLOGIA

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Federal do Rio Grande do Sul. Realizou estágio pós-doutoral em Letras: Ensino de Língua e Literatura, na Universidade Federal do Tocantins. E-mail: cesarpolitika@gmail.com

Cristiano das Neves Bodart é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Docente do Centro de Educação e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas. Coordenador do Grupo de Pesquisa ConsCiências-Sociais. Fundador e editor do Blog Café com Sociologia. E-mail: cristianobodart@gmail.com

Jonas Henrique de Oliveira é professor adjunto IV da Universidade Estadual do Piauí (licenciatura plena em Ciências Sociais). Graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia) e doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: jonashenrique@phb.uespi.br

Marcelo da Silva Araujo é doutor em Antropologia/UFF. Docente do Colégio Pedro II entre 2008 e 2021.

Atualmente, é docente do Instituto Federal da Paraíba. E-mail: marc.araujo.rj@gmail.com

Marcos Rangel de Sousa Costa é licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). É membro do Grupo de Pesquisa ConsCiências Sociais da UFAL. E-mail: mrangel.ti@gmail.com Radamés de Mesquita Rogério é professor adjunto da Universidade Estadual do Piauí (licenciatura plena em Ciências Sociais). Doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Autor de “O 2º tempo do jogador de futebol: um olhar sociológico” (Editora Café com Sociologia, 2021) E-mail: radames@phb.uespi.br

Roberta dos Reis Neuhold é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Sociologia pela mesma instituição. Graduada em Ciências Sociais pela USP e em Pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos. Professora e pesquisadora da área de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Educação Básica e Profissional do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul. E-mail: roberta.neuhold@osorio.ifrs.edu.br

Rosana da Silva Pereira é professora de Sociologia. Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Mestranda em Educação: Conhecimento e Inclusão Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: rosanapereira@ufmg.br.

Simone Mestre é graduada em Ciências Sociais pela Fundação Universidade Federal de Rondônia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora substituta de Ciências Sociais na Universidade Federal de Alfenas. E-mail: simoneoliveiramestre@gmail.com

Walace Ferreira é doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da UERJ. Membro da Comissão de Formação Docente da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais Nacional e da gestão da Unidade Regional do Rio de Janeiro (2020-2022). E-mail: walaceuerj@yahoo.com.br

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