LISTEN TO MY HEART

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MÚSICA CULTURA POP

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CRIATIVIDADE & IMPACTO SOCIAL





Tradução Lucas Reis Gonçalves


Copyright © 2021 Marie Fredriksson e Helena Von Zweigbergk. Originalmente publicado por Piratförlaget, Suécia, 2015. Publicado mediante acordo com a Agência Kontext. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida para fins comerciais sem a permissão do editor. Você não precisa pedir nenhuma autorização, no entanto, para compartilhar pequenos trechos ou reproduções das páginas nas suas redes sociais, para divulgar a capa, nem para contar para seus amigos como este livro é incrível (e como somos modestos). Este livro é o resultado de um trabalho feito com muito amor, diversão e gente finice pelas seguintes pessoas: Gustavo Guertler (publisher), Fernanda Lizardo (edição), Maristela Scheuer Deves (revisão), Gabriela Peres Gomes (revisão), Celso Orlandin Jr (capa e projeto gráfico), Lucas Reis Gonçalves (tradução) e Fryderyk Gabowicz (foto de capa) Obrigado, amigos. 2021 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Belas Letras Ltda. Rua Antônio Corsetti, 221 – Bairro Cinquentenário CEP 95012-080 – Caxias do Sul – RS www.belasletras.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer Caxias do Sul, RS

F852

Fredriksson, Marie, 1958-2019 Listen to my heart: a biografia da vocalista do Roxette / Marie Fredriksson e Helena Von Zweigbergk, tradução do espanhol: Lucas Reis Gonçalves. - Caxias do Sul, RS: Belas Letras, 2021. 302 p. il.

ISBN: 978-65-5537-066-9 ISBN: 978-65-5537-068-3 ISBN: 978-65-5537-093-5

1. Músico sueco - Biografia. 2. Fredriksson, Marie, 1958-2019. 3. Rock sueco. 4. Roxette (Grupo de Rock). I. Título. II. Zweigbergk, Helena von. III. Gonçalves, Lucas Reis (trad.).

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CDU 929Fredriksson

Catalogação elaborada por Rose Elga Beber, CRB-10/1369


Hold on tight, you know she’s a little bit dangerous She’s got what it takes to make ends meet The eyes of a lover that hit like heat You know she’s a little bit dangerous… Segure firme, você sabe que ela é meio perigosa. Ela tem o que é preciso para se virar sozinha Olhos de amante que ferem como o fogo Você sabe que ela é meio perigosa...


Sumário


11 20 46 52 82 100 110 120 128 140 172 182 194 200 214 222 232 248 258 268 279 284 290 297

Prólogo Até agora não consegui pronunciar as palavras tumor cerebral Helsingborg, quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014 Eu queria ver tudo, o mundo inteiro! De repente, vieram as equações Na casa de Marie em Djursholm, setembro de 2014 Eu sempre quis ir um pouco mais além Na cozinha de Djursholm, janeiro de 2015 Ninguém me reconhecia Quase ninguém acreditou no Roxette Djursholm, janeiro de 2015 Achei que estivesse estressada Estocolmo, dezembro de 2014 Wollongong, Austrália, 23 de fevereiro de 2015 Foi um milagre eu ter sobrevivido Torre de Sydney, 25 de fevereiro de 2015 Nós nos tornamos incrivelmente fortes juntos Casa da Ópera de Sydney, 25 de fevereiro de 2015 Qantas Arena de Sydney, 27 de fevereiro de 2015 Djursholm, maio de 2015, Tempo para o silêncio. Epílogo Discografia Canções que foram especialmente importantes na vida de Marie Posfácio



PRÓLOGO Existe algo de muito especial no olhar de Marie Fredriksson. Penso nisso quando nos encontramos, só nós duas, no início do outono de 2013 para falar sobre este livro. Vim até a casa da família Bolyos, em Djursholm. Aqui Marie mora com seu marido, Micke, seus filhos Josefin e Oscar, e Sessan, o gato. Marie irradia simultaneamente algo sábio e misterioso. Como se tivesse vivido coisas que jamais poderiam ser expressas plenamente. Experiências vertiginosas. Longas viagens, tanto para dentro de si quanto pelo mundo afora, pelo íntimo, pela escuridão, e para além, em direção à luz, quilômetros e quilômetros por todo o mundo.

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Quando Marie fixa seu olhar no meu, compreendo imediatamente a seriedade por trás de seu desejo. Ela quer que seu relato tenha um propósito, que sirva para o próprio bem e também para o bem de terceiros. Uma das sequelas de seu tumor cerebral é a perda parcial da memória. Aos poucos ela está recuperando as lembranças; e agora, Marie quer reconstruir a própria história. Mas há, ainda, outro motivo importante para este livro existir. “Eu quero que as pessoas saibam”, diz Marie, com determinação na voz. “Quero que saibam o que significa passar por tudo o que passei.” Nós duas nos acomodamos nos sofás cor de creme de sua linda casa. Há rosas brancas em um vaso de vidro. Antiguidades e um imenso piano de cauda, preto e reluzente. Um quadro do pintor sueco Einar Jolin, do qual é até difícil de se desviar o olhar. Assim como muitas residências desta região, a propriedade da família Bolyos é a expressão do desejo de se cercar por beleza e bom gosto, bem como o reflexo de uma condição financeira próspera que torna possível a satisfação de desejos luxuosos. Naturalmente, quero tentar contar a história de Marie. Ao longo de nossos encontros, desde o outono de 2013 até o verão de 2015, muita coisa aconteceu na vida dela. Não dá para se dizer que foi um período particularmente tranquilo, embora ela certamente tenha se esforçado para manter sua calma interior nesse meio-tempo. Marie esteve em turnê, sua primeira turnê solo desde que seu câncer foi diagnosticado, no outono de 2002. Lançou seu álbum em sueco, Nu! (Agora!), jun-


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to com Micke. E também gravou músicas novas com o Roxette, e o grupo embarcou em uma turnê mundial que teve a Rússia como ponto de partida e seguiu pela Austrália e Europa. Não é preciso muito tempo ao lado de Marie para perceber a presença de uma lutadora com uma disposição indestrutível. Às vezes ela precisa de ajuda para se locomover, mas mesmo assim, viaja pelo mundo inteiro e se apresenta para o público em estádios lotados. “Sim, mas o que mais posso fazer?”, pergunta. “Deitar-me na cama e esperar a morte chegar? De imediato decidi que não ia ser assim. Ficar na cama à espera da morte, isso jamais.” E logo acrescenta: “Além disso, que coisa!, minha voz nunca me deixou na mão”. Durante um período de dois anos, tivemos vários encontros na casa de Marie. Ela mora nos arredores da baía de Stora Värtan, em Djursholm. Um dos bairros residenciais mais exclusivos de Estocolmo, com mansões que valem milhões de coroas suecas, todas guardadas por muros altos e bem vigiados. Para Marie, sua casa é seu lar e sua fortaleza. Nunca sai daqui sozinha, nem mesmo para ir ao jardim. Uma de suas pernas já não funciona muito bem, sequela da radioterapia durante o tratamento contra o câncer. Marie tem medo de cair e por isso sempre precisa de alguém para apoiá-la. Na maioria das vezes, nossas conversas foram à mesa da cozinha da família, bebericando café e saboreando pãezinhos. Às vezes, enquanto eu aguardava do lado de fora, diante do portão imponente junto aos muros que protegem a casa, algum fã aparecia para deixar um buquê de flores à entrada.

