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Considerações sobre a Ética da Psicanálise de Sabina Spielrein 543
35. Ambiente Moscou
Renata Udler Cromberg
Sabina Spielrein de volta à U.R.S.S.
Sabina Spielrein deixou Genebra rumo a Moscou, em 1923, após entusiásticas cartas de seu pai argumentando que ela poderia desenvolver suas pesquisas e trabalhar sob o novo regime bolchevique sob o comando de Lenin, trazendo sua contribuição. Seu marido Pavel queria que ela se decidisse se voltariam a ficar juntos ou se separariam definitivamente. Embora Freud inicialmente tenha sugerido que ela fosse a Berlim, onde havia sido fundada uma nova clínica de psicanálise para crianças, ela acabou optando por Moscou por razões afetivas e pessoais e porque a sociedade psicanalítica local estava florescendo sob a direção de Wulff1 e
1 Moshe Wulff (1878-1971) psiquiatra e psicanalista israelense, foi o primeiro médico a praticar psicanálise na Rússia, onde nasceu, praticou psicanálise, lançou a primeira revista em 1909, Psychotherapia, e iniciou a tradução das obras de Freud. Fundou junto a outros a Associação Psicanalítica Russa em 1923. Quando a radicalização do regime comunista levou à extinção do movimento psicanalítico, ele foi obrigado a emigrar para Berlim e, depois da ascensão do
36. “Eu anseio por me reunir a todos vocês...”: uma carta de Sabina Spielrein-Scheftel (Rostov-sobre-o-Don) para Max Eitingon de 24/08/19271
Sabine Richebächer, Zurique, Suíça2
Atualmente, a vida da psicanalista e médica russa judia Sabina Spielrein (1885-1942) já foi amplamente estudada. Além de documentos oficiais de repartições e órgãos públicos, universidades e semelhantes, há principalmente inúmeros diários que ela já começou a escrever no outono de 1896, ainda menina em idade
1 A carta, que é impressa e anotada na sequência deste texto contextualizador, foi descoberta por Michael Schröter no espólio de Max Eitingon (volume 2972/9) e cedida gentilmente à autora para edição. Primeira publicação em:
Luzifer-Amor. Zeitschrift zur Geschichte der Psychoanalyse, ano 21, caderno 42, 2008, pp. 65-74. 2 Nascida em Dusseldorf, Sabine Richebächer foi responsável durante muitos anos pela seção Novidades de Psicologia do jornal Neue Zürcher Zeitung. Em 1999, foi convidada a dar uma palestra sobre Sabina Spielrein. O tema mostrou-se tão interessante que logo surgiram outras palestras e vários artigos sobre o assunto. Uma vez que nos artigos muitas perguntas sobre a vida de
Spielrein ficaram sem resposta, a autora acabou se aprofundando nas pesquisas em inúmeras fontes primárias e arquivos que resultaram numa biografia pioneira, publicada em alemão em 2005 e publicada em português pela editora
Civilização Brasileira em 2012, como Sabina Spielrein: de Jung a Freud. Atualmente mora em Zurique, onde trabalha como escritora e psicanalista.
37. Algumas pequenas comunicações da vida infantil1
Sabina Spielrein
I. Negação do desejo com sublimação incipiente
A menina Olietschka de 2 anos e meio não podia comer chocolate por atenção à sua saúde. Para que a criança aprendesse desde cedo a controlar seus desejos, a mãe fez questão de que as outras pessoas não deixassem de comer a iguaria proibida na presença da criança. Olietschka submeteu-se; não pediu mais chocolate para si, mas, em contrapartida, queria ter sempre sua pequena mão junto ao chocolate no bolso de sua mãe (pois a mãe costumava ter chocolate no bolso de seu sobretudo). Ademais, a pequena não queria seu chocolate para comer, mas apenas para brincar, momento em que amassava e picava o objeto invejado. O papel que embalava o chocolate a menina tratava com grande carinho e gostava especialmente de brincar com ele.
1 Spielrein, S. Einige kleine Mitteilungen aus dem Kinderleben Sabine Spielrein.
In Sämtliche Schriften. Freiburg, Edition Kore, 2002, pp. 311-17. Tradução de
Renata Dias Mundt.
