Peixe-palavra (poesia caiçara) - Domingos Santos

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Domingos Santos

PEIXE-PALAVRA (POESIAS CAIÇARAS)

Edições Caiçaras São Vicente /SP


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© Domingos Santos

Capa, projeto gráfico, diagramação e editoração: Márcio Barreto Conselho Editorial Alessandro Atanes Flávio Viegas Amoreira Marcelo Ariel

Santos, Domingos Peixe-palavra / Domingos Fábio dos Santos – São Vicente: Edições Caiçaras, 2012. 76p. 1. Poesia brasileira I. Título Impresso no Brasil

2012 Edições Caiçaras Rua Benedito Calixto, 139 / 71 – Centro São Vicente - SP - 11320-070 www.edicoescaicaras.blogspot.com mb-4@ig.com.br 13-34674387 / 13-91746212


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Abaetê Tupi Onde foi parar o tamoio que morava aqui? Parte fugiu para o norte e parte continua nos costumes, nas técnicas de pesca e de agricultura, nos nomes das plantas, de animais, de lugares e no sangue dos caiçaras. Minha avó dizia: esse curumim tá muito aíbo, só come um cuí de comida. Quem for tupinambá que entenda.

Maneco Almiro Porque toda pessoa tem que ser um artista, Maneco Almiro empunhou uma rabeca que trocou por um leitão e tornou-se um astro da Folia de Reis. Também era fogueteiro entusiástico na festa do padroeiro São João Batista. Acho que foram as suas bombas que espantaram os anjinhos que zelavam pelos pescadores da Praia da Fortaleza.

Aldeia Global Meu avô colhia café, banana e feijão, que rendiam arroz, carne de charque e pilhas pro rádio de ondas curtas


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que captava a rádio tupi e a rádio globo-bo-bo do Rio de Janeiro.

Vovó Eugênia A fumaça do fogão a lenha de avó Eugênia, defumava peixes, caças caibros, ripas, telhados e nós cada vez mais curtidos.

Belvedere Não havia lugar para nós na praia, por isso fomos morar no morro de onde se podia avistar toda a baía da Fortaleza, o parcel do Mar Virado, a coreografia dos botos, o frio vindo do sul, a Ilha Vitória e os navios que deixavam sinais de fumaça antes de se perderem no horizonte.

Praia da Fortaleza Uma casa de pau-a-pique no morro, uma grande pedra no quintal, um menino na pedra.


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No céu, uma ciranda de urubus, com um ou outro alcatraz intrometido, comemorando a luz e o calor do sol. Uma casa de pau-a-pique no morro, uma grande pedra no quintal, um menino nas nuvens.

Dicionário de Dona Eugênia Córrego é córgo, quarto é camarinha, luz é lúmen, chama é luzerna, enjôo é fastio, sonolência é quebranto, salgado é sapreso e há poucos instantes é dejahoje.

Inventário de meus avós maternos Tem bananal que sobe e desce morros, pomar de todas as frutas, casa de telhas de barro feitas nas coxas, sala de chão assoalhado de dançar a chiba e fazer o baile, rádio de ondas curtas pra pegar todas as emissoras do planeta na antena de fio de cobre instalada sobre o telhado.


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Na cozinha tem farinha no barril e muitos quilos de sal guardados sob o calor do fogão à lenha. Têm casa de farinha com roda de ralar, prensa de fuso, cocho, gamelas de madeira e forno com tacho de cobre, pra deixar a farinha torradinha, farinha boa, farinha da terra. No quintal tem café secando ao sol, peixes secando no jirau, dezenas de galinhas, patos e alguns perus. Suíno não podia porque era pecado comer carne de porco na casa de meus avós.

O time da nossa praia Os jovens jogavam futebol de praia no domingo de manhã, porque de tarde havia missa. O dia ainda estava claro e o badalo batia bão balalão, igualzinho ao sino de Manuel Bandeira. E todo mundo se dirigia à igreja para conversar, se informar, rezar e cantar, especialmente para Santa Maria, Mãe de Deus: Ave, Ave, Ave Maria ...


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Ai de quem não fosse à Missa, ai de quem se portasse como incréu, na partida seguinte perderia a vaga no time e no céu.

Bem-aventuranças Desde pequeno eu pude sentir o cheiro do mar trazido pelo vento leste, o gosto do coentro bravo no caldo de peixe com banana verde, o sabor do biju de farinha assado na hora e o sabor do limão cravo e da alfavaca no cação refogado. E não há nada que apague de minha memória o aroma da banana assada no fogão a lenha, do café torrado na panela de ferro e da batata doce preparada na fogueira de São João, padroeiro da Praia de Fortaleza.

História de Pescador Por ilusão de ótica ou excesso de poesia, Tio Tonico, por um momento, pensou ter colhido a Lua nas malhas do picaré.


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Nhonhô Almiro As mamangavas cantavam música de ninar para meu bisavô, enquanto escavavam tocas nas paredes de pau-a-pique. E debaixo do assoalho uma família de lagartos morava e ainda mora. Quem quiser que vá ver lá na praia da Fortaleza enquanto a casa, pobrezinha, maltratada e em ruínas ainda resiste em pé, igual à imagem que restou, após 35 anos, de meu saudoso bisavô.

Mar nosso A casa de meus avós navegava em um mar de bananeiras, cuja chaminé soltava rolos de fumaça com cheiro de pirão de peixe. A casa de meus avós era uma embarcação no oceano do bananal, só percebida pela bandeira do padroeiro São João no mastro principal. A casa de meus avós era um barco cercado de bananeiras


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por todos os lados, que quase ia a pique em tempo de monção, sob as vagas das folhagens em furiosa agitação.

Domingo de 1975 A trilha sonora das aves canoras em abertura triunfal inauguram o domingo que será magistral, de céu azul-marinho sobre o mar celeste, de jogo de bola na areia da praia, de belas banhistas para alegria das vistas, de brisa marinha, de missa matutina, para absolvição dos poucos pecados que há por esses lados.

Lição do mar Tem dias que o vento sul transtornado em tormenta ruge entre os brandais e obriga o capitão a orçar a embarcação, porque no mar, assim como na vida,


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às vezes é preciso cambar para não naufragar.

