excídio - Jorge Melícias

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excídio


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A presente edição é inspirada nos trabalhos desenvolvidos na América Latina através de Sereia Ca(n)tadora (São Vicente, Santos – Brasil), Dulcinéia Catadora (São Paulo – Brasil), Eloisa Cartonera (Argentina), Sarita Cartonera (Peru), YiYi-Jambo (Paraguai), Yerba Mala (Bolívia), Animita (Chile) e La Cartonera (México).

Edições Caiçaras é uma realização do Instituto Ocanoa, Projeto Canoa, Percutindo Mundos e Imaginário Coletivo de Arte.

Capa feita a mão com material reciclado.

Contato: mb-4@ig.com.br 13-91746212


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excídio Jorge Melícias

Antologia Poética


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Edições Caiçaras © Jorge Melícias Capa, projeto gráfico, diagramação e editoração: Márcio Barreto Conselho Editorial: Flávio Viegas Amoreira Marcelo Ariel

Melícias, Jorge excídio / Jorge Melícias – São Vicente: Edições Caiçaras, 2013. 61p. 1.Poesia portuguesa I. Título Impresso no Brasil

2013 Edições Caiçaras Rua Benedito Calixto, 139 / 71 – Centro São Vicente - SP - 11320-070 www.edicoescaicaras.blogspot.com


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iniciação ao remorso Jorge Melícias (1998)


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Uma crianรงa comia amoras do prรณprio braรงo, gozando a tarde em agulhas. Isabel de Sรก, Autismo


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Procurou de entre todos aquele que mais amava. Fê-lo em silêncio, afagando os cães que envelheciam aos seus pés, enquanto as mulheres iam cerzindo nos gestos um rosário de sal. Onde está o meu discípulo dilecto que não o vejo, inquiriu. Um homem lembrou-lhe então que partira há muitas luas atrás, carregando aos ombros um navio em chamas. Desde esse dia a memória não mais deixou de rondar a casa e o velho recolheu-se no jardim onde as estátuas subiam às árvores com os olhos tão próximos da loucura.


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Extasiados, os animais detêm-se ao longe, as cabeças inclinadas sobre a profusão da terra. Nada esperes dos homens que ondulam como o fogo sobre o dorso dos cavalos. Nada esperes quando partem de noite, a casa dispersa pelos olhos. O teu lugar é outro, junto à estaca, onde o sangue dorme sob a pedra.


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A mulher borda violentamente o ventre contra o chão. É este o centro do círculo da loucura e a luz está toda nos dedos. O crime tem a idade do mundo, diz, e recomeça a coser os pulsos filho a filho. A loucura é agora uma mão cheia de sal voltada para dentro. Nenhum vaso se entorna já em seu nome e sobre a mesa os frutos estão fechados como pedras.


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O homem inclinou-se para trás e a sua fronte acendeu-se nome a nome. Souberam então que morria e precipitaram-se sobre a sua cabeça bebendo-lhe a luz. Era um homem como um átrio, transbordante, à boca da casa.


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É poderosa a casa curvada sobre a minha morte. Atravessa o sangue, transborda para dentro. À porta dos dedos os insectos tecem-se, iluminam os pulsos nas noites em que o grito é íngreme. Há uma luz doente sobre a mesa, um pulmão de pedra no centro. E eu mordo a própria boca, enquanto as mulheres enlouquecem de pé, cuspindo os espelhos.


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a luz nos pulmĂľes Jorge MelĂ­cias (2000)


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Hoje executarei os meus versos na flauta das minhas pr贸prias v茅rtebras. Vladimir Maiakovski, A Flauta Vertebrada


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Na ponta dos dedos batem as palavras sísmicas. E a testa abre-se profusamente à força do nome. Só aquele que escreve infunde o prodígio, respira ao cimo com a luz nos pulmões, atravessa como se florisse nos abismos.


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À beira das salinas os homens declinam. De longe a longe vêm os filhos, trazem a solidão como um metal aceso nas costas, trazem um enxame de dardos. E a memória é um pulso atravessado. Quando partem fecham atrás de si as portas e os homens voltam a sentar-se sobre as estacas e brilham.


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O homem está dobrado sobre a mesa, as palmas das mãos presas ao tampo, a morte na nuca. Em redor as mulheres delimitam a casa, são os pulsos da casa, e há um silêncio como uma pedra rasgada. Mas hão-de apagar-se as mulheres primeiro que o fogo.