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“Ah, os fãs”, diz Marie quando, em certa ocasião, entrei com as flores e um cartão. “Os fãs são tão incríveis!” Seus seguidores são carinhosos e incansáveis. Quando Marie fez shows solo durante o inverno de 2014, muitos vieram do mundo todo para lotar os teatros e casas de espetáculo em toda a Suécia. Fãs da Argentina, Dinamarca, Holanda, Alemanha. Muitos vindos de muito longe para ver e ouvir Marie. À mesa da cozinha, conversamos com calma, permitindo que as palavras e lembranças, que às vezes estão profundamente enraizadas, venham à tona gradualmente. “Ah, minha lesão cerebral!”, exclama Marie toda vez que tenta dizer alguma coisa e a conversa cessa de súbito. Normalmente, isso acontece com nomes. Ou com lugares. Mas às vezes Marie é muito sagaz. Quando comento sobre sua grandiosidade, atestando a estrela que ela era no meio musical, a resposta vem rápida como um raio: “Sou mesmo!”. Ou quando eu digo que sua família certamente devia ser muito sólida por ter sido capaz de superar todas as dificuldades, ela responde com a mesmíssima agilidade: “Somos mesmo uma família sólida”. Quando, em outra ocasião, Marie relata sobre as lembranças dolorosas dos momentos mais críticos de sua doença e lhe digo: “Entendo”, ela rebate em seguida: “Não, você não tem como entender. Se você não passou por isso, jamais vai entender”. E é muito provável que não seja possível entender completamente. Porém, o jeito como Marie expõe essas lembranças nos dá uma ideia do quanto deve ter sido assustador.


PRÓLOGO

Marie costumava se referir a si como uma “típica geminiana”. Para quem entende de astrologia, como Ulla-Britt, sua irmã mais velha, ela era uma “geminiana em dobro”, uma pessoa com personalidade fortemente contrastante. E é uma definição surpreendentemente correta, acerta em cheio: de um lado, uma vertente sensata e tranquila; e do outro, uma personalidade cujas emoções emergem de maneira repentina, como as variações meteorológicas, luz e escuridão. E, sem dúvida, ela também pode ilustrar essa escuridão de forma ainda mais profunda: “Você não faz ideia de como é horrível sentir uma dor assim, uma tristeza tão horrorosa”. Lágrimas riscam as maçãs do seu rosto. Mas logo ela as seca com um gesto rápido: “Mas estou melhorando. Estou melhorando o tempo todo. E precisamos rir também. Há de se rir, isso não podemos esquecer. É muito importante”. Marie busca deixar claro que este é seu livro, sua história. Também conversei com muitas outras pessoas próximas a ela. No entanto, o objetivo nunca foi escrever uma biografia que incluísse todas as informações de sua vida em ordem cronológica. Este é um livro de memórias emocionais. Tudo o que está nele é aquilo que assumiu um papel importante na vida de Marie e aquilo que, para ela, era relevante contar. Desde o início, Marie sempre esteve muito segura de como queria que este livro fosse: “Precisa ser honesto. Só quero expor as coisas como elas são. Sem amenidades bobas. Quero simplesmente contar tudo sem rodeios, exatamente como aconteceu”.

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O testemunho de muitas das pessoas com quem conversei é unânime. A maioria delas destaca o grande coração de Marie. “Um coração imenso em um corpo pequenino”, descreve a amiga Efva Attling. “Uma pessoa enorme, mesmo sendo tão magrinha.” “Sempre a considerei a pessoa mais forte dentro do grupo”, diz Lotta Skoog, amiga de Marie há anos e companheira de Pelle Alsing, o baterista do Roxette e também integrante da banda de Marie. “Antes de ficar doente, era Marie quem mantinha o ânimo de todo mundo lá em cima. E, na verdade, mesmo levando em conta as circunstâncias desde quando adoeceu, talvez ela siga sendo a pessoa com mais energia ali. É absolutamente fantástico Marie ter essa força e essa energia para continuar firme.” “Marie com certeza é a pessoa mais generosa e corajosa que conheci”, diz Marika Erlandsson, uma das amigas a acompanhá-la nos momentos mais difíceis da doença e companheira de Clarence Öfwerman, produtor e pianista do Roxette desde a fundação do grupo. Marika explica o que eu mesma andei me perguntando durante o tempo que passei com Marie: “Marie nunca demonstrou sequer um mínimo gesto de insatisfação ou amargura, nem mesmo nos momentos mais difíceis. Jamais perdeu a capacidade de se alegrar pelo sucesso dos outros. Nesse sentido, Marie certamente é única”. “Além de ser uma boa amiga desde meados da década de 1980, ela tem sido um exemplo para mim”, diz Åsa Gessle, companheira de Per Gessle. “Saíamos e fazíamos turnês juntos, inclusive antes de o Roxette existir. Per, Marie e Lasse Lindbom já tinham formado a Exciting Cheeses, uma banda amadora na qual tocavam


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como passatempo; naquela época, eu passava com uma bolsinha pela plateia, tentando recolher doações em dinheiro. Nos divertíamos muito juntos. Vi de perto como Marie foi construindo seu caminho com uma força de vontade e uma perseverança gigantescas. Ela vem de um contexto humilde e, no início, era muito tímida. Mas, com a voz maravilhosa e a tenacidade que tem, se tornou uma artista internacional, uma artista que emociona as pessoas do mundo inteiro. Ela sempre confiou na própria força e alcançou algo absolutamente excepcional. Por isso, Marie sempre foi uma fonte de inspiração para mim.” E essa sua energia também aparece em outros campos. O diretor Jonas Åkerlund, que está por trás de vários dos videoclipes do Roxette e também dirigiu o documentário Den ständiga resan (A viagem sem fim), diz o seguinte sobre Marie: “Ela sempre foi dotada de uma energia incrível, tanto no trabalho como na vida particular. Uma autêntica roqueira, de beber cerveja e frequentar bares depois do trabalho. Nos divertimos muito juntos. Mas também é uma pessoa muito criativa, que se entrega totalmente ao que faz. Já conheci muitas superestrelas, mas tanto Per quanto Marie se destacam por serem mais intimistas e modestos. Acho que isso tem a ver com o fato de, no fundo, continuarem a ser aquelas pessoas que vieram de regiões humildes.” Quando a ideia é definir Marie musicalmente, os depoimentos geralmente ganham os seguintes tons: “Marie tem uma força avassaladora”, afirma Thomas Johansson, presidente do conselho da Live Nation, amigo e sócio de Marie por muitos anos. “Ela realmente tem a capacidade de transmitir sentimentos. Já faz par-

