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2 236-393 9 ISSN

EDIÇÃO 32 R$ 16,90 OUT/NOV 2016 ANO 05

A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A ARTE E CULTURA CONTEMPORÂNEA E D I Ç Ã O D E A N I V E RS Á R I O 5 ANOS

OUT / NOV 2016 SEGREDO WWW.SELECT.ART.BR

SEGREDO Curtain II (2008), Ulla von Brandenburg

TONY OURSLER LAURA LIMA GUTO LACAZ HILMA AF KLINT ERNESTO NETO 32ª BIENAL DE SP 32

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58 PORTFÓLIO

4

LAURA LIMA

Sem Título (2015), da série Ágrafo, que esconde material secreto sob tecido branco semitransparente e cordas, de Laura Lima

O s e g re d o c o n t i d o n o s t ra b a l h o s d a s é r i e Á g ra fo

70

76

82

100

114

PERFIL

HISTÓRIA

FOTOGRAFIA

ENTREVISTA

EM CONSTRUÇÃO

BELKINS AYÓN

ALTA OCULTURA

ÓTICA EXTÁTICA

ERNESTO NETO

INSOLITUS

Artista cubana

Artista diz que

Regina Silveira

enfrentou

Conhecimentos

O que não pode ser

tudo está visível

ocupa a Fundação

universo mítico

secretos

visto a olho nu, mas

na dimensão

Eva Klabin

e misógino

infiltram-se na arte

pode virar fotografia

espiritual

no Rio

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ÍNDEX

50

SEÇÕES

CURADORIA

6 12 14 40 42 46 48 108

O PARADOXO DO SEGREDO

Editorial Comentários / seLecT Expandida Selects / Agenda

5

Artistas renovam interesse pelo desconhecido

Acervos Itaú Cultural Coluna Móvel Fogo Cruzado Mundo Codificado Reviews

106 CRÍTICA

32a BIENAL DE SP As propostas mais instigantes na atualidade assentam-se em imaginações alternativas e gestos mínimos, escreve Cristiana Tejo

64 PORTFÓLIO

HILMA AF KLINT À obra tornada pública após a morte atribui-se hoje o pioneirismo da abstração

90 ENSAIO

FASCISTAS SECRETOS Sociedade secreta embasou ideologia nazista FOTOS: CORTESIA ULLA VON BRANDENBURG E ART CONCEPT / PAULA ALZUGARAY / CORTESIA SERPENTINE GALLERY / CORTESIA JORG HEISER

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E D I TO R I A L

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EDIÇÃO SECRETA (DO YOU WANT TO KNOW A SECRET?)

Qual a diferença entre o segredo e o mistério?

da arte abstrata; Gary Lachman escrevendo

A pergunta me caiu como um desafio, enigma

sobre a subcultura ocultista infiltrada nas artes

ou charada, lançada por uma amiga quando

e na cultura contemporânea; a artista cubana

descobriu o tema da 32a edição de seLecT. O

Belkis Ayón e a seita Abakuá, por Orlando Her-

mistério é o desconhecido, por todos. Já o se-

nández; Jörg Heiser sobre as raízes ocultas do

gredo deve ser necessariamente conhecido

Nazismo; os Ágrafos de Laura Lima, por Marta

por, pelo menos, uma pessoa. E, quase sempre,

Mestre; o Mundo Codificado de Guto Lacaz;

é compartilhado com um confidente. Isso quer

Tunga alquímico, por Fernanda Lopes; a Socie-

dizer que, na ordem do que é secreto, está im-

dade Cavalieri, por Pierre Menard; as coleções

plícito o gesto original da comunicação.

de fantasmagorias de Tony Oursler e de Mario

A arte conta segredos a quem estiver dispos-

Ramiro; os rituais indígenas de Ernesto Neto; as

to a escutá-los. O papel de uma revista de

joias de duas importantes coleções particula-

arte é disseminá-los para mais e mais gente,

res brasileiras, por Luciana Pareja Norbiato; e

ampliando assim o grupo dos amantes e ini-

as incertezas da 32a Bienal de São Paulo, em

ciados na mais antiga das formas de pensa-

crítica de Cristiana Tejo.

mento e expressão humana. Viemos, portan-

Que os segredos sussurrados aqui contribuam

to, nesta edição comemorativa de nossos 5

para amplificar o poder de transformação da

anos de vida, revelar os segredos que ouvimos

arte e que este aniversário seja a celebração

de artistas, curadores e escritores envolvidos

dos muitos encontros que estão por vir.

com o tema. As cortinas da seLecT #32 abrem-se com ensaio de Cristina Ricupero, curadora radicada em Paris e nossa editora convidada. Ricupero traduz para o meio editorial a exposição Sociedades Secretas (Schirn Kunthalle, Frankfurt, e CAPC Musée D’Art Contemporain, Bordeaux), a fim de introduzir nosso leitor no mundo mental das SS. Com obras de Ulla von Brandenburg, Eva Grubinger, Brice Dellsperger, Fabian Marti e Jim Shaw, a curadoria é um ritual de iniciação. Nossa confraria secreta inclui ainda Jennifer

Paula Alzugaray

Higgie, apresentando Hilma af Klint, pioneira

Diretora de Redação

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EXPEDIENTE

EDITOR E DIRETOR RESPONSÁVEL: DOMINGO ALZUGARAY EDITORA: CÁTIA ALZUGARAY PRESIDENTE-EXECUTIVO: CARLOS ALZUGARAY

8

EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY

DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY DIREÇÃO DE ARTE: RICARDO VAN STEEN DESIGNER: SAUL SALES REPORTAGEM: FELIPE STOFFA E LUCIANA PAREJA NORBIATO REPORTAGEM DIGITAL: ANA ABRIL CONSELHO EDITORIAL: GISELLE BEIGUELMAN E MÁRION STRECKER COLABORADORES

Bianca Coutinho Dias, Cristiana Tejo, Cristina Ricupero, Fernanda Lopes, Gary Lachman, Guto Lacaz, Jennifer Higgie, Jörg Heiser, Marta Mestre, Orlando Hernández

PROJETO GRÁFICO

Ricardo van Steen e Cassio Leitão

SECRETÁRIA DE REDACÃO COPY-DESK E REVISÃO PRÉ-IMPRESSÃO

CONTATO

MARKETING

PUBLICIDADE

Roseli Romagnoli Hassan Ayoub High Pass

faleconosco@select.art.br

DIRETOR: Rui Miguel ASSISTENTE DE MARKETING: Andreia Silva

DIRETOR NACIONAL: Maurício Arbex DIRETORA: Ana Diniz GERENTES EXECUTIVOS DE PUBLICIDADE: Batista Foloni Neto, João Fernandes, Tania Macena e Rita Cintra SECRETÁRIA DIRETORIA PUBLICIDADE: Regina Oliveira EXECUTIVA DE PUBLICIDADE: Andréa Pezzuto ASSISTENTE DE PUBLICIDADE: Eyres Mesquita ASSISTENTE ADM. DE PUBLICIDADE: Ederson do Amaral COORDENADORES: Gilberto Di Santo Filho CONTATO: publicidade@editora3.com.br RIO DE JANEIRO-RJ: COORDENADORA DE PUBLICIDADE: Dilse Dumar; Tel.: (21) 2107-6667 / Fax (21)2107-6669 BRASÍLIA-DF: Gerente: Marcelo Strufaldi. Tel.: (61) 3223-1205 / 3223-1207; Fax: (61) 3223-7732 ARACAJU-SE: Pedro Amarante - Gabinete de Mídia - Tel./Fax: (79) 3246-4139/9978-8962. BELÉM-PA: Glícia Diocesano - Dandara Representações - Tel.: (91) 3242-3367 / 8125-2751. BELO HORIZONTE - MG: Célia Maria de Oliveira - 1ª Página Publicidade Ltda.; Tel./Fax: (31) 3291-6751 / 99831783. CAMPINAS-SP: Wagner Medeiros - Parlare Comunicação Integrada - Tel.: (19) 8238-8808 / 3579-8808. CURITIBA-PR: Maria Marta Graco - M2C Representações Publicitárias; Tel./Fax: (41) 3223-0060 / 9962-9554. FLORIANÓPOLIS-SC: Anuar Pedro Junior e Paulo Velloso - Comtato Negócios; Tel./Fax: (48) 9986-7640 / 9989-3346. FORTALEZA-CE: Leonardo Holanda - Nordeste MKT Empresarial - Tel.: (85) 9724-4912 / 88322367 / 3038-2038. GOIÂNIA-GO: Paula Centini de Faria – Centini Comunicação - Tel. (62) 3624-5570 / 9221-5575. PORTO ALEGRE -RS: Roberto Gianoni - RR Gianoni Com. & Representações Ltda. Tel./Fax: (51) 3388-7712 / 9985-5564 / 8157-4747. RECIFE-PE: André Niceas e Eduardo Nicéas - Nova Representações Ltda - Tel./Fax: (81) 3227-3433 / 9164-1043 / 9164-8231. SP/RIBEIRÃO PRETO: Andréa Gebin - Parlare Comunicação Integrada; Tel.s: (16) 3236-0016 / 8144-1155. BA/SALVADOR: André Curvello - AC Comunicação - Tel./ Fax: (71) 3341-0857 / 8166-5958. VILA VELHA-ES: Didimo Effgen-Dicape Representações e Serviços Ltda. - Tel./Fax (27)3229-1986 / 8846-4493 Internacional Sales: Gilmar de Souza Faria - GSF Representações de Veículos de Comunicações Ltda - Fone: 55 11 9163.3062. MARKETING PUBLICITÁRIO - DIRETORA: Isabel Povineli GERENTE: Maria Bernadete Machado ASSISTENTES: Marília Trindade e Marília Gambaro. REDATOR: Bruno Módulo. DIR. DE ARTE: Victor S. Forjaz.

ASSINATURAS E OPERAÇÕES

CENTRAL DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE

WWW.SELECT.ART.BR

Três Comércio de Publicações Ltda. Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP

(11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 OUTRAS CAPITAIS: 4002.7334 DEMAIS LOCALIDADES: 0800-888 2111 (EXCETO LIGAÇÕES DE CELULARES) ASSINE www.assine3.com.br EXEMPLAR AVULSO www.shopping3.com.br

SELECT (ISSN 2236-3939) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661-7320 COMERCIALIZAÇÃO: Três Comércio de Publicações Ltda.: Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP; DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA EM BANCAS PARA TODO O BRASIL: FC Comercial e Distribuidora S.A., Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678, Sala A, Osasco - SP. Fone: (11) 3789-3000. IMPRESSÃO: Log & Print Gráfica e Logística S.A.: Rua Joana Foresto Storani, 676, Distrito Industrial, Vinhedo - SP, CEP: 13.280-000

PAT R O C Í N I O :

MINISTÉRIO DA CULTURA

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COLABORADORES

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cristiana tejo

guto lacaz

cristina ricupero

gary lachman

fernanda lopes

Curadora independente, doutoranda em Sociologia (UFPE) e cofundadora do Espaço Fonte – Centro de Investigação em Arte. Foi diretora do Mamam, no Recife, e curadora de artes visuais da Fundaj - crítica P 106

Artista visual. Arquiteto pela FAUSJC. Tem obras públicas no Parque Pedreira do Chapadão (Campinas) e Sesc Belenzinho (SP), entre outros. Fez mostras como Santos-Dumont Designer (Museu da Casa Brasileira, SP, 2006) e espetáculos performáticos como Ludo Voo (2015) - mundo codificado P 48

Editora convidada da edição de 5 anos da seLecT. Curadora e crítica de arte, residente em Paris, foi consultora curatorial da SeMA Bienniale Mediacity Seoul (Coreia do Sul, 2016). Entre suas curadorias incluem-se The Crime Was Almost Perfect (Witte de With, 2014), Suspicious Minds (Vermelho, 2013); e Populism (The Stedelijk Museum, Amsterdam) - curadoria P 50

Um dos fundadores da banda de rock Blondie, é conferencista, articulista e autor de livros como Jung - O Místico, Madame Blavatsky: A Mãe da Espiritualidade Moderna e A História Secreta da Política Ocidental. Sua pesquisa tem como base cultura, consciência e tradição mística do Ocidente. - história P 90

Crítica de arte. Autora dos livros Experiência Rex e Área Experimental, e organizadora do livro Francisco Bittencourt: Arte-Dinamite (prelo), atualmente trabalha como Curadora Assistente do MAM RJ - coluna móvel P 44

orlando hernández

jörg heiser

Nascido em Cuba em 1954, é curador, crítico, historiador de arte, poeta e pesquisador de cultura popular cubana e de artes rituais afro-cubanas. É curador da The von Christierson Collection, Contemporary Afrocuban Art (Londres). - perfil P 58

Crítico e coeditor da revista Frieze. Como curador realizou as mostras Romantic Conceptualism (2007, Kunsthalle Nürnberg, Fundação BAWAG Viena) e Funky Lessons (2004/2005, BüroFriedrich Berlin, Fundação BAWAG Viena) - ensaio P 76

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bianca coutinho dias

marta mestre

É escritora, psicanalista, crítica de arte e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense em Estudos contemporâneos das artes. - reviews P 113

Portuguesa, é uma das curadoras do Instituto Inhotim (Brumadinho, Minas Gerais). Foi curadora assistente no MAM RJ (2010-2015) - portfólio P 64

jennifer higgie

Escritora, coeditora da revista Frieze e editora da feira Frieze Masters, Londres - portfólio P 70

PARA IDENTIFICAR OS COLABORADORES, UTILIZE O DECODIFICADOR DE PALAVRAS PROPOSTO POR GUTO LACAZ NA PÁGINA 48

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COMENTÁRIOS

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"Que capa MARAVILHOSA!!!"

ANNA BELL A GEIGER JAIME L AURIANO TANIA BRUGUER A SOL AR DOS ABACA XIS 9ª BIENAL DE BERLIM 32ª BIENAL DE SP

A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A

Bruno Faria, artista, via Facebook

One Flew Over the Void (Bala Perdida, 2015), frame de vídeo de Javier Téllez

"Ótima portada!!!"(Ótima capa!!!) Pablo León de La Barra, curador, via Facebook MIGRAÇÕES

"Dois fenômenos curiosos devem ter relação entre si: de um lado, o fiasco dos partidos de esquerda em articular uma narrativa consistente (perdoem-me o jargão) para orientar um projeto de governo; de outro, o engajamento cada vez mais explícito dos artistas contemporâneos no discurso político, marcado pela crítica aos jogos de poder e às feridas abertas do capitalismo globalizado. Essa Bienal promete". Escreva-nos Ser Leo, via Facebook, em comentário sobre o vídeo da Carolina Caycedo

Rua Itaquera, 423, Pacaembu, São Paulo - SP CEP 01246-030

"Gostaria de agradecer Daniela Bousso e a revista seLecT pelo respeito, carinho e profissionalismo na matéria Cartografia de Matriz Afro, contando um pouco da minha história. Fiquei muito contente em ver o interesse desta revista tão bem conceituada no país, que faz parte da minha rotina, sendo leitura de todas as manhãs. Foi muito bom compartilhar a minha história com aqueles que já me conheciam, assim como aqueles que me conheceram através da matéria. Um muito obrigado especial aos artistas Jaime Lauriano, Daniel Lima e Ícaro Lira que compartilharam suas historias e projetos na mesma matéria e aos amigos e colegas pelos cumprimentos e felicitações".

www.select.art.br facebook.com/selectrevista instagram.com/revistaselect twitter.com/revistaselect youtube.com/c/selectartbr plus.google.com/+SelectArtBr

Moises Patricio, artista, via Facebook

S E L E C T E X PA N D I D A O N L I N E

ERRAMOS

CORPO A CORPO

Agenda

Para ficar ligado na 32a Bienal de São Paulo, acesse as redes sociais da seLecT e assista ao Corpo a Corpo, série de mini-vídeos em que artistas e curadores (Jochen Volz a esq.) respondem a perguntas feitas à queima-roupa pela nossa equipe.

Thiago Honório começou seu projeto Trabalho na Red Bull Station, onde conheceu os mestres de obras, e não durante a reforma de sua residência, como foi publicado na página 22 da edição #31.

VERSÃO ORIGINAL

Esta seLecT está repleta de colaboradores estrangeiros. Publicamos no site as versões originais, em inglês ou espanhol, dos textos de Cristina Ricupero, Jörg Heiser, Jennifer Higgie, Orlando Hernández e Gary Lachman. SELECT.ART.BR

OUT/NOV 2016

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Na Linha de Frente A fotografia de Sonia Guggisberg publicada na página 86 da edição #31 documenta um centro de refugiados em Malta e se chama Hal Far Refugee Center.

FOTO: FRAME VÍDEO CORPO A CORPO

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AGENDA

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RIO DE JANEIRO

MEMÓRIAS MARCADAS Marcone Moreira, até 20/11, Paço Imperia, Praça XV de Novembro, 48 www.pacoimperial.com.br A partir de um recorte de 10 anos de produção de Marcone Moreira (acima, instalação Território Líquido, 2015), Moacir dos Anjos assina a primeira individual do artista mineiro em uma instituição carioca. O trabalho mais recente, Território, foi elaborado especialmente para a mostra. Constituida por quatro porteiras de fazendas, reunidas em distintas regiões do Brasil, a obra acaba por delimitar um novo espaço. A poética do artista alcança a herança do concretismo, além de trabalhar com a memória de materiais já gastos apropriados por ele.

CURITIBA

TRAJETÓRIA RENOVADA Gonçalo Ivo: A Pele da Pintura, até 26/2/2017, Museu Oscar Niemeyer, Rua Marechal Hermes, 999 | www.museuoscarniemeyer.org.br Filho do famoso escritor brasileiro Lêdo Ivo, o pintor carioca Gonçalo Ivo (à dir., Tissu d’Áfrique, 2008) recebe nova mostra com 60 trabalhos realizados na última década. Com curadoria de Felipe Scovino, foram reunidas obras a partir de diversos acervos públicos e privados, o que possibilita que os visitantes entrem em contato com produções até então nunca antes divulgadas. Além das aquarelas e pinturas, o artista também realizou trabalhos a partir de caixas de charutos. A exposição dialoga com pontos principais da trajetórioa de Ivo.

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FOTOS: FLICKR, EDUARDOFOTOS: ORTEGA/CORTESIA FELIPE BERNDT FORTES / SERGIO VILAÇA GUERINI

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AGENDA

S Ã O PA U LO

DIÁLOGOS CULTURAIS Adornos do Brasil Indígena: Resistências Contemporâneas, até 8/1/2017 Sesc Pinheiros, Rua Paes Leme, 195 | www.sescsp.org.br Organizada por Moacir dos Anjos, a mostra ocupa sala do Sesc Pinheiros com mais de 200 peças e documentos indígenas preservados pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, que também assina o projeto curatorial, além de trabalhos de arte contemporânea. Para apresentar todo esse acervo, a exposição foi dividida em três módulos: o corpo como suporte de resistência; os testemunhos de resistência; e as celebrações indígenas como resistência. A proposta da curadoria é divulgar artefatos de diferentes tribos com interlocução de obras de arte contemporânea (à dir., Sem Título, 1996, de Bené Fonteles) que foram inspiradas nas vivências indígenas.

16

RIO DE JANEIRO

CIDADE EM DEBATE A Cidade, as Ruínas e Depois - Andrei Thomaz, Daniel Escobar e Marina Camargo, até 18/10, Torre Malakoff, Praça do Arsenal, s/n Andrei Thomaz vive em São Paulo, Daniel Escobar em Porto Alegre e Marina Camargo (à esq., Cidade Planejada, 2014/2016) divide temporadas entre Porto Alegre e Berlin. Os três artistas se reuniram para abrir nova exposição, com trabalhos que são abrigados em um dos edifícios históricos mais tradicionais da capital pernambucana. Com curadoria de Márcio Harum, a mostra trata sobre a transformação das metrópoles e as consequências do crescimento desordenado das cidades após os anos de sucesso econômico vividos pelo Brasil, como a alta especulação imobiliária, os problemas de mobilidade e os efeitos negativos da crise econômica.

ESPÍRITO SANTO

ENFRENTAR A PINTURA Daniel Feingold - Acaso Controlado, até 12/3/2017, Museu do Vale, Antiga Estação Pedro Nolasco, s/n | www.museuvale.com Composições em grande escala marcam a mostra do carioca Daniel Feingold (à dir., Estrutura #2, 2013). Nela, o artista produz a partir de seu enfrentamento com a pintura, com objetivo de repensar os limites possíveis da arte. Conforme a curadora Eva Klabin: “Daniel Feingold possui um firme senso de direção, apesar de lidar com o fluxo do imprevisível até conseguir uma unidade pictórica. Explora as interrupções, as instabilidades e cria um espaço complexo pelo enervamento intenso da superfície da tela, uma verdadeira malha flutuante de cores e geometria.” SELECT.ART.BR

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OUT/NOV 2016

FOTOS: IEDA CAVALCANTE, CORTESIA DO ARTISTA FOTO: / MARINA WILLIAM CAMARGO GOMES/INHOTIM / PAT KILGORE

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ART RIO

GALERIA LUISA STRINA Marina Saleme é um dos destaques para a feira com a pintura Céu (2015), parte de suas emblemáticas composições. Em fevereiro passado, realizou uma individual na galeria com nova série de trabalhos.

MERCADO DE ARTE

BOULEVARD ARTÍSTICO Sexta edição da ArtRio desfruta de área revitalizada e pulsante da cidade, trazendo novas estratégias ArtRio, 29/9 a 2/10, Píer Mauá, Av. Rodrigues Alves, 10, Rio de Janeiro www.artrio.art.br Em 2011, a ArtRio surgia na degradada área portuária do Rio de Janeiro. Em cinco edições, a feira internacional de arte testemunhou a desmontagem da Perimetral, o nascimento do Museu de Arte do Rio, as polêmicas que envolveram a construção e o projeto do Museu do Amanhã, a instauração do Circuito da Herança Africana na região do Valongo e a inauguração de uma Praça Mauá SELECT.ART.BR

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renovada. Pioneira na ocupação do Porto Maravilha, instalada no Pier Mauá, diante da Baía de Guanabara, a ArtRio habita hoje o novo coração pulsante da cidade. A sexta edição acontece de 29/9 a 2/10, na esteira do sucesso das Olimpíadas. Bem posicionada no circuito do recéminaugurado Boulevard Olímpico, a feira renova neste ano estratégias para atrair o público especializado, entre colecionadores brasileiros e convidados internacionais. Atrativos incluem as 70 galerias que vêm de sete estados brasileiros e seis países (Alemanha, Argentina, Estados Unidos, França, Suíça e Uruguai). Entre elas, 19 fazem seu début nos armazéns do Píer Mauá. Veteranas como a Mezanino (SP) juntam-se a novatas, caso da

Galeria Frente (SP), com pouco mais de um ano na ativa. Uma boa surpresa entre as estreantes internacionais é a Gachi Prieto Arte Contemporáneo Latinoamericano, que representa Nino Cais em Buenos Aires e tem um time de jovens artistas de produção consistente. Duas hermanas portenhas na mesma linha que chegam pela primeira vez à feira são a Praxis e a Quimera. A alemã Gallery Am Meer, de Düsseldorf, apresenta trabalhos de vertente experimental inéditos no País. A feira mantém a divisão tradicional entre a seção Panorama, de galerias consolidadas do setor secundário e de arte contemporânea, e Vista, que reúne os espaços de cast mais jovem e voltado à experimentação. FOTO: EDOUARD FRAIPONT

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ART RIO

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GALERIA CAVALO Jovem galeria carioca selecionou entre seus artistas representados uma série irreverente de desenhos de Alvaro Seixas, com sátiras sobre o mercado da arte.

LUCIANA CARAVELLO ARTE CONTEMPORÂNEA Novo integrante do time, Eduardo Kac fazia parte da Galeria Laura Marsiaj até ser assimilado por Caravello. Esta nova empreitada rende espaço privilegiado ao artista no time da galeria. Simultaneamente, Ivan Grilo estreia sua individual na sede carioca.

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OUT/NOV 2016

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SIM GALERIA O paulistano Antonio Malta Campos tem muito a comemorar. Fechou contrato com a SIM Galeria e é um dos artistas integrantes da 32a Bienal de São Paulo.

FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA / KAC STUDIO / ANTONIO MALTA CAMPOS

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ART RIO

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GALERIA MEZANINO

GALERIA FORTES VILAÇA

Artista multi-instrumentista, Siri é reconhecido por trabalhos em performance e com intenso diálogo com a arte sonora. Sua obra Cocar é um dos highlights da galeria paulistana.

Em alta no circuito artístico brasileiro, Erika Verzutti é uma das representadas pela Fortes Vilaça e também apresenta três trabalhos de grande dimensão na 32a Bienal de São Paulo.

