Impressões de minha análise com Wilfred R. Bion e outros trabalhos

Page 1

Capa_Junqueira de Mattos_impressoes de minha anlise_24mm.pdf 1 09/07/2018 22:03:22

Y

CM

MY

CY

CMY

K

Antonio Sapienza Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) e da International Psychoanalytical Association (IPA)

PSICANÁLISE

Impressões de minha análise com Wilfred R. Bion

M

José Américo Junqueira de Mattos PSICANÁLISE

C

Nasceu em 16 de maio de 1934 na Fazenda das Melancias, município de Uberaba, Minas Gerais. Formou-se em Medicina pela Faculdade Federal de Medicina do Triângulo Mineiro em 1960. Casou-se em 17 de setembro de 1960 com Yvonne Soares de Mattos. O casal tem cinco filhos e nove netos. Em 1964, iniciou análise terapêutica com Noemy Silveira Rudolfer e, em 1968, análise didática com Frank Philips. Em 1977, mudou-se para Los Angeles para se analisar com Wilfred R. Bion. Exerce a psicanálise desde 1964, sendo que atualmente atende apenas reanálises e supervisões. É analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP).

De modo sofisticado, o autor ilumina a cotidiana complexidade no ofício de psicanalista em busca da verdade. O tema da contratransferência é colocado de modo sutil, visando à aprendizagem da experiência emocional pela dupla a cada sessão. O leitor encontrará clara e concisa introdução para a experiência do autor como analisando de Wilfred R. Bion, com fascinantes insights psicanalíticos. O atual escrito de Junqueira de Mattos constitui apurado modelo de espírito democrático, enquanto suporte e convite para sondagens do universo desconhecido em expansão na metodologia psicanalítica.

Junqueira de Mattos

José Américo Junqueira de Mattos

Impressões de minha análise com Wilfred R. Bion

E outros trabalhos

“Suas interpretações nunca tiveram um sentido de crítica ou possuíram um caráter moralista. Ou seja, não eram produtos do desejo... Embora eu não saiba explicar, porque objetivamente ele não fazia nada para me agradar, só (?) interpretava, eu sentia nele um continente amorável, sábio e generoso... Embora suas interpretações fossem, quase sempre, dirigidas para o aqui e agora da relação transferencial, eram, outras vezes, um prelúdio para “construções” de uma abrangência até cosmológica. É assim que elas, iluminando o assunto tratado, situavam-me no tempo, no universo, na história da raça, sentindo as relações existentes entre as incontáveis gerações e culturas que nos antecederam e aquelas que nos seguirão...”


IMPRESSÕES DE MINHA ANÁLISE COM WILFRED R. BION e outros trabalhos

José Américo Junqueira de Mattos

Mattos Miolo.indd 3

26/06/18 18:18


Impressões de minha análise com Wilfred R. Bion e outros trabalhos © 2018 José Américo Junqueira de Mattos Imagem da capa: Gustave Doré, The savoury pulp they chew, and in the rind, Still as they thirsted, scoop the brimming, 1866, ilustração para a obra Paradise lost, de John Milton

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Mattos Miolo.indd 4

Mattos, José Américo Junqueira de Impressões de minha análise com Wilfred R. Bion e outros trabalhos / José Américo Junqueira de Mattos. – São Paulo : Blucher, 2018. 476 p. ISBN 978-85-212-1330-7 (impresso) ISBN 978-85-212-1332-1 (e-book) 1. Psicanálise 2. Bion, Wilfred R. (Wilfred Ruprecht), 1897-1979 - Crítica, interpretação etc. I. Título. 18-0763

CDD 150.195 Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

26/06/18 18:18


Conteúdo

Prefácio 9 1. Impressões de minha análise com Dr. Bion

19

2. Impressões de minha análise com Dr. Bion: comentários do autor

75

3. Análise concentrada: três décadas de experiência

119

4. A contratransferência e a obra de Bion

153

5. Contratransferência: uma re-visão

189

6. Do soma ao psíquico: em busca do objeto psicanalítico

221

7. Pré-concepção e transferência

267

8. Transferência e contratransferência como fatores da transiência 313 9. Anorexia nervosa: um novo paradigma para as perversões 357

