Por que o divã?

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Por que o divã? Perspectivas de escuta e a poética da psicanálise

© 2023 Lucas Krüger

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenação editorial Andressa Lira

Editora Artes & Ecos.

Editor Lucas Krüger

Preparação e revisão Andréa Ilha e Mauricio Wajciekowski

Diagramação Luísa Zardo

Capa Lucas Krüger

NOTA EDITORIAL

PREFÁCIO O divã imprevisível — por Daniel Kupermann

ABERTURA

PARTE I — Perspectivas de escuta

1. O divã-reminiscência de Sigmund Freud

2. O divã, a criança que vive no adulto e as ousadias técnicas de Sándor Ferenczi

Artes & Ecos contato@arteseecos.com.br www.arteseecos.com.br

3. O divã-corpo de Donald Woods Winnicott

4. O divã-pele de Didier Anzieu

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4º andar

04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pelas Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Krüger, Lucas

Por que o divã? : perspectivas de escuta e a poética da psicanálise / Lucas Krüger. – 1. ed. - São Paulo : Blucher ; Artes & Ecos, 2023.

352 p.

Bibliografia

ISBN 978-65-5506-735-4

1. Psicanálise 2. Escuta psicanalítica I.. Título

23-1802

CDD 150.195

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

5. O divã de André Green — o modelo do sonho, outras contribuições e equívocos

6. Thomas Ogden e a privacidade no divã

7. Christopher Bollas e o divã evocativo

8. Um divã distante em Jacques Lacan?

9. O divã em latência de René Roussillon

10. O processo criativo do analista e o divã para Melanie Klein

11. O divã embrionário de Wilfred Bion

12. O divã dramatúrgico e neuropsíquico de James Grotstein

11 13 21 29 31 39 47 59 63 83 95 111 121 133 139 149

13. O divã como auxiliar a um “roteiro fílmico” de John Munder Ross

14. Outros autores e as diversas formas de pensar o trabalho psicanalítico a partir do divã

15. Breves comentários finais

PARTE II — A poética da

psicanálise

1. Introdução — O self teórico-clínico de um analista em diálogo com outros

2. Algumas considerações sobre a história e a etimologia da palavra divã

3. O brincar como essência do processo psicanalítico

3.1 A criança-poeta de Freud e o jogo das nuvens de Goethe

3.2 As nuvens, os poetas e o criacionismo de Vicente Huidobro

3.3 O diwan enquanto nuvem — a re-forma em análise

4. As regiões psíquicas e o estado de nuvem

5. A nuvem, a condensação e o fazer poético: reflexões sobre o Dichter, a Dichtung e a Verdichtung

6. A roupagem simbólica e as suas apresentações na clínica a partir do estado de nuvem

6.1 Brevíssimo prelúdio

6.2 Reflexões essenciais sobre a Verkleidung (disfarce/roupagem) e a Darstellung (apresentação)

6.3 A roupagem simbólica: uma conceitualização

6.4 A tecelagem psíquica — um caminho para pensar os papéis transferenciais

7. O divã/diwan e a metáfora da nuvem na clínica

7.1 Retomando a proposta de regiões psíquicas para pensarmos a clínica

7.2 Os mecanismos psíquicos de defesa e as regiões internas predominantemente neuróticas

7.3 A importância do divã para a clínica além da neurose

7.4 A sala de atendimento como um todo e sua relação com os processos inconscientes

7.5 Considerações a respeito da análise de crianças — o divã enquanto cama, barco e castelo

7.6 O compartilhamento da poesia interna singular e a apresentação da roupagem simbólica — penúltimas palavras

ÚLTIMAS PALAVRAS

Provocações a respeito dos atendimentos remotos online: A necessidade do divã ou um substituto que não o olhar

EXTRAS Poema “Criação”
REFERÊNCIAS 157 163 203 205 207 211 215 215 220 225 229 239 245 245 246 251 255 261 261 263 269 289 296 299 309 315 317 319 333