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te de seu jeito de ser. É dona de uma potência incrível na voz, muito embora tenha um tipo físico mignon. Além disso, pertence ao seleto grupo de cantores capazes de transmitir a letra de suas músicas. Elton John, Bruce Springsteen, Rod Stewart, Van Morrison e, claro, Marie são artistas que fazem isso muito bem. Com sua música, contam uma história da maneira mais incrível. Não sei exatamente como fazem, talvez simplesmente saibam expressar as palavras da forma adequada. Se eu pudesse voltar e começar tudo de novo na minha carreira, eu me dedicaria exclusivamente a procurar esse tipo de voz.” “Marie tem o dom da oportunidade, uma capacidade de improviso fantástica e uma voz única”, diz Pelle Alsing. “Ela é a melhor cantora na Suécia”, diz Clarence Öfwerman. “Ela e Monica Zetterlund. Marie se entrega totalmente sem hesitar. Não é de se estranhar que ainda siga encantando o mundo inteiro. Ela tem esse quê a mais que ninguém mais tem.” Muitas pessoas falam precisamente disso, de sua entrega. Marie é capaz de entoar letras que, na boca de outro, poderiam soar bregas ou irrelevantes, mas que cantadas por ela se tornam totalmente críveis. Marie consegue fazer com que uma letra que diz “Este vai ser o melhor dia da minha vida” soe como a mais pura esperança, palavra por palavra. Talvez isso se deva à sua coragem, à sua maneira de se atrever a se expor, a entregar aquilo que sai do coração sem tentar ser irônica nem hipócrita. “Marie é muito intuitiva e confere vida a suas composições”, diz Kjell Andersson, que trabalhava na gravadora EMI quando Marie surgiu na cena musical. “Ela


tem credibilidade. Atinge aqueles que a escutam. Não sei o que é. Mantém os canais bem abertos, entre mim e você. Tem uma espécie de ingenuidade, de fascínio, que se conecta ao público imediatamente. Marie, quando canta, usufrui do momento, e isso também chega até o público.” Muitas pessoas me ajudaram a escrever este livro e abriram espaço para longas conversas a fim de ajudar Marie a montar o quebra-cabeças de seu passado. Deixo a todas elas um caloroso agradecimento: Pähr Larsson (o melhor amigo de Marie), Marika Erlandsson, Clarence Öfwerman, Anders Herrlin, Per Gessle, Åsa Gessle, Marie Dimberg, Christoffer Lundquist, Lasse Lindbom, Niklas Strömstedt, Efva Attling , Pelle Alsing, Lotta Skoog, Åsa Elmgren, Stefan Dernbrant, Martin Sternhufvud, Ika Nord, Thomas Johansson, Kjell Andersson, Jonas Åkerlund; à família de Marie: Tina Pettersson, Gertie e Sven-Arne Fredriksson, Ulla-Britt Fredriksson, Tony Fredriksson; aos amigos de infância: Kerstin Junér, Bitte Henrysson e Boel Andersson; e, por último, mas não menos importante (muito pelo contrário!), ao marido de Marie, Mikael Bolyos. Ele acompanhou Marie durante todo o curso de sua doença e não só foi um grande apoio para ela, como também testemunha importante que conserva lembranças de grande valor.

PRÓLOGO

HELENA VON ZWEIGBERGK Verão de 2015

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O RELATO DE MARIE SOBRE SUA DOENÇA Dia 11 de setembro de 2002, foi quando o inferno começou. No dia seguinte, tínhamos uma viagem marcada para a Antuérpia. Per Gessle e eu íamos fazer uma coletiva de imprensa. O Roxette ia sair em turnê para o Night of the Proms,1 na Bélgica, e a coletiva seria sobre nossa participação no evento. A ideia era eu pegar um voo cedo no dia seguinte. Per queria viajar naquele mesmo dia à tarde. Ele odeia acordar cedo e queria descansar de manhã. Mas eu não queria voar exatamente no dia do aniversário do ataque terrorista ao World Trade Center de Nova York. Assim,

1 O primeiro Night of the Proms foi criado em 1985 por dois estudantes belgas. Hoje acontece anualmente, mas não só na Bélgica; suas edições já foram realizadas em vários países na Europa. Em geral, é um grande concerto que conta com uma orquestra e a participação de uma banda de sucesso. Quando o Roxette foi convidado naquele ano de 2002, seria emblemático, pois marcaria o retorno deles aos palcos depois de oito anos sem fazer shows. [Nota do Editor]

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achei que era mais seguro esperar, madrugar e tomar um voo logo cedo. Naquela mesma manhã, Micke leu em voz alta para mim uma reportagem do jornal que falava precisamente sobre o aniversário da queda das Torres Gêmeas. O artigo falava de um jovem sueco que trabalhava em uma das torres naquela época. Infelizmente, ele desapareceu entre os escombros. Seus familiares jamais descobriram seu paradeiro. Lembro-me de que Micke e eu continuamos a conversar sobre o destino daquele homem. Provavelmente, na manhã dos ataques ele acordara pensando que aquele seria um dia como outro qualquer. Um ano antes, nas primeiras horas da manhã, aquele jovem sueco sequer fazia ideia do que o aguardaria dali a algumas horas. Juntos, constatamos como é bom não conhecer o futuro de antemão; que desconhecer nosso destino é uma espécie de dádiva. Nós também não sabíamos o que nos aguardaria dali a apenas algumas horas. Não sabíamos que nosso mundo iria virar de ponta-cabeça. Depois do café da manhã, Micke e eu saímos para correr, como era de praxe. Depois do treino de sempre, Micke quis apostar uma corrida, e eu o ultrapassei. Sim, eu era muito veloz naquela época. Quando chegamos em casa, senti um pouco de mal-estar. Estava cansada, indisposta e achei que seria bom descansar um pouco. Só que não havia tempo para isso; eu precisava arrumar as malas para a viagem. Porém, tive de me deitar um pouco. De repente, perdi a visão de um olho. Os enjoos foram aumentando, e aí corri até o banheiro para vomitar. Ali, desabei no