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Hão-de crescer mulheres como flores sobre os telhados. Sonhar-se-ão em volta, arqueadas como abóbadas. Serão verticalmente o poema com suas frontes altas e brancas. E nenhum vínculo as ligará à morte quando sobre as cabeças ondularem como tochas.


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Uma roda de enigmas ou a cabeça fundamentalmente flectida. O sangue aflui por anéis ao pensamento, alimenta os teares da febre. E há a estaca desde o fundo. Sobe das virilhas à raiz do fôlego, fecha o abismo pelo lado diurno dos pulsos.


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o dom circunscrito Jorge MelĂ­cias (2003)


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A veces veo el resplandor del monte sobre las grandes/ m谩quinas de la tristeza. Ant贸nio Gamoneda, Libro del Frio


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Uma voltagem matricial alimentando as caldeiras. A loucura dormente sobre a velocidade do bronze. O dínamo como a mão unânime, munida da culpa. E o crime, uma brecha no movimento.


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Trazia o cunho sob a língua, um crivo de sal a arrefecer os nomes. Era à boca da frágua, onde o metal se dobra na convulsão do verbo.


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Irrompem dos baldios, as cabeças cerâmicas cozendo sobre as varas. Trazem os dedos em pousio, uma floração de esporas. E as crias como bolbos plantados na loucura, aguçados pela raiz.


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Caminho sobre as calhas do trovão, as córneas irrompendo dos cascos. Trago a noite encostada às têmporas e se me curvo é junto aos tornos, o metal encerrado nas unhas, toda a cegueira trancada por dentro.


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Ele incorre na morte. Apropria-se da soberba do verbo. Sobre as mĂŁos assenta o estame benigno da loucura. A beleza como um dĂ­namo infrene.


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incĹ­bus Jorge MelĂ­cias (2004)


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O criminoso não está muitas vezes à altura do seu acto: degrada-o e difama-o. Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal


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Consideremos o crime: o modo como a navalha dele extrai a própria mutação. Porque todo o objecto aspira a exceder a sua exactidão. A devir.


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Por vezes estou sobre as facas como quem intenta. Outras é o metal que reverbera onde enlouqueço. Sei que o crime encerra a sua própria geometria: o golpe incide onde o erro é uma refracção. Abro na lâmina uma veia para correr.


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Ele procede do horror. Caminha sobre os estribos com o remorso acirrado nos gânglios. Por vezes está perante o discernimento como se entendesse, como se a única contrição fosse a reincidência.


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A traqueia ou como se acera desde o fundo o movimento tubular de uma lâmina. Ainda que o crime parta de uma exterioridade pura. E o golpe seja uma mera declinação.


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Um nervo arrebatado à exactidão. Sobre ele edifico o método. Há o propósito e o axioma implícito: a queda não é interceptável. Chega-se ao crime pelo exercício da evidência.


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a longa blasfĂŠmia Jorge MelĂ­cias (2006)


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A existência de cada um, a história, o universo, só é apreensível em duas categorias: o conceito abstracto e a alucinação. Gottfried Benn


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Ela roda o ferro sob a língua como se o adestrasse. E uma menstruação metálica corre nos crisóis da boca. De quando em quando cospe a parte que cabe às crias. Até que o instinto sobrepese o sangue.


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Vi o relâmpago disposto pelas traves como uma plaina ao desvario sobre as córneas. Os ganchos com a sua incisiva mecânica de clarões. Vi o cutelo. E a percussão era uma cegueira decantada.


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O animal sobreleva-se do que sangra. Canta se na raiz do bafo surdem as mĂłs da blasfĂŠmia. Ele estĂĄ diante do abismo e projecta-se inteiro na heresia.


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Sobe das lentas tubagens do medo, coloca-se no meio das cabeças laudativas como uma emanação coaxial. Ele é a asseidade do nome, o selo que reverbera de dentro quando as cavilhas fecham as córneas. Que onde pise entenebreça.


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O animal recolhe-se na lâmina. Não há resistência ou retracção. Ele é agora a extremidade viva de uma metalurgia brutal, a mecânica vocalização do horror. Sobre a coalescência do sangue a blasfémia e a sua têmpera.