1. O divã-reminiscência de Sigmund Freud

Não é possível discutirmos o divã, na psicanálise, sem começarmos por refletir sobre o uso que Freud fez desse instrumento. Apesar de o divã ter se tornado essencial em sua prática psicanalítica e ter naturalmente sido incorporado por todos os psicanalistas desde então, são raros os escritos de Freud que o mencionam. As melhores ideias nem sempre surgem de maneira elaborada, e o uso do divã corrobora essa afirmação, já que não foi um recurso inicialmente pensado para a prática psicanalítica, mas, sim, um “remanescente do método hipnótico”,1 como prefere sintetizar Freud. De fato, seu divã lhe foi dado de presente por uma paciente (Madame Benvenisti), no início dos anos 1890, segundo o historiador e biógrafo Peter Gay, a partir de comentários realizados por Marie Bonaparte — ainda antes de a palavra psicanálise aparecer pela primeira vez apenas em 1896, no escrito A hereditariedade e a etiologia das neuroses. Segundo Gay,2 o divã de Freud, por si só, constituía um “espetáculo”:3

1 Freud, (1913) 1996e, p. 149.

2 Gay, 1989, p. 168.

3 Um entendimento do que seria da ordem desse mencionado “espetáculo” estaria ligado ao encenar e a uma “peça” do Inconsciente, que será mais bem desenvolvida na Parte II deste livro.

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Se, na vasta obra de Freud, discutir o uso do divã não era frequente, era menos ainda em seus contemporâneos. Ferenczi, sempre ousado em experimentações da técnica psicanalítica, traz algumas passagens capazes de abrir caminhos para pensarmos sobre seu uso (ou não uso). Apesar de o divã acompanhar toda a sua prática clínica, e Ferenczi jamais questionar sua importância, veremos como, por vezes, ele “desviou” de seu uso. Compilei seus esparsos apontamentos para os problematizarmos, a fim de tentar encontrar a essência de seu pensamento acerca da função do divã e da análise como um todo.

Em Princípio de relaxamento e neocatarse, 1 Ferenczi se diz, ainda que não seja verdade, um “transgressor”2 dos “conselhos técnicos” de Freud. Um dos motivos de tal “transgressão” seria ocasionalmente permitir que algum analisando se levantasse, deambulasse por sua sala e abdicasse do divã, quando sentisse necessidade de dizer algo olhando em seus olhos. Essa consideração, dentre outras que serão vistas, pode ser

1 Ferenczi, (1930) 1992a.

2 Ferenczi, (1930) 1992a, p. 58.

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2. O divã, a criança que vive no adulto e as ousadias técnicas de Sándor Ferenczi

à vontade para ser como é, sem se sentir submetido ao outro. Caso o divã venha a ocupar o lugar de um objeto de poder do analista, certamente Ferenczi abdicaria dele, visto que sua luta sempre foi contra totalitarismos e abusos de poder, o que evidencia que o uso do divã não deve jamais servir a esses propósitos. Sabemos, porém, que Ferenczi se dedicou a acolher e a escutar, no divã, os mais variados clínicos, sem, em nenhum momento, teorizar algum problema quanto ao seu uso.

Portanto, mesmo que tenham sido apontados exemplos fora de um contexto mais “clássico”, é de importância ressaltar que a obra de Ferenczi não propõe dispositivos-modelo substitutivos ao uso do divã. Propõe o acolhimento e a expansão de novas possibilidades (caso o divã venha a ocupar um papel de poder, de submissão do analisando em relação ao analista, e que o coloque à mercê de um possível tratamento frio por parte deste). Propõe que o analista acolha a criança que vive no adulto, assim, o uso (ou não) do divã também deve contemplar esse aspecto.22

3. O divã-corpo

Embora não tenha dedicado nenhum escrito específico sobre o tema, a contribuição de Winnicott, em relação ao divã, é profícua. Comecemos pelos textos O ódio na contratransferência (1947) e Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico (1954), nos quais tece considerações importantes. Comentarei após transcrever os significativos trechos:

