
17 minute read
CORLUZ, A VERDADE, O ENIGMA
Corluz não significa cor que emite luz ou cor luminosa. Não é Monet nem Caravaggio, como poderia parecer. A minha definição seria: corluz designa a pintura de Fiaminghi a partir de 1958. Não se trata de um conceito estético, mas do título para o que seria o estilo tardio de Fiaminghi, seu Spätstil17, na expressão de Adorno.
Corluz é uma palavra-chave misteriosa, como foi a palavra Noigandres para os poetas concretos, com a diferença de que Fiaminghi inventou um neologismo em sincronia com a invenção de uma pintura pessoal e original.
Fiaminghi chegou à corluz depois de muito investigar. Começou com a tela-ruptura Corluz, superposição de quadrados em transparência. Trabalhava sem cessar, mas se transformava ao mesmo tempo. Na angústia dessa busca desesperada, Fiaminghi reaceitou-se como quem sabe conviver com o aleatório, com o acaso e, principalmente, com o erro como parte integrante da pintura.
Surgiu outro divisor de águas: a tela Corluz de 1972. Na medida em que quadriculava a pintura original, fez surgir o que chamarei de pictemas: a menor unidade pictórica, um instante da pincelada ou uma fração do gesto do pintor, o mínimo que pinta, em conflito entre o que se determina e o que se mostra ou se deixa ver. É aí que surge a resposta, ainda que como enigma: é a mirada e a morada da pintura. A pintura em sua expressão de máxima condensação. Não a obscuridade do buraco negro, mas a sua luminosidade, se é que existe como tal. Obscuro? Pode ser. Mas o ato de aplicar a trama opaca faz aparecer o que antes não se via.
17 Theodor W. Adorno, op. cit., p. 130.
A trama de pictemas da tela Retícula corluz X (1973) obriga o observador a ver as pinceladas pelas janelas da alma do pintor, aquela que revela a sua paisagem interior, reticulada, ou melhor, a quadriculada luz na natureza, e a luz pelo pintor, pela pintura. Nesse momento, a pincelada se dá a ver no pictema como transparente, reveladora. Façanha? Mais que isso: a capacidade de transformar nossa forma de ver.
Essa trama também poderia ser entendida como um fechamento para um percurso sem saída. Fiaminghi, como se falando consigo mesmo, diria: “Silêncio!”. E voltaria a pintar, sem angústias metafísicas. Suas origens inconscientes deixam a cor falar e dançar, em nuvens, de um lado a outro, de alto a baixo, plenas de vida e movimento, como epifanias pictóricas.
Para se ter uma ideia da intensidade das buscas de Fiaminghi, lembro que, em uma década, ele conseguiu fazer o que muitos levaram anos para realizar: o salto da renascença ao barroco. Do simétrico à estrutura dinâmica, da harmonia linear à harmonia pictórica, transformação da gestalt estática em uma estrutura dinâmica no limite do caos.
Perguntado sobre o que é a corluz, a resposta do artista é pictórica: “Isso eu sei responder na ponta da língua. É um pouco diferente do que se tem cientificamente sobre corluz”. Para Fiaminghi, ela é resultado de uma cor ao lado da outra. A sobreposição se dá por transparência, mas com a mesma gama de cor: “A transparência, ou a aplicação de cores transparentes umas sobre as outras, apaga um pouco a luz da cor”.
Fiaminghi foi influenciado pela “atmosfera” de Monet (mescla de cores e efeito de transparência) e pelas pinceladas de Van Gogh (uma ao lado da outra). Esse conjunto cria o “clima” da corluz que Fiaminghi usa. Um dos aspectos da corluz é a referência entre cores. O verde ao lado do vermelho, por exemplo, cria certa vibração entre as cores. “Eu estudava que o verde suja o vermelho e o vermelho suja o verde. Mas um dia o Waldemar da Costa misturou o verde e o vermelho e criou uma atmosfera. Misturar não é só sujar, depende de como você vai pincelar.”
Mas o artista ainda faz um alerta: “Não confundir com cor iluminada, que é um efeito de cor que tem uma lâmpada incandescente por cima. Na cor iluminada, a luz vem de fora. Na corluz, a luz vem da vibração de uma cor com a outra, vem de dentro”.