Casa de caiçara Houve um tempo em que minha casa era de pau-a-pique sobre o oceano e eu era muito rico, porque maravilhas aconteciam sob a minha janela: os botos brincavam de pega-pega na Baía da Fortaleza, as fragatas planavam ao sopro do vento leste, a Ilha Vitória aparecia e desaparecia conforme as condições do tempo, os barcos faziam complicadas manobras para atracar ou para zarpar, muralhas de nuvens erguiam-se sobre a Ilha Bela anunciando a frente fria e nenhum dia era igual ao outro. As janelas da minha casa, naquela época não sabia, abriam-se para a poesia.


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História do Mano Grande Tia Ana da Fortaleza contou-me que seu avô, Manoel Alves Barreto, Conhecido por Mano Grande da Praia Brava, andava por todo lugar e a fé testemunhava com sua escritura sagrada, até que em dia de pesca sua fé foi provada com a canoa emborcada em pleno mar-virado. Ele e João de Deus acabaram arrastados junto com a embarcação para a morte no costão da Praia da Caçandoca. Foi aí que Mano Grande apelou pra Nossa Senhora Aparecida, que mandou um boto que resgatou suas vidas, ainda que meios rotos. Depois, em trajes de pesca, fizeram a prometida peregrinação para Aparecida do Norte, em agradecimento e devoção à Santa que os livrou da morte.

Modéstia Sou, modéstia à parte, caiçara, da alta gastronomia, da ostra com limão,


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do mexilhão na caldeirada, da lagosta assada, do pirão de garoupa, do caviar de tainha salgado e seco ao sol e posto para ser assado nas brasas do fogão à lenha. Quem tem juízo que prove o gostinho do passado.

O mercador Uma vez por mês chegava o mascate que abria seu baú para revelar cortes de panos, fitas, lenços, enfeites, roupinhas de crianças, que toda mulher podia comprar pela facilidade do crediário na caderneta do libanês, que todo mundo tratava por turco. Um verdadeiro fenício desempenhando seu ofício.

Casa de Tia Maria da Barra Casal emoldurado, flâmula do Santos Futebol Clube,


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santo com cordeiro aos ombros, rádio de válvulas irradiando estática... Que nada, é chiado de marimbondo construindo toca na parede de pau-a-pique.

Tia Joana A casa de pau-a-pique de Tia Joana, escorada pra não cair ao sopro do vento leste, era cercada por um jardim dos jasmins mais cheirosos, de beijos de todos os feitios, de brincos de todas as princesas, de rosas de todas as cores, de campânulas aos quatro ventos, que Tia Joana colhia e ajeitava em ramalhetes para enfeitar o altar da igrejinha da Praia da Fortaleza, para alegrar São João Batista que nunca teve tanta riqueza.

O barco santense Há mais de cinqüenta anos o barco Santense ancorava em Ubatuba para carregar laranja, banana,


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farinha de mandioca, peixe seco, cachaça e um ou outro ubatubense em demanda da aventura e agitação do porto de Santos, em busca de sal para temperar a vida em demasia normal.

Lista de compras José Almiro, meu avô, remou sete quilômetros para embarcar no Expresso Rodoviário Atlântico, viajou mais trinta quilômetros até chegar na Vila de Ubatuba e, pela ordem, benzeu-se na igreja matriz, pagou o Souza da Casa Souza, bebeu cachaça no Bar São Paulo e comprou no armazém do Maciel sal, arroz, carne seca, queijo do reino, macarrão padre-nosso, pinga ubatubana, balas paulistinha para nós, crianças e mais nada, que o resto ele plantava, pescava ou criava.


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Revolta Um dos meus antepassados quando se viu obrigado por ordem de Bernardo José de Lorena, Capitão Geral da Província, a fazer comércio com o porto de Santos pela metade do que valiam os seus produtos, resolveu devolver a fazenda pro mato e se tornou caipora.

Seu Juquinha das ervas Houve um tempo em que a ceifadeira destruía vilas inteiras e a morte escondia-se no acidente, na tosse da criança, na peçonha da serpente. Era o tempo em que não havia medicina e o mais sábio curandeiro tinha a farmácia no terreiro.

Recado das ondas Em uma lasca de madeira


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da proa de um barco, encontrada na areia da praia, pode ser lido um drama de tempestade e naufrágio, que uma criança achou, acertou os lados com um canivete, por mastro fincou um graveto, esticou um velame de brinquedo e devolveu às ondas, muito agradecido pelo recado recebido.

Rogé Rogé Mesquita vendia sardinha, bebia cachaça, comia farinha, fazia graça, cantava modinha, não tinha morada nem namorada. Atravessou incólume Muito trecho de mar e acabou naufragado na porta de um bar.

Morro do tatu Tem um lugar na mata esconderijo dos bichos de onde, de vez em quando, salta onça, corre tamanduá, pula veado


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e cachorro-do-mato e mato.

Boitatá Que fenômeno salta na rocha e tremeluz feito tocha? Que espécie de luzerna corre sobre o mar sem se apagar? Que tipo de bicho põe fogo no rabicho só pra nos assustar?

Recordações de 1970 Cuia de cabaça pra comer farinha, moinho de torrar café na borda da mesa, São João Batista com um cordeirinho aos ombros, esteira de taboa pro descanso do corpo, lampião de pavio espalhando luz e sombras e rádio de válvulas irradiando desinformações pela voz do Brasil.


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Protesto caiçara Vós, com tanta riqueza, porque quereis o que basta para manter minha pobreza? Vós, da eterna insatisfação, porque quereis tirar minha paz e minha certeza? Vós, do reino da tristeza, porque quereis furtar minha alegria e minha beleza? Vós, com tantas terras, porque quereis meu pedacinho de céu, meu ranchinho à beira-mar, as terras do meu avô, minha escola e meu diploma do ofício de pescador?

Nos tempos dos candeeiros Após o canto do galo que assinalava o fim do domínio das trevas, após um café forte feito por Tia Maria no fogão a lenha, Tio Genésio rolava a canoa e enfrentava o mar em quatro horas de remo e vela traquete até à Ilha Vitória, para pescar caçoa, da caçoa tirar o fígado, do fígado extrair o óleo que depois era transformado,


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milagre da medicina, em óleo de fígado de bacalhau fonte de muita vitamina e cura pra todo mal.