ZIPPER GALERIA A argentina Graciela Sacco é a nova integrante do time da Zipper. Para selar a parceria, a artista brilha no estande da galeria no Pier Mauá.

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OUT/NOV 2016

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OTHER CRITERIA Galeria americana especializada em múltiplos de grandes nomes da arte contemporânea traz, entre outras obras, o casal Minnie e Mickey de ninguém menos que Damien Hirst, seu próprio fundador.

FOTO: DIVULGAÇÃO / MICHAEL BRZEZINSKI / DIVULGAÇÃO / DAMIEN HIRST & SCIENCE LTD, CORTESIA OTHER CRITERIA

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ART RIO

SILVIA CINTRA + BOX 4

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Laercio Redondo apresenta sua série de silkscreens sobre feltro, em novo trabalho que aprofunda diálogo com o modernismo brasileiro.

GALERIA ESTAÇÃO Xilogravuras de Gilvan Samico, um dos maiores artistas do Nordeste, figuram no estande da galeria dedicada à arte popular. Para esquentar, ele faz parte do time da 32a Bienal de São Paulo.

GALERIA PORTAS VILASECA Fotografias e registros de performances ritualísticas de Ayrson Heráclito são a ponta de lança da galeria carioca.

ROBERTO ALBAN GALERIA Paulo Whitaker já expôs em diversas mostras nacionais e internacionais, além de duas edições da Bienal de São Paulo. Pinturas geométricas, marca de sua produção, são destaques de galeria de Salvador. SELECT.ART.BR

OUT/NOV 2015

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FOTOS: LAERCIO REDONDO / AYRSON HERÁCLITO / JOÃO LIBERATO / ESTUDIO QUATRO A ZERO

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ART RIO

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GALERIA NARA ROESLER O britânico Isaac Julien recebe mostra individual no MAC Niterói, que acontece paralelamente à feira. É também destaque no estande da galeria.

GALERIA MARÍLIA RAZUK Conhecido por intervenções e trabalhos instalativos, com uma obra marcada pelo caráter experimental, José Bechara está no estande da galeria paulistana.

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OUT/NOV 2016

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GALERIA MILLAN Pintor de longa trajetória, tutor da nova geração e reconhecido pelo circuito da arte brasileira, Paulo Pasta é um dos artistas que figuram no time selecionado pela galeria.

FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA E GALERIA NARA ROESLER / FABIANE DEL NETO / EVERTON BALLARDIN

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ART RIO

GALERIA VERMELHO A obra de Lia Chaia, marcada pelo confronto entre natureza e sociedade, além de forte viés político, afirmase no estande da Vermelho com o trabalho fotográfico 9 Pinturas.

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RAQUEL ARNAUD Para representar o acervo de uma das maiores galerias brasileiras foi eleita a artista mineira Iole de Freitas, com produção marcada pela escultura minimalista e intenso diálogo com o espaço.

MATIAS BROTAS ARTE CONTEMPORÂNEA Com referências ao caminho do ornamento, aberto por Beatriz Milhazes na arte contemporânea, o trabalho de Lara Felipe é destaque da galeria do Espírito Santo.

GALERIA MURILO CASTRO A galeria mineira escolhe como destaque o paulistano Sérvulo Esmeraldo, que apresenta escultura influenciada pelo concretismo e a arte cinética, traço de sua produção pós-1960, quando deixa a gravura e passa a trabalhar com outras linguagens. SELECT.ART.BR

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FOTOS: EDOUARD FRAIPONT / DIVULGAÇÃO, CORTESIA RAQUEL ARNAUD / CORTESIA MATIAS BROTAS / GENTIL BARREIRA

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ARTE E EDUCAÇÃO

30

Open Studio com a artista peruana Rita Ponce de León, integrante da 32 a Bienal de São Paulo e do Programa de Residência Artística FAAP

DEZ ANOS DE TROCAS O Programa de Residência Artística Faap completa dez anos de

europeus. “Tivemos cinco casamentos entre residentes”, conta o

atividades, comemorando a recepção de 300 artistas brasileiros

professor Marcos Moraes, coordenador do curso de Artes Visuais

e internacionais e a consagração de seu papel estratégico no

e do Programa de Residência Artística Faap.

diálogo artístico e na circulação de ideais e experiências tanto

O Programa de Residências mantém parcerias com outras

no espectro do curso de Artes Visuais quanto do sistema de

instituições, como a Fundação Calouste Gubenkian, de Portugal,

arte internacional. Sediado no Edifício Lutétia, em São Paulo, e

e a Fundação Bienal de São Paulo, numa colaboração que, desde

concebida nos moldes da Cité des Arts, em Paris, a residência

2006, já abrigou 41 artistas convidados. Além disso, está inserido

mantém dez estúdios para temporadas de dois a seis meses de

em um projeto maior e mais ambicioso de fortificar as relações

moradia e trabalho. Tem como critério de seleção a formação de

entre arte e educação. Tem reverberação direta nos cursos de

grupos que favoreçam a diversidade de contextos e repertórios

arte da instituição pedagógica, propiciando aos alunos de Artes

e já acolheu artistas da Índia, Japão, China, Coreia, África do Sul,

Visuais o contato semanal com os 30 artistas residentes por

Moçambique, Angola, Cuba e Colômbia, entre diversos países

ano e visitas às residências, em Opens Studios.

SELECT LANÇA PRÊMIO DE ARTE E EDUCAÇÃO No fim de 2015, o MEC (Ministério da Educação) mapeou escolas com propostas pedagógicas que fogem ao modelo convencional. Em todo o Brasil foram identificadas 178 instituições com projetos considerados criativos e inovadores na educação básica. A arte desempenha um papel fundamental para o sucesso dessas iniciativas. Por outro lado, a consciência de que um projeto artístico, curatorial ou museológico só será completo se articulado às bases conceituais de um programa pedagógico consistente é uma noção que só cresce entre artistas e instituições de arte. Para dar visibilidade a iniciativas como essas e acreditando que cultura e educação são indissociáveis, seLecT está criando o Prêmio e Seminário de Arte e Educação. Com patrocínio da Minalba e apoio da Galeria Almeida & Dale, o projeto será uma importante ferramenta para expandir a reflexão crítica sobre a produção artística contemporânea, assim como contribuir para o reconhecimento de modelos pedagógicos experimentais e projetos de caráter interdisciplinar, em que arte e educação convergem. Em breve, anunciaremos a abertura das inscrições. Participe!

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FOTO: FOTO: WILLIAM RAFAYANE GOMES/INHOTIM CARVALHO, FAAP

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S Ã O PA U LO

DIÁLOGOS COM O BRASIL Esculturas e pinturas do período em que o italiano Ernesto de Fiori residiu no Brasil ganham destaque na Galeria Almeida & Dale L U C I A N A PA R E J A N O R B I AT O Calder e a Arte Brasileira, até 23/10, Itaú Cultural, Av. Paulista, 149 | www.itaucultural.org.br O que ainda há para se falar sobre Alexander Calder (1898-1976), o “inventor” dos móbiles de geometria abstrata que, sorrateiros, obrigam a gravidade a brincar com a leveza? Sua relação de intimidade com o Brasil. Há dez anos, uma exposição na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, e no Paço Imperial, no Rio, chamou a atenção para os efeitos que a cultura brasileira imprimiu sobre sua obra. Das três viagens que fez ao País, o artista levou a influência do samba para trabalhos rítmicos, em forma de instrumentos musicais. Do crítico Mario Pedrosa (1901-1981) ganhou um reconhecimento que nos anos 1940 ainda não gozava nem mesmo em seu país natal, os EUA. Agora, a exposição Calder e a Arte Brasileira, no Itaú Cultural, se debruça sobre o legado crucial deixado por Alexander Calder para o neoconcretismo brasileiro e as ações artísticas indissociadas da vida. Com curadoria de Luiz Camillo Osorio, a exposição aproxima 32 obras do norte-americano a outras 28 de seus pares brasileiros, sejam os contemporâneos Abraham Palatnik, Lygia Clark e Hélio Oiticica (que conheceram Calder nos anos 1940-1950), sejam artistas de gerações posteriores, como Franklin Cassaro, Carlos Bevilacqua e Ernesto Neto. Antes de oferecer um percurso cronológico e, assim, assumir um discurso engessado, a mostra abre-se para diálogos plásticos e conceituais. Contrariando os cânones do modernismo geométrico que caracterizava uma de suas grandes inspirações – Mondrian –, Calder subverteu a lógica industrial usando o imprevisto e o imperfeito característicos do ato poético. Pode-se perceber na desconstrução da rigidez geométrica, na incitação à participação do público (que, infelizmente, na mostra acontece só em duas obras) e na organicidade de forma e movimento que o artista foi um pioneiro da primeira metade do século 20. Exemplo de seu despojamento lúdico que tanto sintonizou com o espírito neoconcreto é o filme de 26 minutos em que o próprio artista apresenta seu circo, criado a partir de 1929 e guardado em cinco malas. Pela mão do ex-engenheiro químico, pedaços de arame e pano toscamente esculpidos surgem como engolidor de espada, leão, domador, trapezistas, cães amestrados e afins. Síntese do universo do artista, que a exposição recoloca em primeiro plano: acima das máquinas e das regras do capital, a instabilidade inerente ao ser humano deixa de ser defeito para se tornar beleza.

Alexander Calder, Sem Título (c.a. 1948)

FOTO: JOÃO L. MUSA ©2016 CALDER FOUNDATION, NEW YORK, AUTVIS, BRASIL

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S Ã O PA U LO

UM EUROPEU NOS TRÓPICOS Esculturas e pinturas do período em que o italiano Ernesto de Fiori residiu no Brasil ganham destaque na Galeria Almeida & Dale F E L I P E S T O F FA Ernesto de Fiori – Tensão e Harmonia, até 30/9, Galeria Almeida & Dale, Rua Caconde, 152 www.almeidaedale.com.br Ernesto de Fiori foi um dos vários artistas estrangeiros que influenciaram o modernismo no Brasil. Nascido em Roma, em 1884, além de escultor, conhecia e escrevia muito bem sobre arte na imprensa alemã e italiana. Foi como correspondente de um jornal italiano que se alistou no exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Horrorizado, deixou o cargo e retomou sua produção artística. Nos anos de 1920 e 1930 já era um escultor prestigiado no mercado europeu. Fugindo do nazismo, em 1936, o artista instalou-se no Brasil, reencontrando seus irmãos e sua mãe, já residentes em São Paulo. A partir desse momento, passa a pintar com maior frequência. Logo ao chegar, De Fiori começou a publicar textos em periódicos como O Estado de S. Paulo. Assim formou amizade com artistas, escritores e intelectuais do movimento modernista e influenciou o fértil campo da arte moderna que nascia no País. Morreu em 1945, aos 61 anos. O breve período em que se manteve exilado no País ganha visibilidade pela curadoria de Denise Mattar, que apresenta na Almeida & Dale cerca de 22 esculturas, 25 óleos, 9 guaches e 12 desenhos do artista, ainda pouco conhecido pelo público brasileiro. As obras expostas são marcadas pela intensa exploração da figura humana, especificamente a feminina, a partir de esculturas e pinturas, procurando mostrar como o corpo retratado por Fiori perde movimento e ganha traços mais sintéticos quando o artista passa a morar nos trópicos. Entretanto, as pinturas, marcadas pela pincelada frenética, trazem um ar de atualidade aos seus retratos, como exalta a curadoria. A exposição também reúne alguns desenhos de paisagens, em sua maioria produzidos no Brasil, com destaque para a pintura da fazenda de Tarsila do Amaral, ressaltando os laços de afinidade mantidos pelo artista com o círculo intelectual e artístico paulistano.

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Ernesto de Fiori, Homem Brasileiro (1938)

FOTO: DIVULGAÇÃO

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F O RTA L E Z A

BRASIL PROFUNDO Obras de alta relevância da Coleção Airton Queiroz percorrem cinco séculos de história da arte

Adriana Varejão, Sereias Bêbadas (2009)

A NA AB R I L Coleção Airton Queiroz, até 18/12, Espaço Cultural Unifor, Av. Washington Soares, 1.321 | www.unifor.br Fortaleza reivindica seu espaço no polo cultural brasileiro – historicamente centralizado no Rio de Janeiro e São Paulo. Com mais de 250 obras de alta qualidade, valor e relevância, a mostra Coleção Airton Queiroz faz dessa importante capital nordestina local de visita obrigatória para especialistas e amantes das artes visuais. A exposição é uma seleção das 700 obras abrigadas na casa em estilo colonial do empresário Airton Queiroz, chanceler da Universidade de Fortaleza, que começou a adquirir arte há mais de 50 anos. Unindo sua coleção pessoal à de seu pai, de quem herdou o gosto pelo colecionismo, somam-se 1,6 mil peças de arte brasileira e europeia, cuja autoria vai de Albert Eckhout a Beatriz Milhazes, passando por Alfredo Volpi, Lygia Clark, Claude Monet, Max Ernst, Salvador Dalí e Joan Miró. Com curadoria de Max Perlingeiro, José Roberto Teixeira e Fábio Magalhães, ex-diretor do Masp, a exposição está dividida em cinco seções organizadas por períodos históricos e movimentos artísticos. Mas todos afirmam que “o verdadeiro curador é o próprio Airton Queiroz”, já que ele sempre adquiriu as obras com base em seu olhar estético, sem orientações de terceiros. O passeio começa no Brasil Holandês com a discreta, mas poderosa

Paisagem de Várzea, de Frans Post. A discrição deve-se à tênue luz incidente, a fim de não danificar a aquarela; enquanto o poder é proveniente da importância histórica da tela, datada de 1657 e realizada por um dos pintores a serviço do conde Maurício de Nassau, então governador do Brasil Holandês. O ponto forte dessa seção, contudo, é Gabrielle et Jean Renoir, de PierreAuguste Renoir, a pintura mais valorizada da coleção que, segundo Max Perlingeiro, “está estimada em R$ 4 milhões”. A concorrência fica com a tela Vaso de Flores, de Guignard, que é o trabalho mais caro de um brasileiro já leiloado, por R$ 5,7 milhões, e também parte da mostra. O percurso pelo modernismo inclui peças de Tarsila de Amaral, Anita Malfatti, Lasar Segall, Antônio Gomide, Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro, enquanto a seção de arte contemporânea dedica-se a nomes proeminentes como Tunga, Adriana Varejão (foto) e Vik Muniz. Durante a visitação também pode ser apreciada A Catedral, de Antonio Bandeira, primeira aquisição do mecenas, quando tinha apenas 16 anos. Mas, apesar da significância do Bandeira, ao ser perguntado pela seLecT sobre sua peça preferida, Airton Queiroz, com a mão no coração, responde: “Adquiri cada uma dessas obras e cada uma teve um significado tremendo na minha vida. Todas são as minhas prediletas”. FOTO: DIVULGAÇÃO

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RIO DE JANEIRO

DUZENTOS ANOS DE ACADEMIA Exposição resgata obras dos franceses que mudaram os contornos da arte brasileira no século 19 L U C I A N A PA R E J A N O R B I AT O

Estudo sem data de Jean-Baptiste Debret

A Missão Artística Francesa e Seus Discípulos – Exposição Comemorativa do Bicentenário da Chegada da Missão Artística Francesa (1816-2016), até 26/11, Pinakotheke Cultural Rio de Janeiro, Rua São Clemente, 300 www.pinakotheke.com.br Há 200 anos, um grupo de renomados artistas e profissionais franceses chegou ao Brasil sob as bênçãos de D. João VI. Oito anos antes, o monarca fixara residência no Rio de Janeiro, então sede da coroa, fugindo de Napoleão Bonaparte e da tomada de Portugal. A família real trouxe consigo a promessa de progresso para a terra nova, mas o motivo pelo qual a Missão Francesa veio para cá é incerto. Uma das teorias mais aceitas diz que o grupo de artistas, artífices e intelectuais fez o pedido por conta própria, para escapar de punições aos bonapartistas, como eles, depois da queda do imperador francês. Não importa a razão, sua influência aqui foi fundamental. Agora, uma mostra na Pinakotheke Cultural comemora o bicentenário da empreitada, resgatando os trabalhos do grupo. “A Missão tinha o objetivo de estabelecer o ensino oficial das artes plásticas no País e acabou influenciando o cenário artístico brasileiro, além de estabelecer um ensino acadêmico inexistente até então”, diz à seLecT Max Perlingeiro, diretor da Pinakotheke Cultural e cocurador da mostra ao lado de Maria Eduarda Marques. Mas a chegada em terras tupiniquins não teve nada de paradisíaco para o pintor Jean-Baptiste Debret, o escultor Marc Ferrez (tio do famoso fotógrafo) e o arquiteto Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny, que marcou o urbanismo carioca em projetos como o do prédio hoje ocupado pela Casa França-Brasil. Longos dez anos se passaram até que o academismo laico e canônico do grupo ganhasse adesão num Brasil ainda dominado pela estética barroca balizada pela Igreja. Essa história é recontada em pinturas, gravuras, esculturas, documentos e peças de numismática. Além dos trabalhos do grupo, figuram obras de alguns de seus discípulos, entre eles Manuel de Araújo Porto-Alegre e Simplício Rodrigues de Sá. Uma de suas influências, o pintor Nicolas Poussin (1594-1665), é destaque da exposição. Sua enorme tela Himeneu Travestido Assistindo a Uma Dança em Honra a Príapo (1634-1638), pertencente ao Masp, estreia em solo carioca. SELECT.ART.BR SELECT.ART.BR

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FOTO: CORTESIA PINAKOTHEKE CULTURAL

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A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L

SEGREDO 40

Salas secretas, técnicas para ocultar pinturas e filme sobre a conversão de cartunista em líder espiritual são conteúdos selecionados do site do Itaú Cultural VERBETES

SURREALISMO O termo surrealismo, cunhado por André Breton com base na ideia de “estado de fantasia supernaturalista” de Guillaume Apollinaire, traz um sentido de afastamento da realidade comum que o movimento surrealista celebra desde o primeiro manifesto, de 1924. (...) A importância do mundo onírico, do irracional e do inconsciente, anunciada no texto, relaciona-se diretamente ao uso livre que os artistas fazem da obra de Sigmund Freud e da psicanálise, permitindo-lhes explorar nas artes o imaginário e os impulsos ocultos da mente. O caráter antirracionalista do Surrealismo coloca-o em posição diametralmente oposta das tendências construtivas e formalistas na arte que florescem na Europa após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e das tendências ligadas ao chamado retorno à ordem. Como vertente crítica de origem francesa, o Surrealismo aparece como alternativa ao Cubismo, alimentado pela retomada das matrizes românticas francesa e alemã, do Simbolismo, da pintura metafísica italiana (...) e do caráter irreverente e dessacralizador do Dadaísmo (...)

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Links em bit.ly/colecoes-itau-cultural-segredo

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PROJETOS O CÉU DE MARIA Documentário produzido pelo Itaú Cultural aborda a relação do cartunista Glauco (1957-2010) com a religião do Santo Daime, fazendo com que fundasse, em 1997, a Igreja Céu de Maria, em Osasco, tornando-se um líder espiritual. Glauco teve como mentor Alfredo Gregório de Melo, descendente direto dos primeiros mestres que difundiram o culto no País. Em uma de suas tiras, pode-se ver retratado o amigo psicólogo Leonardo Libânio Christo, responsável por apresentar o cartunista à doutrina. O contato com a religião fez com que Glauco mudasse radicalmente seu estilo de vida, além de ter popularizado a crença, levando para o Daime todos os seus familiares e colegas próximos. Localizada em Osasco, região metropolitana de São Paulo, a comunidade funciona até hoje.

TÉCNICA FORE-EDGE Essa técnica manual de pintura em cunhas de páginas de livros teria sido inventada no século 18 por dois encadernadores e desenhistas portugueses que viviam em Londres. Esse processo se manteve em segredo por muito tempo, mas consta que fez sucesso na época, quando nobres e bibliógrafos encomendavam pinturas ocultas para os livros de suas bibliotecas particulares. Abrigados na coleção Brasiliana Itaú, de Olavo Setúbal, seis volumes de uma coleção de livros possuem aquarelas que remontam vistas da cidade do Rio de Janeiro. Aparentemente, essas pinturas secretas são as únicas obras conhecidas que oferecem um panorama completo da cidade daquele período. Para poder observá-las, deve-se inclinar as folhas. Essas paisagens foram possivelmente copiadas de um dos mais famosos livros de viagem do período, Voyage Around

OCUPAÇÕES SECRETAS

The World (1747), de George Anson.

As ocupações promovidas pelo Itaú Cultural receberam, muitas vezes, salas secretas ou restritas por conta de seu conteúdo. Recentemente, na ocupação Glauco, uma caixa escondida do público manteve em segredo as tirinhas ligadas a temáticas sexuais e de drogas. A partir de um buraco em formato de fechadura podiam-se ver alguns dos trabalhos do famoso cartunista. O músico Jards Macalé também teve segredos escondidos do público durante sua ocupação em 2014. Para acessá-los era preciso empurrar uma parede falsa ao longo da exposição para atingir uma sala que remetia a uma caverna. Já a ocupação do cartunista Angeli, em 2012, manteve um quarto vermelho com decoração sadomasoquista que escondia alguns dos trabalhos de maior teor erótico e sexual produzidos pelo artista ao longo de sua vida.