O divã e as almofadas estão lá para que o paciente os use. Aparecerão em pensamentos e sonhos, e nesse caso representarão o corpo do analista, seus seios, braços, mãos etc., numa infinita variedade de formas. Na medida em que o paciente está regredido (por um momento ou por uma hora, ou por um longo período de tempo) o divã é o analista, os travesseiros são seios, o analista é a mãe em certa época do passado. Em situações extremas não se pode mais dizer que o divã representa o analista.1

Para o neurótico, o divã, o calor e o conforto podem simbolizar o amor da mãe. Para o psicótico seria mais

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22 A proposta de trabalhar com a criança que vive no adulto é central na Parte II do livro. 1 Winnicott, (1954) 2000a, p. 385. de Donald Woods Winnicott

4. O divã-pele de Didier Anzieu

Didier Anzieu é conhecido por suas reflexões acerca do eu/não-eu e dos limites entre o externo e o interno. Ele teoriza a respeito dos limites do eu-corpo e, partir de sua metáfora conceitual de eu-pele, ocupa-se a pensar em como esses limites cumprem funções na constituição e na contenção de um psiquismo. Ainda que breves, suas contribuições vêm a somar com o que vínhamos discutindo a partir de Winnicott, ao mesmo tempo que criam uma espécie de “ponte” para questões que serão levantadas a partir do capítulo posterior.

Na concepção de Anzieu, a pele pode ser encarada como um envelope psíquico, um envelope protetor do mundo interno. O autor estabeleceu sua metáfora conceitual — como ele prefere chamar — a partir da escuta de sofrimentos advindos de feridas narcísicas, intimamente ligadas à “fraqueza ou às falhas do envelope psíquico, sensação difusa de mal-estar, sentimento de não habitar sua vida, de ver de fora funcionar seu corpo e seu pensamento, de ser o espectador de alguma coisa que é e que não é sua própria existência.”1 Vejamos como seu pensamento incide no uso do divã.

1 Anzieu, 1989, p. 22.

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qualquer posição espacial que o ajude a comunicar o que ele precisa dizer”.6

Com isso, sinalizava, também, permitir sessões conduzidas por chamada telefônica, já que alguns analisandos que sofreriam de ansiedades persecutórias (ou outros tipos de excessos que tomariam o seu psiquismo) se beneficiariam delas. Essa modalidade online não nos surpreenderia em 2023, mas, em 1986, surpreendeu o entrevistador Gilbert Tarrab.

Ademais, na mesma entrevista, Anzieu acaba por argumentar que analisandos mais prejudicados egoicamente necessitariam do olhar na sessão psicanalítica, o que concordaria com o pensamento de André Green, como será visto a seguir. Desse modo, ainda que parte do pensamento de Anzieu acerca do divã se conecte ao que foi exposto a partir de Winnicott, outra parte se conecta à necessidade do olhar defendida por Green. A respeito de sua proposta de “liberdade de escolha” do analisando (quanto ao uso do divã), deixo reverberar aqui uma questão, sem preocupação de responder precipitadamente: a preferência (consciente) do analisando deve ou não ser fazer parte do pensamento teórico-clínico do analista na hora de optar pelo uso (ou não) do divã?

André Green defende que o fundamento para o uso do divã estaria na metapsicologia freudiana, sobretudo em A Interpretação dos sonhos, 1 pois compreende o enquadre psicanalítico e, consequentemente, o uso do divã, de acordo com o modelo do sonho.

O pensamento de André Green, tanto a respeito da função do divã quanto de sua indicação em análise, está intrinsecamente apoiado na noção de enquadre. Green seria, talvez, o autor que mais se ateve a desenvolver a temática, a qual tem seu ponto alto no importante conceito de enquadre interno do analista.