Café de garapa com farinha de mandioca Meu avô plantava café para depois secar, peneirar e torrar. Plantava cana de açúcar, para cortar, moer e fazer garapa. Plantava mandioca, pra ralar, prensar, torrar e fazer farinha que com garapa e café, até hoje dá sustância para meus versos e minha fé.

Festa na Praia Há mais de trinta anos os cantores da folia do Divino faziam pouso na casa de Tio Genésio, para reabastecer a força e a fé no escaldado de peixe feito por Tia Maria. Até hoje não esqueci o estribilho da saudação que a gente parodiava: - “Quero café com farinha de milhoooo... Café com pão!


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Café com pão! Café com pão!”

Eternidade O armazém do Bananinha, a mercearia do Maciel, o bar São Paulo, a pensão do Maestro, e a casa Souza, morreram junto com seus donos. Por isso Tio Antonio desistiu da cidade e enfurnou-se no Sertão e na perenidade da mata, do rio, do matacão.

Canoa de Zé Almiro Peixe, padre, galinha, banana, defunto, farinha... Meu avô carregava o mundo na canoa.

Canoa de voga Os de pé fiquem sentados, os de fé


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a Deus voltados, que o vento sul está atravessado no boqueirão do Mar Virado.

Casa de Tio Clemente De frente para o mar tinha uma casinha pintada de cal e pela porta da frente o sol nascia para lembrar ao pescador a hora de visitar a rede de tresmalhos. Meu parente faleceu, a porta foi fechada e o sol da nossa praia buscou outra entrada.

Recados do vento leste Às vezes o vento leste traz aos nossos ouvidos, em permeio ao clamor da arrebentação das ondas e das canções de marinheiros de longitudes orientais, cá para a América, ecos distantes das antigas vozes d’África.


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Sambaqui As camadas mais antigas do sambaqui lá de casa têm ossos de peixes, pontas de flechas, conchas de moluscos, restos de cerâmica, carapaças de tartarugas, uma tíbia aqui, um fêmur acolá. Depois apareceram elmo de pero, dentes de perro, bala de canhão, perneiras de couro, baú de latão e mapa do tesouro. No meio têm moinho de café, caixa de rapé, bilhas de cachaça, cuia de cabaça, um pavilhão verde-amarelo. Logo após vieram válvulas de rádio, revista manchete, latas de manteiga viação, de queijo do reino, cordas de violão, ovo de indez e, assim, era uma vez.


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Espírito de Menino Sebastião Almiro dos Santos encheu um balaio de caranguejos na costeira do Bonete e no caminho de volta, na trilha da Fortaleza, avistou uma gaiola de alçapão e resolveu soltar os passarinhos da prisão. Em troca deixou guaiá espumando de espanto a sete braças do chão.

O sumiço da canoa Na praia da Fortaleza Seu Cândido saiu pra pescar na penumbra da madrugada. Só encontrou o rancho vazio e nada de embarcação e um espanto que aumentou ao ver sua canoa nos galhos da amendoeira a sete metros de altura, obra de uma cambada de corja sem remédio e sem cura: Toninho, Beto, João e, para sempre suspeito, o malasartes Tião.

Escola caiçara Jogo de miriguitos,


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captura de cafulas e tamanqueiras no rio. Feitura de gaiolas de alçapão, histórias de pescarias, colheita de café no quintal, puxada de rede, brincadeira de barcos de cortiça, encantamento de guaiás, pesca de siri com cruzeta e preguari no mergulho. Lições da escola caiçara que freqüentei quando criança e que ainda guardo na lembrança.

Que coá Até 1970 São Pedro vinha puxar rede com os caiçaras, rezar oração, remar canoa, desfiar timbopeva, fazer farinha, tramar balaio, contar causo, tocar viola, assoviar pro guaiá e, como falam os mais velhos, deixou uma saudade grande que coá.


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Nelson dos Santos Piloto do barco do Padre que levava e trazia o povo da região norte de Ubatuba, Tio Nelson controlava o leme e, ao mesmo tempo, a linha de pesca de corrico arrastada pela embarcação que fisgava sororoca, anchova, xaréu, guaraçuma, até o dia em que Tio Nelson fisgou e foi fisgado por uma professora bonitinha que ensinava o beabá para as crianças da Picinguaba e largou a vida do mar.

Os olhos tristes do Jubarte O padrinho de Tia Maria estava pescando no canto do Cambiá, quando emergiu o jubarte coladinho com sua canoa e quase matou o homem de susto ao ver-se refletido nos olhos imensos do mamífero gigante, de inexplicável tristeza, parecendo antever o futuro dos caiçaras da Fortaleza.


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Praia da Fortaleza de São João Batista Menino ainda eu subia o morro porque gostava de espiar do alto, a povoação da Fortaleza sob um tapete verde formado pelas copas dos tarumãs, timbuíbas, jaqueiras, laranjeiras entremeadas de muitas bananeiras. Aqui e ali um fio de fumaça de fogão a lenha a denunciar a presença humana. Mas o esconderijo não foi suficiente, e mesmo tão distante da cidade, mesmo sob as copas das árvores, mesmo disfarçando suas casas na natureza, os caiçaras da Fortaleza foram achados e intimados a ingressar no século XX e nunca mais viveram sossegados.

Antes do Progresso A simplicidade estava em voga, até as doenças eram simples, e as pessoas sofriam de quebranto,


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espinhela caída, paixão recolhida, defluxo, dor nas cadeiras e golpe de vento era cama na certa.

José Almiro Meu avô era rico com três canoas veteranas e uma rede de arrastar curtida na casca da aroeira pra não se estragar. Uma vez por semana tocava o búzio chamando companhia pra participar da pescaria. A rede era arriada distante algumas centenas de metros e quando a canoa aportava, homens, mulheres e crianças puxavam os cabos. Os mais velhos, ao experimentar o peso da rede, com antecedência se riam ou se lamentavam. Mas sempre tinha peixes bons, estrelas do mar, tartarugas, peixe-elétrico, caranguejos, camarões, baiacus para coçar a barriga só pra vê-los indignados encherem-se como balões.


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Nós que éramos pequeninos tínhamos a tarefa de salvar os filhotinhos devolvendo-os às ondas. Ao fim do trabalho procedia-se à partilha da mistura para os próximos dias. Todo dia de pescaria era dia de se maravilhar, porque a rede sempre trazia surpresas do fundo mar.