FOTOS: SERGIO GUERINI / ACERVO DA FAMÍLIA / RUBENS CHIRI / HORST MERKEL, ITAÚ CULTURAL

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CO LU N A M Ó V E L

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PAULA ALZUGARAY FOLIAS PSICODÉLICAS OU A CIDADE COMO FLORESTA DE FUNGOS

Valle de Alicia (2016), intervenção no Parque do Ibirapuera

SE O PROJETO DA 32ª BIENAL DE SÃO PAULO É ASSUMIR A INCERTEZA COMO UM SISTEMA DE ORIENTAÇÃO, O COCURADOR LARS BANG LARSEN VEM AFIRMAR ESSA TESE REVELANDO A MICOLOGIA (O ESTUDO DOS FUNGOS) COMO MOVIMENTO CULTURAL E TEMA RECORRENTE NA ARTE CONTEMPORÂNEA. Para

a exposição Incerteza Viva, curadoria geral de Jochen Volz, ele convidou pelo menos seis artistas envolvidos com o que poderia ser visto como uma espécie de sociedade secreta da fungicultura. O time de micologistas presentes na 32ª BieSELECT.ART.BR

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nal é formado por artistas ligados à ecologia, à agricultura orgânica, à psicodelia, ao xamanismo, e críticos ao modelo de desenvolvimento capitalista e sua relação com a natureza. Incluem-se a colombiana Alicia Barney (que realizou instalação com esculturas de cogumelos feitos de papel e resina, no Parque do Ibirapuera), a finlandesa Pia Lindman (envolvida na pesquisa de culturas de cogumelos e na aplicação de técnicas de cura pré-científicas), o dinamarquês Rikke Luther (autor de instalação que aborda o colapso das utopias modernas, na qual está incluída a escultura de um fóssil de prototaxites – possível ancestral dos fungos que habitaram a Terra há cerca de 400 milhões de anos), Nomeda & Gediminas Urbonas, duo de artistas lituanos residentes nos EUA, onde realizam pesquisa científica no MIT (desenvolve o projeto Psychotropic House: Zooetics Pavilion of Ballardian Technologies, que explora maneiras de conectar o conhecimento humano com a inteligência de outras formas de vida, no caso o fungo micélio); e o camaronês Em’Kal Eyongakpa (que relaciona os reinos da botânica e da vida artificial). Como se não bastasse, há ainda a polonesa Iza Tarasewicz, que em 2014 realizou o projeto Fungo Follies, evocando o compositor John Cage, notabilizado como o maior entendedor de cogumelos nas vanguardas do século 20, que em 1958 venceu um concurso sobre o tema na televisão italiana e profetizou: “Não há sentido em querer compreender os cogumelos. Eles escapam à nossa erudição. Quanto mais se sabe sobre eles, menos certeza você tem de identificá-los”. Por essa amostragem de pesquisas entende-se que o tema é profícuo – para não dizer fascinante –, mas sua presença nesta primavera paulistana não se restringe aos limites do Pavilhão da Bienal nem do Parque. Adepto e teórico das relações entre arte e psicodelia, o dinamarquês Bang Larsen reuniu-se em setembro no Pivô Arte e Pesquisa com a artista polonesa Paulina Olowska e o curador Milovan Farronato, diretor artístico do Fiorucci Art Trust, em um aquecimento (ou ensaio geral) para a pré-estreia de um evento artístico-teatral-vivencial, o Mycorial Theatre. Dirigido por Olowska e Farronato, o projeto Mycorial Theatre foi criado em uma antiga casa dos anos 1930, em Rabka-Zdrój, no sul da Polônia, envolta em histórias de fantasmas. Transformada em residência, a Villa Kadenówka recebeu 15 artistas convidados para trabalhar sobre o meio ambiente do entorno, repleto de espécies raras de cogumelos. A vivência partiu de uma caminhada de dois dias pela floresta catando fungos. À noite, no abrigo, as experiências se transportavam para a culinária e, de volta à Villa, as vivências apoiadas em experiências empíricas e transcendentais, eram compartilhadas em rituais dignos das sociedades secretas. Transferido para o Pivô, o Mycorial Theatre convidou um elenco estrelado por AVAF, Paloma Bosquê, Lucia Koch, Adriano Costa e Anna Bella Geiger, entre outros, para vivenciar a cidade de São Paulo como uma floresta de fungos. A peça, performance ou manifesto encenado no final tem com título The Mycorial Hunt: From Theatre to the Mushroom at the End of the World, que parafraseia um clássico do gênero, o livro The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins, da antropóloga Anna Lowenhaupt Tsing. Buda e Alexandre I morreram envenenados por cogumelos. Mas nesse retorno à folia psicodélica, a comunidade contemporânea de caçadores de cogumelos não busca a imortalidade. Seria, talvez, a sobrevivência dos modelos colaborativos no contexto da ruína do capitalismo? FOTO: PAULA ALZUGARAY

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FOGO CRUZADO

S E G R E D O S FA V O R I T O S E M E N T I R A S S I N CERA S 46

Estamos rodeados de enigmas. Na literatura brasileira, o segredo que ninguém desvendou é o de Capitu, dos “olhos de ressaca”. Seu criador, Machado de Assis, terminou Dom Casmurro mantendo a dúvida: ela teria ou não traído Bentinho, o marido, com Escobar, seu melhor amigo? Na história mundial, já se publicou uma infinidade de livros sobre o assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy. Teria sido obra do “lobo solitário” Lee Harvey Oswald? Ou de uma conspiração comandada por Fidel Castro ou a União Soviética? No Brasil, exemplos não faltam. Quem escreveu a Carta-Testamento que Getúlio deixou ao se suicidar? Por que Jânio Quadros renunciou à Presidência da República menos de oito meses depois da posse? Segredos se sustentam sobre a linha tênue que separa realidade e invenção. Qual o mistério do qual você gostaria de conhecer a explicação? Qual é o seu segredo favorito, seja pessoal ou histórico, verdadeiro ou fictício? C R I S T I N A R I C U P E R O E L U C I A N A PA R E J A N O R B I AT O

GUSTAVO VON HA ARTISTA A aura é algo inexplicável, um segredo em si mesma. Ela envolve uma obra de arte dando a ela um caráter único. Sendo assim, ela constitui parte dos segredos que envolvem os procedimentos e os processos artísticos. Desvendá-los problematiza todo o sistema artístico. Existe uma aura mítica em torno do processo e eu busco revelá-la porque desmitificar a arte e o próprio papel do artista nos dias de hoje significa esclarecer o que está em jogo nessa história que está sendo escrita. O que legitima um artista e uma “obra” num mundo em que tudo se torna apenas uma imagem? Uma cópia só tem significado de cópia dentro de uma narrativa histórica baseada em originais. Fora desse contexto, tanto a cópia quanto o original perdem completamente o sentido de comparação. Nesse ponto, o papel do falsificador me interessa, porque ele põe em xeque todo o sistema artístico e ainda brinca com a aura de uma obra “única” e “original”. Pois, aqui, a aura pode ser replicada ou mesmo transposta. Nessa operação, ele revela parte desse segredo... A cópia de um Jackson Pollock não é um Jackson Pollock, é, na verdade, sua antítese. Essa individual no MAC-USP (Inventário: Arte Outra, em cartaz até 5/2/2017) revela vários segredos sobre a construção de uma narrativa histórica e como a entendemos a partir de cânones mitificados pela história e pela crítica de arte. Quem escreveu essa história e por quê? Qual o segredo que define a realidade em que a gente se encontra? SELECT.ART.BR

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JOSÉ RUFINO ARTISTA E ESCRITOR Quando estou envolvido no processo de criação de uma obra muito complexa, que envolve em sua formulação a ação demorada de muitas pessoas, soluções técnicas complicadas e outros condicionantes que não dependem de mim, acontece um fenômeno que jamais compartilhei. Minha mente cria um tipo de sabotagem e começa a alimentar outra obra, como uma antítese, uma obra inimiga daquela que está sendo construída. Para que o processo em curso, em produção real, não seja destruído, estabelece-se uma batalha mental entre as duas obras e ambas terminam ganhando, pois uma estimula a outra. Isso aconteceu, por exemplo, durante a construção das instalações Plasmatio, Faustus e Ulysses. Cada uma, portanto, tem sua obra-antítese, uma natimorta vagando por aí, que somente eu consigo perceber.

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MARCIA TIBURI FILÓSOFA E ESCRITORA Um dos navios que aportaram no Brasil em 1500 trazia em seu fundo um caixão enviado por um mercador romeno que enriquecera com o tráfico de pessoas. O caixão devia ser lançado ao mar, pois temiam que permanecesse em solo europeu. Como inevitavelmente acontece em momentos macabros da história, o responsável pela carga morreu misteriosamente e o caixão ficou esquecido por muito tempo. Foi reaberto no DOI-Codi, em São Paulo, em setembro de 1970. Muitos especulam sobre quem estivesse deitado ali, outros dizem que já não havia corpo. Desde então, o caixão tornou-se um símbolo de poder e vida eterna, sendo disputado por vários cidadãos brasileiros nas últimas décadas. Para assegurar o poder de seu sortilégio, que implica nada mais que permanecer no poder, é preciso dormir nele todas as noites e, pela manhã, ter o pescoço de uma mulher bela, recatada e do lar como alimento. Assim se garante que ninguém suspeitará do que realmente está acontecendo.

RICARDO LÍSIAS ESCRITOR Acho que meu segredo não vai surpreender muito: faz tempo que não escrevo ficção. Tudo o que descrevi no romance Divórcio (publicado em 2013, supostamente baseado em seu processo de separação) é verdadeiro. Tem razão o jornalista que insinuou que eu só falo que se trata de ficção para não ser processado. Por falar em processo, o que eu e meus advogados fizemos quanto ao inquérito movido contra mim pelo Ministério Público foi só tergiversação. As pessoas que me acusaram de falsificar documentos estavam corretas (o autor incluiu uma decisão judicial fictícia em seu romance Delegado Tobias, que foi investigada como fraude pelo Ministério Público). Da próxima vez vou confessar logo. Por fim, admito que o conto Autoficção (em que o autor se representa como artista visual), publicado no ano passado, é só uma apresentação para o meu novo trabalho: vou realmente expor na Galeria Fortes Vilaça uma série de colagens autobiográficas. Esse texto, inclusive, serve de convite: apareçam! FOTOS: GUSTAVO VON HA / ADRIANO FRANCO / DIVULGAÇÃO

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CO LU N A M Ó V E L

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FERNANDA LOPES TUNGA EM POLVOROSA

Trabalho Sem Título (1996) de Tunga, parte da série Desenhos em Polvorosa

EM UMA FOLHA DE PAPEL, LINHAS SIMPLES, FEITAS COM PASTEL SECO, VÃO CONSTRUINDO CORPOS ENTRELAÇADOS, QUE DE TÃO PRÓXIMOS SE MISTURAM E ACABAM TENDO SEUS LIMITES CONFUNDIDOS. Contamos três,

quatro, cinco, talvez seis ou sete. É difícil contar porque, ao se misturarem, os corpos parecem estar em constante movimento, confundindo o olhar que insiste em fixar a forma. Sem nenhum aviso, pernas viram braços, braços são compartilhados por dois troncos e troncos facetados não deixam claro a qual conjunto pertencem. A obra Sem Título da série Desenhos em Polvorosa, realizada por Tunga em 1996 e parte da coleção Gilberto Chateaubriand, MAM Rio, hoje, 20 anos depois, dá nome à exposição que o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro apresenta, reunindo uma mescla das três grandes coleções que constituem o acervo do museu, com cerca de 400 obras e mais de cem artistas. A partir da mesma obra é possível voltar pouco mais de duas décadas, já que nesse desenho simples encontramos quase um resumo dos procedimentos e interesses de uma obra que começou ainda no início dos anos 1970. A produção de Tunga parece girar em torno SELECT.ART.BR

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de corpos, pensados a partir de uma lógica alquímica, que na busca da transmutação dos metais inferiores ao ouro encontra uma metáfora para o interesse nas transformações da matéria. Nos trabalhos de Tunga vemos em grande parte elementos não em formas exatamente definidas, mas em processo, em instantes. Em seus desenhos iniciais, por exemplo, a presença de corpos humanos é recorrente, mas eles, os desenhos, não podem ser definidos exatamente como figurativos, pois esses corpos estão no limite de perder a forma que os caracteriza. Estão entre a figuração e a abstração. A ideia de corpo na obra de Tunga ganha uma segunda dimensão, para além da imagem do corpo humano, quando percebemos que materiais e coisas do mundo são encarados pelo artista não como algo dado, estático, mas como algo que o interessa por suas propriedades individuais, e, mais ainda, por sua capacidade de mutação. No filme Ão (1981), um túnel transforma-se em um trajeto constante, um corpo escultórico sem fim (nem começo). E em sua dimensão instalativa, a imagem-luz ganha corpo quando projetor e filme adquirem presença física na sala de projeção. Por fim, talvez as performances sejam onde essa questão dos corpos se apresenta de maneira mais evidente. Nesses trabalhos, atores e público se misturam, em outra experiência do espaço, com os limites de onde começa um e termina o outro, se misturando e se sobrepondo. Em certo sentido, observar o conjunto da obra de Tunga e seus procedimentos ao longo das décadas nos mostra corpos “repletos de movimento”, materiais “muito agitados”, formas “desarrumadas, em alvoroço”, arte “em atividade intensa”. Reafirmam como arte, artista e público talvez devessem se apresentar: como corpos que não se conformam, que não se adequam, que se reorganizam e se definem a todo momento, que não agem como o programado, em polvorosa. FOTO: COLEÇÃO GILBERTO CHATEAUBRIAND, MAM RIO

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MUNDO CODIFICADO

DESAFIOS ARTÍSTICOS G U T O L AC A Z

ADIVINHAS E PASSATEMPOS ESTIMULAM A MENTE DOS HOMENS, ALÉM DE ENTRETER. Inventam desafios, enigmas e iludem o olhar para reverter certezas e exercitar o raciocínio e a memória. seLecT traz nesta edição jogos criados pelo artista Guto Lacaz com obras de grandes nomes da história da arte.

1. QUAL SACILOTTO É DIFERENTE?

2. JOGO DOS 7 ERROS EM VOLPI

3. DECODIFIQUE AS PALAVRAS

A

B

C

J

K

L

R

S

T

D

E

M U

F N

V

G O

W

X

H

I

P

Q

Y

Z 1) O TERCEIRO SACILOTTO | 3) CRITICO; ARTISTA; SEGREDO | 4) 3 | 8) UNIDADE TRIPARTIDA | 9) JÔNICA

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4. A QUAL SILHUETA CORRESPONDE O SÉRVULO ESMERALDO?

7. COLOQUE OS PINGOS NOS ÍS EM AUGUSTO DE CAMPOS

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8. MAX BILL QUER SABER SE VOCÊ SABE

5. DESENHE A RODA NO DUCHAMP

6. DESENHE COMO FICARIA O NEW LOOK DE FLÁVIO DE CARVALHO PASSADO COM O CADÔ DE MAN RAY

9. JÔNICA, DÓRICA OU CORINTIA?

FOTOS: REPRODUÇÃO

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CURADORIA

O PARADOXO DO SEGREDO Realizada em Frankfurt e Bordeaux em 2012, a exposição Sociedades Secretas ganha versão editorial especialmente desenhada para seLecT

CRISTINA RICUPERO

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O FASCÍNIO PELO OCULTO E PELOS TERRITÓRIOS DESCONHECIDOS NÃO É NOVO; ELE VEM E VAI COM O PASSAR DO TEMPO, SEMPRE COM A CAPACIDADE DE SE RENOVAR, COMO NOS MOSTRARAM MUITOS ESCRITORES E PENSADORES PROEMINENTES. Figuras históricas importantes, desde Goethe, Hoff-

mann, Edgar Allan Poe, Baudelaire e Balzac, para citar apenas alguns, a outras mais contemporâneas, como Aldous Huxley, William S. Burroughs, Fernando Pessoa, William B. Yeats e Allen Ginsberg, incluindo ícones culturais como Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin e David Bowie, produziram obras brilhantes sob a influência do ocultismo. Nas artes visuais, a palavra “espiritual” foi usada para cobrir as práticas diversas que inspiraram os primeiros grandes artistas modernistas, tais como Kasimir Malevich e Wassily Kandinsky. O forte interesse que os surrealistas tinham pelo oculto, o sobrenatural e o subconsciente é bem conhecido, como vemos em Giorgio de Chirico, René Magritte, André Breton, Salvador Dalí, Victor Brauner e Yves Tanguy, entre outros. Por que se tem renovado o interesse pelo oculto no campo da arte nos últimos dez a 15 anos? Por que o tema é tão atual? É claro que o clima pós-apocalíptico associado à virada do milênio, diretamente ligado a eventos como o 11 de Setembro, a Guerra do Iraque, os recentes ataques terroristas e a crise econômica e ecológica, criou o terreno perfeito para esse interesse renovado pelo desconhecido. Os artistas estão prontos para abordar o inexplicável, o misterioso, o subconsciente e o negativo para reinventar a cultura visual.

Five Folded Curtains (2008), de Ulla von Brandenburg FOTO: CORTESIA ULLA VAN BRANDENBURG/ ART CONCEPT PARIS

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No alto, vista da exposição Sociedades Secretas, com expografia desenhada pelo artista Fabian Marti; acima, a instalação The Trial of Henry Kissinger, de Eva Grubinger. Na página à dir., Tarot (2008), de Ulla van Brandenburg

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Temas como as ameaças, a paranoia, a morte e a violência nos revelam o estado do mundo e ao mesmo tempo se materializam em formas novas de niilismo, melancolia e exploração de situações extremas O oculto permanece como negação, antítese e contrariedade por definição, e é especialmente útil em tempos de crise. Alguns anos atrás, fui cocuradora de uma exposição intitulada Sociedades Secretas, que se realizou primeiramente na Schirn Kunsthalle, em Frankfurt, e depois teve nova apresentação no CAPC Musée D’Art Contemporain de Bordeaux (2011-2012). Durante a preparação da mostra, nos inspiramos num desafio central: como apresentar ou representar o invisível? Como lidar com ele? Por que e como, neste caso, tornar público o que é secreto por natureza? Nossa pesquisa nos revelou como era difícil determinar as origens mais remotas das sociedades secretas: o Egito, os tempos neolíticos.... As sociedades secretas parecem ter sempre existido, mas o que realmente sabemos sobre elas? Não é de surpreender no fundo que não nos tenha sido possível conseguir informação clara, pois essa dificuldade se origina precisamente da natureza secreta de tais sociedades. Enfrentar e contornar essa contradição tornou-se um dos principais desafios do nosso projeto.

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RITUAL DE INICIAÇÃO

Segundo a Wikipédia, uma sociedade secreta é um clube ou uma organização cujas atividades e funcionamento interno são ocultos aos não membros. A expressão “sociedade secreta” é geralmente aplicada a organizações que vão das meramente banais e inofensivas (como as fraternidades universitárias) a organizações míticas descritas em teorias da conspiração como enormemente poderosas, com agendas financeiras ou políticas voltadas para seus interesses, alcance global e muitas vezes crenças satânicas. “Sociedade secreta” é uma expressão usada para descrever organizações diferentes. Embora o sentido exato do termo seja discutível, várias das definições propostas indicam que deve haver um grau de sigilo e de conhecimento secreto. Isso pode significar que os membros estão submetidos à estrita obrigação de negar que conhecem a existência do grupo, podendo sofrer consequências negativas por reconhecer que fazem parte delas. Inclui ainda fortes ligações entre os membros da organização e, frequentemente, rituais que os não membros não podem testemunhar. Uma sociedade secreta pode ser definida basicamente por três características: é exclusiva, afirma possuir segredos especiais e demonstra forte inclinação a favorecer seus membros. Quando têm finalidades políticas, subvertem regras sociais e leis, algumas sociedades secretas são ilegais. Alguns exemplos mais conhecidos são a Maçonaria, a Rosa-cruz, a Cabala, a Máfia, a Ku Klux Klan e, em nossos dias, a Al-Qaeda e o Estado Islâmico (EI). Um dos colaboradores do catálogo da exposição, Jan Verwoert, jogou luz sobre o assunto: “Não há como desvendar, retirar o véu do segredo. O segredo é o véu. Sua única verdade é a função que preenche dentro de uma certa lógica social, ao operar como uma barreira visivelmente invisível entre o interior e o exterior de uma comunidade exclusiva”. FOTOS: CORTESIA SCHRN KUNSTHALLE / EVA GRUBINGER / GALERIE TOBIAS NAEHRING, LEIPZIG / ULLA VAN BRANDENBURG / ART CONCEPT, PARIS

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No alto, frame de Body Double 22, de Brice Dellsperger, remake de Eyes Wide Shut, de Kubrick; à esquerda, The Whole: A Study on Oist Integrated Movement (2009), vídeo de Jim Shaw. Na página à dir., The Logo of Dr. Mabuse for the Kingdom of Eitopomar (2013), de Eva Grubinger SELECT.ART.BR

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O clima pós-apocalíptico associado à virada do milênio, diretamente ligado a eventos como o 11 de Setembro, a Guerra do Iraque, os recentes ataques terroristas e a crise econômica e ecológica, criou o terreno perfeito para o interesse renovado pelo desconhecido

Essa análise foi especialmente interessante, pois a exposição tentava abordar e desenvolver o chamado “paradoxo do segredo”: o fato de que um segredo só existe quando é comunicado (e, obviamente, deixa de ser segredo...). As sociedades secretas interagem e jogam com a sociedade em geral e sua cultura de mídia. Na verdade, as tecnologias da comunicação atuais criam, por meio das redes sociais, as melhores e mais adequadas condições para o surgimento de novas sociedades secretas. Estas escapam, mas ao mesmo tempo dependem das estruturas de poder existentes – são subterrâneas e não podem existir abertamente.

CÓDIGOS ESTÉTICOS

É importante deixar claro que jamais foi nossa intenção, como curadores, fazer um projeto “sobre” as sociedades secretas, uma pesquisa científico-etnográfica ou sociológica que cobrisse o tópico de forma abrangente, nem uma exposição de arte para “ilustrar” o tema. Em vez de “comentar”, nosso desejo era tentar criar um ambiente tal que mergulhasse o espectador no mundo mental das sociedades secretas. Uma exposição que pudesse funcionar de certa forma como um ritual de iniciação, induzindo o visitante a viver certas experiências. Foi exatamente por isso que encomendamos ao artista Fabian Marti o desenho de um display especial, capaz de “orientar o espectador a escolher certos caminhos”, uma arquitetura que pudesse ao mesmo tempo esconder e revelar, mas sempre manter o segredo! Assim como as sociedades secretas inventam suas próprias marcas identificáveis, pensamos que deveríamos também inventar nossos próprios códigos estéticos. Desde o início pensamos em dividir o espaço da exposição em zonas diferentes, espaços abertos e flexíveis que cobririam certos temas de sociedades secretas que estariam de todo modo interligados. O mesmo aconteceu com o audioguia encomendado ao escritor Gary Lachman (que também colabora nesta edição de seLecT), cujas forma e função eram particulares, já que ele não funcionava da maneira clássica, comentando a exposição e as obras expostas, mas era bastante independente, atuando mais como um guia aberto ao tema das sociedades secretas. Ele foi concebido como uma coisa flutuante, à deriva, que poderia evocar alguma espécie de experiência pessoal no público, não apenas informá-lo. Apesar de o espaço da exposição e o audioguia terem sido concebidos e divididos em zonas ou capítulos (Iniciação, Mestres Ocultos, Conhecimento Secreto, Símbolos, Estados Alterados, Consciência da Conspiração), todas essas coisas se interligavam. Para alguns, o mundo da arte pode ser visto como uma espécie de sociedade secreta, aparentemente aberto, mas na verdade muito fechado, com seus próprios códigos de identificação. No entanto, é preciso tomar cuidado ao tirar essa conclusão, que pode facilmente reproduzir uma ideia excessivamente romantizada da arte como forma de resistência ou culto. Alguns artistas e escritores criaram no passado suas próprias “sociedades secretas”, inventaram uma sociedade secreta fictícia como obra de arte, ou simplesmente operaram de maneira semelhante, com afiliação exclusiva e regras rígidas de comportamento. A maioria dessas ideias é ainda hoje interessante e desafiadora. Poetas como Yeats ou, ainda mais, Fernando Pessoa foram fortemente influenciados por seus contatos ou pela participação em sociedades secretas. Embora a Lettrist International (LI) nunca tenha se intitulado uma sociedade secreta, seus membros se constituíram em uma microssociedade provisória, que funcionava de maneira semelhante, com seu modo de vida muito radical, isolamento e regras estritas de inclusão e exclusão. A LI vivia “à margem da economia”, e o lazer era visto como o ápice da civilização.

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FOTOS: CORTESIA BRICE DELLSPEGER / JIM SHAW / SIMON LEE GALLERY, LONDON, HONG KONG/ EVA GRUBINGER

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Therise, de Fabian Marti SELECT.ART.BR

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O mundo da arte pode ser visto como uma espécie de sociedade secreta, aparentemente aberto, mas com seus próprios códigos de identificação. Mas é preciso ter cuidado em reproduzir uma ideia excessivamente romantizada da arte como forma de resistência ou culto

A revolução que eles prometiam era a supremacia da arte e o fim do trabalho. A LI foi fundada por Debord e Wolman e era constituída por quatro mulheres e sete homens. Durante anos, Debord e Wolman sobreviveram a todos os outros membros, que foram gradualmente excluídos, até que o próprio Wolman, finalmente, foi expulso em 1957. Georges Bataille fundou uma sociedade secreta e uma revista pública chamadas Acéphale, cujo símbolo era um homem decapitado desenhado pelo artista André Masson. Essa sociedade secreta organizou várias reuniões noturnas na floresta, perto de um carvalho que tinha sido atingido por um raio. Os membros da Acéphale eram obrigados a adotar e a participar de diversos rituais, e também deveriam meditar sobre textos de Nietzsche, Freud, Sade e Mauss, lidos durante as reuniões. ARTE COMO CULTO

Jim Shaw inventou um culto fictício chamado Oism, baseado em seu interesse pela influência dos movimentos religiosos na sociedade americana. Supostamente fundado por Annie O’Wooten no interior do estado de Nova York, em meados do século 19, o Oism baseia-se na

crença da reencarnação, na reversão do tempo e em uma divindade feminina simbolizada pela letra “O”. As instalações que tratam do Oism funcionam como telões de teatro que combinam personagens reais e fictícios relacionados ao culto inventado. Há alguns anos Joachim Koerster vem pesquisando e executando obras sobre uma sociedade esotérica do início do século 20, em Londres, a Ordem Hermética da Aurora Dourada, e seu membro renegado Aleister Crowley. O retrato de Crowley foi incluído na capa do disco dos Beatles Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, e seu imaginário encontra lugar nas canções de John Lennon e David Bowie, entre outros, revelando a posição de Crowley como um progenitor e avatar da força do oculto na contracultura. A presença de Crowley foi notada em uma série de fotos que Koerster tirou do local onde ele tinha fundado sua comunidade Abadia de Thelema, perto de Palermo, na Sicília, por meio de um diagrama sobre o oculto feito por Suzanne Treister e do filme Invocação de Meu Irmão Demônio, de Kenneth Anger, um de seus discípulos famosos. Outras obras incluídas foram Sete de Ouros, instalação de Ulla von Brandenburg, que se refere livremente a padrões do simbolismo maçônico e ao tarô, pois se baseia na alquimia, na Cabala e na numerologia, enquanto o remake de Eyes Wide Shut (Stanley Kubrick, 1999), realizado por Brice Dellsperger, Body Double 22, conduz a imagem-clichê das sociedades secretas ao seu extremo. Essa versão não linear e editada do filme é como um jogo de espelhos interminável, em que as imagens são desconstruídas e deformadas, provocando na mente do espectador memórias fraturadas do filme real (como um culto), criando um playground que lembra constantemente ao espectador sua instabilidade. As conspirações políticas foram criticamente repercutidas em diversos projetos. Na monumental instalação de Eva Grubinger, O Julgamento de Henry Kissinger, um tribunal negro investiga o emaranhado do poder político do ex-secretário de Estado e Prêmio Nobel – uma figura de certa forma “acima da lei” ou “além do bem e do mal” –, enquanto Sean Snyder, com O Local, uma análise de fotos e textos sobre a prisão de Saddam Hussein em 2003, desmascara a adição de significado em evidências visuais insignificantes por si mesmas, e assim revela os mecanismos e as tendências das reportagens da mídia de uma maneira surpreendentemente relevante para a situação atual. E o que dizer dos segredos na era do WikiLeaks? Em nosso atual universo de comunicações digitais, a revelação em massa de informações por meio de vazamentos e denúncias parece ser a regra, não a exceção. Mas a transparência absoluta e a explosão de informações não oferecem a melhor possibilidade de camuflagem? Os segredos são tão óbvios hoje que não temos mais consciência deles. Essas e muitas outras questões são levantadas na curadoria, cuja intenção não é capturar coisas invisíveis ou revelar conspirações, mas tentar explicitamente salientar o paradoxo de que os segredos só são segredos quando são comunicados, e desaparecem assim que vêm à luz.