38. Sobre a palestra do dr. Skalkovsky1
Sabina Spielrein
Na prática, o palestrante2 aplica para o tratamento de pacientes o mesmo método empregado por Freud. Como todo freudiano, o palestrante recomenda que primeiro se dissequem as vivências
1 Tradução do alemão (Zum Vortrag von dr. Skal’kovskij [Tradução de M.
Deppermann]. In Spielrein, S. [1987] Sämtliche Schriften. Gieben: Psychosozial-Verlag/Edition Kore, 2002, pp. 335-44) realizada por Renata Dias Mundt com a colaboração do cotejamento com o texto russo original realizado por
Paulo Sérgio de Souza Jr. Esse texto integrou o volume Psicanálise e os lestes (São Paulo, Annablume, 2017), organizado por ele. A primeira publicação do original se deu em Questões de psicologia social, v. 1: Anais do 1º Encontro de Psiquiatras e Neuropatologistas do Cáucaso Setentrional]. Rostov-sobre-o-Don: Secretaria da Saúde do Cáucaso Setentrional; Associação dos Institutos de Pesquisa Científica, 1929, pp. 95-7. Na edição russa está escrito: “Da autoria de Sabina Spielrein, este artigo é, de fato, a única publicação conhecida preparada por ela em língua russa. O texto é reproduzido aqui com suas peculiaridades quanto ao uso de nomes próprios, à terminologia psicanalítica e à ortografia do original”. 2 Teoria da homofunção e método de reeducação homofuncional da personalidade, Questões de psicologia social, v. 1. Rostov-sobre-o-Don: Secretaria da
Saúde do Cáucaso Setentrional; Associação dos Institutos de Pesquisa Científica, 1929, pp. 88-92.
39. Desenhos infantis de olhos abertos e fechados1
Sabina Spielrein
Estudos sobre representações cinestésicas2 subliminares
Antes de adentrarmos a investigação da influência de experiências cinestésicas sobre a estrutura de nosso pensamento, eu gostaria de apresentar um pequeno panorama das considerações até agora convencionais a respeito das formas de pensamento. Para tanto, pretendo me ater à terminologia psicológica corrente, apesar de ela não esgotar todas as possibilidades. Ela é, contudo, em minha opinião, no mínimo mais adequada do que a terminologia “reflexológica”, proveniente da escola reflexológica fundada por Pavlov e Bekhterev.
1 Spielrein, S. Kinderzeichnungen bei offenen und geschlossenen Augen. In
Sämtliche Schriften. Freiburg, Edition Kore, 2002, pp. 345-83. Tradução de Renata Dias Mundt. 2 Cinestesia nomeia a percepção de movimento, peso, resistência e posição do corpo, provocado por estímulos do próprio organismo.
40. Um arco histórico da psicanálise na Rússia1
Renata Udler Cromberg
Em 1979, o ressurgimento das cinzas da psicanálise na URSS pode ser comprovado pela realização do Primeiro Simpósio Internacional sobre o Inconsciente, com mais de mil e quatrocentos participantes. Mas foi apenas em 1987, a partir da Glasnost (a abertura cultural) e da Perestroika (o programa político de reestruturação), promovidos pelo líder soviético Mikhail Gorbachev, que esse campo de saber passou a ser legitimado novamente e o acesso a documentos que evidenciaram a ascensão e a queda da psicanálise no período soviético foi enfim liberado. Isso facilitou as pesquisas sobre a presença e a atuação profissional de Sabina Spielrein na URSS realizadas por vários pesquisadores, na medida em que a liberação dos arquivos estatais, sobretudo do tenebroso período stalinista, se deu paulatinamente.
Em 1927, o crucial momento de controvérsias e luta pelo qual passava a psicanálise na recém-criada União Socialista das