Alta gastronomia caiçara Pirão de peixe, ova de tainha seca ao sol e assada no fogão a lenha, a fruta cambucá, um pedaço escolhido da ventrecha da corvina, feijão feito por mamãe e maracujá roxo docinho, docinho.

Projeto de vida Quando crescer quero ser igual meu avô, que acordava de madrugada para trabalhar na pesca ou na roça, almoçava na hora certa, descansava na hora da sesta, na esteira,


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ou na rede, ou na cama, para a salvação do corpo e da alma. De tarde remendava rede, negociava banana e farinha, fazia balaios, tomava uma ou duas pinguinhas e a noite o encontrava dormindo com as galinhas.

Santo padroeiro São João Batista do Deserto de Israel de morada sob o céu, vem matar sua sede no Rio da Fortaleza. Retorne à capela de frente para a praia. Vem fazer o milagre de fazer recuar as águas e as páginas da história e consolar as mágoas trazendo quem foi embora. São João, só em sua solidão próximo do Rio Jordão, volte pra Fortaleza que aqui tem pirão. São João, santo judeu, volte pro lugar que por devoção já é seu.


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Antigos significados Os caiçaras mais velhos são analfabetos porque antigamente a leitura era outra, os signos eram outros. Liam-se os sinais do tempo no comportamento do mar, na direção do vento, na cor do pôr-do-sol. Liam-se as pessoas conforme o coração. Sabia-se das plantas conforme suas serventias e elas eram conhecidas pelos nomes como se fossem velhas amigas. Liam-se os animais pelos respectivos sinais, já os pássaros eram conhecidos principalmente pelos ouvidos. Cada pássaro com seu canto, cada vivente com seu encanto.

Escola do mar Crianças estão brincando de saltar ao mar, de jacaré nas ondas, de descobrir os segredos das águas profundas. Crianças estão brincando no estuário do rio,


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de capturar siri, de jogar tarrafa, de pescar parati. Crianças estão brincando de remar a canoa, de embicar a proa como se fosse adaga a cortar a vaga. Crianças estão brincando de cantar o cântico da vida que começa às margens do Atlântico.

Harmonia das criaturas A primeira notícia de um dia ensolarado mal brilhou no céu e os cantos dos galos começaram a divulgá-la para todos os moradores da Praia da Fortaleza: Bem forte, no quintal de Vovó Eugênia; à distância, na casa de Seu Dario; longínquo, no terreiro de Tio Clemente. E quase inaudível, tão baixinho que foi impossível ouvir até o fim, após ter atravessado três décadas, cantou o galo de Seu Joaquim.


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Sabedoria popular Estudei em muitas escolas, li muitos livros, aprendi a enfileirar palavras, a repetir a enciclopédia e fiquei muito prosa, até descobrir que Tia Aninha benzedeira, sem escrita, nem leitura, somente com suas orações, aprendeu a ler as pessoas e o estado de seus corações.

De volta pra casa O que eu gostei mesmo quando voltei de Santos, foi ser saudado pelos coqueiros de meu avô. E enquanto caminhei na estrada para nossa casinha, os acenos de saudação contagiaram toda a paisagem: as bananeiras, as laranjeiras, as árvores todas, as sempre-vivas, as sempre-lindas, até as roupas no varal me acenaram boas-vindas.


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Lição caiçara Saibam que inimizade de gente grande dura uma eternidade, mas briga de criança dura até ao próximo folguedo de jogar bola, empinar pipa, mergulhar no mar, fazer castelos de areia. E como está escrito que delas é o reino dos céus, Sebastião Almiro, caiçara, preferiu fazer artes e brincadeiras do que gastar o tempo em asneiras.

Lista de arrelás Bafo de onça, alvoroço de tiriba, bote de jararaca, susto de guariba, casa de jataí, sombra de carcará, música de mamangava, dança de tangará, grito de bugio, passo de saracura, pio de inhambu, vôo de tanajura, toca de tatu, canto de sabiá, luzes de vaga-lume, fagulhas de boitatá,


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Arrelá!

Rádio de válvulas O rádio de válvulas com fio de cobre esticado sobre o telhado, de Vovô José Almiro, captava as ondas hertzianas de Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Tonico e Tinoco, Pixinguinha, conversa de anjos e pios de passarinhos.

História de timbuíba O filho mais velho de um pescador cantou, comeu, bebeu, até rasgar os trajes da alegria e perceber que ali o vazio se escondia. Resolveu, então, consagrar a vida a Deus, e pedir, em constante oração, para virar timbuíba, fincar-se na terra, e resguardar os sentimentos de antigos e novos ventos.


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Quando meu avô ficou rico Meu avô ajuntou um dinheirinho com a venda de banana e farinha e trocou as tarimbas pelas camas, a tacuruba pelo fogão a lenha, as esteiras de taboa pelos colchões, comprou um rádio de válvulas, um verdadeiro requinte, e, com sessenta anos de atraso, pôs a família no século XX.

Chuva de verão O vento leste é ladino, chega de mansinho com modos de brisa e vai grimpando a Serra, acumulando cúmulos, sobrecarregando a atmosfera, até o primeiro relâmpago despertar a trovoada e fazer o céu vir abaixo em forma de enxurrada, que faz o córrego virar torrente, a torrente virar ribeirão, o ribeirão ficar valente e estourar a barra do rio junto à casa de Tio Clemente.

Lições caiçaras Foi com o tupinambá que meu antepassado


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aprendeu a fazer casa de barro pilado, de teto de sapé de imbé amarrado, no verão refrescado, no inverno aquecido. E depois da casa pronta acrescentou um toque de poesia ao fazer uso das taramelas para trancar portas e janelas.

Romantismo caiçara Quando meu bem me quis usou abricó como chamariz, me atraiu da outra margem do vau e ficou vigiando do jirau. Quando eu acheguei, procurando descobrir o que hoje sei, fez pontaria certeira e atingiu meu coração com espingarda cartucheira.

Moradia do tempo Qualquer golpe de vento, qualquer toque de anjo, qualquer canto de pássaro, qualquer raio de sol, qualquer gota de chuva, qualquer nota de viola, abre a taramela e escancara a janela


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do quarto onde mora minha memória e minha saudade.