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TRADUÇÃO LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES FOTO: CORTESIA FABIAN MARTI

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Na série Ágrafo, de Laura Lima, reconhecemos uma familiaridade com o território surrealizante, ao mesmo tempo pragmático e disruptivo, estético e ético M A R TA M E S T R E

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Sem Título (2015), da série Ágrafo, que esconde material secreto sob tecido branco semitransparente e cordas

FOTO: EDOUARD FRAIPONT / CORTESIA GALERIA LUISA STRINA

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RAYMOND ROUSSEL, ESCRITOR CONSIDERADO POR ANDRÉ BRETON COMO “O MAIOR MAGNETIZADOR DE TODOS OS TEMPOS”, FOI UM DESSES ILUSTRES DESCONHECIDOS QUE INFLUENCIARAM MEIO MUNDO DE CONHECIDOS, E QUE ANTECIPARAM AS EXPERIÊNCIAS DE FLUTUAÇÃO ENTRE SIGNIFICADO E SIGNIFICANTE REALIZADAS NA LITERATURA, NO CINEMA E NAS ARTES VISUAIS DO SÉCULO 20. Em grande parte de seus livros – Impressions d’Afrique

(1910) e Locus Solus (1914), entre outros – Roussel desenvolveu pioneiros procedimentos de linguagem que viriam a ser usados especialmente pelos dadaístas e surrealistas. Por exemplo, o uso extensivo de palavras homônimas ou parecidas, como é o caso de “billard” (bilhar) e “pillard” (saqueador), permitiu-lhe construir frases e textos arbitrários na forma e no conteúdo, elevando, assim, a potência patológica da linguagem. Os jogos de palavras, praticados incessantemente ao longo de toda a sua vida, levaram-no a descobrir espaços insuspeitos na escrita e a atestar a existência de uma segunda realidade – não como repetição da primeira, mas como alternativa hilariante –, até cometer suicídio por excesso de barbitúricos em um hotel de Palermo, na Itália, aos 55 anos. Sobre o lado anedótico de Roussel, conta-se que, depois de atravessar o Atlântico para conhecer a África, ele vislumbrou o continente da escotilha do navio e, satisfeito, pediu ao comandante que desse meia-volta. Verdadeiro ou não, o fato ilustra bem o desinteresse pela verificação etnográfica do século 19, dando-se início a um gosto pelas experiências da linguagem desvinculadas do real e totalmente abertas à primazia da imaginação, marca do século 20. Ágrafo, de Laura Lima, decorre dessa genealogia deslanchada por Roussel, embora não chegue a reivindicar uma paternidade, pois não se trata de reconhecer uma filiação para daí exercitar o vocabulário “autorizado” do cânone. Ainda assim, reconhecemos uma familiaridade entre Ágrafo e outros trabalhos de Laura Lima com o território surrealizante, ao mesmo tempo pragmático e disruptivo, estético e ético. Encoberta, dissimulada e insinuando-se continuamente, a questão principal que Laura Lima apresenta com Ágrafo diz respeito ao que ainda não nos foi dado, ou sequer foi formulado. Os objetos aí instalados existem em um tempo em que a linguagem não acontece. Um tempo em que as coisas, ainda sem nome (“ágrafo” significa “o que não está escrito”), levitam em suspensão sem aderir aos signos e aos atos narrativos. Por razão desse descompasso, “ágrafo” soa como um “vazio que arranha” (termo utilizado por Luiz Camillo Osorio ao referir-se ao trabalho RhR, 1999), SELECT.ART.BR

um fosso escavado nas palavras, da mesma forma que soará sempre estranho o enigma saído da boca de uma esfinge antiga. As palavras nos magnetizam sem que seu conteúdo “se chegue a colocar”. Procurando discernir a África através da escotilha inclinada do navio, Roussel pediu para regressar, desacreditando na experiência e acreditando em sua imaginação. Ou talvez não seja possível ser razoável, nem mesmo em alto-mar, ou aqui, diante desses objetos suspensos, cobertos por diferentes tecidos e amarrações de cordas que nos vedam o seu interior. Explico: os objetos caem das paredes de uma forma descoordenada e desequilibrada. Alguns dos formatos são

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Cordas, nós, liames, tecidos, padronagens, costuras ou redes sustentando objetos pendurados não estão aqui para dar concretude à cena, mas, antes, para enredar o espectador Acima e à direita, obras Sem Título (2015), da série Ágrafo FOTO: EDOUARD FRAIPONT / CORTESIA GALERIA LUISA STRINA

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Como surtos da linguagem, a gagueira ou o balbucio atualizam algo subitamente necessário e vital, criado por

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força de um encontro violento como o ainda não pensado e não pensável. Samuel Beckett chamou isso de “inominável” e Gilles Deleuze configurou-os como “ocorrências do desejo”

familiares, principalmente os quadrados e os retângulos (esconderão pintura?), porém, os volumes e as formas pontudas desfazem as nossas primeiras suposições. De fato, não sabemos o que eles contêm, nem sabemos se virá a ser posta em prática uma estratégia de desvelamento, mas quem os venha possuir não escapará do enigma da esfinge. Porque ela continuará a nos olhar, a nos questionar, para, finalmente, nos devorar. INOMINÁVEL OU OCORRÊNCIAS DO DESEJO

A ideia de decifração está, portanto, fora de questão para Laura Lima. Nem mesmo os glossários, aos quais a artista vem se dedicando, oferecem chaves de leitura. Nisso, o compositor Tom Zé, outro rousseliano sem o saber, tem aquele verso certeiro que parece vir ao caso: “Eu tô te explicando pra te confundir/ Eu tô te confundindo pra te esclarecer”. Em alternativa, Ágrafo põe em marcha um jogo em forma de equação não linear, em que, de um lado, temos a linguagem e, de outro, a matéria. O que nos diz essa equação é que, quanto mais rarefizermos a necessidade de “grafar” (escrever, nomear, interpretar), mais aumentaremos a ocorrência de uma densa materialidade e substância. Partindo desse princípio, chegaremos a dois opostos complementares: no caso da linguagem, o balbucio ou a gagueira, e, no caso da matéria, uma erótica dos elementos. Como surtos da linguagem, a gagueira ou o balbucio atualizam algo subitamente necessário e vital, criado por força de um encontro violento com o ainda não pensado e não pensável. Samuel Beckett chamou isso de “inominável” e

Na página à esquerda, tecido, cordas, instrumentos, mármore e material secreto Sem Título (2015), da série Ágrafo; acima, Nuvem (2009)

Gilles Deleuze configurou-os como “ocorrências do desejo”. Ambos são evidências de um momento em que o compromisso entre significado e significante ainda não é grafado e o investimento discursivo é deslocado para a força da cena. Trazer uma vaca para passear numa praia de Ipanema (Vaca na Praia, 1994), por exemplo, ou a série de títulos fonéticos ou homônimos como Marra, Bala, Ágrafo, RhR são ocorrências expressivas de surtos. Cordas, nós, liames, tecidos, padronagens, costuras ou redes sustentando objetos pendurados não estão aqui para dar concretude à cena, mas, antes, para enredar o espectador. Como no shibari, a arte japonesa de amarração por cordas, essa combinação de elementos imobiliza e investe contra a racionalidade instituída. Os objetos incorporam qualidades psicológicas e expõem marcas de sexualidade, dor e devassidão, expressas através da perfuração e do corte dos tecidos que cobrem os enigmas do interior. Alguns autores preferem manter divididos os “cativeiros” do surrealismo e do construtivismo; em Ágrafo, ao contrário, perpassa a ideia de que é um erro apartá-los. O jogo da linguagem, solto e livre, reveste-se de uma densa materialidade. Sem contradição, Laura Lima nos mostra que a criação do enigma, enquanto práxis vital, acontece no momento em que a imaginação é “submetida” à maquinaria, que pode ser extremamente bela, mas também extremamente perversa: como podem ser a arte, a linguagem, a loucura, a escotilha de um navio, a esfinge. Texto originalmente produzido para a individual de Laura Lima na Galeria Luisa Strina FOTOS: EDOUARD FRAIPONT / CORTESIA GALERIA LUISA STRINA

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HILMA AF KLINT TRAÇOS DO INFINITO

A artista sueca, considerada hoje a pioneira da abstração, determinou que sua obra fosse tornada pública somente 20 anos após sua morte. Acreditava que o mundo não estava pronto para compreender o significado de suas visões

JENNIFER HIGGIE

EM 1907, A ARTISTA SUECA HILMA AF KLINT ESTENDEU UMA FOLHA DE PAPEL DE 3 METROS NO CHÃO DE SEU ATELIÊ, EM ESTOCOLMO, E COMEÇOU A PRIMEIRA DE UMA SÉRIE DE PINTURAS ABSTRATAS. O resultado foi uma série de obras enor-

mes, de uma beleza estonteante, feitas em guache e aquarela, que ela terminou em um ano. Intituladas As Dez Maiores, eram um estudo visual das quatro idades do homem sob uma perspectiva espiritual. A primeira da série, As Dez Maiores, nº 1, Infância, Grupo IV, é alegre como um dia ensolarado: flores estáticas flutuam entre palavras intraduzíveis como “oo” ou “Vestalasket”, que despencam pela parte inferior da imagem como notas graves psicodélicas; cores rosadas em tons desérticos cortam velozes um fundo de céu azul-escuro. SELECT.ART.BR

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Em As Dez Maiores, nº 2, Infância, Grupo IV, uma enorme bola amarela cruza com outra idêntica, azul-escura, e floresce em um verde vivo, enquanto espirais eufóricas ameaçam se dissolver em um delirante afresco azul-claro. Em As Dez Maiores, nº 6, Idade Adulta, Grupo IV, palavras inventadas e estranhas formas de letras se espalham loucamente pelo fundo rosa pedregoso, como uma algaravia de grafite cósmico. Em As Dez Maiores, nº 9, Velhice, Grupo IV, os detalhes se dissolveram; o infinito é sugerido em uma extensão cósmica, onírica – um nada delicado, sem contornos. Hilma af Klint – Uma Pioneira da Abstração é, sem dúvida, uma das exposições mais extraordinárias que já vi. Ela viajou para a Hamburger Bahnhof – Museum für Gegenwart, em

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As Dez Maiores, nº 1, Infância, Grupo IV (1907), primeira de série de pinturas abstratas que propõe estudo visual das idades do homem, vistas sob uma perspectiva espiritual FOTOS DE JERRY HARDMAN-JONES CEDIDAS PELA SERPENTINE GALLERY, LONDRES, QUE REALIZOU A MOSTRA HILMA AF KLINT: PAINTING THE UNSEEN, DE MARÇO A MAIO DE 2016

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As Dez Maiores, nº 2, Infância, Grupo IV (1907), representação da primeira idade do homem na forma de esferas e espirais eufóricas; na página à direita, As Dez Maiores, nº 6, Idade Adulta, Grupo IV (1907)

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A história da vida e da

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obra de Hilma af Klint não é simplesmente a descrição de uma mulher extraordinária, mas um estudo sobre como foi escrita a história da arte tradicional: um reflexo do mercado, visto por homens

Berlim, em junho 2013, e para o Museo Picasso Málaga, na Espanha, em outubro de 2013. Com curadoria de Iris Müller-Westerman, a mostra inclui cerca de 130 pinturas e cem obras em papel, muitas das quais foram expostas pela primeira vez desde a morte da artista, em 1944, aos 81 anos. Obras abstratas puramente minimalistas – por exemplo, a série Parsifal, de 1916 – se alternam com pinturas mais declaradamente celestiais e até figurativas – cisnes, pombos e corpos se misturam em uma celebração alucinógena de erotismo e espiritualidade; uma sala preta com as três enormes Peças de Altar, de 1915, que Af Klint desenhou para um templo ainda não construído, equiparam-se à obra tardia de Mark Rothko. A surpreenden-

temente delicada e detalhada série Árvore da Sabedoria, também de 1915, inaugura os desenhos botânicos obsessivos de Af Klint, como as refinadas Violetas Floridas com Diretrizes, da Série 1 (1919) ou Cevada: Um Trabalho sobre Cereais, de 1920. Seu trabalho posterior inclui os “mapas”, que apareceram em 1932 como premonições da guerra que envolveria o mundo. Em Um Mapa: Grã-Bretanha (1932), por exemplo, uma cabeça posicionada sobre a Europa desfere chamas escuras em direção ao Reino Unido. ESCRITA AUTOMÁTICA

Af Klint nasceu em 1862. Em 1879, ela começou a participar de sessões mediúnicas e, em 1880, sua irmã morreu, tragédia que estimulou o interesse da artista por religião e espiritualidade. Em 1896, entretanto, Af Klint, que havia sido uma aluna aplicada da Academia Real de Belas Artes, em Estocolmo, decidiu rejeitar a representação da realidade externa em suas pinturas e começou a praticar escrita automática, ou psicografia – FOTOS: JERRY HARDMAN-JONES, CORTESIA SERPENTINE GALLERY, LONDRES

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aproximadamente, 30 anos antes dos surrealistas. Ela se envolveu estreitamente com um grupo de quatro mulheres, todas interessadas em espiritualidade, escrita automática e desenho, que foram influenciadas pela teosofia e os ensinamentos de Rudolf Steiner. Elas chamavam a si mesmas de “As Cinco” e continuaram a se reunir pelo resto de suas vidas. Em 1904, durante uma sessão espiritualista, Af Klint soube por um guia espírita, Amaliel, que havia sido “comissionada” para fazer pinturas no plano astral. Entre 1906 e 1908, pintou as primeiras 111 obras que compreendiam o início da série As Pinturas do Templo. Parou durante quatro anos para cuidar da mãe, antes de criar mais 82 pinturas entre 1912 e 1915, assim completando a encomenda. No abrangente catálogo da exposição, Müller-Westerman cita Af Klint descrevendo seu processo de trabalho: “As pinturas foram feitas diretamente através de mim, sem qualquer desenho preliminar e com grande força. Eu não tinha ideia do que as pinturas deveriam representar; entretanto, trabalhei com rapidez e segurança, sem jamais modificar uma única pincelada”. SELECT.ART.BR

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FONTES ESPIRITUAIS

A história da vida e obra de Hilma af Klint não é simplesmente a descrição de uma mulher extraordinária, mas um estudo sobre como foi escrita a história da arte tradicional: a grosso modo, um reflexo do mercado, visto por homens. Em 1970, Pontus Hultén, então diretor do Moderna Museet, recebeu a oferta de todo o espólio de Af Klint, mas o recusou, aparentemente rejeitando sua obra por causa da relação com o espiritualismo. De modo semelhante, a artista não teve sequer uma nota de rodapé na recente exposição no MoMA-NY Inventando a Abstração, 1910-1925. A curadora da mostra, Leah Dickerman, justificou a exclusão da artista por não estar convencida de que suas pinturas sejam arte. Isso é absurdo. Af Klint estudou

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Peças de Altar (1915), pintadas em óleo e folhas de metal para templo ainda não construído

em uma escola de arte e esteve profundamente envolvida nas discussões artísticas da época. É difícil não pensar que ela foi excluída por causa de seu espiritualismo e pelo fato de que suas obras não estão em grandes coleções: em seu testamento, Af Klint estipulou que elas não poderiam ser vendidas, embora obras individuais possam ser liberadas para apoiar a manutenção da coleção, e somente para uma instituição (isso ainda não aconteceu). Mas Kandinsky, Mondrian e Malevich, todos astros da exposição no MoMA – e, deve-se notar, parte de sua coleção –, beberam profundamente das mesmas fontes espirituais que Af Klint. (Cabe aqui uma citação de Kandinsky em Sobre o Espiritual na Arte, de 1911: “A verdadeira obra de arte nasce do artista – uma

criação misteriosa, enigmática e mística”.) No entanto, felizmente, houve curadores que apoiaram a obra de Af Klint: em 1983, no Museu de Arte do Condado de Los Angeles, o curador Maurice Tuchman incluiu 16 de suas pinturas na notável exposição O Espiritual na Arte. E, em 2006, o Camden Art Centre de Londres realizou a primeira exposição de suas obras no Reino Unido, intitulada Um Átomo no Universo. Em 1944, Af Klint morreu após uma queda (curiosamente, foi o mesmo ano da morte de Mondrian, Malevich e Kandinsky). Em seu testamento, ela deixou mais de mil pinturas, aquarelas e desenhos, e 27 mil páginas de cadernos – que o Moderna Museet está digitalizando – para seu sobrinho, Erik af Klint. Hoje, o legado é propriedade de uma fundação dirigida por sua família. Ela também estipulou que sua obra só deveria ser mostrada ao público 20 anos após sua morte. Acreditava que o mundo não estava pronto para compreender o significado de suas visões. Esperamos que agora esteja. TRADUÇÃO LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES FOTOS: JERRY HARDMAN-JONES, CORTESIA SERPENTINE GALLERY, LONDRES

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PERFIL

BELKIS AYÓN O ETERNO RETORNO DE SIKÁN

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Ao se aproximar do universo mítico e misógino da Sociedade Secreta Abakuá, e representá-lo em sua obra, a artista Belkis Ayón afirmou seu compromisso com a reivindicação da mulher dentro da sociedade cubana ORLANDO HERNÁNDEZ

TALVEZ BELKIS AYÓN ESTIVESSE NOS FALANDO O TEMPO TODO DA MORTE, DO SACRIFÍCIO, DA TRAIÇÃO, DA CULPA, DO CASTIGO, MEDITANDO SOBRE AS NOÇÕES APARENTEMENTE GERAIS, ABSTRATAS, MAS QUE SE ENCONTRAM FORTEMENTE LIGADAS À EXISTÊNCIA HUMANA, AO DRAMA INDIVIDUAL HUMANO, e não

simplesmente narrando e descrevendo com curiosidade etnográfica (e, naturalmente, com intenção estética) as histórias sagradas, os episódios rituais e os personagens míticos da Sociedade Secreta Abakuá. No entanto, o mais provável é que estivesse fazendo as duas coisas, quer dizer, recriando o mistério e a beleza dessa comunidade fraterno-religiosa afro-cubana para compreender melhor a natureza intrínseca desses conceitos gerais e, assim, poder criar seu próprio mistério, ou seja, expressar em suas obras – ou ocultar por trás delas – seus medos, sua incerteza, sua inquietação. Agora sabemos que Belkis foi deixando cair migalhas ao longo de sua curta carreira, caso quiséssemos seguir o rastro de seus sonhos, seus desejos e, também, de seus pesadelos, de suas impaciências, de sua desesperança. Entretanto, devemos reconhecer com dor que não encontramos (ou não encontramos a tempo) todas as migalhas. Pelo menos, não aquelas que pudessem ter evitado ou retardado que chegasse tão abruptamente ao fim do caminho. SELECT.ART.BR

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A própria Belkis Ayón está representada em Sikán (1991), mito original da Sociedade Abakuá, aqui sentada majestosamente em seu trono, sustentando nas mãos o grande Segredo FOTO: JOSÉ FOTO: A. FIGUEROA, SAM HORINE, CORTESIA CORTESIA ESTATE CREATIVE BELKIS AYÓN TIME

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A impressionante beleza que Belkis conseguiu em suas obras atraiu toda a nossa atenção e, talvez por isso, ninguém tentou descobrir mais detidamente os possíveis indícios ocultos dessa crise espiritual, anímica, psicológica, que, muito cedo – na precocidade dos 32 anos – a levaram ao suicídio. Seu caráter sociável, amoroso, e seu sorriso quase permanente também serviram como uma máscara, como um escudo contra qualquer possível suspeita. Antes de continuar, talvez valha a pena explicar de que se trata a Socidade Secreta Abakuá e, em especial, em que consiste o mito de Sikán, que lhe dá fundamento, e que inspirou as criações artísticas de Belkis Ayón. A Sociedade Secreta Abakuá (Ecorie Enyene Abakuá) é uma comunidade fraterno-religiosa “de ajuda mútua e socorro”, fundada em Cuba, no povoado de Regla, em 1836, e se origina das antigas “sociedades do leopardo” Ngbé e Ekpé, introduzidas em nosso país durante o tráfico de escravos por homens das etnias Efik, Efor, Oru e Ekoi, entre outras, procedentes da zona de Viejo Calabar, no sudeste da Nigéria e Camarões. Como na África, é uma comunidade estritamente masculina, onde não se permite a entrada ou a participação de nenhuma mulher. Abakuá funciona até hoje e possui milhares de membros em Havana, Matanzas e Cárdenas, e em nenhum outro lugar fora de Cuba. SELECT.ART.BR

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A Ceia (1991) não teria por que estar inspirada na famosa cena bíblica, mas seria originada em qualquer reunião ou refeição caseira

Ayón foi uma criadora provocante que se apropriou de um tema difícil, que havia sido muito pouco tocado dentro da arte cubana, de maneira superficial, por artistas homens

Uma das versões do “mito da origem” de Abakuá refere-se a uma princesa chamada Sikán, pertencente à nação Efor, que uma manhã foi ao Rio Oddán para pegar água em uma vasilha e apanhou inadvertidamente um peixe misterioso, que, segundo a tradição, traria paz e prosperidade a quem o tivesse e que produzia um estranho som que representava a voz de um ancestral divinizado, o rei Obón Tanse, que era uma manifestação de Abasí, o Deus Todo-Poderoso. Quando colocou a vasilha com o peixe em sua cabeça, Sikán percebeu o som, a voz sobrenatural (úyo) e, dessa forma, foi a primeira a conhecer o grande segredo, sendo automaticamente consagrada. Com a autorização de Iyamba – o pai de Sikán –, esta é confinada por Nasakó, o bruxo do grupo, em um lugar oculto no bosque, para evitar que divulgasse o segredo entre as nações vizinhas, também interessadas em se apropriar do mesmo. Mas Sikán comentou o segredo com seu amante, o príncipe guerreiro Mokongo, pertencente à tribo vizinha dos Efik, que, então, se apresentou diante dos Efor para reclamar seu direito de compartilhar tal segredo. Sikán foi condenada à morte por traição ao grupo, ao revelar o segredo. Com a pele de Sikán, Nasakó construiu um tambor para tentar reproduzir o som de Tanse, mas isso não aconteceu. Tampouco seu sangue serviu para ativar magicamente o tambor, chamado Ekwe, de maneira que foi usado sangue de um bode (Mbori) e, assim, conseguiu-se finalmente a transmissão do som sagrado. Todas essas aventuras foram imaginadas, reformuladas por Belkis, que, de maneira inesperada, passou a fazer parte desse elenco mítico ao reproduzir em suas obras sua própria imagem. Aqueles que a conheceram, ou quem ao menos viu seu retrato, reconhecem de imediato seu rosto, a forma de seus olhos e a intensidade de seu olhar na figura de Sikán e de outros personagens femininos de sua obra. Artisticamente, Belkis transformou-se em Sikán. Compartilhou com ela seu achado milagro-