Esse enigma da corluz é a pergunta que Fiaminghi se coloca como uma síntese dos tempos. Passado: a construção ortogonal. Presente: a presença simultânea da expressão, a pincelada, a construção, a grelha de verticais e horizontais. Futuro: a descoberta da corluz ou a essência da pintura, a ser revelada pela própria pintura.
Quando a obra é percebida, esses três tempos não são reconhecidos em um único instante, mas em uma durée, uma duração de tempo na qual o observador pode refletir e transformar a percepção inicial em um raciocínio para compreender o problema proposto por
Fiaminghi: pela pintura, decifrar a imitação da realidade como apoio da expressão artística. Um “caminho inexpugnável”, sem saída, me dizia Fiaminghi. Hoje, seria algo que não se diz, conforme comentaria Derrida. Se a imitação seria o limite para o pensamento verbal, na arte de Fiaminghi essa imitação é o ponto mítico de onde emerge o entendimento estético, que se revela pelo fazer pictórico, pelo ato da pintura.
Fiaminghi assume a possibilidade e a necessidade de encontrar a beleza estética através do próprio fazer estético, da beleza da arte como imitação e transposição da beleza da natureza.
O nome da série se refere à técnica, à retícula como designação para uma grelha ortogonal, uma expressão da razão subjetiva. Demonstra, mais uma vez, a impossibilidade da utopia da arte concreta. “A arte não pode mais confiar em qualquer objetividade dos universais e nem é a objetivação dos impulsos, a objetivação se torna funcionalidade.”18
A forma construída e demolida pela não forma, a superfície de pinceladas por onde o gesto de corluz se realiza, apresenta-se como a forma dinâmica, a “objetivação dinâmica, a determinação da obra, como se existente por si mesma, que envolve um elemento estático”19
A obra construída é uma obra estática. Ora, se a pintura é rastro de um gesto, dinâmica, mesmo que sempre envolvendo um elemento estático, o movimento cristalizado, a utopia da arte geométrica é uma contradição. A geometria pode ocorrer como meio, jamais como resultado final. A obra surge como registro material de reconciliação entre a objetividade e a subjetividade, desde que se desintegra a construção – antes, estática, é a grelha racional – e se desnatura a pincelada de cores, a pista dinâmica.
O conflito visual é também o conflito dos tempos da obra: o tempo como duração, como marca da passagem ou da continuidade dos instantes, enquanto a sucessão das pinceladas congelou-se quando o movimento se completou. Entretanto, ao rever a superposição da grelha construída pelo contraste das formas, do estático com o dinâmico, volta-se a dar um movimento. A dialética se resolve na obra pictórica como uma imagem sem o tempo do movimento. Seja ela figurativa ou geométrica, a pintura é uma prática do agora, do presente, como uma existência suspensa.
As pinceladas são os impulsos subjetivos – a esfera do prazer – que se contradizem, em conflito com a objetividade, com a disciplina da estrutura ortogonal. Como síntese, a estrutura estática se faz perceber como estrutura dinâmica, em movimento: a objetivação dinâmica.
18 Ibidem, p. 222.
19 Ibidem
Quando a obra se mostra, é irrelevante ao espectador saber o que veio antes ou o que veio depois durante sua feitura. Isso não tem importância para o entendimento da obra. Esforços para o conhecimento e a compreensão da gênese da obra são apenas investimentos em sua história, e têm pouca significação estética. A percepção da forma estética, a obra, é irredutível à multiplicidade de seus momentos em gênese.
À parte a autonomia do impulso de pintar, próprio a todos os verdadeiros artistas, qual seria o conteúdo do ato de pintar para Fiaminghi a partir da década de 1970? Na época, o artista não precisava mais da aprovação de seus pares. O sentido da sua pintura já era individual, vindo dele mesmo. O artista não se integrava mais às práticas de seus colegas concretos nem à demanda do mercado. A arte tampouco representava seu meio de expressar sua cosmovisão, se é que isso lhe interessou.
Os rastros das pinceladas emergem como as marcas da euforia do artista em trabalho, enquanto etimologia: a luz da luz, lumini di lumini, como meio de dominação sobre a coisa natural, levando à unidade do espírito, como vontade, e da razão, como sentido diretor dos atos ou dos momentos do trabalho.