Mattos Miolo.indd 7

26/06/18 18:18


8

conteúdo

10. Dos distúrbios obsessivo-compulsivos às relações continente-conteúdo 391 11. Tomar notas e o uso de memória e desejo

425

12. Os cinco últimos quartetos de Beethoven

459

13. O Amadeus de Miloš Forman: um olhar psicanalítico

471

Mattos Miolo.indd 8

26/06/18 18:18


1. Impressões de minha análise com Dr. Bion1

Essas ideias, que ouvimos no curso de análise, foram em uma época interpretações, mas agora são associações. Estamos tratando uma série de camadas que foram epidermes ou conscientes, mas agora são associações livres. Wilfred R. Bion, Two papers: the grid and caesura, 1977/1989, p. 47 (tradução livre)

Introdução Um dia, passeando pelo Kenwood Park, em Londres, uma semana antes do término de minha análise com Dr. Bion, eu meditava sobre a interpretação em psicanálise, quando, após uma depressão no terreno, deparei com uma imensa, frondosa e acolhedora árvore, cujos galhos – braços enormes a saudar e a brincar com a brisa fria de outono – convidavam a entreter na memória 1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em Junqueira de Mattos (2016). Todas as traduções dos textos originalmente em inglês foram feitas pelo autor.

Mattos Miolo.indd 19

26/06/18 18:18


20

impressões de minha análise com dr. bion

lembranças há um tempo caras e doridas... Surpreendi-me com a singular semelhança dela com as árvores de minha terra, de minha infância... E esse vento? Não lembrava os ventos frios de julho lá na Fazenda Melancias, a trazer o mugido triste do gado que, sequioso e mudo, seguia trilha adiante em busca de capim ou de uma fonte? Na análise, relatei ao Dr. Bion as emoções provocadas e as reminiscências evocadas no passeio pelo bosque, destacando as semelhanças e diferenças entre a vegetação da Inglaterra e do Brasil. Em seguida, falei sobre o desejo que sentia de escrever um artigo sobre interpretação em psicanálise. Porém, como poderia escrever se, na verdade, o que eu estaria fazendo seria repetir o que eu havia aprendido com ele? Não seria algo original, mas sim uma cópia. Dr. Bion interpretou dizendo: “Assim como a árvore lembra as de sua infância, mas não é a mesma, o que escrever também não será exatamente o mesmo...”. O que relato aqui não é a mesma coisa, não é igual ao que se passou lá no consultório dele. Um dia foram interpretações, hoje são associações...2 Entretanto, a lembrança do que ele disse, que eu reproduzo aqui, encorajou-me a aceitar o convite do Dr. Cecil José Rezze – que, na época, era o presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) – para escrever sobre o tema por ele sugerido: a minha experiência de análise com o Dr. Bion. Naquela época, assim como agora, selecionei entre minhas reminiscências não só os temas que tiveram importância para mim

2 O registro de uma experiência analítica após a sessão e sua lembrança passados muitos anos é tratado de modo muito criativo e interessante por Bion em “Comentários”, parte da obra Second thoughts (1967).

Mattos Miolo.indd 20

26/06/18 18:18


3. Análise concentrada: três décadas de experiência1

La théorie c’est bon, mais ça n’empêche pas d’exister. Freud, Charcot, 1893/1962, p. 132

Apresentação O autor traz sua experiência em análise concentrada nos últimos trinta anos, ou seja, quatro sessões em dois dias da semana, como analista e como analisando, e contrapõe essa experiência com os argumentos que foram usados para a proibição da análise concentrada em candidatos em análise didática, determinada pela 1 Apresentado no XV Congresso Brasileiro de Psicanálise, de 1995, em Recife (PE). Publicado também em Richards et al. (1997) e em Junqueira de Mattos (1996). Este artigo foi escrito há mais de vinte anos, quando eu tinha 60 anos; hoje tenho 82, e, assim, podemos considerar, então, que são 52 anos de experiência! Algumas palavras aparecem separadas por hífen quando, gramaticalmente, não possuem. A intenção é chamar a atenção do leitor para a sua etimologia. Todas as traduções dos textos originalmente em inglês foram feitas pelo autor. 2 “A teoria é boa, mas não impede que os fatos continuem a existir.”