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chão e fiquei muito assustada. Logo em seguida, tudo ficou escuro. Sofri um ataque de epilepsia, o qual provocou espasmos por todo o corpo e me fez bater a cabeça no piso de pedra com tanta força que fraturei o crânio. Obviamente não entendi nada naquele momento. Mas me lembro de ter ouvido a voz de Micke, que parecia muito distante: “Marie! O que está acontecendo?”. Então tudo escureceu novamente. A imagem seguinte da qual lembro foi dentro da ambulância. Comecei a perceber pequenos feixes de luz diante dos meus olhos e ouvi a sirene. E então tudo preto de novo. Quando recobrei a consciência, vi Micke e Berit, a mãe dele, sentados ao lado da minha cama. “O que estou fazendo aqui”, perguntei. “O que aconteceu?” Um médico entrou na sala e me perguntou gentilmente se eu estava planejando sair em turnê. “Sim, claro”, respondi. E então ele informou, com a voz ainda tranquila e terna, que lamentavelmente eu teria de cancelar os planos. Aos poucos, fui começando a me dar conta de que estava em um hospital e que havia caído. Mas não podia nem imaginar que pudesse ser um tumor cerebral. Foi bem estranho minha visão simplesmente ter borrado e obviamente a situação me preocupava. Mas, inicialmente, achei que tivesse sofrido um acidente. Mais tarde, o médico voltou com as radiografias, e então me explicou que era possível ver um tumor na cabeça. Consegue imaginar meu choque? Minha primeira pergunta foi se eu ia morrer. O médico disse que não, que aquele tumor não acabaria com

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a minha vida, já que seria possível fazer uma remoção cirúrgica e depois extingui-lo com radioterapia. E isso foi basicamente o que registrei da conversa toda. Que eu tinha um tumor. Que era possível removê-lo. Que eu não ia morrer. O médico seguiu falando, mas não ouvi mais nada, ou não fiz questão de entender. Porque o que ele insinuou a seguir foi que o tumor iria se reproduzir, e aí talvez não fosse possível retirá-lo. Micke entendeu. Eu não. Micke se inteirou da gravidade da situação de maneira enviesada. Na verdade, nenhum de nós queria receber prognósticos negativos sobre minhas pequenas chances de sobrevivência. Queríamos lutar e manter nossas esperanças enquanto fosse possível. Outro médico, nosso conhecido, especialista em otorrinolaringologia, cuidou da lesão que tive no crânio ao bater a cabeça no piso. Como éramos mais próximos, devem ter pensado que ele estaria mais apto a nos informar sobre minha real situação. Ele então disse a Micke que me restava um ano de vida. Ao ver que Micke ficou branco como cera e que quase desmaiou, acrescentou rapidamente que eu também poderia viver mais uns dois anos. Ou quem sabe até três. Aquilo foi a coisa mais reconfortante possível a ser dita naquele momento. Na melhor das hipóteses, eu teria mais três anos de vida. Micke teve de começar a pensar em como iria preparar as crianças para contar que a mãe delas ia morrer. Josefin tinha nove anos, e Oscar, cinco. Naquele momento, viveu um verdadeiro inferno. Descreveu aquilo tudo como um monstro à espreita, de modo que não


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havia nada a ser feito. Apenas aguardar pelo ataque, com as mãos atadas às costas. Ficar aguardando, apavorado, enquanto eu seria consumida lentamente diante de seus olhos, sem que ele pudesse me ajudar ou fazer qualquer coisa a respeito; certamente uma das piores experiências pelas quais ele já passara. Sentir-se tão impotente. Micke não pôde fazer nada além de esconder de mim a gravidade da minha doença, pois eu tinha muitas esperanças e estava convencida de que ia ficar bem. Afinal, foi o que o médico dissera. Logo tudo voltaria ao normal. Pobre Micke. Como ele seria capaz de dar fim às minhas esperanças? Como poderia me dizer que o mais provável era que eu morresse? Ele descreve o fato de não ter podido ser honesto comigo como um divisor de águas em nosso relacionamento. Sempre tivemos o hábito de conversar abertamente sobre tudo. Sempre. Nenhum dos dois costumava deixar o outro de fora, de modo que nunca houve chance de surgir qualquer conflito que fosse entre nós. Nunca houve nada que não pudéssemos resolver. De repente, estávamos no meio de uma situação grave sobre a qual Micke não podia conversar comigo, e que além de tudo era caso de vida ou morte. Mas ele achou que seria melhor se eu vivesse tendo algo em que confiar. Queria me manter animada, enquanto ele, por sua vez, toleraria uma verdade muito diferente. Uma verdade sobre a qual não podíamos falar. Eu não desconfiava de nada e prometi a mim mesma superar a situação de qualquer maneira. Mas o que de fato se passava em meu íntimo? Para ser muito franca,

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eu queria mandar tudo aquilo às favas. Assim que eu soube do diagnóstico, eram esses os pensamentos que me vinham à mente à noite, quando eu ia dormir. Eu também não queria falar do assunto com Micke nem com as crianças. Eles às vezes perguntavam se eu ia morrer. Eu respondia que não, que não tinha tempo para isso. Mas no fundo, principalmente em momentos insones madrugada adentro, eu pensava que a morte era uma possibilidade. Eu só queria repetir que tudo ia ficar bem. Quem me olhasse de fora diria que não tinha nada de mais acontecendo. Assim, é possível afirmar que tanto Micke quanto eu ficamos isolados naquela situação. Como resultado da queda, sofri uma fratura na cabeça e passei a ter problemas de equilíbrio; por isso voltei do hospital para casa em uma cadeira de rodas. Oscar achou o brinquedo mais divertido do mundo. Não parava de andar em volta! Às vezes corria ao meu redor gritando de alegria: “Uhuu!”. Tempos depois, quando perdi o cabelo e muitas vezes me flagrei triste, ele aparecia de repente vestido de Batman e me fazia rir. Felizmente, desfrutamos de momentos como esses. Foram enviadas muitas flores para nossa casa. Foi lindo. Recebi, por exemplo, um buquê impressionante de Anni-Frid Lyngstad,2 que me animou bastante. Às vezes Micke achava horrível estarmos cercados por tantas flores, que elas simbolizavam a dor e a tragédia de maneira sufocante, que nossa casa parecia um

2 Frida, integrante do ABBA. [Nota do Tradutor]


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cemitério. Mas, claro, também achava que as pessoas eram muito queridas ao demonstrarem estar pensando na gente. Mas a pior parte foi lidar com a imprensa. Na noite após minha entrada no hospital em uma ambulância, o jornal Expressen telefonou e acordou meus irmãos, que moram em Escânia, ao Sul da Suécia, pedindo que comentassem sobre o ocorrido. Só que a gente sequer havia tido tempo de falar com eles e contar o que acontecera. Obviamente, para eles foi um choque; ficaram assustadíssimos. A imprensa continuou a insistir depois. Sabiam de mais alguma coisa? Ouviram alguma novidade? Não sei como os jornais ficaram sabendo tão rápido. Sabiam até que eu havia chegado ao pronto-socorro de ambulância. Não sei se já estavam de olho na nossa casa ou se captaram o pedido à central de emergências quando foi solicitada assistência ao nosso endereço. Ou pode ser que alguém do hospital tivesse passado a informação. Na primeira noite que passamos no hospital, jornalistas tocaram no interfone da nossa casa em Djursholm até as três da manhã. Quem nos contou foi Inger, nossa babá. Ela e as crianças, claro, ficaram estarrecidas com tudo aquilo. No fim das contas, tivemos de contratar três seguranças da empresa Securitas, os quais se revezavam para que a imprensa nos deixasse em paz. Além disso, éramos obrigados a deixar toda a casa apagada, para evitar as tentativas de fotógrafos de conseguir imagens da família em estado de choque. Os jornalistas seguiam Inger quando ela levava e buscava as crianças na escola.