Assim, o que restava como tema da pintura era a própria pintura. Uma postura como a de Volpi, Sacilotto e Arnaldo Ferrari.
Pintar pela pintura é pintar para se expressar, para encontrar algo que ninguém encontrou, resolver um mistério que ninguém resolveu, o que traz ao artista a euforia como um vício: a euforia da essência da pintura.
O conflito entre a forma geométrica, estática, e a pincelada, dinâmica, atinge o limite, como se a obra não tivesse outro objeto que não a própria essência da pintura. “Nas obras de arte, a própria aparência pertence ao lado da essência… A essência da arte deve aparecer e a aparência é aquela da essência, e não uma aparência para outro, mas da arte como determinação imanente”20. Aí o conflito se realiza como uma desintegração, como a explosão do próprio objeto. Assim acontecerá a pintura de Fiaminghi, uma pintura sem outro objeto senão aquele da pintura, do que define a pintura enquanto o que se dá voz, como “a realização estética do não existente”21.
Tal essência se revelará a cada tela, não como um discurso racional (verbal), mas como uma realização estética a ser transformada pela mediação entre o sujeito observador e a objetividade da obra pela reflexão filosófica suscitada. Jamais se dará a perceber como um conceito único devido à sua natureza de realização estética, é e sempre será uma diversidade, dinâmica como o próprio gesto que a executa e, portanto, a faz aparecer. A beleza não é jamais imediata, sua “verdade transcende a semelhança”22
A obra de arte de Fiaminghi, assim como de outros artistas, não comunica como o discurso verbal, assim como o discurso racional não encara a obra de arte como mensagem a ser recebida e interpretada. É por isso que a obra de arte pode se dar ao privilégio de se redefinir em cada uma de suas aparições, imutável e múltipla ao mesmo tempo, mas nem por isso variável e indeterminável.
A obra de arte realiza e expressa Fiaminghi; é uma determinação complexa, indecifrável como signo imediato. Ela revela a essência da pintura como “consciência do não idêntico”23, como uma não realidade objetivada – um paradoxo que, justamente por isso, atrai e interessa, exige que o decifrem.
“A arte subsiste após a perda do que nela devia outrora exercer uma função mágica e, depois, cultiva”24 Assim, hoje, a arte é o que sobra depois de se receber e consumir a mensagem. Se olho determinada obra, posso ver uma reprodução de luzes da natureza através das árvores, a valorização da natureza e a denúncia da destruição da beleza natural. Nada disso, entretanto, é a obra de arte. Essa análise pode ser feita por qualquer um. Não teria valor algum, seria apenas uma mensagem vulgar ou kitsch. Na obra, porém, depois que a mensagem foi consumida, é a obra de arte que resta e emerge, a ser vivida como uma experiência estética autêntica. E é essa que Fiaminghi realiza e é o objetivo da essência da pintura: aquela que o artista realizou, isto é, executou e concretizou. Se a obra de arte não tem mais significado conceitual, mas ainda é a objetivação de uma expressão, então o observador a percebe como um enigma, como um problema: “o que é isto?”.
23 Ibidem, p. 134.
24 Ibidem, p. 127.
A corluz, apesar da tentação, não deve ser confundida, como dito, com a cor luminosa ou a luminosidade da cor enquanto um simples efeito de ótica, explicado pela física da luz newtoniana. Fiaminghi nunca tentou ser um físico, ele é um artista, seu foco é a pintura; seus problemas e respostas articulam-se por respostas pictóricas, realizadas em obras de arte.
Nesse contexto, há de se entender o interesse de Fiaminghi pela luminosidade das cores como efeito na natureza ou como efeito das técnicas de pintura apenas como um meio, instrumento, para objetivar a sua busca da beleza através da pintura. A beleza da pintura, de origem imanente, transcende o prazer estético produzido pela sensação causada pelas formas e pelas cores luminosas das telas de Fiaminghi.