Mattos Miolo.indd 119

26/06/18 18:18


120

análise concentrada: três décadas de experiência

Associação Internacional de Psicanálise (International Psychoanalytical Association – IPA), em carta dirigida à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), pelo professor doutor Joseph Sandler, então presidente da IPA. Tem-se a intenção de demonstrar que, se uma adequada internalização das noções de tempo, espaço e consciência tiver acontecido, como frequentemente é o caso nas personalidades não psicóticas, a análise concentrada tem um resultado semelhante à análise regular, tradicional. O autor conclui que, além de ser um tema técnico e teórico, a análise concentrada é uma questão ética, e que os resultados de uma análise, positivos ou negativos, não dependem da periodicidade nem do intervalo de tempo entre uma sessão e outra, mas da singularidade da relação que se cria entre o analista e o analisando. Ao final do capítulo, essa tese é exemplificada com material clínico.

Introdução Neste trabalho, tento trazer à baila minha experiência de trinta anos com análise concentrada em quatro sessões em dois dias da semana, tanto como analisando quanto como analista, aproximando-a da experiência, ainda maior, que tenho com a análise regular,3 ou seja, quatro ou cinco sessões em diferentes dias da semana. A ela vou contrapor a proibição dada pela Associação Internacional de Psicanálise (International Psychoanalytical Association – IPA), consubstanciada na carta dirigida à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em 22 de junho de 1992, pelo seu 3 Estou usando a palavra regular no sentido de comum, usual ou de análise regulamentada.

Mattos Miolo.indd 120

26/06/18 18:18


5. Contratransferência: uma re-visão1

Introdução Depois de aproximar o conceito de coisa em si de Kant, o conceito de inconsciente de Freud e as ideias de Bion sobre a teoria da função alfa, das transformações e invariantes e de aplicá‑los à teoria da contratransferência, o autor chega à conclusão de que é necessário fazer uma re‑visão do conceito de contratransferência e propõe uma nova denominação e classificação para o termo: contratransferência cognitiva e contratransferência misconceptiva. Material clínico é apresentado e está correlacionado à teoria apresentada. Ademais, conclui-se que, em última instância, a 1 Publicado em Junqueira de Mattos (1994). No Congresso Brasileiro de Psicanálise de 1989, apresentei o trabalho: “Metapsicologia dos processos cognitivos e misconceptivos do analista e analisando”, dada a sua extensão – que impossibilitou sua publicação em revista especializada –, resolvi resumi-lo, o que resultou no presente texto, que contém a essência do que lá foi escrito. ­Algumas palavras aparecem separadas por hífen quando, gramaticalmente, não possuem. A intenção é chamar a atenção do leitor para a sua etimologia. Todas as traduções dos textos originalmente em inglês foram feitas pelo autor.

Mattos Miolo.indd 189

26/06/18 18:18


190

contratransferência: uma re-visão

contratransferência cognitiva e a empatia equivalem ao funcionamento normal da função alfa, e os seus distúrbios, à sua deficiência ou operação anormal. Não me detenho a uma revisão detalhada da literatura sobre contratransferência; remeto o leitor interessado ao hoje já clássico trabalho de Orr (1954) e ao cada vez mais importante trabalho de Racker (1957). Temos ainda as revisões de Ross e Kapp (1962), Sandler et al. (1970), McLaughlin (1981), Roland (1981), Tyson (1986), Blum (1986) e, mais recentemente, Etchegoyen (1987), com três excelentes capítulos sobre a contratransferência.