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Certa vez, Micke precisava sair de casa de carro, mas não conseguiu. Teve de descer do veículo e perguntar aos repórteres se realmente era necessário bloquear nossos portões daquele jeito. Então um jornalista rebateu, dizendo que estava cumprindo as ordens do jornal. Na verdade, ele não queria estar ali, e parecia muito constrangido com a situação. Não sabemos quantos deles estavam de fato envergonhados com as circunstâncias, a única certeza é que fomos fortemente perseguidos e incomodados pela imprensa. Marie Dimberg, minha empresária, e também empresária do Roxette, entrou em contato com meus irmãos para dizer que eles não precisavam responder a nenhuma pergunta de jornalistas, que podiam simplesmente desligar o telefone caso a ligação fosse da mídia. Meus irmãos são pessoas muito queridas, que não estão acostumadas a destratar os outros; por causa disso, se sentiam impelidos a ajudar os jornalistas na medida do possível. O telefone de Marie Dimberg não parava de tocar. Sempre que lhe dávamos alguma informação sobre meu estado de saúde, os jornais ligavam para ela imediatamente. Era evidente que alguém de dentro do hospital vinha vazando dados a meu respeito. A imprensa recebia as informações mais ou menos no mesmo instante que a gente. Depois os repórteres perseguiam Marie Dimberg atrás de uma confirmação daquilo que haviam descoberto. Pelo menos uma pessoa do hospital Karolinska tentou ganhar dinheiro cedendo novas informações, e a imprensa sempre ficava atrás da gente para confirmá-las. Marie Dimberg falou também com a


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assessoria de imprensa e com o departamento de segurança do hospital a fim de dar fim aos vazamentos. Por causa de tudo isso, não demorou muito para que a imprensa descobrisse que eu tinha um tumor cerebral. Os jornalistas perseguiram todas as pessoas do nosso círculo social para confirmar a notícia. Por isso, em algum momento nos sentimos obrigados a revelar tudo ao público. Marie Dimberg enviou um breve comunicado à imprensa e optou por mandá-lo em um domingo à tarde, para que coincidisse com as eleições suecas. Desse modo, os jornais não poderiam estampar as capas com a notícia sobre o câncer na segunda-feira, pensou ela. Mas mesmo assim, houve um jornal que ocupou metade de sua capa com o assunto. O tumor foi removido e, no ano seguinte, fui submetida a uma radiocirurgia com o moderno sistema chamado Gamma Knife. Funciona assim: é colocada em sua cabeça uma coroa de metal com um eixo U e um eixo C. É importante que a radiação seja aplicada no lugar exato do cérebro. Exige-se precisão milimétrica. Por esse motivo, a coroa é aparafusada no crânio. Fiquei acordada durante todo o procedimento. Passaram uma pomada anestésica em mim, do mesmo tipo usado nos consultórios odontológicos. Ainda assim, eu sentia o sangue escorrendo junto com as lágrimas. De todos os tratamentos que fiz, certamente foi o pior. Foi tão desagradável! Era basicamente uma coroa de espinhos! Quando viu aquilo, Micke achou que fosse vomitar. Em meio a todo aquele turbilhão, também aconteceram outras coisas completamente absurdas. Quando eu estava na cama com a coroa presa à cabeça, após a cirurgia com a Gamma Knife, um médico que não co-

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nhecíamos entrou na sala. Ele queria me dizer que nas horas livres tocava guitarra em uma banda. Lá estávamos nós, aguardando pelos resultados daquela cirurgia horrorosa; eu não podia retirar a coroa até que os resultados estivessem claros. Enquanto isso, um médico queria que eu me interessasse pela banda na qual ele tocava como passatempo. Acho que nem neurologista ele era. O que se passa na cabeça das pessoas? Quando você é uma pessoa pública e está internada, muita gente quer entrar no seu quarto, ver você e tentar algum tipo de aproximação. Em determinada ocasião, uma enfermeira nos contou sobre seu marido, dizendo que era um sujeito estúpido e pão-duro, e que desejava se separar dele. Só que para isso, precisava de cento e cinquenta mil coroas suecas para poder comprar uma casa. Micke e eu chegamos à conclusão de que ela queria dinheiro. Com esses exemplos, dá para ver em que tipo de disparates acabamos nos metendo. Foi um período horrível. Mês após mês, mergulhados no desespero de não saber como estava se dando o progresso da minha doença. Havia tardes em que as crianças se sentavam para assistir à TV, e Micke e eu jantávamos na cozinha em silêncio. Nossas lágrimas desabavam sobre o prato de sopa. Assim que uma das crianças entrava, tínhamos de secar as lágrimas e tentar recuperar o ânimo. Acabamos nos tornando pais diferentes. Foi inevitável. Obviamente, tentávamos não estar sempre imersos na tristeza e na preocupação, mas “aquilo” estava ali o tempo todo. Era algo que nos apavorava. Já não tínhamos mais a mesma capacidade de prestar atenção


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às crianças. Eu me sentia totalmente abatida, aturdida pelos acontecimentos, e Micke estava constantemente preocupado. Naturalmente, tudo aquilo as afetou. Foi então que acolhemos nosso gato, Sessan, para que as crianças tivessem outra coisa com a qual se distrair. Quando ficávamos tristes demais, Micke e eu também nos permitíamos alguns caprichos. Uma fuga da realidade. Em muitas ocasiões bebemos uma boa quantidade de vinho à tarde, e vivíamos como se cada dia pudesse ser o último. Ao mesmo tempo em que a preocupação dificultava a tarefa de dar atenção às crianças como antes, nosso foco também se dirigia principalmente a elas. Eu só pensava nos meus filhos, meus filhinhos. “Imagine se morro agora!”; “Uma mãe não pode morrer.”; “Tenho de cuidar das crianças! E de Micke!” Sofri um estresse imenso. “Vou morrer agora? Vou morrer agora?” Mas logo eu era tocada pelo poder divino: “Não posso morrer agora!”. Sou dotada de uma fé muito forte; desde pequena, eu a vivencio de forma muito particular, é minha e está dentro de mim. Quando criança, eu cantava no coral da igreja, e isso foi muito importante para mim. Ali eu sentia muita serenidade e conforto. A força que a fé me proporcionava me ajudou a superar muitos momentos difíceis. Estávamos vivendo em um limbo. Tentávamos seguir normalmente, embora muitas vezes não funcionasse justamente por ser algo impossível. Lutávamos para manter vivos alguns hábitos que mantínhamos com as crianças, mas a maior parte do tempo acabava sendo passada no hospital.