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FOTO: MICHEL POU, CORTESIA ESTATE BELKIS AYÓN

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so, a privação de seu poder e sofreu com ela seu papel de vítima, mas tentou, com sua obra, comentar, contestar e modificar seu trágico destino. Seu autossacrifício, em 11 de setembro de 1999, pode ser visto como um episódio imprevisto do antigo mito. Diferentes leituras poderiam ser feitas dessas manobras expressivas e comunicativas, mas, de uma forma geral, todas demonstram sua profunda identificação com a tradição sociocultural e religiosa afro-cubana e seu compromisso com a reivindicação da mulher dentro da sociedade, como os dois temas ou a palavra de ordem (leitmotiv) mais claramente sugerida ou insinuada ao longo de toda a sua obra. Ainda que restassem muitos outros, talvez inexplorados. Curiosamente, o mundo fechado, esotérico e, evidentemente, misógino da Sociedade Abakuá terminou recebendo-a, agradecendo-lhe por sua obra e transformando-a na melhor mensageira ou embaixadora da beleza mítica e simbólica dessa comunidade, dentro da arte cubana e universal. Mas, com muito respeito às questões negativas de Abakuá, Belkis pode ser considerada também uma figura antagônica, devido às suas mensagens sutilmente contestadoras e reivindicadoras, com relação à mulher. Olhando agora algumas das belas gravuras de Belkis, presentes na coleção Daros Latinoamerica, saltam-me à vista pelo menos duas características de sua obra, que se apresentam aqui com maior ênfase. Refiro-me, em primeiro lugar, à elegância, ao refinamento e ao caráter sossegado, clássico (ou classicista) de suas imagens, que parecem fazer referência não aos modelos da última vanguarda, como se poderia esperar de uma artista muito jovem, mas a obras renascentistas, neoclássicas, ou provenientes da história do retrato pictórico e fotográfico, que se regem pela convenção da “pose”. Esse tom sereno, pacífico, às vezes lânguido, provoca um interessante efeito de contraste, talvez de incongruência, com o mundo ativo, enérgico, muito SELECT.ART.BR

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Mokongo (1991) constitui a imagem ao mesmo tempo venerável e detestável do autoritarismo paterno ou da sociedade patriarcal

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frequentemente conflitivo, da Sociedade Abakuá. Servirá sua obra para “refrescar”, a partir da arte, a violência de muitos de seus ambientes? Outro aspecto que chamou minha atenção é o interesse de Belkis por aproximar-se do universo mítico e simbólico de Abakuá, sem perder de vista o cenário familiar, cotidiano, do qual o mito constitui um reflexo, uma extensão (e não o contrário). A Ceia não teria por que estar inspirada na famosa cena bíblica popularizada pela pintura de Leonardo da Vinci, mas seria, isto sim, originada em qualquer reunião ou refeição caseira, onde igualmente ocorrem discussões, mal-entendidos, situações tensas, complexas. A obra Mokongo poderia constituir uma imagem ao mesmo tempo venerável e detestável do autoritarismo paterno ou, quem sabe, simplesmente da sociedade patriarcal, como um todo, em que Belkis viveu, ao passo que Sikán encarna a própria Belkis, que, sentada “majestosamente” em seu trono, sustenta nas mãos, quase com negligência, o grande Segredo; um segredo que, como demonstra sua expressão, entre assombrada e entristecida, constitui, antes, um motivo de decepção, de contrariedade e não de alegria. Por acaso, não foi precisamente a posse do segredo que ocasionou a morte de Sikán? Apesar da aparência contida, relativamente serena, delicada, que toda sua obra possui, e da personalidade amável, afetuosa, da artista, Belkis Ayón foi uma criadora decisiva, instigadora, provocante, capaz de opor-se radicalmente aos convencionalismos e de enfrentar valentemente qualquer desafio. Apropriou-se de um tema difícil, talvez inquietante, que havia sido muito pouco tocado dentro da arte cubana, quase sempre de maneira superficial, decorativa, e por artistas exclusivamente homens, que não aprofundaram nem problematizaram seus conteúdos. Por outro lado, e um pouco por trás da história colorista, pitoresca, da arte cubana, Belkis decidiu, quase desde o início, utilizar somente o branco dos papéis e os tons escuros e cinza da tinta preta, com uma ou outra incursão pelo ocre e o amarelo. Olhando ainda mais longe, decidiu empregar uma das técnicas menos prestigiadas dentro da gravura: a colografia, que conseguiu levar ao seu auge, dedicando somente breves abordagens às técnicas da litografia, do linóleo ou da calcografia (talho doce), que já contavam com uma ampla e prestigiada tradição dentro das artes visuais cubanas. Foram, indiscutivelmente, ações e decisões fortes, ousadas, que demonstram a coragem, a audácia e o atrevimento de seu caráter. Gostaríamos de pensar que compreendemos as obras de Belkis, mesmo que estejamos talvez muito longe de conseguir. Creio que quaisquer que tenham sido suas motivações (estéticas, etnográficas, religiosas, feministas, de cunho filosófico ou existencial), Belkis Ayón realizou a única coisa verdadeiramente importante que pode fazer um grande criador, para provar sua condição de artista: criar obras de arte. E o fez de maneira incessante, com absoluta entrega, com veneração, com modéstia, até que conseguiu alcançar resultados de altíssima qualidade. De forma que seu legado tem garantido sua permanência e seu eterno regresso na memória artística de Cuba e do mundo. Para alguns, alcançar essa meta parece ser mais do que suficiente. Mesmo que nos doa que tenha escolhido um caminho tão vertiginoso para a imortalidade. Texto originalmente produzido para o catálogo da exposição Cuba Ficción y Fantasia, na Casa Daros, RJ FOTO: JOSÉ A. FIGUEROA, CORTESIA ESTATE BELKIS AYÓN

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NOS ÚLTIMOS ANOS, O MUNDO DA ARTE TEM DEMONSTRADO UM GRANDE INTERESSE PELO OCULTO, O MÍSTICO, O MÁGICO E O ESPIRITUAL. MUITAS EXPOSIÇÕES CELEBRAM A “ARTE OCULTA”, AS GALERIAS ABREM AS PORTAS PARA TODO TIPO DE ESPIRITUALIDADE, E PRESTIGIOSAS REVISTAS DE ARTE COMO FRIEZE E ARTFORUM PUBLICAM LONGOS ARTIGOS SOBRE COMO AS IDEIAS OCULTAS, ANTES RELEGADAS ÀS MARGENS DA CULTURA, HOJE FAZEM PARTE DO SEU CENTRO VITAL. Para aqueles que, como eu, há muito

estudam as ligações entre a cultura e o oculto, esse grande interesse é bem-vindo. No entanto, devemos evitar o clássico “Por que demoraram tanto?” ao ver os atrasados fazerem fila para aprovar tudo o que é etéreo, metafísico, ectoplasmático e invisível. Na verdade, é claro que a arte e o oculto – que significa apenas isso, “invisível” – têm uma longa história. Podemos até dizer que os dois estiveram presentes no nascimento da própria autoconsciência humana, a julgar pelas evidências extraídas da arte nas cavernas pré-históricas de lugares como Les Trois Frères e Lascaux, na França, e Alta Mira, na Espanha. Como afirma o “arqueólogo cognitivo” David Lewis-Williams em The Mind in the Cave: Consciousness and the Origin of Art (2002), as estranhas figuras “teriantrópicas” – feitas de partes animais e humanas – que decoram as cavernas do Paleolítico Superior (entre 50 mil e 10 mil anos atrás) são um produto da inclinação de nossos antigos ancestrais pelos estados alterados de consciência, muito provavelmente induzidos por plantas alucinógenas. Enquanto estavam em estado de transe, na profundeza desses espaços quase inacessíveis – como mostra o notável filme de Werner Herzog, Cave of Forgotten Dreams (2011) –, nossos precursores pré-históricos viajavam a outros mundos, aos planos espirituais, e deixaram um vestígio do que encontraram nas paredes ao seu redor. Se fazer símbolos é um sinal de autoconsciência, como acreditava o filósofo Ernst Cassirer, os primeiros símbolos que indicam a autoconsciência humana referiam-se a um mundo invisível. MAGOS OPERANTES NO RENASCIMENTO

Podemos perdoar nossos ancestrais seminus e sem instrução por acalentarem crenças em um mundo invisível, mas certamente a maior parte da arte que veio depois se livrou daquilo que, para nós, pós-modernos, é no máximo uma ideia bizarra? Mas que dizer do Renascimento, quando o Artista, como o conhecemos (ainda não “a artista”), apareceu em cena? O Renascimento foi, é claro, um período em que as glórias do passado clássico foram redescobertas após os anos obscuros da Idade Média. Isso significou Platão, em particular, mas, como afirma a historiadora Frances Yates em Giordano Bruno and the Hermetic Tradition (1971), também significou a redes-

HISTÓRIA

ALTA OCULTURA Como textos visionários e conhecimentos secretos se infiltraram na arte, na música e na literatura ocidental, fomentando um caldo de “subcultura oculta” G A R Y L AC H M A N

Na página à direita, aquarela da série The Eye of the Lord (c. 1864), de Georgiana Houghton

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FOTOS DE GEORGIANA HOUGHTON: VICTORIAN SPIRITUALISTS’ UNION, MELBOURNE, AUSTRÁLIA, CEDIDAS PELA THE COURTAULD GALLERY, LONDRES, QUE FEZ FOTO: MOSTRA SAM HORINE, DA ARTISTA CORTESIA ENTRECREATIVE 16/6 E 11/9/16 TIME

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coberta do Corpus Hermeticum, a coleção de textos místicos e mágicos que teriam sido escritos pelo maior mago de todos os tempos, Hermes Trismegisto, “três vezes o maior Hermes”. Por meio das traduções de Marsilio Ficino, esses textos visionários se filtraram pela intelligentsia florentina, com o resultado, como Yates deixa claro, de que as ideias mágicas informaram praticamente todos os aspectos do Renascimento. Como escreve Yates, “os magos operantes do Renascimento foram os artistas, e foram Donatello ou Michelangelo que souberam como infundir vida divina em suas estátuas”. A pintura Primavera, de Botticelli (1482), uma das imagens típicas do Renascimento, foi, segundo Yates, orientada por Ficino – que desenvolveu todo um sistema do que podemos chamar de “psicoterapia hermética” – e constitui, como ela a descreve, “uma aplicação prática da magia, um talismã complexo” destinado a atrair energias astrais benéficas enquanto afastava as nocivas. Mas o longo relacionamento entre magia e arte não terminou aí. No século 19 e na época dos românticos, ocultistas como o francês Éliphas Lévi (1810-1875) (cujos leitores incluem Baudelaire e Rimbaud, e que também era um excelente desenhista) afirmavam que a arma mais importante no arsenal oculto do mago não era sua varinha ou livro de sortilégios, mas sua imaginação, algo que, como enfatizou Lévi, ele compartilhava com o artista. Conforme a história entrou nos tempos modernos, artista e ocultista aproximaram-se ainda mais. Como notou o filósofo esotérico P. D. Ouspensky (1878-1947), cujas ideias influenciaram vanguardistas russos como Kasimir Malevich (1878-1935) e Mikhail Matiushin (1861-1934), “na arte é necessário estudar o ‘ocultismo’; o artista deve ser clarividente; ele deve ver o que os outros não veem; deve ser um mago”. E também havia os surrealistas, é claro... Este relato da longa associação entre a arte e o oculto poderia continuar infinitamente. Mas, para nós, hoje, o reconhecimento de sua proximidade – mais que ignorá-la, como fez a maioria dos críticos de arte –, começou em 1986, com a inovadora exposição O Espiritual na Arte: Pintura Abstrata 1890-1985, no Los Angeles County Museum of Art, que tive a grande felicidade de visitar. Com curadoria de Maurice Tuchman, a exposição exibiu, em mais de 200 obras, diversas formas de influência que ideias ocultas, místicas e espirituais exerceram sobre a arte moderna. RAÍZES OCULTAS DA ARTE MODERNA

Alguns artistas incluídos na exposição são hoje nomes conhecidos nas discussões de “arte oculta” – Kandinsky, Mondrian, Kupka, Beuys, Carrington –, e é sabido que simbolistas como Gustave Moreau (1826-1898) e Odilon Redon (1840-1916) tiveram um interesse mais que superficial pela geografia do invisível. E, se examinarmos rapidamente a literatura e a música, veremos que elas também foram tocadas pelo outro mundo, uma influência que exploro em meu livro A Dark Muse (2005).

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Acima, o mais famoso mago do século 20, Aleister Crowley, incorporando Osiris em ritual da Ordem Hermética do Amanhecer Dourado; na página à direita, aquarela da série The Eye of the Lord (1870), de Georgiana Houghton, artista espiritualista redescoberta recentemente

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Não é segredo que W. B. Yeats, vencedor do Prêmio Nobel, teve uma profunda e duradoura paixão pelo oculto, que ele partilhou com o alquimista e dramaturgo August Strindberg, com seu colega poeta Fernando Pessoa e com romancistas modernos como Malcolm Lowry e Andrei Bely, cujos livros À Sombra do Vulcão (1947) e S. Petersburgo (1916) se baseiam, respectivamente, no Tarô, na Cabala e na filosofia espiritual de Rudolph Steiner. Os compositores Alexander Scriabin, Olivier Messiaen, Claude Débussy e Erik Satie – que estreou seu Trois Sonneries de la Rose +Croix no famoso Salão da Rosa-cruz do ocultista Merodack Péladan, em Paris, em 1892 – são apenas alguns nomes de músicos ligados ao oculto. Mozart, como sabemos, era maçom. E eu poderia citar outros. Para os iniciados e cognoscenti, The Spiritual in Art, de Tuchman, foi menos uma revelação do que um alívio que, finalmente, a visão “oficial” estivesse começando a reconhecer algo que os artistas e seu público souberam sempre. Explicar por que críticos de arte e historiadores ignoraram insistentemente as “raízes ocultas da arte moderna” exigiria um

artigo separado. Mas a tônica da modernidade era avessa a qualquer espiritualidade e a inconsequente ironia pós-moderna evitou uma avaliação séria de influências que já eram consideradas superstições. Enquanto algumas manifestações da arte oculta contemporânea podem ser vistas como irônicas, muitos artistas espirituais de hoje adotaram o caminho do invisível, devido a uma decepção pela falta de comprometimento do pós-modernismo com as raízes e um surpreendente anseio por seriedade, dedicação e autenticidade, algo que encontravam em seus estimados antecessores. Assim como a artista sueca Hilma af Klint (1862-1944), que talvez tenha produzido a primeira pintura abstrata, distinção até então desfrutada por seu colega teosofista Wassily Kandinsky (1866-1944). Af Klint (ver Portfólio à página 70) é uma das descobertas que surgem da exposição de 1986 no LACMA, em Los Angeles. Ela começou como pintora convencional, mas seus interesses mais profundos não eram nada convencionais, e aderiu aos ensinamentos da teosofia e da antroposofia de Rudolf Steiner, o espiritualismo, a me-

FOTOS: REPRODUÇÃO WIKIMEDIA COMMONS / CORTESIA THE COURTAULD GALLERY, VICTORIAN SPIRITUALISTS’ UNION, MELBOURNE, AUSTRÁLIA

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diunidade, psicografia e psicopintura, entre outras práticas ocultas e místicas. Trabalhando com outras artistas mulheres também interessadas nos mundos espirituais, Af Klint produziu obras psicografadas inspiradas por inteligências superiores que antecedem o surrealismo em décadas e produziu pinturas “abstratas”, embora seu próprio interesse pela abstração em si não seja claro. As pinturas espirituais de Af Klint permaneceram praticamente desconhecidas durante sua vida, e como ela temia que fossem mal compreendidas pediu que não fossem mostradas ao público até 20 anos após sua morte. Foi somente em 1986, quando mais que o dobro desse tempo havia se passado, que ela teve sua primeira grande exposição no LACMA. Desde então, sua obra viajou o mundo e ela é adequadamente considerada não apenas uma pioneira da arte espiritual, mas pioneira da influência e da representatividade das mulheres sobre a arte moderna.

Abaixo, o artista performático/ocultista Genesis P-Orridge, a quem é atribuído o termo “ocultura”; à direita, frame de Lucifer Rising (1972), filme de Kenneth Anger, cineasta declaradamente seguidor de Aleister Crowley

ARTISTAS E MÉDIUNS

Outra artista oculta cuja obra foi redescoberta, principalmente por meio do interesse demonstrado por Af Klint, é Georgiana Houghton (1814-1884). Ao longo dos anos 1860 e 1870, Houghton produziu uma série de “pinturas espirituais” notáveis, aquarelas quase abstratas orientadas por inteligências angelicais, assim como por alguns mestres renascentistas. Houghton foi uma conhecida médium nos círculos espiritualistas vitorianos, mas sua tentativa de disseminar a arte espiritualista foi um desastre – sua exposição em 1871 deixou-a falida –, e assim como Af Klint ela retirou sua obra da exposição pública, embora hoje atraia uma atenção tardia. Um artista oculto mais bem-sucedido, pelo menos de início, foi o londrino Austin Osman Spare (1886-1956), que surgiu no cenário artístico inglês como um enfant terrible eduardiano, sendo aclamado aos 17 anos, em 1903, como o mais jovem expositor de todos os tempos na Royal Academy. Mas a celebridade de Spare logo foi obscurecida por seu interesse pelo oculto, pela magia e por estados de consciência alterados, limítrofes, e ele logo caiu no esquecimento. Spare desenvolveu uma arte de tais delicadeza e força mágica que lembram Beardsley, criando um sistema original de sinais sigilosos e ocultos destinados a contatar outros planos mentais. Entre suas muitas influências ocultas estava a bruxaria, musa que compartilhou com a pintora australiana Rosaleen Norton (1917-1979), cujas telas pagãs, demoníacas, muitas vezes se assemelham às de Spare. O artista inglês foi, durante um curto período, associado a Aleister Crowley (1875-1947), o mais famoso mago do século 20, cujas ideias influenciaram Norton e praticamente todos os artistas ocultos que o sucederam. O próprio Crowley pintava e, nos últimos anos, sua obra tórrida e perturbadora – assim como Spare e Norton, Crowley inclui muita transgressão sexual em seu ocultismo – atraiu grande atenção e foi exposta em diversos lugares. Com Crowley entramos em

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um reino da arte oculta em que a distinção entre magia e arte, ritual e performance, sempre maleável, torna-se praticamente inexistente, uma esfera intermediária conhecida como “ocultura”. Supostamente cunhada pelo artista performático/ocultista Genesis P-Orridge nos anos 1980, e associada ao caráter intensamente aleatório da chaos magick, o termo abrangente “ocultura” ganhou credibilidade acadêmica em 2004, quando o professor Christopher Partridge o definiu como um interesse pelas “crenças e práticas escondidas, rejeitadas e conflituosas associadas ao esoterismo, à teosofia, ao misticismo, à Nova Era e ao paganismo”, entre outras ideias próprias da “subcultura oculta”. Essa frase elucidativa nos lembra que uma descoberta acadêmica do oculto – ou redescoberta, pois muitos estudiosos pré-iluministas o conheciam bem – coincide com sua recente reavaliação artística. Isso levou acadêmicos, artistas e praticantes a lotar eventos, como a conferência O Oculto e as Ciências Humanas, realizada em 2013 pelo Departamento de Arte

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da Universidade de Nova York (NYU), que reuniu artistas, magos e acadêmicos na discussão sobre o lugar do oculto na cultura atual. Como se poderia esperar, a ocultura cobre um amplo espectro, que vai das diáfanas aquarelas do artista contemporâneo sueco Fredrik Söderberg às agressivas proposições do artista multimídia suíço Fabian Marti. Suas raízes encontram-se nos primeiros artistas ocultos como o cineasta crowleyano Kenneth Anger e a igualmente crowleyana atriz e pintora Marjorie Cameron (1922-1995), nos cut-ups de William S. Burroughs Jr. (1914-1997) e Brion Gysin (1916-1986), no cinema mágico de Alejandro Jodorowksy e no sombrio roccult and roll do Thee Temple Ov Psychic Youth de Orridge, entre atos semelhantes. Como a maioria dos termos esotéricos, “ocultura” abre-se a diversas interpretações, e não devemos esperar que se limite a uma só. Segundo o “empresário subcultural” Carl Abrahamsson, devemos ver a ocultura como “um termo geral para qualquer coisa cultural, mas decididamente oculta/ espiritual”, um resumo que certamente cobre um amplo ter-

reno, permitindo que os artistas explorem algo mais que sua entediante apatia e dando aos ocultistas uma nova maneira de examinar seus interesses. No mínimo, a ocultura instigou muita ação, de publicações luxuosas como Abraxas: International Journal for Esoteric Studies, da Fulgur Esoterica; Fenris Wolf, de Abrahamsson, Strange Attractor Journal, de Mark Pilkington, e Clavis: Journal of Occult Art, Letters, and Experience, de William Kiesel, a textos colecionáveis da Scarlet Imprint, da Jerusalem Press (especializada em Austin Osman Spare) e da Ouroboros Press. Há conferências, seminários, simpósios, lançamentos de livros, palestras, exposições e eventos que proliferam como espíritos errantes, libertados por algum aprendiz de feiticeiro. Para algo que seja invisível, parece estar claro que o oculto, pelo menos no mundo da arte, está recebendo uma grande atenção.

TRADUÇÃO LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES FOTOS: CORTESIA MARIE LOSIER

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F OTO G RA F I A

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A ÓTICA EXTÁTICA PA U L A A L Z U G A R AY

NO CAPÍTULO FINAL DE ILUSÃO ESPECULAR, UM CLÁSSICO BRASILEIRO DA TEORIA DA IMAGEM, ARLINDO MACHADO DISCORRE SOBRE OS MUNDOS ARTIFICIAIS CONSTRUÍDOS PELA FOTOGRAFIA. Seu ponto está nas

distorções manifestas pelas “lentes bizarras” da fotografia – a teleobjetiva e a grande-angular – que geram imagens “da ordem fantasmática de uma alucinação” e impossíveis à percepção do olho nu. Machado recorre aos escritos do cineasta Serguei Eisenstein sobre as estratégias de representação da figura humana em arrebatamento místico, na obra do pintor El Greco. O corpo alargado no centro e afunilado nos pés e na cabeça corresponderia ao efeito produzido pelas objetivas de distância focal curta. A grande-ocular, que o cineasta chamava de “lente extática”, se remetendo ao sentido etimológico da palavra êxtase, está no cerne de seu interesse por El Greco. Do grego ékstasis, (fora do seu estado, fora da normalidade), a ótica extática que moveu Eisenstein e El Greco também guia o interesse que artistas contemporâneos, como o norte-americano Tony Oursler e o brasileiro Mario Ramiro, nutrem por aquilo que não pode ser visto a olho nu e é impresso em papel fotográfico. IMPONDERÁVEL

Cientistas do século 18 usavam o termo imponderável para descrever o magnetismo, a eletricidade e outras energias não quantificáveis. Nos domínios do imponderável – e de tudo aquilo que não pode ser determinado com acuidade – está a “fotografia de pensamento”, que envolve a crença de que a chapa fotográfica é sensível a pensamentos, sonhos e outras forças vitais, e que surge como reação cultural espontânea às descobertas científicas que tornaram o invisível visível – notadamente o raio X, no SELECT.ART.BR

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O interesse nas relações entre os sistemas de crenças e a autenticidade das imagens aproxima as obras do brasileiro Mario Ramiro e do norte-americano Tony Oursler, ambos colecionadores de fotografias de fenômenos paranormais

Frame do filme My Saturnian Love(s) (2016), de Tony Oursler

FOTO: CORTESIA CCS FOTO: BARD NONONONONO COLLEGE NY

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fim dos anos 1880. A fotografia do pensamento, a fotografia de espíritos, a fotografia de óvnis e de outras manifestações do paranormal começam a ser colecionadas por Tony Oursler em meados dos anos 1990. Esse acervo está compilado hoje em projeto exibido no CCS Bard College, em Nova York, até o fim de outubro, e no MoMA NY, até janeiro de 2017. Tony Oursler: The Imponderable Archive revela dois séculos de interseções entre descobertas científicas, avanços tecnológicos e fenômenos ocultos. O projeto é composto de filmes, uma publicação de 600 páginas e uma instalação com 2 mil documentos. “Um aspecto importante sobre a construção desse arquivo é que aconteceu de forma não objetiva. Em outras palavras, segui meu instinto e explorei os temas visual e culturalmente, deixando-os encontrar sua conexão natural”, diz Tony Oursler à seLecT. Na instalação, essas conexões estão delineadas em mesas, onde as imagens são organizadas em narrativas diversas, um modus operandi que remete à metodologia do Atlas Mnemosine, do historiador Aby Warburg (1866-1929), inspiração reconhecida pelo artista. Imagens de criptologia conectam com gravura japonesa dos anos 1700; a luz negra do físico Robert Willliams Wood relaciona-se à iluminação de sessões espíritas dos anos 1920; e afinidades surgem ainda entre oráculos, testes de Roscharch, filmes de terror, física quântica e radioatividade. “Eu queria mostrar coleções dentro da coleção, e também justapor certas coisas que poderiam ser consideradas opostas. Realmente, gosto dessas contradições. Há uma pequena sequência relacionada à evolução e à crip-

tozoologia que inclui conexões engraçadas, como o Homem de Piltdown (fraude científica que simulava espécie desconhecia de homem primitivo) e as sereias”, diz Oursler. “Tentei focar em como uma coisa leva a outra e assim ganha um sentido histórico ou conceitual. É como cinema e fantasmagoria, uma relação óbvia, que muitas vezes não é feita.” Imponderable (2015-2016) é um longa-metragem imersivo, apresentado no MoMA em um ambiente cinemático em 5-D, com efeitos sensoriais, cheiros, vibrações etc., utilizando-se de uma espécie de pepper’s ghost, dispositivo fantasmático do século 19. O roteiro traça uma historia social, espiritual e empírica da imagem virtual, que passa pela intrigante história familiar do artista e o envolvimento de seu avô, Fulton Oursler, com a paranormalidade. O elenco de personagens inclui Sir Arthur Conan Doyle e membros da família Oursler. Já no filme My Saturnian Lover(s) (2016), George Adamski, o primeiro fotógrafo de óvnis, viaja para a Lua, Saturno e Vênus, e vive um enredo de pulp fiction com alienígenas.