O conceito de inconsciente para Freud e Bion Em “Transformations” (1965/1977d, p. 86), Bion nos fala que a consciência da realidade externa é secundária à consciência de uma realidade interna e que ambas são semelhantes à relação entre pré‑concepção e realização que a ela corresponde ou aproxima. Nessa mesma obra, Bion afirma que a noção de objeto interno de Melanie Klein corresponde à ideia de pré‑concepção ou de uma antecipação inata e que são reminiscentes da teoria das formas de Platão (Bion, 1965/1977d, p. 138). Para Bion, o inconsciente parece não ser só o reservatório de instintos em busca de satisfação de impulsos como também o reservatório de pré‑concepções que buscam realizações baseados no encontro que a experiência emocional, fonte original e reminiscente de todo o conhecimento, de toda a beleza, propicia. Em “A theory of thinking”, Bion define o conceito de pré-concepção: A pré-concepção pode ser considerada como análoga, em psicanálise, ao conceito de Kant de “pensamentos

Mattos Miolo.indd 190

26/06/18 18:18


7. Pré-concepção e transferência1

Δαίμον καὶ Τύχη [Constituição e acaso determinam o destino do homem] Provérbio grego citado por Freud, 1912/1957b, p. 99

Introdução Procuro, neste trabalho, examinar o conceito de transferência à luz das teorias so­bre as pré‑concepções. Detenho-me na apro­ ximação das ideias de Bion sobre as pré‑con­cepções às ideias de Platão sobre as teorias das formas e ideias e reminiscências. Assinalo as consequências que vejo terem as pré‑concepções na relação transferencial, por exemplo, há um aspecto da trans­ferência que não se enquadra, a meu ver, em nenhuma das formas de repetição 1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em Junqueira de Mattos (1995b, 1995c). Algumas palavras aparecem separadas por hífen quando, ortograficamente, não o possuem. A intenção é chamar a atenção do leitor para a sua etimologia. Todas as traduções dos textos originalmente em inglês foram feitas pelo autor.

Mattos Miolo.indd 267

26/06/18 18:18


268

pré-concepção e transferência

do pas­sado até agora apontadas – fato aparentemente ainda não assi­nalado. Chamo a transferência que não envolve a repetição do passado de transferência pré‑conceptiva, e aquela que pode ser relacionada com a repetição do passado de transferência misconceptiva.2 Trabalho também com um conceito de inconsciente inato e inconsciente dinâmico. O inconsciente inato, formado das pré‑concepções, é herdado, enquanto o inconsciente dinâmico, que é estruturado com base na “repressão primária”, é adquirido. Ainda que não entre em detalhes neste texto, vou trabalhar com a ideia de que há uma parte psicótica da personalidade funcionando pari passu com uma não psicótica – um importante conceito introduzido por Bion (1957/1967b).

O conceito de transferência Não me estendo em uma análise mi­nuciosa das ideias de Freud sobre a trans­ferência, presentes em toda a sua obra desde “Studies on hysteria” (1895/1955a) até “An outline of psycho-analysis” (1940/1964b), bem como não me estendo também na 2 Empreguei pela primeira vez, em 1989, os termos misrepresentação e mis­ concepção, quando sobre esta última fiz a seguinte nota, que vale para ambas: “A palavra ‘mis­conception’, empregada por Money-Kyrle em seu trabalho ‘Cognitive development’ (1968, 1981), não tem uma correta tradução em português. Todas que encontrei tiravam dela uma força co­municativa imprimida por ele quando, em seu trabalho, elabora a Teoria sobre a Mis­concepcões – de onde eu a tirei. Assim, ainda que ela soe arrevesada aos sensíveis ouvidos dos puristas da língua, é por ne­cessidade minha de ser preciso e, ao mesmo tempo, fiel ao conceito expresso por Money-Kyrle, que resolvi criar este an­glicismo, o qual, como tantos outros – insight, self etc. –, enriquecem o vocabulário psicanalítico em língua por­tuguesa. Fica aqui, portanto, minha ho­menagem a esse original autor que tanto contribuiu para o desenvolvimento da psicanálise” (Junqueira de Mattos, 1995, p. 1).