Portanto, torna-se importante que, antes de nos dedicarmos a pensar o divã propriamente dito, eu me atenha a apresentar, de forma resumida, sua conceitualização de enquadre, estojo matriz ativa, bem como a sua proposta de enquadre interno do analista — visto que corroboram suas posições —, passando, em seguida, a elucidar seu pensamento a respeito da função do divã a partir do modelo do sonho, para, na sequência, assinalar certo equívoco do autor no que concerne a seu apoio

1 Freud, (1900) 2019.

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6 71 Anzieu, 1990, p. 59.
5. O divã de André Green — o modelo do sonho, outras contribuições e equívocos

Thomas Ogden1 nos recorda que o uso do divã por Freud não foi fundamentado teoricamente para ser um facilitador à associação livre do analisando, ainda que saibamos que o seja.

Ogden realça que seu uso estava ligado, sim, ao fato de Freud não suportar estar sendo observado durante seu processo de escuta.2 Essa lembrança é relevante, pois o autor pretende ressaltar a necessidade de privacidade do analista enquanto está a realizar o seu ofício. Em seu entendimento, o analista precisa de privacidade para escutar, entregar-se à corrente de seus pensamentos inconscientes, e o contato visual entre o analista e o analisando prejudicaria sua escuta.

Nesse sentido, ao retomar Freud, Ogden salienta a importância do uso do divã não apenas para o analisando, mas também para o analista, pois acredita que o contato visual prejudicaria a privacidade da dupla e de sua relação como um todo. Apesar disso, sua concepção acerca do uso do divã

1 Ogden, 2013, p. 101-124.

2 “Não posso suportar ser encarado fixamente por outras pessoas durante oito horas (ou mais) por dia, visto que, enquanto estou escutando o paciente, também me entrego à corrente de meus pensamentos inconscientes”, afirma Freud, em Sobre o início do tratamento (1913). Ver capítulo “O divã-reminiscência de Sigmund Freud”.

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6. Thomas Ogden e a privacidade no divã

evocativo

Comecemos por articular o pensamento de Christopher Bollas acerca do divã, partindo do pressuposto de que, num momento primevo, o self e o objeto são experienciados como sendo a “mesma coisa”. A reflexão de Bollas sobre nosso tema certamente é influenciada pela teorização de Pontalis a respeito do sonho. Pontalis escreve:

Minha hipótese seria de que todo sonho, enquanto objeto na análise, faz referência ao corpo materno...Sonhar é, antes de mais nada, tentar manter a impossível união com a mãe, preservar uma totalidade indivisa, mover-se num espaço anterior ao tempo…É por isso que certos pacientes pedem implicitamente que não nos aproximemos demais de seus sonhos, que não toquemos e não trituremos o corpo do sonho, que não desarticulemos a “representação de coisa” em “representação de palavra”.1

A influência de Pontalis em Bollas, além de explícita em entrevistas, é notável quando Bollas escreve “quando o freudiano visa fragmentar o sonho e examiná-lo em partes,

1 Pontalis, 2005.

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7. Christopher Bollas e o divã

8. Um divã distante em Jacques Lacan?

Mesmo que não encontremos muitas colocações de Lacan que discutam o estatuto do divã, é importante tentar, de alguma maneira, evocar qual o papel dele em sua prática clínica, visto a importância do autor para a comunidade psicanalítica. É necessário começar este capítulo advertindo que se trata, em parte, de reflexões de Lacan, mas que também traz elucubrações a partir de algumas contribuições de outros autores. O capítulo se baseia em comentários de teóricos e de analisantes, mais até do que nas esparsas palavras de Lacan sobre o divã, ainda que haja um ou outro trecho para comentar. Após titubear sobre a inclusão ou não deste capítulo no livro, decido mantê-lo mais pelo que ele pode continuar a fomentar nossa discussão do que para tentar alcançar alguma suposta fidelidade ao pensamento do autor. Meu foco é refletir sobre modos de usar o divã, e tudo o que se segue é valoroso nesse sentido.

