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O SURGIMENTO DO PINTOR

O branco, a cor nenhuma, marca a pré-infância de Fiaminghi, nascido em 1920. Na Revolução do Isidoro1, a cidade do menino, São Paulo, e seu bairro, o Canindé, acordaram brancos. Os saques aos armazéns de farinha resultaram em uma espécie de lençol dessa cor cobrindo tudo. Nessa mesma época, o moleque pintara as calçadas com a brocha e a tinta compradas para pintar a casa. A repreensão do pai veio logo: “Desperdício! Gastar a tinta para fazer arte!”. Assim, o branco, a não cor, era o mundo das sombras: os saqueadores, as explosões dos obuses, a bronca do pai.

Para o pai de Hermelindo, Calixto, filho de imigrantes, a arte sempre se arriscava a ser uma atividade inútil. Só era aceitável se fosse uma fonte de renda, como no caso de sua profissão: “fachadista”, ou mestre de fachadas, no Liceu de Artes e Ofícios. As plantas de suas obras deslumbravam Fiaminghi. Poderíamos dizer que ele investiria sua vida para provar ao pai que fazer arte não é gastar tinta, não é algo inútil.

Fiaminghi descobriu as cores e o pintar ainda criança, com pouco mais de 7 anos, quando foi morar na Lapa, na rua Espártaco, próximo à Companhia Melhoramentos, uma das maiores gráficas de São Paulo. Andando pelas redondezas, encontrou os restos de tintas litográficas da empresa, que eram jogados em um buraco, atrás do prédio. Passou a buscá-los em caixas de fósforos, para pintar. Mais tarde, já amigo dos funcionários da gráfica, pegava as sobras das tintas diretamente das máquinas impressoras.

Alguns anos depois, em 1936, ingressou na Melhoramentos como aprendiz de litografia2 artesanal, “cromista”, como se designava naquela época. Seus olhos iriam se capacitar para “desler”3 o real.

O ofício guardava muito das origens de sua pintura. O litógrafo artesanal fazia o que hoje fazem os scanners eletrônicos. A partir de uma imagem original, ele separava as cores em diversas pedras de impressão, seguindo o método de Senefelder, a cromolitografia. Assim, os olhos de Fiaminghi foram treinados para decompor uma cor em matizes a serem sobrepostas na impressão, para reproduzir a imagem original. As áreas de cores chapadas ou reticuladas por pontos eram aplicadas manualmente, por meio do controle sensível, sem ajuda de instrumento algum. Esse exercício para criar o avesso da imagem gerou uma das principais forças da visualidade do artista.

2 A litografia é o exercício de decompor cores na mente e na pedra para depois recompor na sobreposição de matizes.

Ainda em 1936, Fiaminghi percebeu a necessidade de aprender a desenhar. Além de copiar, queria criar as suas próprias imagens. Frequentou, então, por seis meses, o curso de Giglio, professor de desenho e pintor de porcelana. Nesse período, descobriu o trabalho de um pintor acadêmico, alguém como Porbus, a personagem de Balzac em A obra-prima ignorada: João Oppido, morador da rua Duílio, que vivia em uma casa oposta à sua, também litógrafo da Companhia Melhoramentos. Fiaminghi passava em frente à residência do vizinho ao ir às aulas noturnas de desenho com Giglio e observava Oppido trabalhando em suas aquarelas. Até que este deixou a Melhoramentos para se dedicar exclusivamente ao ofício de pintor.

O exemplo de Oppido foi uma iluminação transformadora para o jovem Fiaminghi, suficiente para até mesmo colocar em dúvida a certeza do “empregão” na Melhoramentos: “Achei que podia fazer o que ele fazia… Por causa dele é que comecei a pintar”4

No mesmo ano, iniciou a formação como artista-pintor. Ingressou no curso noturno do Liceu de Artes e

4 Todas as citações de depoimentos de Fiaminghi foram extraídas do livro: Isabella Cabral & M. A. Amaral Rezende, Hermelindo Fiaminghi, São Paulo: Edusp, 1998.

Ofícios, onde estudou desenho, escultura e arquitetura. As disciplinas eram desenho artístico (fazer cópias de Michelangelo), anatomia, perspectiva, xilogravura, gravura em metal, geometria e geometria descritiva. Enquanto muitos aprendizes de pintura apenas copiavam, Fiaminghi desenvolveu uma postura mental diferente: a de ver através da imagem para encontrar a sua essência. Não a essência conceitual, expressa pelo discurso verbal, mas a que se registra como forma visual, como o modo de pensar intrínseco ao pintor. Essa preocupação marcará o trabalho estético de Fiaminghi ao longo de toda sua vida: uma interrogação permanente sobre o que é a essência de sua arte, origem e fim da pintura.