Mattos Miolo.indd 268

26/06/18 18:18


9. Anorexia nervosa: um novo paradigma para as perversões1

A sexualidade masculina é muito concentrada no pênis. A nossa não, está no corpo todo. Sandra Lesbaupim, 1996

Introdução Neste artigo, pretendo chamar a atenção para os fatos de que as perversões são distúrbios do pensamento e as contribuições de Bion, essenciais para o entendimento da gênese, da formação e das disfunções do pensamento, lançam uma luz para o entendimento dos estados perversos. Penso que situar as perversões entre esses distúrbios pode oferecer um novo instrumental técnico para lidar com elas. É assim que a ansiedade de castração, o splitting do ego, tão fundamental desde Freud para o entendimento das perversões, as defesas contra as angústias da fase de separação/individuação, a 1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em Junqueira de Mattos (1998, 2012).

Mattos Miolo.indd 357

26/06/18 18:18


358

anorexia nervosa: um novo paradigma…

tendência tão frequente nos perversos de tratar seus objetos como coisa, a idealização da sexualidade infantil em detrimento da sexualidade adulta, entre outros estados e defesas, têm sua origem nos primórdios da formação do pensamento e do “aparelho” para pensá-lo, ou seja, nas primeiras relações de objeto do bebê com o seio e com os pais; ou até mesmo antes delas, se levarmos em conta a teoria das pré-concepções de Bion.

O pensamento e suas vicissitudes Bion, em “A theory of thinking” (1962/1967b), classifica os pensamentos, de acordo com o seu desenvolvimento, em pré-concepções, concepções e conceitos. Os pensamentos precedem o pensador e criam a necessidade de um “aparelho” para pensá-los e não o contrário (Bion, 1962/1967b). O bebê, ao nascer, traz em estado pré‑conceptivo2 algo que corresponde à necessidade de ser alimentado. Ao entrar em contato com a experiência real com o seio, se satisfaz; temos aí a concepção ligada às experiências somáticas de satisfação, portanto, gratificadoras, que, para Bion, não são ainda o pensamento propriamente dito; este se estrutura a partir de experiências frustradoras. O bebê com fome sente-se “atacado” por ela internamente. Assim, com “medo do aniquilamento”, procura se livrar de tais sentimentos por meio da identificação projetiva, na mãe, ou melhor, no seio materno. A mãe, se capaz de entender a “linguagem” de seu bebê e de estar em íntima sintonia ou em contato psíquico com ele – o que Bion denominou de rêverie –, acolhe os sentimentos, “desintoxicando-os” de sua qualidade “excessiva”, e os “devolve” novamente de forma a serem toleráveis. O excessivo nesse contexto acompanha a crença na onipotência de poder se 2 Algumas palavras aparecem separadas por hífen quando, gramaticalmente, não possuem. A intenção é chamar a atenção do leitor para a sua etimologia.

Mattos Miolo.indd 358

26/06/18 18:18


11. Tomar notas e o uso de memória e desejo1

Introdução Na sessão anterior à relatada aqui, o autor teve o desejo de fazer algumas anotações, durante a sessão, que lhe permitissem, segundo supunha, recordar com mais facilidade o ocorrido na sessão e que possibilitassem uma transcrição mais fiel do que ocorrera. Essa intenção foi captada pela paciente, dando origem ao material relatado. O autor comenta as experiências emocionais vividas tanto pela paciente como por ele durante a sessão e aponta as falhas que houve em sua tentativa de anotar e no fato de isso ter sido omitido à paciente. A analisanda evidencia uma clara percepção que tem de que, se o analista anota durante a sessão, ele cria um terceiro objeto – a anotação – que se interpõe entre ela e o analista, 1 Este artigo é uma versão modificada e re-visada do texto “A tentação de anotar como equivalente ao uso de memória durante a sessão”, apresentado em agosto de 1977, na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), como critério para obtenção do título de membro associado dessa sociedade, tendo como comentadora a professora Virgínia Leone Bicudo. O texto atual, em sua versão em inglês, está publicado em Reppen (2002).