Abaixo e na página à direita, frames do longa-metragem imersivo The Impoderable (2015-2016), de Tony Oursler

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RUÍDO BRANCO

O comandante Louis Darget (1847-1923), oficial de cavalaria e amante da fotografia, é tido como o inventor da fotografia de pensamento – hoje considerado o primeiro conjunto de imagens abstratas mecanicamente produzidas. Darget mantinha um espaço de trabalho em seu apartamento, em Paris, chamado cabinet fluidifié. Ali eram guardadas, em pequenos envelopes presos às paredes, imagens de uma coleção de fotografias do fluido vital, do pensamento e de espíritos. O espaço é homenageado por Mario Ramiro na instalação Gabinete Fluidificado (2013), que reúne cerca de 400 reproduções fotográficas de sua coleção de imagens que documentam supostas ocorrências de materializações de espíritos, exalações de ectoplasma e manifestações paranormais, ocorridas no Brasil ao longo século 20. A coleção de Mario Ramiro começa com três imagens de Militão de Azevedo (1837-1905), que, segundo o artista, parecem fazer um comentário à fotografia espiritualista surgi-

da em 1861 nos EUA. “Depois dele, os primeiros registros no âmbito do espiritismo são de 1921 e, de lá até os anos 1980, a produção dessas imagens se dará num contexto religioso ou de ‘experimentação’ da nova ‘ciência do espírito’. As últimas imagens que tenho foram feitas nos anos 1980, no contexto da fotografia de incorporações do Dr. Fritz”, diz Ramiro à seLecT. Segundo o pesquisador, a “última novidade” de contatos com o mundo dos espíritos ocorreu no fim dos anos 1950, com as declaradas comunicações obtidas pelo sueco Friedrich Jürgenson, cantor de ópera e pintor, por meio do rádio. Depois, essa técnica seria praticada no Brasil pela escritora Hilda Hilst, “a mais famosa comunicadora entre nós”, diz ele. “Depois existem registros de supostas manifestações pela tevê e por fax, exatamente no mesmo período em que essas tecnologias foram sendo empregadas na produção experimental dos artistas dos anos 1980. Não é curioso esse paralelismo?” A radiocomunicação com o Além é abordada em Rede Telefonia (2009), peça sonora criada em parceria com a cineasta Gabriela Greeb, a partir das escutas e gravações realizadas por Hilda Hilst nos anos 1970. Nesse período, ela realizou diversas experiências com a chamada Transcomunicação Instrumental (TCI) – técnica que facilitaria a comunicação entre os vivos e os mortos via aparelhos eletroeletrônicos. “A escritora escolhia um espaço ‘vazio’ entre duas estações de rádio e registrava em fita magnética alguns minutos daquele chiado característico conhecido como ‘ruído branco’. Esse chiado seria o meio utilizado pelos FOTOS: JONATHAN MUZIKAR/ THE MUSEUM OF MODERN ART NY

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“A pretensa autenticidade dessa imagens é o que menos importa. O segredo que se encerra nos fenômenos descritos por um sistema de crenças ou por outro é o que nos estimula como artistas, escritores ou curadores”, diz Mario Ramiro Catur, nonecul laborio rporum reped quo delibus exceptatiat. Aximolu ptatur ande viderioribus maxim quas ab inullaut harum esti cone officienihil eiurempos as adis quam renihil eicit Acima, detalhe da instalação Gabinete Fluidificado (2013), de Mario Ramiro, em exposição no Centro Cultural São Paulo; na página à direita, a instalação Radio Dante (2014) SELECT.ART.BR

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espíritos para entrar em contato com o nosso mundo e se fazer ouvir por breves sussurros”, explica Ramiro. Rádio Dante (2014) é outra obra que lida com a parafernália espiritual-eletro-magnética. Trata-se de escultura sonora que reúne imagens de moldes de máscaras mortuárias, um aparelho de rádio sintonizado entre estações, um microfone e um amplificador. Suscetível à aproximação do corpo do espectador, o dispositivo produz modulações sonoras monótonas, constantes e “infernais” – o que inspira o título da obra. Além do interesse nas relações entre os sistemas de crenças e a autenticidade das imagens, há certa dose de humor macabro e de surrealismo teatral que aproxima as produções desses dois artistas do Norte e do Sul do continente. “Meu interesse real é nos sistemas de crenças que nós construímos e como eles operam culturalmente”, diz Tony Oursler. “Não estou falando

só de crenças religiosas, mas de estruturas de consciência. Uma das coisas que aprendi ao escavar meu arquivo é que o pensamento mágico está vivo e passando bem. Mas o que acredito mesmo é na arte como atividade cultural sustentável e generativa.” “A pretensa autenticidade dessas imagens é o que menos importa”, diz Mario Ramiro. “Alguém já procurou desmascarar a veracidade da ressurreição de Lázaro retratado por Rembrandt? O segredo que se encerra nos fenômenos descritos por um sistema de crenças ou por outro é o que nos estimula como artistas, escritores ou curadores que se debruçam sobre essas histórias como parte de nosso universo cultural. Essas imagens e sons falam de possibilidades de desvendar o grande segredo por trás da morte. Nisso, essa forma de arte, quando não voltada apenas para uma paródia do paranormal, parece querer apontar para alguma coisa mais essencial na vida que é apenas a ‘crítica institucional’!” FOTOS: CORTESIA MARIO RAMIRO

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P R OJ E T O

A SOCIEDADE CAVALIERI PIERRE MENARD 88

A OBRA VISÍVEL DE GIOVANNI BATTISTA DE CAVALIERI, GRAVADOR ITALIANO DO SÉCULO 16, É COMPOSTA DE REPRODUÇÕES DE PINTURAS DE GRANDES MESTRES, COMO RAFAEL E MICHELANGELO, CÓPIAS DE BUSTOS DE NOTÁVEIS DE SUA ÉPOCA E A MAIS INCOMUM COLEÇÃO DE CRIATURAS MONSTRUOSAS QUE A INVENTADA RENASCENÇA TENTOU ECLIPSAR. Essa última, a série Monstros do Mundo

Capa do catálogo da exposição A Sociedade Cavalieri 1585-1914

A série Monstros do Mundo Moderno e Antigo seria a pedra fundamental de uma sociedade secreta de artistas gravadores

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Moderno e Antigo, seria a pedra fundamental de uma sociedade secreta de artistas gravadores que transportariam a obra de Cavalieri até a cultura contemporânea. Se o nome de Cavalieri não é extremamente conhecido pelo grande público, os nomes dos artistas que ao longo dos anos foram membros da sociedade secreta fundada em sua homenagem certamente são. Foram membros dessa sociedade artistas como Rembrandt, Van Dyck, William Hogarth, Wenzel Hollar, Goya, Daumier e Alexandre Bida, entre outros. O conhecimento que esses artistas passavam uns aos outros era o método de que Cavalieri se utilizava para criar imagens de monstros, seu tema específico. Com esse algoritmo aplicado às artes gráficas, gravadores de várias gerações criaram uma variedade de monstros, seres antropomórficos, que seriam a influência do grotesco contemporâneo aparente desde em desenhos animados e caricaturas até a obra de artistas como Patrícia Piccinini e Paul McCarthy. Existem historiadores respeitados que citam a participação de alguns artistas membros da Sociedade Cavalieri para a criação de movimentos como o Simbolismo, o Dadaísmo e o Irrealismo. Cavalieri e sua sociedade também alertavam sobre a tolice da beleza e o caráter alienante da idealização de formas e pensamento, algo perigoso e até herético para seu tempo. Temas esses que são hoje objeto de estudo nas universidades francesas. No entanto, toda a evidente influência da Sociedade Cavalieri só seria redescoberta em 1973, quando o professor Phillipe Bida, descendente do artista Alexandre Bida, publicou seu estudo sobre essa sociedade pela Universidade Autônoma de Toulouse, na França. A primeira exposição que acolheu sob o mesmo teto várias gravuras de artistas membros só teria ocorrido em 1998, no Museu de Estampas de Paris. Desde então, várias exposições foram realizadas pelo mundo, inclusive no Brasil, nos espaços expositivos da Caixa Cultural, realizadas por esse discípulo de Cavalieri que vos escreve. Pierre Menard é prof. Adjunto da Universidade Autônoma de Toulouse e Vice-diretor do Instituto Artístico da Universidade de Toulouse

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Em sentido horário, Estudo para Capitão Pato (1624), de Claude Gellé (ou Lorrain) (1600-1682), da coleção do Museu de Arte de Nancy; Humano Que Habita Feroz Grifo, da série Obra Na Qual Se Veem Monstros de Todas as Partes do Mundo Antigo e Moderno (1585), de Giovanni Battista de Cavalieri (1525-1601), do Acervo Museu Britânico; e Gulielmus Hogarth (1743), de William Hogarth (1697-1764), da Galeria Britânica de Bristol FOTOS: CORTESIA PIERRE MENARDE

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ENSAIO

FASCISTAS SECRETOS JÖRG HEISER

Na virada do século 19 para o 20, nasceu na Áustria uma sociedade secreta que se transformou em uma grotesca fantasia de massa. Seu nome, aparentemente inofensivo, era Ariosofia. Ela formou as raízes ocultas da ideologia nazista. Os vestígios da conexão entre o elitismo sectário e o fascismo populista de direita podem ser encontrados ainda hoje SELECT.ART.BR

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PRIMAVERA DE 1908, ÁUSTRIA, A 50 QUILÔMETROS DE LINZ, SEGUINDO O CURSO DO RIO DANÚBIO. Algumas cen-

Prússia, mas excluindo a Áustria. Assim, a fundação da dupla monarquia da Áustria-Hungria foi indiretamente forçada. O estabelecimento desse novo império real e imperial resultou automaticamente na dominação demográfica das partes não germânicas da sociedade no interior de suas fronteiras, com a formação de novos círculos pangermânicos que ressentiam a ideia de um Estado multiétnico, e para os quais o fracasso da “Grande Solução Alemã” – a unificação da Prússia com a Alemanha e a Áustria – era uma constante fonte de insultos e injúrias.

tenas de convidados chegam em um navio a vapor vindo de Viena e são recebidos por salvas de canhão do castelo medieval embandeirado sobre a colina, o Burg Werfenstein. Os viajantes se refrescam nos pubs locais, antes de participar de um concerto comemorativo no pátio do castelo: canto coral e fogueira até tarde da noite. O evento é relatado nos jornais nacionais. Tudo parece bastante inofensivo. Mas o dono do castelo, um certo Jörg Lanz von Liebenfels, dirige uma sociedade sectária chamada Ordo Novi Templi (ONT), a Ordem dos Novos Templários, que se refere aos Cavaleiros Templários medievais. Seu programa, formulado em dezembro de 1907 e publicado na revista Ostara, promove uma visão de mundo “ariana” claramente racista, com pesquisa de ancestralidade genealógica e heráldica e concursos de beleza que seguem critérios raciais. No Natal de 1907, uma bandeira com a suástica foi içada sobre o castelo. A história de vida de muitos antecessores ideológicos do futuro movimento nazista flui ao longo do Danúbio e Acima, cartão-postal do Burg Werfenstein, local de encontro de ocultistas sectários que no início do século 20 promoviam seus afluentes: de Viena a visão de mundo “ariana”. Na página ao lado, em sentido horário, Jörg Lanz von Liebenfels, dono do castelo e cabeça da Werfenstein e Linz, seguindo Ordem dos Novos Templários; Karl Maria Weisthor, coronel da SS, que operava com ritos ocultistas e revestiu o Holocausto de uma aura de missão superior; e Guido von List, escritor que falseou título de nobreza de linhagem ancestral germânica por Salzburgo e até Munique – a “capital do movimento”, como Adolf Hitler a chamou mais tarde. Eram ocultistas Até o fim do século 19, esses grupos se solidificaram sectários que depositaram as sementes da colheita de Hicada vez mais em movimentos völkisch – nacionalistas, tler: Guido von List e o mencionado Lanz von Liebenfels. racistas e segregacionistas –, que defendiam uma visão Outro sectário de mentalidade semelhante tornou-se mais de mundo estritamente antissemita, germânico-machistarde membro do círculo íntimo de Hitler: o SS-Oberführer ta e antidemocrática. Mais ou menos na mesma época (coronel das SS) Karl Maria Weisthor. Ele foi assessor de formou-se – de Londres a Nova York – um movimento Heinrich Himmler em assuntos ocultistas e supersticiosos, ocultista e esotérico, a teosofia, sob a liderança da russouma espécie de Rasputin do Reichsführer. Seguindo a lide-germânica Helena Blavatsky. Práticas espíritas como as rança de Weisthor, a organização de elite do Terceiro Reich sessões mediúnicas faziam parte disso, mas, para Blaoperava com símbolos e ritos ocultistas, revestindo o assasvatsky, o mais importante era a mistura de motivos relisinato em massa e o Holocausto industrial de uma aura de giosos orientais, incluindo hinduístas e budistas, com a missão superior. gnose judaico-cristã dos séculos primeiro e terceiro (da A empreitada começa na Viena do fin de siècle. Com sua viCabala ao Hermetismo). tória na guerra alemã de 1866, a Prússia realizou a chamada O aspecto importante era a ideia de um acesso privilegia“Pequena Solução Alemã”: uma Alemanha sob a liderança da

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do a revelações que só poderiam ser alcançadas por meio de certas técnicas de meditação, antigos ritos de iniciação e conhecimento secreto, qual seja, magia (para uma perspectiva mais detalhada da influência e das visões de Blavatsky do que seria possível no âmbito deste artigo, ver o ótimo livro de Gary Lachman, Madame Blavatsky: The Mother of Modern Spirituality, 2012). De maneira crucial, Blavatsky desenvolveu a noção das cinco “raças-raízes”, discernindo a história humana em sete etapas de desenvolvimento, sendo a quinta a “ariana”, na qual vivemos atualmente. A anterior, segundo ela, terminou milhões de anos atrás, com a queda da Atlântida.

usam um

Fac-símile do periódico Ostara, editado por Liebenfels, que aludia aos Cavaleiros Templários e disseminava ideias sobre uma raça mestra ariana destinada a assumir o poder totalitário. Acredita-se hoje que Hitler tenha sido um leitor habitual

DE BLAVATSKY A SENHOR DOS ANÉIS

Foi contra esse pano de fundo que se desenvolveu uma grotesca fantasia em massa, embora sob os auspícios de um conhecimento secreto supostamente exclusivo. Seu nome, de som distinto e inofensivo, era Ariosofia. Seu primeiro proponente foi Guido von List, um homem que publicou compulsivamente textos völkisch. A ideia teosófica das raças-raízes e de uma era ariana foi algo que Von List adotou alegremente e transformou em seu próprio SELECT.ART.BR

sistema ideológico, substituindo os componentes “hindus” de Blavatsky por outros germânicos. List era filho do comerciante de couros vienense Karl Anton List, e Guido só adotou o falso “von” de nobreza após a morte do pai. Esse estranho desejo de nobreza, decorrente de uma linhagem de ancestralidade germânica, tornou-se típica para muitos líderes e discípulos dos grupos ariosóficos. Em sua obra-padrão de excelente pesquisa As Raízes Ocultas do Nazismo (2004), o historiador britânico Nicholas Goodrick-Clarke, especialista em grupos ocultistas, menciona incontáveis nomes obscuros que soam típicos de sua época por serem grotescamente excêntricos e parodisticamente poéticos, como Ottokar Stauf von der March, Wilhelm von Pickl-Scharfenstein (barão Von Witkenberg), Harald Arjuna Grävell von Jostenoode, ou Frodi Ingolfson Wehrmann. Eles soam quase como uma lista de personagens de Game of Thrones. Especialmente o último: Frodi é o nome de um antigo rei mítico, que aparece tanto nas Eddas da Islândia quanto no épico Beowulf, transformado em “Frodo” por J.R.R. Tolkien para seu O Senhor dos Anéis. E, obviamente, isso levanta suspeitas de que um bom número desses senhores acima citados simplesmente inventou sua suposta linhagem ariana e cavalheiresca. A invocação de uma genealogia germânica de sangue azul serve como uma forma fantasmagórica de autoconsolo para aqueles em solo austríaco que se sentiram excluídos da “Pequena Solução Alemã”. Em comparação, o nome de Guido von List é modesto, mas ele é ainda mais ousado na fabricação de sua própria ascendência. Analisado pelo arquivo de registro da nobreza de Viena, ele “prova” seu título com um anel de sinete que ostenta o brasão de um cavaleiro do século 12, Burckhardt von List. Parte da fama posterior de List veio de ele ter anunciado que era vidente e podia enxergar muito atrás no passado germânico. Em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, ele previu uma vitória gloriosa, o que o obrigou a reinterpretar a derrota de 1918 como uma catástrofe necessária no caminho para a iminente salvação dos ario-germânicos. Os escritos de List foram instantaneamente convertidos em clássicos no meio völkisch, especialmente sua novela Carnuntum (1888), em que ele conta a história de um ataque fictício de tribos germânicas à cidade romana de Carnuntum (a 40 quilômetros a leste da atual Viena).

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Hitler não estava absolutamente interessado nos tradicionais círculos elitistas pequenos e sigilosos, mas pretendia formar uma cultura de massa extática, livre de todos os escrúpulos civilizados

que remontam às antigas raízes teutônicas. Mais tarde ele adornou sua criação com todo tipo de descoberta esotérica, de sigilos criptográficos (pictogramas mágicos) baseados no abade Johannes Thritemius de Sponheim (1462-1516) a suas próprias leituras das runas germânicas. A partir dos anos 1910, Guido von List imaginou o futuro reinado dos arianos: ele pedia simplesmente a submissão de todos os não arianos à raça mestra ariana. Os subjugados e escravizados fariam então todo o trabalho menor e mais duro, enquanto os cargos mais graduados nas empresas, no serviço público e na vida espiritual e intelectual seriam reservados aos ariogermânicos. A vocação para esses empregos se basearia, em primeiro e único lugar, no critério da pureza racial. Só homens ario-germânicos teriam liberdade e cidadania completas, enquanto todas as famílias teriam de manter um livro de ancestralidade racial. É um modelo societário que antecipava em duas décadas as Leis da Raça de Nuremberg e a abordagem geral dos nazistas. O elitismo místico de List precede a visão de Himmler de um Estado-Ordem SS.

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IGREJA CATÓLICA X IDEOLOGIA GERMÂNICA

Madame Helena Blavatsky, lider de um movimento esotérico formado no fim do século 19, e autora de ideias teosóficas que foram apropriadas e deturpadas por Guido von List na composição de sua doutrina antissemita

Mas o ponto crucial é que ele implementa seus motivos pagãos germânicos na construção de uma raça mestra ariana destinada a reinar. A doutrina esotérica propagada publicamente do wotanismo – baseada no principal deus germânico, Wotan, também conhecido como Odin – destinava-se a dar às classes sociais inferiores uma mitologia de orgulho popular. Apesar da doutrina interna esotérica Armanenschaft, a casta sacerdotal dos iniciados chamada “Alta Ordem de Arman”. Usando motivos estabelecidos pelos maçons, assim como pelos rosa-cruzes, List criou esse nome para invocar uma linhagem de reis-sacerdotes míticos

A construção de List também inclui de maneira típica uma teoria da conspiração. Seu objetivo é explicar como, se a raça mestra ariana era tão superior, ainda não se havia estabelecido o Estado da raça mestra. List afirmava que a culpada era a Igreja Católica, tão forte na Áustria na época que repudiou e demonizou o sacerdotalismo germânico durante séculos. O que também explicaria a necessidade de práticas secretas para transmitir o conhecimento proibido. É o típico argumento tautológico adotado pelos professores de ocultismo e teóricos da conspiração: a necessidade de sigilo é explicada pela igualmente secreta conspiração dos adversários. A visão de List do renascimento das “Cortes Vêmicas” do fim da Idade Média na Westfália – tribunais secretos protovigilantes que emitiam e executavam sentenças de morte etc. – tornou-se a fantasia preferida de muitos, antecipando o futuro império pangermânico. A característica estratégica dupla dos movimentos sectários vem ao primeiro plano aqui: a iniciação interna oculto-religiosa deve ser equilibrada externamente por uma ação político-militar, embora encoberta. O alinhamento anticlerical de List pode em princípio parecer em total contradição com a abordagem do monge cisterciense Jörg Lanz von Liebenfels, que depois de List tornou-se a principal fonte dos zelotes místico-germânicos. Assim como List, Liebenfels havia criado uma genealogia mística de nobreza para si mesmo: o filho do diretor escolar Johann Lanz, de Viena-Penzing, afirmava ser de fato o barão Johann Lancz de Liebenfels, com uma linhagem que remontava ao reinado dos Hohenstaufen, do sul da Alemanha, sobre a Sicília medieval. Enquanto List se dedicava à religiosidade germânica neopagã, Liebenfels atuava com a obscura gnose do início da cristandade e alusões aos Cavaleiros Templários, embora FOTOS: CORTESIA JÖRG HEISER/ WIKIMEDIA

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com exatamente o mesmo resultado: a evocação de uma raça mestra ariana destinada a assumir o poder totalitário. A principal obra de Liebenfels tem o título incomparavelmente louco de Theo-zoology, or the Lore of the Sodom Apelings and the Electron of the Gods (1905). “Teozoologia” designava uma bizarra interpretação de motivos bíblicos com o conhecimento científico da época sobre radiologia e semelhantes. Segundo Liebenfels, os anjos celestiais, por exemplo, eram simplesmente seres superiores de tempos

dedicada a uma presença total industrial-militar que duraria mil anos – ou melhor, pelo período de vida do próprio Hitler (ele nunca designou um sucessor para o caso de sua morte), como se o Reich fosse sua obra artística que naturalmente cessaria com sua morte. Tendo em vista esses objetivos, os antecessores místicos só interessavam a Hitler como um meio para atingir um fim, e, portanto, ele considerava sua apreciação explícita prejudicial (pelo menos a sua própria vaidade). Já em Mein Kampf (1925-1926) Hitler zomba dos evangélicos esotéricos alemães com suas longas barbas e, durante a cúpula do partido do Reich, em 1938, ele anunciou que “a insinuação dos exploradores místicos do além de tendência mística não será tolerada”. Entretanto, as semelhanças entre as manias racistas de Hitler, List e Liebenfels, ligadas a visões de um Grande Reich Alemão, são próximas demais As ideias de Blavatsky a respeito de cinco para ser explicadas meramente por uma semelhança entre suas respectivas afinidades raças-raízes e de uma era ariana foram algo e meios. Afinal, Hitler fez da SS de Himmler, com suas bases místicas, a elite e o principal que List adotou alegremente e transformou instrumento de poder. Entre 1918 e 1929, na acelerada sucessão de derem seu próprio sistema ideológico, rota, hiperinflação, sucesso ilusório e estouro catastrófico experimentada pela Alemanha e a substituindo os componentes hinduístas Áustria, criou-se uma sensação de irrealidade e budistas por outros germânicos apocalíptica. Ela tornou-se o canteiro para os novos mantenedores da tradição germânica. Outro precursor do movimento nazista de Hitler em Munique foi a Sociedade Thule, liderada pelo barão Heinrich von Sebottendorf (ou apenas Adam Glauer – outro pseudonobre. Entre seus convidados estiveram os líderes nazistas tardios Rudolf Hess e Alfred Rosenberg. Sebottendorf foi instrumental na fundação do jornal Münchner Beobachter, depois rebatizado de Völkischer Beobachter, o órgão central da propaganda nazista. antigos que haviam perdido suas capacidades sobrenatuOutro grupo, a Sociedade Edda, fundada em 1925 na zona rurais depois de terem se misturado de forma sodomítica ral da Baviera, dedicou nada menos que três edições da revista com raças inferiores – capacidades sobrenaturais que os Hagal às supostas capacidades sobrenaturais de um certo Karl arianos recuperariam depois de uma suficiente higiene raMaria Wiligut – ninguém menos que o acima citado Weisthor, cial. Assim, Liebenfels (que teve de deixar os cistercienque se tornou o Rasputin de Himmler. ses, ironicamente, por causa de pecados da carne) fundou a sociedade secreta masculina dos ONT. Foi sob a insígnia ANTISSEMITISMO E ANTIFEMINISMO desse grupo que ocorreu o acima mencionado festival místico em Burg Werfenstein. Hoje acredita-se de modo geral Wiligut, ou Weisthor, continuou sendo a única exceção, o que Adolf Hitler foi um dos leitores habituais do periódico único ex-sectário promovido às fileiras dos nazistas domide Liebenfels, Ostara. No entanto, muito cedo ele tomou nantes depois de 1933. Nascido em Viena, o antigo oficial cuidado para não fazer qualquer referência explícita a esdo Exército austríaco aposentou-se, em 1919, em Salzburgo, ses antecessores místico-ocultistas. Hitler não estava abe passava o tempo criando sua própria lenda como descensolutamente interessado nos tradicionais círculos elitistas dente de um germânico pré-histórico, da realeza e semidivipequenos e sigilosos, mas pretendia formar uma cultura de no. Na verdade, ele afirmava ser capaz de olhar diretamente massa extática, livre de todos os escrúpulos civilizados e para o passado de milhares de anos. Seu reconhecimento dos SELECT.ART.BR