A utopia da arte concreta dirigia-se à arte como realização do impossível, como queria Adorno. Tratava de realizar a perfeição, através da geometria enquanto forma e do projeto enquanto método, capaz de abolir o acaso e exorcizar o erro. Seria a euforia da gestalt, a boa forma, como se isso fosse possível na arte. Seria dominar a natureza e a subjetividade de cada indivíduo. Efetivamente, era o distante sonho, muito explicado por Ernst Bloch, motor da necessária revelação a realizar, ação da “consciência antecipante”. A arte concreta, em suas criações mais autênticas, soube realizar as palavras de ordem de Maiakovski, repetida em muitos lugares:
“Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”. Fiaminghi radicalizou essa máxima em sua expressão maior. Foi por isso que ele decidiu se recolher à sua própria individualidade, à sua verdade subjetiva, ainda que precisasse abandonar o entusiasmo das ações coletivas e fosse obrigado a voltar às origens da pintura, onde encontraria, talvez, sua essência, ciente de que ela poderia estar na sabedoria milenar de Volpi. Sabia que os modelos da arte concreta esgotavam-se. Intuía a crise da utopia da arte concreta e foi o primeiro a denunciar essa concordata, muito antes de Cordeiro e seus colegas, inclusive dos próprios poetas concretos.
Já buscava a prática “pós-utópica”, na expressão de Haroldo de Campos. Considerava o tempo das vanguardas como um tempo vazio. Abriu o movimento para a revitalização da subjetividade, para a corporeidade em todos os sentidos da palavra. Em especial, no caso da pintura, abriu-se para a pintura como o prazer de pintar, não mais como uma atividade guiada, como um dever. Não mais como uma “disciplina de partido”, na expressão corrente, mas como uma epifania. Cada quadro seria uma apoteose de corluz, e o trabalho estético, além da estrutura, mais que cor e luz, seria a utopia da beleza.
Fiaminghi deduziu que suas respostas estavam no passado da pintura, em suas práticas primordiais. Via mais exatamente na técnica da têmpera um meio para encontrar a materialidade e a transparência da pintura, e sua simplicidade original, como gesto e como olhar.
Os pintores concretos acreditavam que as obras de arte seriam perfeitas como produto da tecnologia industrial, do “mundo administrado” de Adorno, aquele dominado pelo grande capital, pela burocratização e pela mercantilização das atividades humanas, pela “razão instrumental”. As obras de arte não teriam defeito algum porque não teriam as limitações e a falibilidade da mão humana. Da mesma forma, essa perfeição, esse equilíbrio, aconteceria nas relações sociais. A produção industrial e estética também traria a reconciliação das contradições do capital, o trabalho, o fim da luta de classes e o surgimento do homem socialista. Para os países periféricos, como é o caso do Brasil, traria o desenvolvimento econômico-social, capaz de superar a dominação imperialista e animar a internacionalização cultural. Assim, a arte concreta seria a arte do novo homem, como era o construtivismo na Rússia, a arte da não alienação anterior à “crise do Iluminismo”, reconhecida pela Escola de Frankfurt, nos anos 1930, por Adorno, Habermas e outros. No entanto, a dominação da natureza pela técnica implicou a dominação do pessoal pela técnica, servindo para alienar mais e mais os indivíduos.
Fiaminghi não conceituou a falência da utopia da arte concreta ortodoxa. Porém, sua agudíssima intuição estética indicou-lhe que o equívoco inicial esgotara-se e o levou a romper com o líder do grupo concreto, Waldemar Cordeiro, ainda que não tivesse rompido pessoalmente com os outros artistas. Esses conflitos não significaram uma ruptura com a pintura. Ao contrário: Fiaminghi voltou-se para um fazer pictórico milenar, personalizado por Volpi. Em seu ateliê, poderia recomeçar.
As pinceladas corluz são os impulsos da subjetividade, a esfera da arte como prazer que se contradiz, sem conflito, com a arte como objetividade, como disciplina diária, e com a estrutura ortogonal que a dialética negativa transformaria em desestrutura – além da verdade, em enigma, aquele do movimento da forma estática.