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Às sextas-feiras, por exemplo, costumávamos brincar de caça ao tesouro. O tesouro era o pacote de guloseimas da semana, o qual elas tinham de encontrar. Era uma tradição familiar tão forte que era comum passarmos metade da sexta planejando como seria feita. Quando adoeci, tivemos de organizar a brincadeira nos corredores do hospital Karolinska. Mas só brincamos uma vez; depois desistimos. Ficou muito nítido que algo tinha mudado. Simplesmente parecia forçado tentar fingir que as coisas continuavam como antes. Não consigo me expressar sem chorar ao falar das limitações que senti como mãe devido ao meu tumor cerebral. Antes de ficar doente, eu era uma pessoa forte, que dava conta de tudo. Não poder ser a mãe que eu queria ser talvez tenha sido a pior parte da doença. Algumas pessoas que enfrentam dificuldades costumam dizer que, até então, não tinham noção do tamanho da sorte que possuíam. Mas nós sempre soubemos. Costumávamos comentar entre nós: “Temos muita sorte. Amor, sucesso, saúde”. Ainda penso nisso quando olho as fotos do anuário escolar das crianças, feito logo antes de eu adoecer. Éramos uma família incrivelmente feliz. Tínhamos tudo. Ser afetado por algo assim faz com que toda sua vida desmorone, é uma coisa impossível de entender se você não vivenciou intimamente. Até achei positivo o fato de as crianças ainda serem novinhas e não compreenderem muito bem tudo o que se passava. Bom, Josefin certamente entendia, mas Oscar não sabia exatamente o que estava acontecendo. Durante os momentos mais críticos, eles passavam muito tempo com Inger. E eu passava a maior parte


do tempo entrando e saindo de diferentes internações hospitalares. Micke rezava, pedindo que nossos filhos pudessem crescer um pouco mais antes de eu morrer. Ele só me contou isso depois de algum tempo. Ele rezava para que eles pudessem ter uma imagem mais nítida da mãe, para que tivessem a possibilidade de se lembrar bem de mim. Para que Oscar ao menos tivesse tempo de completar nove anos. Mas, ao mesmo tempo, ele mesmo sabia que era pedir demais. A radioterapia provocou a queda dos meus cabelos. Quando chegou o Natal, mais e mais tufos iam caindo. Micke temeu que aquele fosse nosso último Natal juntos. E poderia ter sido assim. Tive uma sorte incrível. “ATÉ AGORA NÃO CONSEGUI PRONUNCIAR AS PALAVRAS TUMOR CEREBRAL”

Em janeiro, seis meses depois de eu receber o diagnóstico de que tinha um tumor cerebral, o Roxette recebeu das mãos do rei Carl Gustaf uma medalha por sua contribuição para a música. Micke disse que provavelmente acharam que eu morreria logo, por isso tiveram pressa. Certamente ele tem razão. De qualquer forma, fiquei lisonjeada e feliz pela honraria. Ao mesmo tempo, foi muito difícil. Eu não havia aparecido publicamente desde que adoeci e estava praticamente careca. Marie Dimberg e eu fomos procurar um chapéu para mim, e encontramos um com uma estampa de pele de leopardo. Na noite anterior à cerimônia da entrega da medalha, um repórter do Expressen, Niclas Rislund, foi à casa de Marie Dimberg. Era tarde da noite e Marie já havia se

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deitado. Niclas Rislund disse a ela que alguém o informara que meu tumor havia se espalhado, que eu tinha metástases e que o câncer se alastrara pelas mamas e pelo restante do corpo. Marie respondeu que não comentava boatos sobre a minha saúde e que queria voltar a dormir. Mas ele fincou o pé e exigiu que ela me ligasse para confirmar que a informação dele estava correta. Ela lhe pediu que tivesse o mínimo de consideração e me deixasse em paz. Ele disse que ia publicar a informação de qualquer forma, por isso o ideal era que ela atendesse a sua solicitação. Marie Dimberg acabou saindo do sério. Tiveram uma discussão aos berros. Niclas Rislund seguia afirmando que ela era a representante de uma pessoa pública e que, como tal, tinha certas obrigações. Marie rebatia que não tinha nenhuma obrigação de informar nem a ele nem ao Expressen sobre a evolução da minha doença. A discussão terminou quando Marie bateu a porta na cara do sujeito. Ela nos ligou na manhã seguinte para perguntar se tínhamos lido o Expressen. Não tínhamos. “Então não leiam”, aconselhou. “Se puder, evitem.” Mas como poderíamos evitar? As capas do Expressen espalhadas por todas as bancas da cidade diziam que o câncer havia tomado meu corpo. O artigo estava impregnado pela ideia de que não me restava muito tempo de vida. Obviamente, eu não tinha câncer de mama nem metástases. Marie Dimberg divulgou um comunicado à imprensa para desmentir a notícia. O editor-chefe daquela época, Otto Sjöberg, falou de fontes confiáveis


Ter de enfrentar as mentiras do Expressen em meio a tudo aquilo era a última coisa da qual precisávamos. O procurador-geral de Justiça denunciou, por conta própria, o hospital Karolinska. O médico que tinha me operado nos telefonou, surpreso, e nos contou que cinco policiais apareceram no hospital e revistaram seu consultório. Foi bastante desagradável para ele, mas obviamente ele também estava tão interessado quanto a gente em saber de onde estariam se originando os vazamentos. Na Suécia, a violação do sigilo profissional é um crime grave que pode ser punido com até três anos de prisão.

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no hospital Karolinska. Nós, como família, não gostamos nada daquilo. E isso aconteceu no mesmo dia em que receberíamos a medalha das mãos do rei. Não sei se as pessoas não envolvidas conseguem entender o que um ser humano sente ao ler algo assim sobre si mesmo, quando condenam você à morte diante de todo mundo baseando-se em informações falsas. Você não conseguir se sentir tranquilo e seguro nem mesmo em um hospital. Saber que há pessoas dispostas a tentar ganhar dinheiro às custas das nossas desgraças. Ver nossa dor se transformar em uma bolachinha para as pessoas degustarem no desjejum. Eu estava tão nervosa quando me entregaram a medalha, que na foto ela aparece de cabeça para baixo. Eu sentia todos os olhos fixados em mim, como se quisessem analisar meu aspecto de doente. Olhar dos pés à cabeça a mulher sobre a qual tinham lido no jornal, aquela que estava morrendo com uma metástase espalhada pelo corpo inteiro. Esse dia foi horrível.