O divã não foi objeto de maior discussão por Lacan, mas, em 1976, em curto trecho, ele é apontado como um tipo de leito — e comparado ao leito de hospitais —,1 aludindo a um lugar onde repousa o sintomático. Antes, em 1955, menciona

111
1 Lacan, (1975-1976) 2007, p. 98

extremamente carinhoso. E essa surpresa não diminuiu a dor, mas fez outra coisa. A prova, agora, 40 anos depois, é que eu ainda conto esse gesto, eu ainda o tenho no rosto. É um gesto também… é um apelo à humanidade, qualquer coisa assim.”20

A fala de Suzanne Hommel nos mostra Lacan a realizar um gesto estético, uma intervenção no corpo da analisante, que nos levaria a pensar no capítulo “O divã, a criança que vive no adulto e as ousadias técnicas de Sándor Ferenczi”. Trata-se de um encenar que une corpo, palavra, e repetição de cena a uma transformação interna. O Lacan que vive dentro de Pontalis não é o mesmo que vive em Hommel. A julgar que Lacan foi até ela “como uma flecha”, poderia mesmo estar distante do divã da analisanda, visto que flechas, ao contrário de espadas, são armas de longa distância. O fato é que é mais interessante convivermos com visões antagônicas do que encontrar uma posição unívoca, absoluta e dogmática.21

É possível encontrarmos diversas reflexões clínicas acerca do enquadre e do divã na obra de René Roussillon,1 nas mais diversas modalidades psicanalíticas, incluindo as que não contemplam o consultório tradicional. Não caberia aqui adentrarmos em todos os meandros do pensamento clínico do autor, senão que tomar alguns pontos que nos ajudem a seguir. Atenho-me aqui apenas ao que concerne o divã e seu uso/não uso.

20 A transcrição aqui utilizada é a feita por Luciano Mattuella, no livro O corpo do analista (Mattuella, 2020).

21 Certamente, algum colega psicanalista mais identificado do que eu com a teorização lacaniana desenvolveria esse capítulo de modo totalmente diferente. Seria deveras interessante que algo fosse produzido nesse sentido.

A situação psicanalítica, o espaço “analisante”, aparentemente atualiza uma situação que “simboliza a simbolização”, como um dispositivo que contém uma teoria da simbolização “em ato”,... um dispositivo que força o funcionamento psíquico durante a sessão a encontrar o caminho de uma suspensão perceptiva e motora adequada para ativar a produção de representações que, pelo efeito de regras e enquadramentos, são coagidas a se transferirem para o aparelho da linguagem. O dispositivo divã-poltrona coloca a ausência, a ilusão perceptiva da ausência, no centro do processo que induz e provoca etc.

1 Alguns textos não estão sendo diretamente citados, no entanto, considero importante apontar quais são: Roussillon, 2010, p. 21-38; 2016, p. 230-245; 2018, p. 121-131; 2013, p. 257-276.

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9. O divã em latência de René Roussillon

10. O processo criativo do analista e o divã para Melanie Klein

Como não refletir minimamente sobre o papel do divã para Melanie Klein? Os materiais que temos para tanto são mais historiográficos do que oficialmente publicados, mas denotam que a criatividade e a visão de Klein são muito importantes para serem ignoradas. É buscando um melhor entendimento a respeito do processo criativo dos colegas psicanalistas que podemos chegar a novas ideias e proposições para manter a psicanálise viva.

Melanie Klein não se ocupou de escrever diretamente sobre o estatuto do divã, ainda que obviamente seu trabalho com crianças implique repensá-lo. Seus escritos acerca do tratamento de adultos não trazem alguma peculiaridade que possamos discutir quanto à sua função, ao menos não em sentido diferenciado do que já foi apresentado até aqui.

O fato é que o desenvolvimento de seu trabalho de análise com crianças está intrinsecamente ligado ao divã e à sua função. Quando começou seu trabalho na Psychoanalytische Poliklinik em Berlim, em 1921, Melanie Klein oferecia o divã e o método de associação livre às crianças,1 geralmente desde o primeiro dia, mostrando-se muito interessada pelo mundo

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1 Frank, (1999) 2009, p. 6.