1 Versão modificada do ensaio publicado em Souza Jr., P. S. (org.). Psicanálise e os lestes. São Paulo, Annablume, 1917.
Renata Udler Cromberg
Sabina Spielrein foi a primeira psicanalista de crianças na história da psicanálise e a primeira a escrever artigos sobre a psique infantil baseados em observações e tratamentos de crianças. O artigo “Contribuições para o conhecimento da psique infantil” (1912) analisa o surgimento dos medos infantis, o sofrimento sintomático, relacionando-o à curiosidade sexual e às fantasias e teorias que esta gera, bem como às representações sexuais inconscientes e às raízes de angústia que suscitam, além de trazer uma rica ilustração da onipotência infantil. Demonstra sutilmente que o interesse pelo trabalho científico e intelectual é derivado da curiosidade sexual. Ela o faz a exemplo de três crianças: uma menina, ela mesma em suas recordações infantis, e dois meninos, provavelmente pacientes ocasionais em Berlim. Antes dessa obra, apenas Freud, com o caso do pequeno Hans, e Jung, com o caso da pequena Anna, haviam tomado essa iniciativa. Este texto colocou Sabina Spielrein no lugar de pioneira da análise com crianças, ainda que ela mesma, em um artigo de 1927, tenha citado Hermine Hug–Helmuth (1871-1924), a terceira mulher a se filiar à Sociedade Psicanalítica
42. A origem da linguagem e do pensamento: Spielrein, Piaget e Vygotsky1
Renata Udler Cromberg
Nós, humanos, falamos. E falamos em inúmeras línguas, dialetos e sotaques. Apoiada nos trabalhos de Freud, Sabina Spielrein foi pioneira ao refletir sobre a origem da linguagem e da noção de tempo na criança nos textos de Haia e Genebra, nesse segundo momento de seu devir psicanalista com crianças. Ela foi também a primeira psicanalista a se interessar intensamente pela linguagem e seus elos com o pensamento. Assim, ela esteve no inconsciente literário e criativo e influenciou as futuras produções de outros dois pensadores pioneiros sobre a origem da linguagem e do pensamento infantil: Jean Piaget e Lev Vygotsky. Com Piaget, entre 1921 e 1923, apesar de seguirem caminhos diferentes, houve um percurso de trocas e reciprocidades, um projeto compartilhado não realizado de elaborar uma teoria dos símbolos, amizade e simpatias mútuas, paralelismos e semelhanças teóricas, mas também diversidades
1 Dedico este capítulo a Zelia Ramozzi-Chiarottino, cujas geniais aulas sobre linguagem e pensamento segundo Jean Piaget, ainda pouco compreensíveis no terceiro ano da Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) (1974), deixaram um enigma que este capítulo tentou resolver.
43. Considerações sobre a teoria sobre a formação do símbolo de Sabina Spielrein
Renata Udler Cromberg
O terceiro momento da trajetória de pioneira da psicanálise com crianças se dá entre 1923 e 1931 na União Soviética. O seu último artigo publicado na Imago, em 1931, chama-se “Desenhos infantis de olhos abertos e fechados. Estudo sobre as representações cinestésicas subliminares”. Ele sequer foi publicado originalmente em russo, nessa época de construção da crítica e proibição da psicanálise. Podemos nos perguntar por que seu pai insistiu em traduzi-lo em uma versão mais extensa e outra mais resumida, tornando-o o último artigo de psicanálise a sair do território russo por quase sessenta anos.
Este capítulo contém a elaboração final das reflexões de Spielrein sobre a origem do pensamento e do símbolo e permite, a posteriori, retomar nas etapas anteriores de sua elaboração uma possível teoria sobre a formação do símbolo que ela nunca escreveu como tal, apesar de anunciá-la desde 1920. É verdade, como vimos Delefosse e Delefosse afirmarem no capítulo anterior, que sua pesquisa era clínica e empírica, mais do que formalizada, mas talvez essa escolha metodológica seja inspirada em suas próprias
44. Considerações sobre a Ética da Psicanálise de Sabina Spielrein
Renata Udler Cromberg
Em março de 1914, Spielrein apresentou uma conferência sobre Ética e Psicanálise na Sociedade Psicanalítica de Berlim, em meio a um clima tenso de debate sobre as ideias de Jung que se estendeu por várias sessões e terminou com o aniquilamento científico dele no campo psicanalítico. Ela certamente enviou a conferência para Jung, que elogiou sua coragem em uma anotação encontrada atrás de uma carta sua devolvida por ele − conforme ela lhe pedira, para que pudesse estar de posse de suas reflexões, para seu processo de construção de pensamento. O grupo de Zurique se retirou da Sociedade Psicanalítica Internacional em 10 de julho de 1914. Podemos ter uma ideia do clima tenso pela enumeração das palestras do primeiro semestre de 1914, tal como aparecem na correspondência sobre as atividades científicas das sociedades pertencentes à Associação Psicanalítica Internacional no número de 1914 da Internationale Zeitschrift für Ärtzliche Psychoanalyse, tal qual aparece no Capítulo 2 deste volume.1 Essa conferência,
1 Richebächer, S. Sabina Spielrein de Jung a Freud. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2012, p. 241.
Se a arqueologia foi alçada ao estatuto de método por Foucault quando se propôs a recuperar formas esquecidas de construção da verdade, cabe falar de uma arqueologia do apagamento quando verdades históricas sofrem um soterramento intencional. Quais as razões do soterramento de uma obra essencial e pioneira como a de Sabina Spielrein? Essa pergunta está na origem desta trilogia ímpar, fruto da paixão sustentada de Renata Udler Cromberg por desfazer esse apagamento perturbador, pois realizado pela própria comunidade psicanalítica. Seu cuidado na garimpagem, na tradução e na análise dos textos e contextos esquecidos de Sabina Spielrein marca este segundo volume com o entusiasmo contagiante da busca da verdade.
– Nelson da Silva Junior
PSICANÁLISE série

PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA Coord. Flávio Ferraz