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Muitas pessoas ficaram indignadas diante da postura de Otto Sjöberg e do Expressen. O programa de TV Mediemagasinet (Revista da mídia) apresentou nosso caso como um dos piores assédios por parte dos meios de comunicação na história moderna. Sentimo-nos tão ofendidos e humilhados, que cogitamos processar o Expressen. Além disso, queríamos mostrar às crianças que não permitiríamos que contassem inverdades a nosso respeito. Decidimos entrar em contato com Leif Silbersky, advogado renomado por sua experiência em casos ligados a meios de comunicação. Analisando em perspectiva, é fácil concluir que ele deveria ter nos convencido a desistir da ideia desde o princípio. Infelizmente, do ponto de vista jurídico, você se apresentar à Justiça e dizer que alguém agiu de maneira moralmente repugnante e demonstrou insensibilidade diante do sofrimento alheio não basta para justificar a abertura de uma ação. Sob o nosso ponto de vista, um jornalista não podia simplesmente mentir e divulgar que uma pessoa tinha um diagnóstico mortal quando isso era uma falácia. Acreditávamos que isso bastaria para abrir um processo. Mas as coisas não eram tão simples assim. Apesar de tudo, Silbersky tentou encontrar uma alternativa para nos ajudar. Ele descobriu um caso já julgado, no qual pegaram uma foto de uma cena de sexo grupal e colaram caras de pessoas famosas sobre os rostos dos verdadeiros participantes. Esse caso, que abria um precedente, baseava-se no fato de as vítimas da montagem terem sido inseridas em situação duvidosa. Essa era nossa chance de processar o Expressen.


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Leif Silbersky era um personagem curioso. Uma das primeiras coisas que fez quando entramos em contato, foi nos dizer que sua filha estava prestes a fazer quarenta anos. Era uma grande fã do Roxette. Por isso, ele pedira a um jornal vespertino para fazer uma versão de sua capa com uma manchete que dizia que ela era o terceiro membro do Roxette. Então nos perguntou se Per e eu estaríamos dispostos a autografar o presente. Uma iniciativa engraçada do advogado, que ia nos ajudar no pior momento da nossa vida. Como se tudo fosse uma brincadeira. Assim, de acordo com Leif Silbersky, a única possibilidade de prosperar em nosso processo contra o Expressen seria por meio da alegação de que as mentiras do jornal haviam levantado dúvidas sobre a minha pessoa. Ele queria que Micke dissesse em juízo que, ao ver a capa do Expressen, pensou que eu tivesse mentido. Teria de fazer o papel de marido genuinamente ferido, que desconfiava que sua mulher tivesse escondido a real gravidade de seu estado. A partir desse argumento também poderíamos alegar que isso abalou minhas relações profissionais. Quando Marie Dimberg, Micke e eu estávamos reunidos no escritório de Silbersky, Micke disse que não conseguiria fazer tal coisa. Que achava um absurdo ter de mentir daquele jeito. Não era assim que nosso relacionamento funcionava. Mas o que ele achava mais absurdo ainda era ter de mentir para conseguir processar um jornal justamente por este estar publicando mentiras. Apesar de termos gastado algumas centenas de milhares de coroas suecas para abrir um processo contra

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o Expressen, acabamos desistindo da ação. Íamos levar no mínimo cinco anos e seríamos obrigados a seguir convivendo com aquilo o tempo todo. Todo o escândalo do Expressen nos foi uma história cara e desagradável. Ainda hoje consideramos que Otto Sjöberg, à época editor-chefe do jornal, foi a pessoa que mais causou danos à nossa família — e ele sequer fez qualquer menção de pedir desculpas por isso. Éramos uma família diretamente afetada por uma doença grave, estávamos abalados e abatidos; e realmente achávamos que não precisávamos ser usados para vender mais jornais. Durante todo esse tempo, não sabíamos se eu iria sobreviver. Eu não queria pensar nisso e Micke tentava lidar com a situação do melhor jeito possível. Mas nenhuma porra de câncer tinha se espalhado pelo meu corpo. O microscópico fio de esperança que tínhamos era a única coisa que nos permitia seguir vivendo. Talvez também por isso as falácias do Expressen tenham sido tão insuportáveis. Essas mentiras me ilustravam como alguém ainda mais doente do que eu estava de fato, e com elas, a esperança daqueles que se preocupavam conosco também se apagavam. Aquilo doeu terrivelmente.

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Tentei ser criativa durante o câncer também. Logo depois da primeira cirurgia, Micke e eu fizemos o álbum The Change. O disco foi resultado de um trabalho que tínhamos começado antes de eu adoecer. Já havíamos gravado juntos uma versão de uma música chamada “The Good Life”. A ideia era aproveitar a luz e as coisas boas da vida em meio à nossa tragédia.


Lennart Östlund, o técnico de som que mixou o álbum, era um cara muito legal. Evitávamos pensar na doença o tempo todo, ainda que às vezes Micke acabasse tendo de ligar para o médico e verificar o tom das músicas quase de maneira simultânea. O trabalho com o disco era uma área protegida. Ainda acho que é um dos melhores projetos que já fizemos juntos. Obviamente, as letras eram sobre a alegria de estar vivo. Na escuridão mais absoluta, fizemos um álbum luminoso. Esta é uma das letras mais tristes do disco, mas descreve precisamente como eu me sentia na época:

De repente, a mudança estava aqui Fria como gelo e repleta de medos Não havia nada que eu pudesse fazer Eu vi imagens em câmera lenta de mim e de você. De longe, ouvi você chorar As rosas sobre a minha mesa morreram lentamente De repente, a mudança estava aqui Eu segurei suas mãos, e você secou minhas lágrimas A noite ficou preta e triste

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Suddenly the change was here Cold as ice and full of fear There was nothing I could do I saw slow motion pictures of me and you. Far away I heard you cry My table roses slowly died Suddenly the change was here I took your hands, you dried my tears The night turned into black and blue