11. O divã embrionário

de Wilfred Bion

Wilfred Bion é mais um dos psicanalistas a não discutir diretamente a função do divã, ainda que deixe alguns rastros para percorrermos. Suas ideias quanto ao divã são embrionárias, diversas, e ainda que não profundamente desenvolvidas teoricamente, são potenciais; por isso, tentarei tecer alguns comentários que possam contemplá-las. Exceto por um pequeno trecho do livro póstumo Cogitações, e outro de Transformações, 1 o material que apresentarei advém de seus seminários e supervisões coletivas, repletos de situações clínicas de Bion e de outrem.

Em seminário para Tavistock Clinic de 1978, Bion se pergunta, ao tentar colher informações clínicas importantes: por que um analisando poderia deitar-se na beirada do divã, ao invés de repousar confortavelmente no centro?2 Sem nos dar uma resposta direta, até mesmo se desculpando por sua imprecisão, responde sua própria pergunta em poucas palavras, dando a entender que os motivos de esse analisando se deitar na beirada do divã estariam relacionados à sua vida fetal e a todos os “detritos”, vestígios, da vida psíquica, de

1 Bion, 2005; (1965) 1991a.

2 Bion, (1978) 2005, p. 44.

139

12.

James. S. Grotstein se dedicou a pensar o uso do divã sob alguns ângulos complementares ao que vimos até aqui, sobretudo em seu texto Uma revisão sobre o uso do divã na psicanálise1 e no livro ... no entanto, ao mesmo tempo e em outro nível..., 2 que abarca o conteúdo do já citado texto, com algumas leves modificações e ampliações.

Comecemos por elucidar sua forma de indicar o divã aos analisandos para, posteriormente, compreender seu pensamento. Em um diálogo fictício e demonstrativo, que se daria após o período de avaliação, Grotstein comunicaria ao analisando:

Agora que concordamos com a sua entrada em análise, desejo apresentar a você como ela é conduzida. Um dos procedimentos é o uso do divã. Você tem alguma ideia ou sentimento acerca de seu uso? A justificativa para seu uso começou com Freud e seu desconforto em ser observado enquanto imerso em seus pensamentos acerca do paciente. Além disso, achava que o paciente se sentiria mais confortável deitado. Ele não reconhecia que de

1 Grotstein, 1995, p. 396-405.

2 Grotstein, 2009.

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O divã dramatúrgico e neuropsíquico de James Grotstein

os utiliza para somar ao seu entendimento psicanalítico criativo, que trabalha em um entre-campo de intersecção das teorizações freudianas e bionianas, incluindo até mesmo Lacan em suas proposições.

Para além de psicanalista, o norte-americano John Munder Ross trabalhou como ator e diretor, sobretudo ligado ao Harvard Theater e ao Harvard Drama Club. Como veremos, seu pensamento acerca da sessão psicanalítica e do uso do divã acaba por aproximar sua experiência no campo da arte ao fazer psicanalítico.

Ross aponta o divã como um instrumento que auxiliaria o “relaxamento” das barreiras e defesas inconscientes, de forma similar à que propõe André Green1 a respeito do modelo do sonho. Porém, sua teorização acrescenta algumas facetas interessantes de explorarmos. Assim como Grotstein busca compreender o uso do divã em uma disciplina não psicanalítica (a neurologia), Ross referenda o uso do divã valendo-se também do psicólogo cognitivo George Klein2 e seu aforismo “postura é percepção”.