Carta de Santos A bênção pai, a bênção mãe, espero que esta os encontre com saúde. Depois de carregar cargas e mais cargas de café, me tornei taifeiro, auxilio, oriento, recebo e despacho, navios e passageiros. Mas o que gosto mesmo É de ajudar as senhorinhas A descerem dos navios, algumas são tão delicadas, são tão leves ao desembarcar que ninguém acreditaria o quanto pesam nos meus pensamentos. Preciso me casar.

Navio fantasma Do rumo de meio-dia, cambando sobre as ondas, o veleiro veio de dentro do século XIX buscar pimenta-do-reino,


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café do Vale do Paraíba, farinha da terra, ouro das Minas Gerais, chegou tarde demais.

O lugar dos anjos Os anjos costumam visitar as capelas simplezinhas, nas praias isoladas, de paredes caiadas, para encontrar seus iguais: A menina de vestido de chita, a senhora que fala sozinha, as criancinhas que riem com as piscadelas que os anjos dão somente para elas e que fazem os padres ralharem irritados, espantando os anjinhos que fogem assustados.

Minha avó Dona Eugênia com grande ciência cuidava da casa, da horta, da fé, e dizia: - Sem oração não tem pirão.


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Sinos de minha infância Do alto das amendoeiras, do pico do corcovado, do vento sul encadeado, da República do Brasil, das bandas do mar virado, soa o sino dobrado, soa o sino festivo, soa o sino alarmado, soa o sino votivo: bém, belelém, bém... bão, balalão, bão... da Praia da Fortaleza, da capela de São João.

Sons de verão No marulho das ondas que consegue furar a distância e a rede de obstáculos que me separam do mar; nos passos dos pássaros sobre o telhado; no som da vida saltado na cachoeira; na conversa do vento com as folhas das árvores e na pulsação do coração da bananeira.

Ressaca Uma refrega aconteceu para as bandas do nascente entre o oceano e o ciclone e a conseqüência já se percebe


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no alvoroço das ondas no horizonte. E os saveiros com todos os panos e as canoas com todos os remos cortam o mar como faca para escapar ao mau-humor do mar: ressaca.

José Almiro, meu avô Tem tantos Josés no mundo e meu avô foi um deles. Um José pescador, devoto de Santa Maria, um José que se ria tanto ao contar as histórias que, rogo a São José, eu possa transformar em poesias seus casos de pescarias.

Na Guerra do Paraguai Quando chegava a noticia de belonave que aportava na Vila de Ubatuba, quem era homem corria e se escondia na pedra da Igreja, na praia da Fortaleza, até que se afastassem os alistadores parrudos, que buscavam voluntários da Pátria no tempo dos generais barbudos


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Riquezas da infância Qual construtor pode fazer uma casa de pau-a-pique, que se mantém aquecida mesmo com todas as frestas por onde entram as agulhas dos ventos frios? Qual tecelão consegue tecer um cobertor de espaçadas tramas, que esquenta na razão direta da simplicidade das almas? Qual anfitrião, com apenas dois peixes e cinco pães, consegue saciar a fome de uma multidão? Eu já morei numa casa desta, eu já usei um cobertor deste e tenho a convicção que hei de comer deste peixe, que hei de provar deste pão.

Na cozinha do Senhor Se eu for convidado, quando chegar o dia de abrir-se a porta da Casa de Deus, vou direto para a cozinha ver se tem fogão a lenha e sobre ele um caldeirão com garoupa e banana verde, no ponto de pirão.


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Sesta de Rei Porque era domingo, dia de preceito, porque era após o almoço, horário de guardar o leito, porque teve pirão de garoupa, peixe de respeito, o silêncio se abateu no nosso pedaço de mundo, que nem passarinho piava, e toda a família descansou, como nem o Rei Davi descansava.

Pirão abençoado Quando o padre foi benzer a casa de meus avós, aspergiu a água benta nas portas e janelas e todos os cantos para afastar os perigos de raios, doenças, fogo, acidentes, brigas e inimigos. E ao fogão a lenha de Vovó, deu a especial bênção, de nunca faltar pirão.

Refúgio dos fustigados Porque sei que em casa tem sempre um fogão quentinho,


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com um café fresquinho, com banana da terra e uma cuia de farinha, é que me atrevo a sair para pescar neste junho, quase julho, com este frio, com este mar.

Caso curioso O jardim de minha infância em casa de Vovó Eugênia, que ainda cultivo na lembrança, fica cada vez mais bonito à medida que o tempo avança.

Ventania Ainda era noite quando o vento noroeste desceu a montanha roncando, fez um estardalhaço no matagal, pôs abaixo o bananal e deu um tombo no gigante das matas, um guaporuvu das grotas. Ao raiar o dia, Tio Antonio tomou um café reforçado, pegou o machado e foi procurar a vítima da ventania. Desbastou os galhos, lavrou um corpo tosco da popa à proa e tomou posse


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de uma futura canoa.

Vovô José Almiro Meu avô faleceu, mas ficou seu retrato na parede da sala, em branco, preto e pretérito. Rosto de caiçara com marcas do tempo e vincos de ventania dos dias de pescaria. Face tranqüila de quem sabe e tem a vivência que após a tempestade há o período de claridade. Nos seus olhos, só para quem sabe, pode-se ler a bela história de vida de quem fez por merecer um pedaço da terra prometida.

Vida caiçara A história de quem nasce aqui começa com o pé no mar até tomar intimidades e pular nas ondas, e mergulhar no mar, e beber água do mar. E conforme cresce em idade e experiência,


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ao mesmo tempo vai tomando ciência em manejar o remo, em costurar a rede, e adquire a sabedoria dos nomes dos peixes, da força dos ventos, dos humores do mar, dos sinais dos tempos, até merecer a distinção mais cara de ser, no trabalho e na cultura, mestre em tradição caiçara.

Cachoeira do céu Na casa de meu avô quem sempre nos deu a água de beber é uma cachoeirinha que brota de uma grota entre pedras, raízes e caetês, que alimenta um córrego de guarus, cobras d'água e pitus. Uma queda d'água tão bonitinha, com um rumorejar tão baixinho, parecendo que foi feita por Deus, quando ainda era menino.

Antigamente Eram os Reis Magos que nos traziam presentes: boneco desengoçado,


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corda de pular, pião carrapeta, balanço na goiabeira, canoa de caixeta, carrinho de madeira. Mas chegou o Papai Noel que expulsou os Reis Magos e acabou a brincadeira.