Tal visão se conformava por uma outra disciplina: a geometria descritiva. “A base da geometria descritiva é que me levou à arte concreta”, reconheceu mais tarde. Mais do que o desenho, matéria ministrada pelo português Waldemar da Costa, um pós-vanguardista de 1910-1930. Com ele, aprendeu o rigor da representação que sempre perseguiu, inclusive na qualidade de execução própria ao desenhista técnico. Somando o virtuosismo da reprodução das imagens com a base intelectual da geometria, Fiaminghi dava a si mesmo uma nova autodignidade. Como se conhecesse o ensinamento de Alberti, escrito séculos antes, em 1425:

“Faço o voto de que o pintor, tanto quanto possível, seja sábio em todas as artes liberais, mas desejo, antes de mais nada, que seja hábil em geometria […] aquele que ignora a geometria não será jamais um bom pintor”5

Waldemar da Costa transmitiu a Fiaminghi os modos de ser e de pintar dos impressionistas e pós-impressionistas que trouxera de Paris, ainda que tardiamente: Monet, Cézanne e Van Gogh, aqueles que viriam a ser os ídolos de Fiaminghi. Este seguiu o exemplo dos colegas e saiu para pintar a natureza, buscando as paisagens dos arredores da cidade, a Freguesia do Ó, o Canindé e as margens do rio Tietê. Eram paisagens quase bucólicas, campos à beira d’água, com canoas, edifícios no horizonte e postes de fiação elétrica.

Fiaminghi não precisou cumprir os degraus entre impressionismo, cubismo, expressionismo e abstracionismo típicos dos pintores brasileiros das primeiras décadas do século XX, nem viveu a pintura como uma válvula de escape para as emoções, angústias ou projetos políticos. Ela já lhe surgiu como uma prática estética em si.

Na Galeria Itá, em 1940, visitou a II Exposição Francesa, sempre levado por Waldemar da Costa, que ali ministrou um curso de história da arte. “Essa Exposição Francesa me marcou espetacularmente… Picasso com as fases azul e rosa”, lembrou-se. Em 1941, Fiaminghi concluiu a formação no Liceu de Artes e Ofícios, mas não foi nem buscar o diploma. Abandonou o curso de Waldemar da Costa e decidiu seguir a profissão de litógrafo. “Saí porque não achava que ia ganhar a vida com pintura. Largava, parava, fui, parei…” Não poderia ter agido diferente. Se hoje é difícil sobreviver da pintura e conseguir reconhecimento social, naquela época era quase impossível. “Pintor não tem grana para sustentar família”, me dizia Fiaminghi. Arte era coisa de ricos ou de miseráveis.

Aos 21 anos, fez “um balanço de consciência e de vida”. Na Melhoramentos, atingiu a posição de litógrafo oficial. E aceitou a oferta de 120 mil réis por mês para trabalhar no ateliê da litografia Benasatto, “um ateliê famoso na época. Todo cara que tinha passado por lá ia trabalhar de cartola”.

A opção foi radical. Afastou-se também de Lothar Charoux, amigo de muitos anos. Jogou o equipamento e o material de pintura no rio e assumiu-se como arrimo de família. “Ganhava três vezes o que meu pai ganhava.” Mas essa condição era algo angustiante. “Comecei a pintar muito cedo. Sempre estive voltado para ser pintor, mas não acreditava que podia sê-lo. Fazia no sentido de hobby, fazia algumas paisagens, ao mesmo tempo que desenvolvia o trabalho da gráfica.”

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, Fiaminghi reforçou sua opção por uma atividade economicamente mais rentável. Em 1946, decidiu virar seu próprio patrão: abriu a Graphstudio Ltda. Antevendo o fim da litografia como técnica de impressão comercial, substituída pelos fotolitos e pelo offset, optou pela produção gráfica e tornou-se diagramador. Fez ilustração e paginação e chegou à publicidade. No final de 1948, como um ambicioso jovem de negócios, Fiaminghi vendeu a Graphstudio aos sócios e entrou na Lintas, a agência de publicidade da Gessy Lever, antigo nome da Unilever, para ocupar uma importante posição: diretor de arte responsável pelo estúdio. No ano anterior, havia sido inaugurado o Museu de Arte de São Paulo (Masp), grande divisor de águas da cultura paulista, abrindo para a modernidade uma cidade industrial que se queria menos provinciana. Fiaminghi não foi à abertura do Masp, por desinteresse. Tampouco visitou a Galeria Domus, criada também em 1947, a primeira dedicada à arte moderna em São Paulo. Também não foi à exposição 19 pintores, no mesmo ano, na Galeria Prestes Maia, que reuniu Charoux, Maria Leontina, Sacilotto e muitos outros jovens artistas, e atraiu milhares de visitantes. Tal era a sua vontade de afastar-se da pintura.

Durante a Segunda Guerra, as indústrias paulistas aumentaram a produção para atender a demanda local, acelerando o processo de substituição de importações. Assim, teve início a era do consumo, cuja consequência foi o desenvolvimento da publicidade e da comunicação de massa. O trabalho de Fiaminghi ganhou mercado a ponto de alterar o sentido de sua vida e minimizar a importância da pintura nela.