Mattos Miolo.indd 425

26/06/18 18:18


426

tomar notas e o uso de memória e desejo

comprometendo o vínculo analista-analisando. Essa percepção da paciente equivale ao uso de memória e de desejo durante a sessão, como preconizado por Bion (1967d). Pelo desenvolver das experiências emocionais intersubjetivas, compartilhadas pela dupla, fica patente a necessidade da correta observação dos fatos que se sucedem durante a sessão, os quais muitas vezes acontecem diante dos olhos do analista e que, de tão óbvios, passam despercebidos. No caso presente, o analista não viu o óbvio e precisou ser alertado pela paciente de que estava introduzindo entre ambos um corpo estranho à sessão: a anotação. Considerações teóricas sobre os inconvenientes do uso de memória, desejo e compreensão são desenvolvidos. Concluindo, o autor preconiza que, se memória e desejo não são estados desejáveis durante o trabalho analítico, o estado de mente mais adequado ao analista é o de ter “fé”, a crença de que há uma verdade inconsciente a ser des‑coberta,2 ou melhor, a ser aproximada. Porém, essa verdade nunca é atingida, pois, à medida que dela analista e analisando se aproximam, novos e renovados caminhos se descortinam à sua frente.

Material clínico e comentários Pelo interfone, o autor pediu para a secretária solicitar que a paciente entrasse. No tempo que mediou entre a paciente percorrer o corredor e acercar-se da porta do consultório, o analista pegou uma folha de um bloco para anotações. No momento em que a paciente adentrou o consultório, o analista estava dobrando e pondo a folha no bolso. A paciente se deitou no divã e permaneceu calada, o que não era comum para ela. Depois, perguntou ao analista se ele anotava durante a sessão. O analista limitou-se a dar uma resposta 2 Algumas palavras aparecem separadas por hífen quando, gramaticalmente, não possuem. A intenção é chamar a atenção do leitor para a sua etimologia.

Mattos Miolo.indd 426

26/06/18 18:18


13. O Amadeus de Miloš Forman: um olhar psicanalítico

Apesar de ser um filme belíssimo, vencedor de oito prêmios Oscar, e de ter estética e musicalidade perfeitas – com regência a cargo de Sir Neville Marriner –, Amadeus presta um grande desserviço à história, à memória de Mozart e aos fatos, pois muito pouco do que ali aparece aconteceu de fato. Mozart é retratado simplesmente como infantil, debochado e alcoólatra. Enquanto Salieri, por não ter sido “dotado por Deus”, como se acreditava que Mozart era, desenvolve contra Mozart uma inveja profunda e mortal. Em síntese, toda a história do filme revive o mito do Éden – de Paraíso perdido, de John Milton (1894) –, reeditando a história de Satã, que, depois de ter perdido a guerra no empíreo, na qual foi derrotado pelas legiões do anjo Gabriel, é lançado e relegado ao Inferno. De lá, incapaz de empreender qualquer vingança contra o Onipotente, volta seu ódio e sua inveja contra Adão e Eva que, felizes, estão no Paraíso. Ou seja, incapaz de derrotar o criador, volta-se contra a criatura. Ataca a obra para atacar o autor.