Retrato da juventude Minha bisavó foi a moça mais rica com colares e anéis pra mais de um conto de réis. Minha bisavó foi a moça mais alegre que já teve uma camarinha com uma paisagem marinha. Minha bisavó foi a moça mais bonita que já posou em preto e branco em um vestido de chita.

Teoria pré-colombiana Pode ser que os povos das cidades de pedras engolidas pela vegetação tenham alcançado


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tamanha evolução que se dividiram em aldeias e foram morar na floresta perto das cachoeiras onde a vida faz festa.

Deus no mar Esses luxos de descrença em Deus é só para quem mora na cidade, quem tem ouvidos mas não ouvem as conversas das criaturas, quem tem olhos mas não vêem as estrelas que piscam avisando sobre o vento no alto do firmamento. Podem investigar, mas em todo esse mar sob o céu, não hão de encontrar um só pescador incréu.

Bendito Bendito seja quem arranja tempo para cultivar um jardim; quem semeia flores, borboletas e colibris; quem planta pomares, balanços e crianças. Mesmo sendo


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um jardineiro amador será chamado parceiro do criador.

Festa A comissão municipal de festejos tem a honra de comunicar que está para começar o décimo milionésimo encontro anual das andorinhas nos céus de Ubatuba. Haverá exibição de vôos rasantes, vôos em formação e performances individuais. Ainda há vagas nos telhados e nos melhores beirais.

Viva a Vida O profeta São Elias, Santo Enoque e a admirável Santa Maria foram todos subversivos que descumpriram a lei da morte e estão até hoje vivos. Maravilha maior praticou N S Jesus Cristo que após ressuscitado apareceu aos apóstolos e preparou um peixe assado.


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Com carinho Um menino cantarola baixinho uma canção que não existe enquanto faz a lição de casa, coisas de criança... Uma mocinha faz planos, eleva castelos ao vento, conta e reconta o dinheirinho que tem nos bolsos, coisas de adolescente... Meus Deus, eu também quero a bênção de viver sonhadoramente.

Avoengo Bento Benedito Bento enquanto viveu das caças para caçar, das terras para plantar, dos peixes para pescar, continou sempre bento, na terra dos pés descalços, na praia dos cabelos ao vento.

No tempo das jabuticabas maduras Quando a gente dizia que ia colher jabuticabas Vovó nos lembrava para deixar um pouco aos passarinhos… Era assim Dona Eugênia, não lia nem escrevia,


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então praticava poesia.

Dia de ventania O vento sul traz notícias da Antártica e eco de vozes de fantasmas em diferentes línguas, desde a esquina das Américas: homem ao mar, uomo al mare, man at the sea, homme a la mér, no Cabo de Hornos, no Cabo Horn, no Cabo dos Cornos.

Papo de pescador Na minha terra há meia légua do Mar à Serra, não peço água, não faço guerra, não guardo mágoa. Tenho cinco namoradas em uma dúzia de retratos, cada qual em seu porto cada qual com sua história, cada vez mais belas, conforme meu barco afasta


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do porto da memória.

Fotografia antiga Retrato antigo de delicadezas passadas: no caminho da escola, irmãos de mãos dadas.

Quintal planejado Quintal que se preza tem que ter goiabeira pra pendurar balanço; tem que ter espaço pra içar pipas ao céu; tem que ter, no mínimo, um cachorro pra chamar de seu; tem que ter bananal para dar o sinal da chuva que chega antes de molhar a roupa do varal.

Seu Hilário Tinha uma espingarda de fazer barulho no mato, de espantar os bichos que corriam assustados, que alertavam a caapora que berrava urros estranhos de bichos d’antanho, extintos no quaternário:


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gliptodonte, megatério, mastodonte, Seu Hilário

Papo de Vovó Vovó Martinha disse que nunca teve medo de ladrão, por muita fé em Deus e um cacete atrás da porta.

Tarumã Neste dia de sol, registro numa folha de meu caderno de bobagens, as ilustres visitas que chegam ao velho tarumã, em frente à minha janela: corruíra, tié, sanhaço, periquito, saíra, rolinha, sabiá, mariquita, bem-te-vi, andorinha que fez desfeita, efetuou um vôo rasante, e foi esbanjar alegria adiante.


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Elegia ao tamanduá Eu vi no meio da estrada, com a bandeira desfraldada, amode que pedindo trégua, um bicho-tamanduá. Quase fui abraçá-lo, por saber que ainda tem tamanduá por aí, dando bandeira, na Serra do Mar.

História antiga Maritacas maritacam, um cachorro late à toa e um rádio irradia música da minha infância. Em dias iguais a esse fico duvidando, os sociólogos me perdoem, da marcha irresistível da história.

Peixaria dos poetas Peixe-lua, peixe-voador, peixe-anjo, peixe-elétrico, peixe-piloto, peixe-rei. Só deixo fora o peixe-espada que meus versos são de paz.


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Metamorfose O vento agitou os galhos do ipê e uma flor cor de ouro foi levada pelo vento. Bateu asas e diante da janela se metamorfoseou em borboleta amarela.

Presente do Céu A bananeira é um pacote Que conforme cresce Vai se desembrulhando, Folha por folha, Até revelar o segredo De um coração em camadas Que, por sua vez, Também se desembrulha Para ofertar pencas de bananas, O fruto do paraíso, explicação para tanta bondade, segundo meu juízo.

Moradia do tempo Qualquer golpe de vento, qualquer toque de anjo, qualquer canto de pássaro, qualquer raio de sol, qualquer gota de chuva,


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qualquer nota de viola, abre a taramela e escancara a janela do quarto onde mora minha memória e minha saudade.

Dos bichos É preciso muito sentido para não ser enganado pelo bicho urutau que em um instante é pássaro, noutro é pedaço de pau.

Ovos de indez Seguindo o exemplo de Vovó Eugênia que com suas galinhas não admitia talvez, quando percebo que meus versos estão aíbos, por minha vez, leio e releio Mário Quintana e Manuel Bandeira que são meus ovos de indez.


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Cruz de ferro Na curva da vingança, no caminho dos tropeiros, a meia altura da Serra do Mar, aconteceu há muito tempo um drama de ódio e morte no lugar assinalado por uma cruz de ferro que goteja sangue no chão oxidação.