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tempos remontava a 228 mil a.C., quando três sóis brilhavam zes representados em seus vídeos promocionais como jogos de sobre uma terra governada por gigantes e anões. Wiligut detiro para computador, se disseminaram como um vírus contasenvolveu traços cada vez mais paranoicos e acreditava haver gioso entre os garotos imigrantes de segunda e terceira gerauma conspiração entre a Igreja Católica, os judeus e os mação na Europa Ocidental, que desenvolveram personalidades çons. A perda precoce de um filho e herdeiro muito desejainjuriadas, intoxicadas, machistas, que têm tantas semelhanças do, juntamente com uma crise financeira causada pelo mau com os que são supostamente seus inimigos políticos – psicoinvestimento de um ex-sócio, levou-o a um colapso em 1924, patas de direita como Anders Breivik, o mass murderer noruediagnosticado como esquizofrênico com manifestações meguês que cinco anos atrás matou 77 pessoas em Oslo, que se galomaníacas e paranoicas. A contragosto, Wiligut foi interdescrevia alternadamente como um cavaleiro templário cristão nado em um asilo em Salzburgo, onde passou três anos. Aparentemente, esse passado foi um dos motivos que o levaram a usar o pseudônimo Weisthor. Esse foi o homem que se mudou para Munique em 1932 e foi introduzido nas SS no fim de 1933. O que nos conta essa pré-história da ideologia nazista ocultista? Em primeiro lugar, expõe como o insulto e a injúria narcisistas a pessoas que antes se consideravam naturalmente superiores (por que “nós” não fomos integrados ao novo Reich alemão? Por que somos subitamente uma minoria na Áustria?), em uma cultura soldadesca geralmente machista (das guerras alemãs de 1866 à Primeira Guerra Mundial), levaram a uma mania de raiva e vingança ligadas a fantasias de superioridade por meio de parentesco e raça. Ruína de Carnuntum, cidade romana localizada a 40 km a leste da atual Viena, que dá nome à novela E essa mania foi reveladoramente iniescrita por Guido van List em 1888 e que se tornou um clássico instantâneo da literatura völkisch ciada por notórios mentirosos e impostores. É esse espírito intoxicado de seres “insultados” e “injuriados” que se perpetua sempre que uma cultura machista de guerra se funde com uma ideologia de recuperar algum tipo de superioridade supostae como um “odinista” (seguidor do deus viking Odin). O rapaz mente perdida em tempos antigos, devido a uma conspirade 18 anos que cometeu uma matança em um shopping center ção. É uma mistura característica para as personalidades pode Munique, em julho de 2016, e matou nove pessoas antes de liticamente psicopatas de hoje, em todo o espectro político se suicidar era filho de imigrantes iranianos, nascido na Alee muitas vezes em lados antagônicos dele. Pense na cultura manha, que trocou seu nome de Ali para David e se orgulhava das armas pelos suprematistas brancos nos Estados Unidos do fato de ter nascido no mesmo dia que Adolf Hitler. O que e em Donald Trump, que se consideram ferozes opositores todos parecem ter em comum, quer se declarem fascistas ando islamismo fundamentalista – mas não poderiam ser mais timuçulmanos ou islamitas fundamentalistas, ou uma mistura alheios aos princípios democráticos da Constituição ameriabsurda dos dois, é um feroz antissemitismo, antifeminismo e cana, exceto o direito de portar rifles. O Estado Islâmico no ódio do empoderamento queer, da diversidade étnica e religiosa Iraque e na Síria foi cofundado por ex-membros do serviço em respeito mútuo e dos esforços da esquerda para melhorar a secreto de Saddam Hussein, homens tão convencidos de sua educação. Como disse Nietzsche de maneira muito apropriada: superioridade quanto são mentirosos, ao fazer seus seguido“Quem despreza a si mesmo ainda se respeita como alguém res acreditarem estar lutando por uma causa religiosa “real”, que despreza”. com a ajuda do simbolismo oculto (as bandeiras, as teorias da conspiração ocultista etc.). Seus atos terríveis, muitas veTRADUÇÃO LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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FOTO: REPRODUÇÃO

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A instalação Trapézio ou Uma Confissão, de Wesley Duke Lee, foi criada para a Bienal de Veneza de 1966 e é uma das raridades da coleção de Roger Wright em exibição na Pinacoteca de São Paulo

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COLEÇÕES

JOIAS REVELADAS

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L U C I A N A PA R E J A N O R B I AT O

Exposições trazem a público os acervos monumentais de Roger Wright e do casal Andrea e José Olympio Pereira

“MINHA DICA PARA QUEM QUER COLECIONAR É NÃO FAZER ISSO POR PURA ESPECULAÇÃO. PORQUE, SE VOCÊ COMPRA UMA OBRA DE ARTE APENAS PELO VALOR QUE ELA PODE ALCANÇAR, PODE SE DECEPCIONAR SE ELA NÃO CUMPRIR ESSE DESTINO. Aí vai sentir desgosto cada

vez que passar por ela na sua casa. Mas, se você compra uma obra por razões afetivas, não importa o preço de mercado, ela lhe dará uma alegria sem tamanho sempre que você olhá-la.” Foi essa a dica que José Olympio da Veiga Pereira deu a colecionadores neófitos em bate-papo no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em agosto deste ano. Por aí imagina-se a relação que um colecionador particular cria com suas peças. Cada trabalho é comprado por uma razão, em um determinado contexto, e passa a fazer parte da vida de seu proprietário. São tesouros restritos ao círculo permitido pelo colecionador, mesmo quando emprestados para mostras. Mas duas exposições hoje em cartaz em São Paulo trazem à tona os segredos de duas das mais importantes coleções particulares do Brasil: de Roger Wright e do casal Andrea e José Olympio Pereira, respectivamente, na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Instituto Tomie Ohtake. Os acervos têm características bastante diferentes, mas não seus donos. Roger Wright, nascido na Inglaterra e criado pelos tios no Rio Grande do Sul, foi um dos sócios fundadores do Banco Garantia, pioneiro na venda de ações brasileiras no exterior. A mesma instituição onde José Olympio Pereira começou a carreira, até chegar ao cargo atual de presidente-executivo do banco de investimentos Credit Suisse. FOTO: ISABELLA MATHEUS, CORTESIA PINACOTECA

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Um pot-pourri das joias de Andrea e José Olympio Pereira: à esq., In-Out Antropofagia (série Fotopoemação, 1973/2008); no alto, à dir., Silver Pencil (2010), de Iran do Espírito Santo, e, abaixo, Ícone (2011), de Felipe Cohen; na página ao lado, Masks (2012), de Daniel Steegman Mangrané

Tanto Pereira quanto Wright começaram a comprar arte no início dos anos 1990, mas o futuro de suas coleções será radicalmente diferente. Enquanto o primeiro não tem planos para a posteridade (“talvez ajudar algumas instituições de arte”), uma tragédia abreviou a continuidade do acervo do inglês: em 2009, dias antes de Wright completar 57 anos, o avião bimotor que o transportava para Trancoso (BA) com sua mulher, os dois filhos e os netos, caiu na mata fechada e explodiu, matando toda a tripulação. O espólio ficou sob responsabilidade da mãe de Wright, Ellen Mouravieff-Apostol, e do meio-irmão Christopher. “Ele não tinha um plano concreto (de colocar as obras em uma instituição pública), como não SELECT.ART.BR

tinha, inclusive, nenhum plano de desaparecer, como desapareceu. Mas era muito generoso, adorava o Brasil, adorava a arte brasileira e, certamente, um dia essa seria a ideia. Tenho certeza de que estou fazendo o que ele teria feito”, diz à seLecT Christopher Mouravieff-Apostol, responsável pelo contrato de comodato de 178 das 300 peças da coleção de seu irmão com a Pinacoteca do Estado de São Paulo. O público agradece. A coleção de Wright constitui um conjunto significativo da vanguarda dos anos 1960. É um recorte de 80 trabalhos desse período que a Pinacoteca exibe até 2019, em parte do andar térreo. “Esta exposição integra a mostra de longa duração que se chama Arte no Brasil: Uma História na Pinacoteca de São Paulo. Ela começa com uma seção da era colonial até a década de 1920; vamos abrir uma seção de 1920 a 1950, e a mostra do Roger Wright complementa, chegando até meados dos anos 1980”, explica à seLecT José Augusto Ribeiro, curador da mostra Vanguarda Brasileira dos Anos 1960 – Coleção Roger Wright. Trazendo a produção dos artistas que então resistiam à ditadura mili-

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AULA MAGNA

tar (1964-1985) por meio de novas formas estéticas – apropriações do pop e das tecnologias incipientes, tridimensionalidade, incorporação do espectador na obra –, a mostra tem preciosidades quase inéditas do grande público. Entre elas, Trapézio ou Uma Confissão (1966), enorme instalação de Wesley Duke Lee tida como a primeira obra ambiental do Brasil. Há também trabalhos emblemáticos de Rubens Gerchmann, Carlos Vergara e Tomoshige Kusuno, entre outros. Mas o segredo que os trabalhos revelam coletivamente é o retrato de uma geração que usou a arte para lidar com seu tempo. “O caráter sistemático das aquisições do Roger foi decisivo para a constituição de um conjunto que, como núcleo, é importante. Esse é um dos principais conjuntos desse período”, diz Ribeiro. A capacidade de síntese e abrangência é a característica de outra exposição de coleção particular focada em recorte específico, na Galeria Estação, em SP. Um Certo Olhar – Coleção Celma Albuquerque apresenta um recorte do acervo da galerista mineira especializada em arte popular e falecida em dezembro de 2015.

A exposição Os Muitos e o Um: Arte Contemporânea Brasileira na Coleção Andrea e José Olympio Pereira evidencia a qualidade individual de cada obra para estimular uma experiência estética única em cada espectador. “Sou professor de arte (em Yale) e trabalhei no MoMA, então tenho um enorme respeito pelas pessoas que partem de um pensamento estruturado. Mas acho que a primeira experiência com a arte deveria ser aquela que não passa pelo saber, mas pelo olhar”, diz à seLecT Robert Storr, curador norte-americano, duas vezes diretor da Bienal de Veneza, convidado pessoalmente por José Olympio para realizar o recorte, com a ajuda de Paulo Miyada, curador do ITO. “Eu e Pereira temos uma relação de longa data. Foi um desafio trabalhar com uma coleção tão grande em um espaço lindo, mas não usual”, completa Storr. Surpreende na exposição a abrangência de trabalhos de qualidade máxima, de fases sempre consideradas icônicas – mais expressivas e valiosas – de cada artista. Entre eles, Waltercio Caldas, Tunga, Anna Maria Maiolino, Carmela Gross, José Damasceno e Alfredo Volpi, este com uma dezena de peças ocupando majestosamente a sala redonda do instituto. O conjunto de 300 peças de mais de cem artistas brasileiros impressionou especialistas. Na abertura da mostra, estimava-se que o valor dos trabalhos expostos seria de algo em torno de R$ 500 milhões. Não à toa, o casal ocupa a 68ª posição no ranking dos cem maiores colecionadores de arte do mundo, divulgado em junho último pelo site ArtNet. Nem a dona da coleção, Andrea Pereira, vê com frequência todas as suas mais de 2 mil obras, majoritariamente contemporâneas, dos anos 1950 até hoje. “Há uma parede do Henrique Oliveira com um de seus relevos, que antes estava guardada e havíamos acabado de instalar em casa. Não se passaram duas semanas e o curador pediu a obra para a exposição”, conta à seLecT. “Quando vi, tomei um susto. Pensei: ‘Nossa, tudo isso é meu’?” Trazida à luz, a coleção confirma ao curador internacional que “em nenhum lugar das Américas há maior efervescência artística do que no Brasil”, segundo declarou. Para o público, é uma aula magna de arte contemporânea. “Enquanto a obra de arte é segredo, ela não acontece como um bem cultural social. Quando ela é vista, passa a ser parte da cultura de um povo”, diz Miyada.

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FOTOS: PAULA ALZUGARAY / CORTESIAS FORTES VILAÇA, MENDES WOOD DM E MILLAN

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E N T R E V I S TA

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ERNESTO NETO “TUDO ESTÁ VISÍVEL NA DIMENSÃO ESPIRITUAL” Pesquisas recentes do artista carioca recaem sobre os mistérios da Ayahuasca. Esculturas penetráveis são ativadas em rituais xamânicos PA U L A A L Z U G A R AY

“PAXPA/ EXISTE UMA FLORESTA ENCANTADA DENTRO DE NÓS.” “VOZES DA FLORESTA.” “ARU KUXIPA/ SAGRADO SEGREDO.” Com títulos enigmáticos e convi-

dativos, as esculturas que Ernesto Neto vem realizando nos últimos três anos apresentam importantes características em comum. Penetráveis, envolvem o visitante em uma suave confluência de cheiros, cores quentes e formas orgânicas pendentes. Permeando as extremidades desses espaços predominantemente ovais, almofadas macias e felpudas convidam a sentar e ficar. No centro, elementos variáveis. Às vezes, uma arvore tecida em fios, às vezes uma escada, sempre um altar, com cocares, pratos de oferendas, instrumentos musicais. Em 2014, Neto apresentou a escultura penetrável Sweet Edge em individual no Guggenheim Bilbao, Espanha. No mesmo ano, integrou a exposição Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, com Em Busca do Sagrado Giboia Nixi Pae (2014). Nas duas instituições, as tendas criadas reverenciavam os ambientes ritualísticos dos índios amazônicos Huni Kuin, com quem o artista tem realizado projetos conjuntos. Em ambos os casos, as esculturas foram palcos de sessões de Ayahuasca, o chá de plantas alucinógenas usado por diversas tribos indígenas e religiões como o Santo Daime como transporte para a dimensão espiritual. Em conversa com seLecT, Ernesto Neto fala como as vozes da floresta reverberam no espaço da arte. SELECT.ART.BR

Ernesto Neto no interior de tenda ritualística montada na exposição Boa, no Museum of Contemporary Art Kiasma, na Finlândia, este ano

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Você acredita na espiritualidade da obra de arte? Acho que a arte é o único lugar de subjetividade que sobrou nessa sociedade da objetividade que é a sociedade ocidental, que dominou o mundo com seu pensamento racional, econômico, científico. Como esse pensamento é da ordem da objetividade, o lugar que sobrou para a subjetividade é o lugar da arte. A arte sempre esteve conectada com a espiritualidade, em toda a historia da humanidade. Ela é a conexão com o espiritual.

Suas esculturas em forma de tendas ritualísticas são meios de canalizar essa espiritualidade? Eu já venho trabalhando com isso há muito tempo. Essa dimensão espiritual para mim sempre foi clara. Sempre acreditei que estava trabalhando para o infinito, nunca trabalhei para o crítico de arte, para o público, para fulano ou beltrano. Meu trabalho sempre foi para algo maior, por isso que não existem segredos. Tudo está visível na dimensão espiritual e não tem como FOTO: PETRI VIRTANEN, CORTESIA MUSEUM OF CONTEMPORARY FOTO: SAM ART KIASMA HORINE,ECORTESIA GALERIA FORTES CREATIVE VILAÇA TIME

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esconder coisas em uma escultura. Sempre trabalhei para essa dimensão espiritual, que pode se chamar de Deus, de Grande Espírito, aí depende do contexto social e cultural de cada um. Acontece que há três anos eu me encontrei com o povo Huni Kuin, que trouxe para mim uma dimensão espiritual do sagrado, da natureza, que eu compreendi. Encontrei pessoas que convivem com isso cotidianamente, decodificam isso e têm uma compreensão absolutamente profunda, em nível de conversar com as plantas e gerar uma ciência, um conhecimento. E gerando cura. Todo mundo sabe que a natureza cura. Se você está estressado na cidade, sente que está precisando ir para o campo ou praia para recarregar. Só que eles estão em uma convivência diária com a natureza há 10 mil anos, num lugar onde a gente se perdeu. Nesse processo de racionalização do pensamento, a gente se separou da natureza. A gente, inclusive, criou a palavra natureza. Sempre que falamos “natureza”, nós colocamos a natureza fora da gente. Os Huni Kuin e, provavelmente, vários outros povos indígenas não têm nem a palavra natureza. Eles são a natureza. Quando eles falam profundamente, é a folha falando, é o vento falando, é o rio falando, é a pedra falando, é o bicho falando. Então, entrei numa dimensão espiritual extremamente mais forte. Um dia, junto deles, eu disse ao Fabian, que é o filho do cacique lá do Rio Jordão, que eu queria fazer a dança da tartaruga em uma abertura de exposição. Esse é um caminho sinuoso que tenho feito no meu trabalho há 30 anos. E ele disse: “Vamos fazer juntos”. Aí a gente começou a fazer essa colaboração. Há muito tempo estou no lugar espiritual da arte, com as Naves, os Colchões, os Campos, os Espaços, lugares que tenho criado para as pessoas estarem, respirarem. Há vários anos falo que quero que as pessoas pensem pelos poros. E encontrei uma galera que está muito avançada nisso.

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Ao entrar nas suas esculturas, o público pode se relacionar com o espaço de maneira pessoal, mas também participar de ações, de rituais conduzidos? Realizamos dois trabalhos no Instituto Tomie Ohtake e um trabalho nessa exposição colaborativa em Bilbao, dentro do Guggenheim. Fizemos um trabalho espiritual onde a gente tomou o Huni, que é a maneira que os Huni Kuin chamam a Ayahuasca, conduzidos por eles, pelos cantos sagrados deles, cantos ancestrais. Isso é uma coisa que não dá para fazer publicamente, não é um show, um espetáculo. É um trabalho espiritual para convidados. Então, vejo o museu como um lugar-templo. O que acontece é que a arte, para os indígenas, nunca se separou da sociedade. Os desenhos que têm nessa bolsa, nessa pulseira, o desenho que tem no arco, na flecha, toda essa indumentária artística, estão lá para trazer força e proteção. Estão lá para conduzir essa espiritualidade. Não estão lá para ser uma coisa a ser contemplada. Não que ela não possa ser, mas está para ser utilizada, vivenciada. Como um Parangolé do Hélio Oiticica. Meu trabalho é para você entrar, sentar e meditar, ou simplesmente olhar. Qual a diferença de participar de um ritual no meio da floresta e dentro do museu? A diferença é que na floresta você está com toda a força dos seres divinos, sagrados, como as plantas, os bichos. Quando a gente bebe Ayahuasca, que é uma mistura de um cipó com uma folha – o cipó trazendo a força masculina e a folha trazendo a força feminina –, você está bebendo a força da terra. É uma coisa muito profunda e muito séria. E é uma coisa transformadora que, inclusive, a meu ver, pode transformar essa sociedade para o bem. Essa sepa-

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Na página ao lado, Neto e colaboradores da tribo Huni Kuin, na instalação Vozes da Floresta (2016), no Kunsten Museum of Modern Art, na Dinamarca; à dir., Aru Kuxipa/ Sagrado Segredo (2015), na ThyssenBornemisza Art Contemporary Collection, em Viena

ração da natureza está fazendo a gente pegar tudo e não entregar nada. A gente está se autodestruindo tanto social quanto ecologicamente. A sociedade indígena tem um equilíbrio maravilhoso, e é uma sociedade brincalhona, eles acreditam na alegria como fonte da cura. Então, dentro do museu, o meu trabalho é trazer esse pensamento. Trazer a natureza para a arte e para o debate da arte. O que eu tento fazer enquanto artista é criar um ambiente propício, aconchegante, que traga força e proteção para que a gente realize aquele trabalho. Que elementos são fundamentais para se criar esse ambiente? Primeiro, o fogo. Seja uma vela, uma fogueira. Dizem que tudo isso começou quando o ser humano conseguiu controlar o fogo. E aí ele pôde sentar em roda. Ao meditar, ao olhar as labaredas, começou a desenvolver toda a capacidade humana. Toda capacidade intelectual humana é fruto da espiritualidade. Não é outra coisa que nasceu. A dimensão do ritual começa ali. A abertura de uma exposição é um ritual. A ritualidade existe em todos os movimentos da sociedade. O ritual não é uma situação que se restringe a grupos de iniciados, que compartilham um código, que lhes confere uma condição secreta? Não, acho que isso é um grande equívoco, uma visão preconceituosa sobre a questão em si. O grande segredo é que a saúde está na alegria e na dimensão espiritual. E essa dimensão material, da ilusão, que a gente está vivendo, acreditar que o ouro traz a cura, é um engano. O amor é o grande segredo, o amor incondicional. Essa coisa de

fazer um ritual fechado, que ninguém pode ver, isso não tem nada a ver. A não ser que existam pessoas fascistas, autoritárias, que queiram massacrar outras crenças, outras verdades, aí você tem de se esconder para se proteger. Você abre seus rituais para o público interessado? Claro. Existem rituais com Ayahuasca, sejam indígenas ou não, acontecendo em São Paulo, no Rio de Janeiro e no mundo todo. Participa quem quiser. Agora, quando você toma uma coisa como essa, você vai entrar num processo extremamente forte. Então, isso é uma responsabilidade. Nosso grupo que faz trabalho indígena no Rio de Janeiro, quando as pessoas vão lá, tem de fazer uma entrevista, tem de conversar. Entende? Porque não é uma coisa qualquer. Que grupo é esse? É um grupo que foi formado por um jovem Huni Kuin que foi para o Rio de Janeiro. Assim como em São Paulo outras pessoas fazem trabalhos com Huni. Essa dimensão xamânica está se espalhando por toda a sociedade, não só a brasileira, mas também a europeia, a americana, a asiática. Isso tem poder de modificar o mundo da arte? A arte é o nosso suor, o nosso cheiro, o que o corpo exala. Se você transforma o pessoal, esse exalar também é transformado. O segredo mora dentro da gente. O segredo, mais uma vez, é o amor. É encontrar a serenidade dentro de si mesmo. Esses rituais todos te ajudam a encontrar a serenidade. Ioga, meditação, umbanda, candomblé, todas as religiões que são sérias. Quando elas se tornam controle social, perdem a sua legitimidade espiritual.

FOTO: ANDERS SUNE BERG, CORTESIA KUNSTEN MUSEUM OF MODERN ART, AALBORG / JENS ZIEHE, CORTESIA TBA21-AUGARTEN E GALERIA FORTES VILAÇA

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32a BIENAL

NO MEIO DO JARDIM, UMA VELA

SE O RADAR DA CURADORIA DA 32ª BIENAL DE SÃO PAULO - INCERTEZA VIVA ESTÁ ORIENTADO NO SENTIDO DE INTERROGAR TERRITÓRIOS CONHECIDOS E CAPTAR OUTROS SISTEMAS DE CONHECIMENTO, ABRINDO-SE PARA CÓDIGOS SIMBÓLICOS DE NATUREZAS DIVERSAS, ENCONTRAMOS NO PAVILHÃO DOIS CASOS EXEMPLARES DE TRABALHOS QUE PENETRAM NA ESFERA RITUALÍSTICA DA CONVIVÊNCIA HUMANA.

TabomBass (2016), de Vivian Caccuri, é um sistema de som feito com alto-falantes empilhados, como ocorre nas festas de rua. Diante deles, três velas acesas reagem ao ar deslocado pelo ritmo de sons graves. “Esse aqui é um altar que eu construí para o grave dos ritmos do Atlântico.