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Still we wondered why me and you After all we’re still here I held your hand, I felt no fear Memories will fade away Sun will shine on a new clear day New red roses in my hand Maybe some day we will understand Maybe one day we will understand Ainda nos perguntamos por que você e eu Afinal ainda estamos aqui Segurei sua mão, não senti medo As memórias vão desaparecer O sol vai brilhar em um novo dia Novas rosas vermelhas na minha mão Talvez um dia sejamos capazes de entender Talvez um dia sejamos capazes de entender Ainda penso que as letras refletem fielmente o momento que estávamos vivendo. Desespero, amor, perplexidade e, ao mesmo tempo, um intenso desejo de encontrar algum tipo de esperança e de sermos capazes de aproveitar cada raio de luz que surgisse. Por pior que fosse, sempre tentei manter meu lado criativo vivo. Para Micke, cuidar de mim se tornou uma LISTEN TO MY HEART

ocupação de período integral. Ele me levava e me bus-

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cava no hospital, e me ajudava a lembrar as instruções sobre os remédios e os tratamentos. A notícia sobre o meu câncer se espalhou pelo mundo inteiro. Meus fãs me mandaram uma lista de nomes de pessoas que tinham dado início a uma corrente de oração por mim. Rezavam para eu ficar bem. Emoldurei


essa carta e a conservo como um dos meus bens mais preciosos. Foi muito importante para mim. Muitas pessoas também entraram em contato conosco para propor tratamentos alternativos. “Deposite vinte mil dólares nesta conta e passe a consumir esta areia.” Sugestões mais ou menos desse tipo. Um médico egípcio de uma universidade chinesa foi um dos que entraram em contato. Micke falou com o oncologista Stefan Einhorn, para saber o que ele achava desse tal médico. Stefan contou que o sujeito até havia ministrado uma conferência no Instituto Karolinska, mas que na verdade era um pilantra. Também me lembro de o Dr. Stefan nos contando, numa tentativa de nos consolar, que seu pai também havia tido câncer, e que chegou a ser condenado pelos vida. Mas, no fim, esse médico acabou morrendo antes de seu pai. O propósito de Stefan obviamente era nos tranquilizar na medida do possível: afinal, ninguém tem como saber de fato quanto tempo lhe resta de vida. No entanto, não foi um grande consolo. Na nossa situação, o que queríamos ouvir mesmo era que um comprimido nos traria a cura. Essa era a única coisa que queríamos ouvir. Mas ele tentou nos fazer ver a vida com outros olhos. Tudo com a melhor das intenções. Entramos em contato com a clínica Vidarkliniken, um hospital para os adeptos da Antroposofia. Eles têm clínicas que tratam o câncer. Porém, os tipos de cuidados que ofereciam pareciam mais orientados a pacientes terminais. Os pacientes se dedicavam à arte contemplativa.

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médicos, tendo ouvido que tinha apenas um ano de

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O médico que me recebeu nesse lugar era uma pessoa terrível. Começou lendo a cartilha do local. O panfleto basicamente dizia que, se eu tinha câncer, a culpa era minha, que como o tumor estava crescendo no meu corpo, eu era a responsável por ele estar ali. Que eu mesma tinha causado a doença. Desabei. Naquele momento, eu só conseguia lidar com pessoas delicadas, e aquele médico foi bastante crítico e ríspido. Disse que eu havia prejudicado meu sistema imunológico por, entre outras coisas, consumir álcool. Nunca vou esquecer, nunca me senti tão humilhada como naquela ocasião, frente ao seu monólogo insuportável. De qualquer forma, ele me receitou um extrato de ervas naturais que só se podia ser conseguido em Järna, um povoado na Suécia. Um táxi ia buscar o extrato regularmente. Eram três horas de viagem, e as ervas custavam milhares de coroas suecas em cada reposição. Quando se está na situação em que nos encontrávamos naquele momento, seus níveis de exigência costumam decair muito, por isso é praxe obedecer a tudo o que mandam fazer.

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Micke moveu montanhas, de fato fez tudo o que podia. Sua escrivaninha estava sempre repleta de anotações nas quais ninguém podia mexer. Ele entrou em contato com um oncologista dos Estados Unidos e começou a lhe enviar minhas radiografias. Agendou uma consulta para que o visitássemos. O hospital ficava em Houston, no Texas. Eu me neguei a ir. Sentia-me fraca. Era simplesmente demais para mim, eu só queria ficar tranquila, não queria ficar me deslocando.


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Perguntamos a Stefan Einhorn o que ele achava do assunto. Ele então nos disse que poderíamos fazer duas coisas: ou buscar tratamentos alternativos, como Micke vinha fazendo, ou não fazer nada. Ambas as opções eram igualmente boas. O tratamento do câncer na Suécia tem níveis de qualidade tão altos, disse ele, que poderíamos tranquilamente permanecer em casa. Então tomamos uma decisão: íamos confiar nos tratamentos oncológicos oferecidos pelo sistema de saúde sueco. Foi muito bom termos escolhido tal opção. A partir daquele momento, nós todos ficamos mais tranquilos. Micke sempre tentava me preparar para a morte. Era muito difícil para ele tentar saber, por exemplo, como eu gostaria que fosse meu enterro sem destruir o escudo de negação sob o qual eu me protegia. Ele entrou em contato com a clínica Erstagården, instituição que visitamos para participar de uma terapia que nos preparava para enfrentar a morte de um familiar. Estivemos lá e conversamos, mas eu não era capaz de assimilar que realmente estávamos falando de mim. Micke ligou também para o pároco de Östra Ljungby que tinha sacramentado minha crisma, meu casamento e o batizado dos nossos filhos. Uma pessoa muito querida e compreensiva. Veio aqui, à nossa casa. Durante o encontro, não parei de chorar, eu não conseguia entender — ou não queria entender — o assunto sobre o qual todos queriam falar comigo. Micke teve de usar várias artimanhas para me estimular a dizer como eu queria que fosse meu enterro. Contava, por exemplo, como queria que fosse o dele para, depois, me perguntar como eu gostaria que fosse o meu. É horrível lembrar desses momentos!

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Já se passaram mais de treze anos desde que tudo isso aconteceu, e sabe que até agora não consegui pronunciar as palavras tumor cerebral? Durante muito tempo, fui incapaz de dizê-las em voz alta. O choque permaneceu ao longo de anos. E a dor. Foi muito difícil assimilar que eu estava tão doente, embora eu tenha aprendido a admitir aos poucos. Eu preferia não tocar no assunto. Era como se eu pudesse impedir a doença de existir caso não reconhecesse sua existência. A ideia de que poderia morrer era algo que eu conseguia assumir apenas por instantes, comigo mesma, à noite. Mas diante dos outros, eu queria fingir que não estava acontecendo nada relacionado ao câncer ou à morte. Era como um elefante na sala. Eu tentava fingir que tudo estava normal, mas qualquer um perceberia facilmente que não, não estava. O fato de poder falar disso agora é muito válido. A dor derrubou as comportas. Antes, estava tudo preso lá dentro. Agora, felizmente, Micke e eu conseguimos falar abertamente sobre o câncer. Mas demorou muito tempo para que realmente pudéssemos fazê-lo de verdade. Levei muito tempo para reconhecer que estava doente. Por isso, para mim, agora é tão importante contar tudo neste livro. Para que outros saibam como foi. Talvez ele possa dar esperança ou servir de consolo a outras pessoas.


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