O marinheiro Benedito O barco balança, o horizonte balança, Benedito balança, vinte e um dias por mês. E quando Benedito põe o pé no porto, estranha a imobilidade de tudo, fundeia em um bar e bebe, até o mundo voltar a balançar.

Nomes bonitos de passarinhos Tio benedito, fogo-apagou, bem-te-vi, corruíra, mariquita, tiziu, tico-tico,


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siriri, maria-já-é-dia, tuim, sem-fim.

Viagem no tempo No começo do século XXI saí da cidade dos arranha-céus e quatro horas depois cheguei ao começo do século passado no Sertão de Ubatumirim, em tempo de tomar café com garapa acompanhado de biju de mandioca e banana em paçoca.

Assunto de tico-tico Eu queria dançar igual ao tangará para encanta-la e você me reparar. Eu queria cantar igual ao sabiá para encanta-la e você me namorar. Eu queria vestir as cores


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do bonito terê para encanta-la e você me querer e eu, afinal, ter um tico-tico docê.

O náufrago Um pescador que perdeu o juízo após quinze dias de sede e fome, passa as horas assoviando nas praças de Ubatuba, esforçando-se para lembrar as músicas que as sereias cantaram em seus ouvidos de náufrago em alto mar.

Das musáceas Ouro e prata davam em pencas nas terras de meu avô.

Lugares que conhecerei Bom Jesus da Serra, Bom Jesus dos Perdões, Bom Jesus do Norte, Santa Rita do Passa Quatro, Santa Rita do Jacutinga, Santa Rita d’Oeste, e município de Mira Estrela,


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desta federação, desta constelação.

Indignação à moda de Tia Isolina Àquele que comeu banana da terra e depois vendeu a terra; àquele que se fartou dos frutos do mar e depois cuspiu no mar do qual comeu; àquele que agiu na escuridão para seus erros esconder; praga não rogo, mas bom fim não há de ter.

Carta ao Julinho Mendes Um dia destes eu vi uma canoa com vela de traquete dobrando a ponta da Fortaleza, em direção ao Mar Virado. Era um velho pescador, um dos poucos que restou da época da navegação em panos, muito comum quando éramos crianças. Não sei o que ele foi pescar, eu cá pesquei esperanças.


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A benzedeira Tia Aninha morreu Quem vai continuar a receitar padre-nosso e emplastro de plumera para machucados e feridas? Quem vai puxar a novena e o ponto de caramelo para adoçar a vida? Quem vai dar lições de mistérios e orações em terços de capiá? Quem vai abrir o véu e explicar pra gente sobre os assuntos do céu?

Tia Aninha benzedeira De sua casa, pobrezinha, abria as janelas direto para o céu, dava risos sozinha igual criancinha que conversa com os anjos, fazia orações, benzimentos e dizia palavras aparentemente sem nexo: “ Menino, não sabeis que sangue de passarinho deixa nódoas na alma?

Casa antiga Tia Joana


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tinha uma casa tão bonitinha, tão pequenina, tão pobrezinha, que de pé se mantinha só por milagre de Nossa Senhora, sua Santa Madrinha. Morreu Tia Joana, finou-se a casinha.

Praia da Fortaleza, 1973 Lagartos esquentando ao sol. Casas com alicerces de pedras com franjas de capim negro. Fumaça de chaminé enviando recado de pirão no fogão a lenha. Sol depositando moedas de luz pelos vãos das telhas da casa de meus avós. Borboletas-folha e bichos-pau indecisos entre os reinos animal e vegetal.

Agradecimentos ao Criador Pela gaivota curiosa que espia o fundo do mar, pelo urubu ensinando a arte de planar ao pássaro guarapirá, pela tartaruga


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tal qual pedra que inventou de flutuar, pelo costão rochoso na ponta da Fortaleza pelo mar lavado, muito obrigado.

A maior prova de fé No almoço teve peixe com banana verde, escaldado de farinha e um copo de caipirinha. Depois do almoço a preguiça tomou conta da tarde até Tio Maneco tocar o sinal da missa no sino da igreja. E corre gente pra refrescar a cabeça debaixo da bica d’água e afugentar a lassidão para ir à igreja com devoção.

Ressurreição No quintal da minha avó sempre houve flor-do-japão de belas e vistosas folhagens com tal mania de perfeição que escolhem morrer e deixar secar as folhas e a vida para, quando menos se espera, surpreender o mundo todo


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com bela e olorosa floração erguendo-se direto do chão a Kaempferia rotunda ou flor-da-ressurreição.

Onça Dormem as gentes nas tarimbas, dorme a rede no varal, dormem as brasas sob as cinzas, dorme a lenha no quintal, dorme a cachaça na pipa, dormem os bichos no curral. A coruja é o vigia noturno e dá o sinal de alerta, uma sombra se esgueira sob as bananeiras em direção ao galinheiro, bambus quebrados, escarcéu de penas e brados, galinhas, cães desatinados, mais alto latiu a espingarda e um facho foi aceso pra botar ordem na madrugada. Nenhuma vítima fora a paz perturbada.

Taurus Quando o navio sai do porto, ainda que se conheça a derrota, há uma grande incógnita sobre os comportamentos dos tempos, mulheres, mares


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que o destino põe nas ondas, nos portos, nos ares. A história está cheia de navios festejados que retornaram enlutados, desde a nau Argos, desde a capitânea de Magalhães até ao barco Taurus que afundou desarvorado, ainda que cheio de glória, nos escolhos da memória.

Genealogia Sou neto de José Almiro, bisneto de Almiro Mesquita. Quantas gerações atrás estavam os mouros, meus antepassados, invadindo a Ibéria? Sou neto de Eugênia de Jesus, bisneto de João da Barra, metade mar metade terra. Sou neto de Estevan Félix, bisneto de Francisco Félix, com uma grande percentagem de bugre nas veias, dono de muitas terras que a gripe espanhola deserdou. Sou neto de Martinha Cabral, tataraneto de Francisco Cabral do engenho do Pulso, que abastecia várias canoas de voga que demandavam o Porto de Santos e que, a muito custo, arrastavam


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a vila de Ubatuba fundeada em âncoras e poitas desde o final do século XIX.