A corluz está para a pintura como as Bagatelles, Opus 126 , de Beethoven, estão para a música. Publicadas em 1825, exprimem o estilo tardio ou o Spätstil25 , na fórmula de Adorno: o momento de amadurecimento da obra de um grande artista, em que ele supera as convenções, as regras e cânones externos, os modelos extrínsecos, após a descoberta de sua verdade estética intrínseca. Para Fiaminghi, é a pintura de seu próprio modelo interior por ele mesmo, livre de qualquer determinação de seu contexto artístico, de qualquer realidade social. Sem guias nem diretrizes, dirigido por si mesmo, por sua subjetividade plena, pelo seu fazer, a objetividade de sua subjetividade, a materialização de seu próprio mundo estético. Aí, Fiaminghi rompe com os marcos da arte concreta: a composição e as formas geométricas principais, minimalistas e seriadas, sem deixar de ser concreto enquanto materialização, e sempre abstrato. Manteve a ordem da estrutura como espinha dorsal, após sua catástrofe ou a derrocada que tende ao caos, mas, ao mesmo tempo, decompôs os limites das formas, antes hard edge, agora no edge, como se praticasse a erosão da forma. Trocou as superfícies chapadas das cores pela inscrição da pincelada. Metamorfoseou a cor opaca pela transparência da têmpera. Mais do que isso: passou a pintar sem medo do futuro, sem um projeto inicial. Nenhum quadro da corluz foi precedido de estudos. Fiaminghi iniciava as telas sem esboços ou hipóteses. Tinha apenas um deslumbre, mais do que um vislumbre. Porém, não operava como um artista informal ou tachista. Sem estrutura inicial, buscava a desconstrução de sua estrutura final, aquela que resultaria de um compor e decompor, à medida que a tela fosse se completando, com acasos e erros a incorporar. É a pintura em si, essência imanente, conceito de sua materialidade que expressará e realizará a mediação de sua subjetividade.
25 Ibidem, 1996, p. 130.
Se antes Fiaminghi havia determinado a estrutura e a verdade da obra nela mesma, na série Corluz a estrutura se desconstrói através do gesto da cor, se despinta, enigmática, nunca se deixa saber como representação de algo. Essa prática é um movimento inverso: ao mesmo tempo que realiza a totalidade, desrealiza a parte, como uma constelação, na metáfora de Adorno, ou como um pêndulo, não aquele que vai e vem, mas aquele que revela, desvela e vela ao mesmo tempo.
Em resposta à questão “O que é a corluz?”, Fiaminghi escreveu em 1995, em uma nota manuscrita que configura um dos poucos depoimentos dele a respeito do próprio trabalho.
Esses foram anos diferentes na minha pintura, houve um projeto que me motivou. Não quero dizer que todas as obras que fiz nesse período tenham sido boas, mas foi um grande aprendizado. Essas telas, além de parte de minha obra, significam também uma evolução; apesar de terem me proporcionado quadros de que não gosto muito, esses anos de trabalho me trouxeram quadros novíssimos.
A unidade desse trabalho é a corluz, o uso da cor que venho fazendo desde há muito. Quando comecei a trabalhar como litógrafo, separava intuitivamente as camadas de cores que deveriam ser impressas, e com esse procedimento me acostumei a ver a cor como resultado da união de diversos matizes sobrepostos. Esse aprendizado acompanhou-me por toda a obra, é o elo entre meus trabalhos atuais. Não foram tempos fáceis, cada quadro implicou muitas tentativas e recusas. Tratei de ir buscar o que pode ocorrer de novo, e não adianta querer repetir num outro quadro uma boa pincelada que descobri; as pinceladas não se repetem. Essa sensibilidade não se repete; consigo até fazer outra melhor, mas não aquela. A sensibilidade que gerou uma imagem não pode ser repetida (ou ressentida) para a criação de outra imagem, isso a gente só aprende fazendo. Embora não faça anteprojeto, tem sempre um pensamento e uma imagem que você imagina e grava. Todo quadro que faço rapidamente é bom, eu não me perco no caminho, não tenho muitos altos e baixos.
Às vezes não sei onde vai dar, tenho uma imagem geral, um sonho pensado, mas quando começo a pintar nem tudo sai na mão. Preciso do quadro semirrealizado, mas não sei como terminar. Sento e olho. Olho. Olho… Até surgir uma informação, e ela surge, porque tenho formas no quadro que dizem o que devo fazer.