Para Ross, deitar-se no divã traz os aspectos que Freud teorizou a respeito do sonho para a vida de vigília e, segundo

1 Ver o capítulo “O divã de André Green – o modelo do sonho, outras contribuições e equívocos”.

2 G. Klein, 1970.

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13. O divã como auxiliar a um “roteiro fílmico” em John Munder Ross

e do objeto evocativo. Obviamente, sua proposta de escutar a “encenação” do material comunicado pelo analisando se assemelha aos apontamentos de Grotstein.13 Talvez pudéssemos seguir traçando aqui outros paralelos, mas o trabalho interno do analista-leitor também pode alcançá-lo a seu modo, singularmente.

A teorização de Ross e a sua acentuação no uso da imaginação (de analista e analisando), além de sua forma de pensar os “papéis” e o “enredo” presentes na comunicação do analisando, tornam-se auxiliares na escuta e na intervenção. Isso a aproxima do que apresentarei na segunda parte do livro, tornando este capítulo, de certa maneira, uma espécie de introdução ao que se seguirá. A simplicidade complexa, que está presente em sua forma de enunciar o seu processo de escuta, faz com que sua contribuição possa reverbar e continuar ser repensada pelo leitor psicanalista.

14. Outros autores e as diversas formas de pensar o trabalho psicanalítico a partir do divã

Este último capítulo da primeira parte intenciona, basicamente, trazer novas referências bibliográficas até então não mencionadas anteriormente, mas também compartilhar reflexões de autores que, na maioria dos casos, carecem de publicações em português. Certamente, há psicanalistas brasileiros discutindo a respeito das funções do divã e a dicotomia divã versus face a face, mas devido ao fato de que o leitor brasileiro pode encontrá-los com maior facilidade (ao menos se comparado a referências bibliográficas estrangeiras), a escolha foi por não incluí-los aqui, deixando ao leitor a realização dessa pesquisa.

É impossível termos tudo. Logo, é um fato, também, que muitas contribuições estrangeiras acabam por ficar de fora, visto que privilegiei as posições colhidas a partir dos textos originais dos autores com os quais foi possível contato direto, e não comentários de outrem. Dentre os apontamentos a seguir, encontram-se contribuições de autores mais conhecidos do público brasileiro, somadas às de não tão conhecidos. No decorrer do capítulo, o leitor encontrará contribuições de Otto Rank, Karl Abraham, Otto Fenichel, Michael Balint, Donald

163 162
13 Ver capítulo “O divã dramatúrgico e neuropsíquico de James Grotstein”.

15. Breves comentários finais

Como é perceptível, ainda que o título e o conteúdo dos capítulos desta primeira parte do livro intencionem elucidar as posições clínicas e teóricas de autores específicos, esses capítulos não se ativeram apenas a isso. O esforço em problematizar suas contribuições a partir de uma “escuta textual” fez com que esses capítulos, apesar de partirem das contribuições dos autores, se relacionassem com a minha leitura particular deles, sempre tentando confrontá-los com os capítulos prévios à sua apresentação e, obviamente, deixando, de forma mais latente ou de forma mais explícita, algumas de minhas posições a respeito dessas contribuições. Muitas delas não retomarei diretamente na sequência do livro, justamente por já tê-las explicitado nos capítulos anteriores.

Logo, ao leitor que talvez tenha pulado algum capítulo até aqui, indicaria que o retome, pois todos se interligam em uma grande discussão. Minha ressalva é de que, apesar de incluir meus posicionamentos nesses capítulos, eu abri mão de relacioná-los com a terminologia conceitual de base que apoia a segunda parte do livro (mais autoral). Fiz isso a fim de não confundir ou complicar o entendimento do leitor. Portanto, para um entendimento completo de meu

203

Em trabalho de grande fôlego e a partir de uma pesquisa inédita que coloca o divã no centro do debate, Lucas Krüger percorre a história da psicanálise, apresentando e discutindo contribuições de inúmeros psicanalistas a respeito do tema-título para, na sequência, expor seu singular pensamento.

Tomando como ponto de partida o prisma etimológico e poético de diwan, Krüger trabalha uma rede de conceitos que culminam no conceito de estado de nuvem como um auxiliar à clínica psicanalítica. www.arteseecos.com.br

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