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É um altar que na verdade é um sound system, feito com subwoofers, as caixas que reproduzem as frequências graves da música. Então, quando você está aqui, sente um som muito pulsante, um som que ressoa dentro de você”, diz Caccuri à seLecT. A instalação sonora é uma celebração do encontro entre a música brasileira e a música de Gana, para onde a artista realizou viagem de pesquisa. Assinada com outros dez produtores musicais da cidade de Acra, capital de Gana (Keyzuz, Yaw P, Wanlov, Steloo, Panji Anoff, Mutombo da Poet, Ghalileo, Sankofa, Mensahighlife), o TabomBass toca uma vez por hora no Pavilhão da Bienal, fazendo o edifício vibrar com as linhas de baixo de músicas desses artistas ga-

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Vivian Caccuri e Bené Fonteles criam altares e propõem rituais para a celebração de encontro com outras formas de conhecimento

nenses. As velas celebram a viagem permanente que a música da África-Oeste faz cortando o Atlântico e chegando às Américas. “Dei o nome de TabomBass porque ‘Tabom’ é um povo que foi para Gana no começo do século 19. Eram ex-escravos brasileiros que foram exilados e mandados ‘de volta’ para a África. E lá, em Gana, eles ficaram. Então eu considero que isso já é um caminho que estava aberto entre Brasil e Gana e esta obra é para criar um neocaminho e um diálogo entre esses dois países nesse eixo do Sul que pouco acontece.” O trabalho do paraense Bené Fonteles chama-se Ágora: OcaTaperaTerreiro (2016). Ele define essa obra-instalação-lugar como um fórum para se fazer um exercício de antro-

pofagia. A oca, ela mesma ancestral, arquitetonicamente, “come o modernismo” da arquitetura de Oscar Niemeyer. As colunas do Pavilhão da Bienal foram pintadas pelo líder indígena brasileiro Ailton Krenak. Em parceria com Krenak, Bené elaborou também um programa de encontros intitulado Conversas para Adiar o Fim do Mundo. Convidou artistas e artivistas como os músicos Egberto Gismonti, Chico César, Marlui Miranda e Tetê Espíndola, os artistas Ernesto Neto e Claudia Andujar, e o xamã Davi Yanomami. O calendário de encontros e vivências se estenderá até dezembro. O objetivo é “celebrar e ajudar a curar a alma da nação brasileira, que está muito dolorida com tudo que está acontecendo”, diz Bené, que vive em Brasília. PA e MS FOTO: ILANA BAR, ESTÚDIO GARAGEM, FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO

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C R Í T I CA

Naturalizar o Homem, Humanizar a Natureza ou Energia Vegetal, instalação criada por Victor Grippo em 1977 e remontada nesta edição da Bienal

SOBRE A ECOLOGIA DA ARTE CRISTIANA TEJO

Há uma certa despretensão na proposta desta 32a Bienal, que se coloca como enfrentamento a um mundo da arte inflacionado de discursos, especulação financeira, carreiras meteóricas e pirotecnias curatoriais Há uma espécie de consenso de que o mundo está em crise. Sensação essa que já ganhava corpo há pelo menos três décadas com o realinhamento de forças políticas e econômicas, mas que foi agravada pela quebra do sistema financeiro internacional em 2008. Entretanto, o que parece subjazer essa noção é uma ruptura profunda no saber sobre as coisas desencadeadas por movimentos sociais e teorias críticas que desnaturalizaram estruturas sociais e dinâmicas de perpetuação de hegemonias e assimetrias, como as chamadas perspectivas pós-coloniais e descoloniais. Os sucessivos questionamentos gerados por esse processo de aguda reflexividade atingiram todos os campos do conhecimento e têm evidenciado relações de poder. No mundo da arte, o impacto pode ser notado nas tentativas de expansão de narrativas refletidas em exposições e coleções internacionais menos eurocêntricas. O discurso pós-colonial e descolonial tem alicerça-

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do projetos mundo afora de diferentes formas e gradações, a exemplo das 11a, 13a e 14a Documentas de Kassel e as 27a , 29a e a 31a bienais de São Paulo, para citar apenas duas das mostras de maior prestígio internacional. Evidencia-se nessas exposições a intenção de uma busca de novos vocabulários artísticos que apontem para modos de viver e pensar mais pertinentes com a complexidade e a perplexidade do mundo atual. E aí chega a 32a Bienal de São Paulo – Incerteza Viva, curada por um time liderado por Jochen Volz, para dar continuidade a essa tentativa de pensar a arte em fricção com o mundo em transformação. Se na bienal anterior as intenções de horizontalidade da equipe e de escuta do meio local como metodologia de trabalho

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ficaram mais marcadamente no discurso, nesta edição elas ocorrem na prática. A harmonia e o respeito com que os curadores se tratam e se relacionam com os artistas reverberam por toda a exposição, desde a cadência gerada pelo respiro entre as obras e a organicidade nas vizinhanças até o número mais reduzido de participantes que coloca a bienal numa escala mais humana, o que pode ser entendido como estima ao público. Baseando-se no pensamento do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que elaborou o conceito de ecologia dos saberes e epistemologias do Sul e na metáfora do jardim como uma forma de endereçar desafios globais que passam por direitos e pela própria sobrevivência do planeta Terra, Volz e seu time acabam lançando luz à importância de discutirmos a própria exaustão de uma forma de funcionamento do campo da arte e a delicada relação entre teoria e prática. A ecologia nos fala sobre interdependências e a ecologia da arte também, pois não existe arte sem uma rede de relações e de interdependências. Diferentemente da edição anterior, que procurava captar a urgência e a temperatura dos conflitos em trabalhos que muitas vezes exaltavam o ativismo e pouco apreço à dimensão estética, essa versão se coloca como um contraponto (apesar de dialogar intensamente) em que discussões e posicionamentos semelhantes configuram-se de maneira distinta, mais voltados para um tom intimista e sofisticados esteticamente. As obras parecem filtrar questões do mundo contemporâneo sem retirar a sua densidade.

Duas obras comissionadas para a mostra: à esq. Dois Pesos, Duas Medidas (2016), de Lais Myrrha; acima, detalhe de Ágora: OcaTaperaTerreiro (2016), de Bené Fonteles

32a Bienal de São Paulo - Incerteza Viva, curadoria Jochen Volz, até 11/12, Pavilhão da Bienal, Avenida Pedro Álvares Cabral, s/nº, Parque Ibirapuera, São Paulo www.32bienal.org.br

O ruído e a intensidade foram substituídos pelo silêncio e pela decantação da experiência. Para pensar em novas relações possíveis com o mundo, a 32a Bienal aposta no frescor de artistas jovens e de muitos que ainda não alcançaram visibilidade de mercado, a exemplo de Sonia Andrade, Samico, Bené Fonteles, Vivian Caccuri, Jorge Menna Barreto, Barbara Wagner, Benjamin de Burca, Laís Myrrha e Cristiano Lenhardt, para citar alguns dos brasileiros. Há uma certa despretensão na proposta desta bienal que se coloca como um desafio a um mundo da arte cada vez mais inflacionado de discursos, especulação financeira, carreiras meteóricas e pirotecnias curatoriais. Rever parâmetros de produção e de consumo também é importante para o mundo da arte e as propostas mais instigantes na atualidade assentam-se em imaginações alternativas e gestos mínimos. Trasladar isso para o espaço de prestígio da bienal pode ser um ato transformador. Precisamos falar mais sobre como todos nós atuamos na ecologia das artes para podermos alterar ambientes e reinaugurar mundos.

FOTOS: CORTESIA DO ESPÓLIO DO ARTISTA E ALEXANDER AND BONIN, LEO ELOY, FUNDAÇÃO BIENAL DE SP / PAULA ALZUGARAY

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PARIS

AMBIVALÊNCIA ANIMAL

Passarinhos (2016), muro de azulejos com pássaros pintados a mão por Beatriz Sauer, de autoria de Adriana Varejão

MÁRION STRECKER

Na Fondation Cartier, arte e ciência se misturam em exposição que mostra presença dos animais em nossa civilização e imaginação Artistas que trabalham na fronteira da ciência e a colaboração entre cientistas e artistas dão a tônica da mostra, com curadoria de Hervé Chandès. A obra inspiradora do projeto é a de Bernie Krause, músico e bio-acústico norte-americano que se dedica a gravar a natureza selvagem há 40 anos, além de colaborar com músicos e cineastas. Ele ajudou a formar as bases de uma nova disciplina científica: a ecologia das paisagens sonoras. Gravou paisagens sonoras em locais diversos do planeta, entre elas a Amazônia, e sete delas podem ser ouvidas no sub-solo do edifício da fundação, desenhado por Jean Nouvel. Bernie Krause é autor do conceito de biofonia, o conjunto de todos os sons produzidos por todos os seres vivos que formam um SELECT.ART.BR

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A Grande Orquestra dos Animais, curadoria Hervé Chandès, até 8/1/2017, Fondation Cartier pour l’art contemporain www.fondation.cartier.com

determinado eco-sistema. Na organização dos sons do espaço selvagem, quase que orquestral, cada espécie encontraria seu “nicho acústico”, de modo a se mostrar ou se esconder, a depender da situação. É isso o que ouvimos na instalação, feita em parceria com o coletivo multimídia United Visual Artists, de Londres. Projetado entre as paisagens sonoras, um filme de Raymond Depardon e Claudine Nougaret traz depoimentos de Bernie e clipes de habitats naturais que se deterioraram dramaticamente nas últimas décadas. Também no sub-solo da fundação, há outra ambientação sonora que impressiona, com música original do compositor japonês Ryuichi Sakamoto e imagens de plânctons do cientista francês Christian Sardet, reunidas em instalação do artista visual japonês Shiro Takatani. Adriana Varejão levantou um muro de azulejos com pássaros pintados por Beatriz Sauer. Da biblioteca Macaulay, do Laboratório de Ornitologia de Cornell, vieram documentários de curta metragem com performances incríveis de aves, algumas muito engraçadas. Agnès Vardas montou no jardim um poético túmulo multimídia para homenagear seu gato morto. Hiroshi Sugimoto, Cai Guo-Qiang, Manabu Miyazaki, Pierro Bodo, JP Mika, Moke, Cyprien Tokoudagba também integram a exposição.

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REVIEWS PIRACICABA

EU SOU, TU ÉS FELIPE STOFFA

Bienal de arte naïf reafirma o caráter social e potente de uma arte que não deve ser rotulada Em sua 13ª edição, a Bienal Naïfs do Brasil - Todo Mundo É, Exceto Quem Não É afirma o papel social e inclusivo de uma exposição periódica voltada à arte popular. A mostra deixa evidente que o termo naïf pede revisão, já que o que se apresenta nas salas do Sesc Piracicaba são cerca de 120 obras de artistas que falam de tudo menos de ingenuidade. O título funciona como um guia para a visita. A partir de um diálogo com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que em 2006 afirmou que “todo mundo é índio, exceto quem não é”, coube à bienal indagar o porquê de limitar a produção de artistas cujas biografias e o título de naïf “o fossem somente até deixar de sê-lo”, conforme o texto curatorial de Clarissa Diniz. Deixando de lado essa classificação prematura, artistas populares, modernos contemporâneos foram colocados lado a lado, a fim de abrir novas tramas e diálogos, em obras que questionam a vida social, memória, história e a própria cultura. Tudo isso com força política e tom propositivo, semelhante ao que se encontra na 32ª Bienal de São Paulo. Para ativar esse diálogo, a mostra está organizada em cinco eixos temáticos: espaço, gráfico, pictórico, matérico e político. Ao transitar em cada eixo, encontramos esculturas de Tiago Carneiro da Cunha, como Monstros de Lama com Vela Vermelha (2009), a pintura com animação A Briga do Porta-Bandeira Vermelho (2016), de Thiago Martins de Melo, e até uma pintura do modernista Flávio de Carvalho, Sem Título (1972), e trabalhos da série Moran-

Fürher e o Califado do Terror (2015), pintura de Cleber Ramos, na 13 a Bienal Naïfs do Brasil

13a Bienal Naïfs do Brasil, - Todo Mundo é Exceto Quem Não É, curadoria Clarissa Diniz, até 27/11, Sesc Piracicaba, Rua Ipiranga, 155 www.sescsp.org.br

di (1964), de Montez Magno. Esses trabalhos são ladeados por produções de artistas alheios ao sistema de arte contemporânea, como Maria Aparecida Queiroz Machado, Geraldo Tartaruga, Nilda Neves, Gustavo Ansia, além de bordados, como Mulher Chorando (2015) e Cobra e Jacaré (2015), de Marnele Crespo. Como não se surpreender também com o alto teor social de pinturas como Manifestação na Paulista (2016), de Jefferson Limas, e Führer e o Califado do Terror (2015), de Cleber Ramos. Abastecidos pelas intrigantes e belas produções, podemos voltar ao título da mostra e afirmar que todo mundo é, ou que deveria ser. FOTOS: MÁRION STRECKER / DIVULGAÇÃO

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BERLIM

EM TORNO DE BEUYS E O CAPITAL Exposição trans-histórica amplia narrativa de obra de Joseph Beuys, ao relacioná-la com 130 trabalhos de outros autores e tempos O museu Hamburger Bahnhof, em Berlim, apresenta uma grande exposição em torno de A Sala do Capital 1970-1977, o ambiente criado por Joseph Beuys (1921-1986) para a Bienal de Veneza de 1980. Essa instalação foi adquirida no ano passado pelo colecionador alemão Erich Marx e agora está sob empréstimo definitivo ao Hamburger Bahnhof, que já possuía uma importante coleção de Beuys. A Sala do Capital é composta de 27 objetos, entre eles um piano de cauda, aparelhos elétricos, gravadores, microfone e muitos elementos de performances de Beuys, além de muitas obras que ele já havia exposto na Documenta de Kassel. Na sua visão, qualquer um é um artista e o capital humano seria o único capital verdadeiro na sociedade pós-industrial. Arte = Capital é uma expressão recorrente na obra de Beuys. Nessa exposição trans-histórica, curada por Eugen Blume e Catherine Nichols, foram incluídas 130 obras de autores variados. Entre as mais antigas está uma estátua de Thoth, deus da escrita e da sabedoria, que teria sido o inventor dos hieróglifos. O álbum romântico Fallen Angels (2016), de Bob Dylan, com versões de músicas gravadas por Frank Sinatra; SELECT.ART.BR

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A Sala do Capital 19701977, instalação de Beuys em exibição no Hamburger Bahnhof

Capital – Dívida, Território, Utopia, curadoria Eugen Blume e Catherine Nichols, até 6/11, Hamburger Bahnhof, Invalidenstrasse 50-51 www.smb.museum

um exemplar em alemão de A Paz Perpétua (1795), do filósofo prussiano Immanuel Kant; uma conversa entre o monge budista tailandês Bhikku Maha Mani e o filósofo alemão Martin Heidegger gravada por uma tevê alemã em 1964; uma máscara do teatro Nô do século 17; livros do escritor e político francês André Malraux; uma pintura do romântico Caspar David Friedrich; uma entrevista com a filósofa política Hannah Arendt; uma gravura de Goya; uma cabeça da divindade Yakshi, do século 1º; o filme Uma Vida de Cachorro, de Charles Chaplin; uma edição do livro Sobre o Comércio e a Usura, de Martinho Lutero, figura central da Reforma Protestante no século 15; um vídeo corporativo de 2013 chamado Working at Goldman Sachs; uma gravação de Rihanna da música Bitch Better Have My Money (2015); e as pinturas Big Electric Chair, Advertisement e Mao, uma das muitas versões que o artista pop Andy Warhol produziu sobre o retrato do líder comunista chinês Mao Tsé-tung, estão ali. Um toque brasileiro na discussão é dado por uma foto de Carmen Miranda interpretando The Lady in the Tutti Frutti Hat (1943) e o vídeo Passagens I (1974), de Anna Bella Geiger. Paul Klee, Marcel Broodthaers, Gerhard Richter, Cy Twombly, Bruce Nauman, Anselm Kiefer, On Kawara, Nam June Paik, Jeff Koons, Harun Farocki e Rachel Whiteread também estão representados. Exemplares em inglês e alemão da obra enigmática Worstward Ho, do dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett, aparecem ali. Da obra faz parte o seguinte trecho, muito citado: “Não importa. Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor”. Vá com tempo. MS FOTO: MÁRION STRECKER

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RIO DE JANEIRO

UMA OBRA, VÁRIAS VERDADES PAULA ALZUGARAY

Relação entre a performance contemporânea e o poder de encenação mística na obra de Bispo do Rosário vem à tona em curadoria de Daniela Labra Da obra de Artur Bispo do Rosário pode-se extrair tudo, menos a alienação. Em décadas de internação na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, Rio, Bispo colecionou objetos trocados, desfiou uniformes para obter linha para bordar e construiu cerca de 800 peças que, em meticulosa metodologia, nomearam e organizaram o lugar que as coisas ocupam no mundo. Suas vivências como pugilista, marinheiro e cidadão do mundo estão entramadas em cada centímetro de linha bordada e de corda esticada. É por isso que o projeto que o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea vem desenvolvendo, de colocar sua obra em fricção com a produção artística contemporânea, não poderia ser mais pertinente e respeitosa para com sua obra. As exposições periódicas contam com curadores convidados, “para mostrar que a obra de Bispo tem várias verdades”, segundo palavras da diretora Raquel Fernandes. Tem duração de seis a dez meses, estimulando assim a visitação cíclica de públicos que se deslocam do centro e zona sul do Rio de Janeiro, e favorecendo o desenvolvimento de um programa educativo continuado com diversas escolas da região de Jacarepaguá, a fim de plantar entre os moradores a consciência de pertencimento e a posse da riqueza simbólica daquele patrimônio que se guarda ali. Esse projeto institucional atencioso, baseado na “arte de cuidar” SELECT.ART.BR

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Na instalação Sincretismo Sincronizado, o músico e artista visual Siri se apropria de 60 incensários. Em vez de fumaça, os objetos emitem sons de diversos discursos religiosos

Das Virges em Cardumes e da Cor das Auras, curadoria Daniela Labra, Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, até 31/1/2017, Estrada Rodrigues Caldas, 3.400, www.museubispodorosario .com

e na confluência entre arte e saúde, tem a colaboração do curador artístico Ricardo Resende e da curadora pedagógica Bianca Bernardo. Com curadoria de Daniela Labra, a exposição periódica Das Virgens em Cardumes e da Cor das Auras investiga as relações entre a performance contemporânea e o poder de encenação mística na obra de Bispo do Rosário. Apresenta uma seleção de 60 obras da coleção do museu – entre elas o precioso Manto da Apresentação, oito estandartes e faixas de misses –, 19 obras contemporâneas e dez performances. Na abertura, Eleonora Fabião promoveu um cortejo de obras de Bispo – em uma “devolução” simbólica para a Colônia Juliano Moreira, deslocando-as do museu ao centro histórico da Colônia – antigo Engenho de Fubá e Cana-de-Açúcar. Sincretismo Sincronizado, instalação sonora do carioca Siri na entrada da exposição, é uma espécie de portal que transporta o visitante para a dimensão específica do rito. Chama a atenção também o projeto do cearense Solon Ribeiro com os alunos do Ateliê Gaia, oficina de artes da Colônia, que hoje funciona como uma cooperativa de artistas internos e ex-internos. Solon levou fotogramas da história do cinema para os artistas intervirem. Também da ordem do ritual, Mauricio Ianês realizou uma ação sem deixar outros rastros que papéis no chão das celas-ateliê do Pavilhão 10, onde Bispo viveu sozinho por sete anos; e Yara Pina deixou em vídeo e manchas nas paredes os registros da performance em que proferiu golpes contra a própria sombra – “o outro que não reconheço como eu”, segundo define Bianca Bernardo.

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SÃO PAULO

ENIGMÁTICO TERRITÓRIO DO COMUM

Trabalho (2013-2016), instalação composta de ferramentas que o artista Thiago Honório barganhou com pedreiros e mestres de obra

BIANCA DIAS

Obra de Thiago Honório restaura a sacralidade dos objetos, reinventa o espaço do museu e o lugar do trabalho Na vertigem do mistério dos objetos e do enigma que deles emana, Thiago Honório constrói a obra Trabalho, exposta no Masp. De escadas, picaretas, enxadas, marretas, serrotes, pincéis e espátulas utilizados no restauro de uma antiga estação de fornecimento de energia, o artista desvela um saber que acontece pelas mãos. Da negociação inicialmente clandestina com pedreiros e mestres de obras instala-se a dimensão da troca e de uma política absolutamente singular, sustentada na ética do vestígio, do rastro e daquilo que não se pode apagar ou cobrir. No diálogo com a arquitetura brutalista, franca e despida de Lina Bo Bardi, as ferramentas parecem brotar do material cru e do concreto aparente e, ao embaralhar instrumentos que chegam de maneiras distintas (via negociação ou por doação), o artista reinventa não só o espaço do museu, como também o lugar do trabalho, tensionando o laboral, entendido como tarefa árdua ou de força, e que, na obra, adquire sentido na potência da sutileza, em um agrupamento que segue uma lógica quase musical, na medida em que a disposição das ferramentas surge como resposta singular ao inacessível contido no gesto de doação, ao vazio que constrói um

Trabalho, Thiago Honório, curadoria Fernando Oliva até 29/1/17, Masp, Av. Paulista, 1.578 www.masp.art.br

espaço de ressonância entre os objetos, vazio que faz vicejar dádivas, à maneira invocada por Georges Bataille. No ensaio “A noção de dispêndio”, Bataille evidencia a tentativa de abarcar, em um mesmo espaço reflexivo, domínios do conhecimento tão diferentes quanto antropologia, religião, sociologia, arquitetura, arte, filosofia e economia. Aí também se inscreve a força da voz soterrada que Thiago Honório evoca ao refundar uma dimensão do trabalho como sistema de performance social e produção que extrapola a importância econômica e moral.. Subvertendo o uso das ferramentas, Thiago Honório nos leva ao espanto de um mundo onde o objeto não se confina a seu significado, valorizando e reconfigurando, através dos múltiplos sentidos que emergem dos instrumentos, a dimensão viva e inquieta de um trabalho aberto ao imprevisto, ao inesperado, transfigurando e transgredindo qualquer aprisionamento funcional. Num diálogo agudo com o espaço arquitetônico que abriga a procissão de ferramentas, o que se revela é a espessura dos instrumentos que, com suas qualidades artísticas, plásticas e visuais, são índice de trabalho e dramatização de uma falta que é, também, presentificação de algo que rompe uma cadeia homogênea e desierarquiza saberes, incorporando a dádiva como aquilo que é de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém, que está no ordinário e fora dele. Do ato propositado da negociação passa-se à doação e ao terreno do incerto, do inacessível, através de elementos intrusivos que chegam de mãos desconhecidas. A essas ferramentas se juntam aquelas negociadas, embaralhando a lógica de acúmulo e produtividade, desfuncionalizando objetos e fazendo cintilar o território do comum – tão enigmático quanto difícil, tão raro e sempre em esquiva. FOTOS: PAULA ALZUGARAY / EDOUARD FRAIPONT, MASP

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EM CONSTRUÇÃO

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MUTANTES VIGILANTES DE REGINA SILVEIRA

DEPOIS DE REGINA SILVEIRA, AS PESSOAS NA SALA DE JANTAR DA FUNDAÇÃO EVA KLABIN NUNCA MAIS ESTARÃO OCUPADAS SÓ EM NASCER E MORRER. Isso porque os Mutantes

(I e II) que ocupam o espaço pelos próximos meses são mesa, cadeiras e um carrinho de chá com… pelos! “A própria casa me trouxe todas as ideias e associações. Tenho certeza de que o projeto de tornar peludas a mesa e as cadeiras surgiu no momento em que percebi o espelho da tomada totalmente revestido pela forração de tecido que cobre uma das paredes do andar de cima”, conta a artista à seLecT. No quarto de dormir, uma mosca gigante espreita a cama pela projeção Surveillance (2015). Com Mundus Admirabilis (2007), a artista povoa de insetos a fachada em estilo normando. A Sala Renascença, com obras desse período, ganha a interferência de Dark Swamp (Nest), um ovo negro de 1,8

metro de altura. O som no hall é o da Fábula II, uma mistura de barulho de insetos e helicópteros. É o resultado da ocupação Insolitus, criada pela artista para o Projeto Respiração. Pelas mãos do curador Marcio Doctors, a iniciativa vem transformando o espaço da Fundação Eva Klabin desde 2004, e já acumula 20 edições, assinadas por 27 nomes, como Eduardo Berliner, Nelson Leirner e Anna Bella Geiger. Na carta-texto para a mostra, o curador explica: “Sou grato ao feliz encontro que tivemos em reunir trabalhos novos e outros já existentes, que reforçaram o sentido maior da obra de Regina Silveira e da proposta originária do Projeto Respiração, que é a de criar reflexão sobre aquilo que está estabelecido, imobilizado pelo tempo, que a própria condição de uma casa-museu impõe aos objetos e à coleção que abriga”. LPN FOTO: MARIO GRISOLLI

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