Minha pintura, quando é espontânea, é melhor; e não é uma questão de tempo. Ainda mais que não faço estudo nenhum… Quando vejo que não há espontaneidade, eu não gosto do quadro; retomar aqui e ali me desgasta.
Gosto de quadro que me dê opção de obra, não gosto de quadro que é ele só, começa e se encerra nele.
A palavra “corluz” tem origem etimológica simples: a cor que é luz, ou a cor luminosa. Por outro lado, Fiaminghi a definiu como “fusão e difusão da cor por incidência da luz”. Integrava-se à tendência de cientificar a arte. Típica dos anos 1950, a exemplo do uso das palavras gestalt, para designar os artistas concretos, e op art, de optical. Deve-se entender essa origem histórica como tentativa de pensar a pintura como um efeito ótico, simples explicação de não especialistas para amadores. Há que ver mais a fundo. A corluz não é um simples fenômeno visual, como se fosse um objeto da física ou da psicologia. Essa é apenas a sua realidade superficial, um pretexto. A corluz interessa enquanto um modo de ser da obra de arte, aquela que Fiaminghi produziu.
Sob esse aspecto, a pintura corluz é um fenômeno estético que apenas se origina no fenômeno ótico corluz. Fornece a energia inicial para a subjetividade de Fiaminghi impulsionar a realização da obra de arte. A partir de sua conclusão, com a existência plena da obra, acabada, a simplicidade do objeto físico passa a ter uma complexidade estética, um salto qualitativo, da finitude física à infinitude da obra de arte.
A arte é indefinidamente complexa, como nos ensinou Adorno: não pode ser resolvida por uma “única máxima”26 . A arte espera que sua explicação seja extraída das próprias obras de arte, e não de um discurso exterior. Porém, imitar a natureza não lhe bastava, e nem era isso que ele ambicionava. Esse esforço mimético foi apenas a energia inicial, uma vontade primordial, anterior à produção das obras. Seguiu-se a concentração estética, a verdadeira produção da obra de arte, no sentido de ir além da natureza, de suas eficiências e deficiências. Fiaminghi buscava ver e mostrar, transformar a percepção da natureza e, portanto, da pintura. Trabalhava para transformar a mudez da natureza em eloquência, um esforço paradoxal e, por isso mesmo, matriz de obras de arte.
Fiaminghi sabia, e realizava as obras de arte “como aparições, e não como cópias […] Alguma coisa que aparece, não uma aparência cega […] alguma coisa como outra coisa”27
Fiaminghi foi genial em encontrar a resposta à pergunta “O que é a corluz?” pela própria pintura – e não através de um discurso verbal –, como prática estética, um comportamento expresso por obras de arte, cuja essência material é a forma pictórica, completa e singular, oposta a um conteúdo verbal, abstrato e universal. Mostra que a aparência é a essência nas obras de arte. Pela pintura da aparência, revela-se a essência da pintura. É o que faz Fiaminghi: ao pintar a série Corluz, realiza a essência da pintura, não como representação, mas como a própria apresentação. Cria a realidade estética, diferente da realidade física. Aquela que objetiva conceitos e cristaliza julgamentos subjetivos – determinantes e indeterminantes, simultaneamente.
A corluz implode e dissolve a realidade física: a cor deixa de ser um efeito da reflexão da luz e passa a ser a mimese da emissão da luz, da luminosidade. Como isso acontece? Eis o enigma da obra de arte.
O fenômeno corluz não é transparente como tal, está sempre em permanente processo de diferenciação; é impossível isolá-lo e descrevê-lo pela observação experimental. Não porque o observador o altera, como na física quântica, mas porque o artista altera o objeto antes que ele venha a existir. “A zona de indeterminação entre o inacessível e o realizável constitui o seu enigma. Tem e não tem o conteúdo de verdade”28
A corluz, pelo contrário, é a antítese da luminosidade, a plenitude da cor enquanto reflexão da luz. É o artista trabalhando em contínua negação do real.
26 Ibidem, p. 313.
27 Ibidem, p. 86.
“Todo o ‘fazer’ da arte é um esforço único para dizer o que não seria o ‘fabricado’ em si mesmo e o que a arte não sabe: é justamente o seu espírito”29. A arte não afirma, a arte nega.