Clássico De todas as casas saía o zumbido das ondas hertzianas, todos os rádios estavam sintonizados no jogo do Santos F.C., trazendo a emoção das jogadas de Nilton Santos, Pepe, Pelé e toma drible entre as canetas - entre as pernas e bola balançando a rede. A missa seria adiada, porque até o padre, desde criancinha, sempre foi peixe e cada gol era acompanhado pelo badalar do sino da igreja. Era pecado capital ignorar a peleja.

Presépio caiçara O marulho das ondas entra pelas portas abertas da capelinha de São João na Praia da Fortaleza e embala o menino Jesus, que dorme tranqüilo em uma cesta de timbopeba, dentro de uma casinha de pau-a-pique. Os anjinhos curiosos, com asas de penugem de galinha, vigiam o sono do menino. As ovelhas, a vaquinha e o burrinho pastam em um chão de musgos. Baltazar, Belquior e Gaspar andariam mais mil quilômetros pela importância e beleza


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do momento. Nossa Senhora e São José apreciam o conjunto, um verdadeiro brinco, e abençoam o mundo no natal de 1975.

Amarras Reparem bem nas casas antigas: como são bem construídas com telhados centenários, de madeira bem ajustadas por grandes travas, pregos, mais as teias das aranhas feitas com muita paciência, que justamente é o segredo de tanta resistência.

Vôo de anjo Nestes tempos de violência Os anjos do Senhor Não fazem mais vôos rasantes Como faziam antes. Vai que tem uma alma perdida, Vai que tem uma bala perdida...

Manoel Félix Tio Manoel virou maneco de tanto ver assombros


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boitatás, mães do ouro, estrelas cadentes, visões de mouros, pirilampos, peixes pampos, abraços de tamanduás, fila de marandovás, correção de formigas quem-quem, vozes daqui e dalém das quais ficou só o eco e Tio Maneco virou Neco.

Estrada do tempo A estrada do tempo começa no quintal da casa da gente, atravessa ruas, vozes que seduzem, apelos de aventuras, segredos para desvendar. Quando a gente começa a precatar, muda o humor do mar, a ciência da lida com as coisas da terra acaba sendo esquecida, a estrada vira asfalto, a tranqüilidade muda em sobressalto e de todas as antigas lições fica apenas a certeza que é curta esta vida e a estrada do tempo só tem viagem de ida.


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Precipitações Coriscos, riscos de luz, chuva de meteoros, anjos caídos, um escarcéu: deve haver algum furo no céu.

Ora pro nobis Peixes-frades pássaros cardeais, bichinho louva-a-deus, por nós rogais.

Sinal dos tempos É verdade que tem o cupim, a broca e o fungo da podridão, mas as casas antigas morrem mesmo é de solidão.

Oração final Ó, meu Deus, me mantenha confiante em vosso filho que andou sobre as águas, multiplicou o pão e o peixe, curou cegos, transformou a água em vinho,


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ressuscitou após ter sido crucificado e, que, mesmo maltratado, não deixou-se levar pela mágoa e não reverteu o vinho em água.

Riquezas no quintal O jardim de minha avó tinha cananga do Japão, jasmim das Arábias, flamboião da África, hibisco do Havaí, flores do Bornéu, rosas do céu, e mais dama da noite e gardênia. Que navegantes do tempo, que viajantes das distâncias, trouxeram o mundo para o jardim de Vovó Eugênia?

Veto Em dia de domingo deveria ser proibido filmes com finais tristes, principalmente ao fim do dia, quando cessa a chuva, mas as árvores continuam a chorar lágrimas de melancolia.


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Cantiga de ninar Dorme menininho que o sol também já foi dormir e levou consigo todas as cores do mundo. Dorme menininho que o vento já estendeu um cobertor de nuvens espessas para aquecer quem não tem onde se abrigar. Dorme menininho, dorme para o sonho acordar.

Novena Nossa Senhora Aparecida, eu, herdeiro de terras perdidas, de sabedorias que estão esquecidas, de lembranças esmaecidas do povo caiçara, ainda assim vos bendigo, pois ainda restam cores para refazer o mundo antigo e a fé dos meus avós que foram íntimos de vós.

Domingos Fábio dos Santos barbatuba@gmail.com


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EDIÇÕES CAIÇARAS São Vicente Brasil

A Edições Caiçaras é uma pequena editora independente artesanal inspirada nas cartoneras da América Latina, principalmente na Sereia Cantadora de Santos e na Dulcinéia Catadora de São Paulo. Nasceu pela dificuldade homérica e labiríntica em publicar meus livros em uma editora convencional. É uma forma de reavivar o ideal punk do “faça você mesmo” e da sabedoria caiçara, incentivando a auto-gestão e o uso da habilidade manual, algo que está se perdendo em nossa sociedade tecnocrata. Assim, de fato, começa a tomar forma a filosofia da Edições Caiçaras, mais do que um caráter social, interessa-nos, ousar na forma e no conteúdo. Na forma é um aprimoramento das técnicas das cartoneras – os livros são feitos com capa dura, costurados com sisal e presos com detalhes em bambu, e no conteúdo, priorizamos um diálogo profundo com a Internet e com as literaturas locais do Brasil. Márcio Barreto


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CATÁLOGO “O Novo em Folha” (poesia) - Márcio Barreto “Atro Coração” (teatro) - Márcio Barreto “Nietszche ou do que é feito o arco dos violinos” (poesia) - Márcio Barreto “Ácidos Trópicos – uma livre criação sobre a obra de Gilberto Mendes” (música-teatro) – Márcio Barreto Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea (poesia) – Marcelo Ariel (org.) Obras Cadáveres (ensaio) – Ademir Demarchi Desaforismos (aforismos) – Flávio Viegas Amoreira Mundocorpo (poesia) – Márcio Barreto Perdas & Danos (poesia) – Madô Martins

PRÓXIMO LANÇAMENTO “O Doutor Imponderável contra o onirismo groove” – Marcelo Ariel


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www.edicoescaicaras.blogspot.com www.youtube.com/projetocanoa www.percutindomundos.blogspot.com www.soundcloud/percutindomundos


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Peixe-palavra (poesias caiçaras) foi impresso sobre papel reciclado 75g/m² (miolo). A capa foi composta a partir de papelão e sacolas de papel.


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