Foi na Lintas que conheceu Joaquim Alves, que o estimulou a voltar à pintura. Saíam regularmente para desenhar os tipos das ruas de São Paulo, no Jardim da Luz e no Mercado Municipal. “Instantâneos de rua”, diria. Mas essa era sempre uma atividade de fim de semana. Nessa época, Fiaminghi já namorava Mercedes Ribeiro da Silva, sua futura esposa e companheira de toda a vida. As descrições de Joaquim Alves entusiasmaram Fiaminghi a conhecer São Sebastião, no litoral norte do estado. Quando Mercedes aceitou o convite para anteciparem o casamento, aproveitou as férias da Lintas e os dois desceram a serra para passar dois meses no litoral. Em São Sebastião, foi sedução à primeira vista. Voltou a pintar e decidiu se estabelecer por lá. Pintou três telas, que o tempo consumiu, com as quais presenteou amigos. Esse impacto, somado à morte de sua irmã, Lydia, em maio de 1950, o levou a contestar, pela primeira vez, o sentido de um emprego alienante, ainda que bem remunerado. Permaneceu na Lintas porque cedeu à pressão de seus patrões. Lá conheceu um dos futuros membros do Grupo Ruptura 6 , Leopold Haar, designer e artista construtivo de origem polonesa. Este lhe apresentou a pintura construtiva –Malevich, Pevsner, Moholy-Nagy, os neoplasticistas, Kandinsky e até mesmo representantes da nascente pintura concreta, como Max Bill. Mais do que uma nova visão da pintura, recebeu valores transfiguradores: o sentido do “novo”, disciplina e clareza, ordem e movimento, sistema, “fatores que correspondem ao espírito do tempo”7

Foi na prática da criação publicitária que Fiaminghi encontrou os vetores de sua linguagem futura. Por encomenda de Leopold Haar, em 1951 criou a capa do catálogo da Escola de Propaganda do Masp 8, identificada por Haar como “arte construtiva”. De fato, era uma obra serial, com organização visual de módulos curvos e retangulares, duas cores, preto e branco, sobre um fundo amarelo ocre, uma coluna quase vertical, em movimento integrado, de cima para baixo, decompondo o título em suas divisões e subdivisões.

A peça, ainda que utilitária, não artística, marca o reencontro de Fiaminghi com a pintura e, mais do que isso, a sua decisão pela pintura como propósito

6 Em dezembro de 1952, foi inaugurada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) a exposição Ruptura, que marcou o início oficial da arte concreta no Brasil. Tal mostra foi concebida e organizada por um grupo de sete artistas, conhecido como Grupo Ruptura. [N.E.]

7 Leopold Haar, “Práticas novas”, Habitat, São Paulo: 1951, n. 5.

8 Atualmente, corresponde à Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo. [N.E.] de vida. “Achei que tinha chegado a hora de fazer pintura”, concluiu. Essa decisão interior se confirmou nas conversas com Leopold Haar, Waldemar da Costa e Lothar Charoux, que tinha como projeto de vida a pintura abstrata com viés construtivo.

Em 1951, ano dessa metamorfose, o micromundo da arte paulista vivia uma euforia de eventos. Em março, aconteceu a exposição de Max Bill no Masp, organizada por Pietro Maria Bardi. A arte concreta nascia, articulada pelo manifesto do Grupo Ruptura, substituindo a simples arte abstrata, e ganhava visibilidade com a premiação da obra Unidade tripartida, de Max Bill, no Grande Prêmio da I Bienal, em outubro.

Fiaminghi voltou a frequentar o ateliê de Waldemar da Costa. Tomou impulso e, em abril de 1952, pediu demissão da agência Lintas. Foi quando passou a viver o sonho de ser pintor, somente pintor, com dedicação exclusiva à pintura, misto de ousadia e ingenuidade, sem real possibilidade de concretização. Isso porque, em São Paulo, nesses anos, não havia mercado de arte para viabilizar a sobrevivência de um artista pela venda de obras figurativas, desconsiderando as encomendas oficiais. Assim, em julho de 1952, Fiaminghi assumiu um emprego, de meio período, como desenhista na loja Sensação Modas, para garantir a sua sobrevivência e ainda ter tempo para pintar. Dois dias na semana, passava meio período no ateliê de Waldemar da Costa. No final de 1952, pintou sua obra de ruptura, Mulher sentada, sua última tela figurativa. Mesmo com o incentivo de Waldemar da Costa, não quis enviá-la à Bienal de São Paulo. “Não, essa eu não quero mandar. Não é isso que quero mostrar na Bienal… Não é assim que quero ser visto”, dizia. “Se até aquela idade ainda não tinha participado de nenhuma exposição, quando participasse tinha de ser pra valer. Eu sabia o que queria. Precisava encontrar a obra que me desse o caminho. Não queria ser pintor a qualquer custo.” Fiaminghi tinha pavor de ser visto como artista acadêmico ou como impressionista.