Mattos Miolo.indd 471

26/06/18 18:18


472

o amadeus de miloš forman: um olhar psicanalítico

Mozart, o gênio Todos sabem que Mozart foi um dos gênios mais precoces que a humanidade conheceu. Sua curiosidade musical já estava presente quando, aos 3 anos, observava a irmã Nannerl, de 7 anos, tocar cravo: “o irmão se sentiu inspirado a experimentar por conta própria” (Gay, 1999, p. 17). O pai deu a ela um caderno de notas com exercícios em ordem crescente de dificuldade. Mozart apoderou-se desse caderno e, já aos 5 anos, tocava perfeitamente bem o minueto e o trio que ele continha. Também foi com essa idade que surgiram suas primeiras composições. Quanto ao violino, já aos 7 anos tocava com técnica e desembaraço suficientes para apresentar recitais em público. Aos 8 anos, escreveu sua primeira sinfonia e, aos 12, uma ópera completa – La finta semplice [A falsa simples]. Em 1774, aos 18 anos, tinha escrito mais de uma dúzia de sinfonias e atingido o ápice da técnica musical e de sua capacidade criativa, com a sinfonia n. 29 (Gay, 1999), considerada uma de suas mais importantes, criativas e geniais produções. De acordo com Johannes Brahms, acerca de As bodas de Fígaro: “cada música na Fígaro de Mozart é para mim um milagre; não consigo compreender de modo algum como uma pessoa pode criar algo assim tão absolutamente perfeito; nada semelhante jamais foi feito de novo, nem mesmo por Beethoven” (Gay, 1999, p. 133). Em uma turnê pela Europa, que durou mais de três anos (entre junho de 1763 e novembro de 1766), acompanhado de seu pai e de sua irmã, Mozart mostrou seus talentos mundo afora e também ganhou muito dinheiro. Nessa longa turnê, ele conviveu com a elite da época: reis, papa, arcebispos, banqueiros, grandes comerciantes etc., e aprendeu várias línguas: “ele estava então com 10 anos e amadurecido como instrumentista e compositor” (Gay, 1999, p. 18).

Mattos Miolo.indd 472

26/06/18 18:18


Capa_Junqueira de Mattos_impressoes de minha anlise_24mm.pdf 1 09/07/2018 22:03:22

Y

CM

MY

CY

CMY

K

Antonio Sapienza Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) e da International Psychoanalytical Association (IPA)

PSICANÁLISE

Impressões de minha análise com Wilfred R. Bion

M

José Américo Junqueira de Mattos PSICANÁLISE

C

Nasceu em 16 de maio de 1934 na Fazenda das Melancias, município de Uberaba, Minas Gerais. Formou-se em Medicina pela Faculdade Federal de Medicina do Triângulo Mineiro em 1960. Casou-se em 17 de setembro de 1960 com Yvonne Soares de Mattos. O casal tem cinco filhos e nove netos. Em 1964, iniciou análise terapêutica com Noemy Silveira Rudolfer e, em 1968, análise didática com Frank Philips. Em 1977, mudou-se para Los Angeles para se analisar com Wilfred R. Bion. Exerce a psicanálise desde 1964, sendo que atualmente atende apenas reanálises e supervisões. É analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP).

De modo sofisticado, o autor ilumina a cotidiana complexidade no ofício de psicanalista em busca da verdade. O tema da contratransferência é colocado de modo sutil, visando à aprendizagem da experiência emocional pela dupla a cada sessão. O leitor encontrará clara e concisa introdução para a experiência do autor como analisando de Wilfred R. Bion, com fascinantes insights psicanalíticos. O atual escrito de Junqueira de Mattos constitui apurado modelo de espírito democrático, enquanto suporte e convite para sondagens do universo desconhecido em expansão na metodologia psicanalítica.

Junqueira de Mattos

José Américo Junqueira de Mattos

Impressões de minha análise com Wilfred R. Bion

E outros trabalhos

“Suas interpretações nunca tiveram um sentido de crítica ou possuíram um caráter moralista. Ou seja, não eram produtos do desejo... Embora eu não saiba explicar, porque objetivamente ele não fazia nada para me agradar, só (?) interpretava, eu sentia nele um continente amorável, sábio e generoso... Embora suas interpretações fossem, quase sempre, dirigidas para o aqui e agora da relação transferencial, eram, outras vezes, um prelúdio para “construções” de uma abrangência até cosmológica. É assim que elas, iluminando o assunto tratado, situavam-me no tempo, no universo, na história da raça, sentindo as relações existentes entre as incontáveis gerações e culturas que nos antecederam e aquelas que nos seguirão...”


Clique aqui e:

Veja na loja

Impressões de minha análise com Wilfred R. Bion e outros trabalhos José Américo Junqueira de Mattos ISBN: 9788521213307 Páginas: 476 Formato: 14x21 cm Ano de Publicação: 2018


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.