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agma Jorge MelĂ­cias (2009)


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Em tempos de trai巽達o as paisagens s達o belas. Heiner M端ller, O Anjo do Desespero


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A chacina é uma indução à espera do seu tempo. Sobre esse propósito estabeleço-me unívoco. E onde cães e homens disputam a carniça à lisura dos ossos inscrevo a consolação.


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1.

Sobre a imposição dos abismos encimarei os gárrulos. Erguer-me-ei das jugulares como a pura dicção do medo.


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2.

Descerei das canas para a rasura da redenção. No dorso o relâmpago como uma carena blasfémica. E um amor profundo pela impiedade.


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3.

Caminharei entre os homens com um punção virado ao medo. As meninges recrudescendo nas navalhas como um apostema. Todo o metal sitiado pela injunção das ínguas.


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Vi os campos inçados pela improbidade. Os justos como plainas alucinadas sobre a incontrição das esquírolas. E o desespero era uma forma de beatitude.


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felonia Jorge MelĂ­cias (2012)


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O mal não é em si, é nosso. Teologia Padristica

Um grande princípio de violência presidia aos nossos costumes. Saint-John Perse, Anabase


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Ergo-me da refrega e tomo posse sobre o excĂ­dio. Eu vi a minha mĂŁo em tudo o que se demarca da piedade. E comovi-me.


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O horror era então a sua própria liturgia. E a carne levedava com convicção nas lanças. Tempo de uma piedade sem reservas, anterior a qualquer axiologia. E sobre a paisagem ver não prodigava ainda a ritualização do remorso.


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Era depois da renúncia, quando sobre os campos ainda ressumava o alijamento. A rarefacção de deus era então uma ideia que eu trabalhava com afinco. Por piedade: para que tudo se erga do aluimento para a queda.


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Lembro-me dos anjos da dirimição. E de como pela fome os homens falqueavam a culpa até aos ossos. Era a guerra, asseveravam, e à força cénica desse horror em movimento chamavam deus. Mas há muito que a penúria desertou desta paisagem: aqui já nem o desespero faz fé.


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A minha devoção exige um corpo para profanar. Que a mesma cobardia com que apostemo a inocência seja no meu dorso pasto para deus.


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Jorge Melícias nasceu em 1970 na cidade de Póvoa de Varzim, Portugal. Autor dos seguintes livros de poesia: aqueles que incendeiam os telhados - 1996/1998 – (inédito); iniciação ao remorso (2004, 2ª ed., Cosmorama); a luz nos pulmões (2000, Quasi); o dom circunscrito (2003, Quasi); incŭbus (2004, Quasi); a longa blasfémia (2006, Objecto Cardíaco); disrupção – 1998/2008 – (poesia reunida), (2008, Cosmorama) e agma (a sair em 2010). Foi-lhe atribuída, ao longo do ano de 2002, uma bolsa pelo Ministério da Cultura e Instituto Português do Livro e das Bibliotecas da qual resultou o livro o dom circunscrito. Poemas seus encontram-se traduzidos para línguas como o espanhol, o inglês ou o servo-croata e publicados em várias revistas, nacionais e estrangeiras, como a Inimigo Rumor, A Confraria do Vento ou a Zunái (no Brasil), a 26, studies of poetry and poetics, ou a 2nd Mind, de São Francisco. Uma recolha de três dos seus livros, sob o título Disruption, saiu nos E.U.A, pela editora Durationpress, de Los Angeles. Traduziu, entre outros, Saint-John Perse (Elogios, 2001, Quasi), Leopoldo María Panero (Poemas do Manicómio de Mondrágon, 2001, Alma Azul), Antonio Gamoneda (Ardem as Perdas, 2004, Quasi), Lautréamont (Cartas de Isidore Ducasse, 2006, Objecto Cardíaco), Baudelaire (Conselhos aos Jovens Literatos, 2006, Objecto Cardíaco), Pedro Marqués de Armas (Cabeças, 2007, Cosmorama), Miriam Reyes (Espelho Negro, 2008, Cosmorama) e uma antologia da Poesia Cubana Contemporânea (2009, Antígona). É um dos responsáveis pela editora Cosmorama e dá aulas de Poética e Escrita Criativa.


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EDIÇÕES CAIÇARAS São Vicente Brasil

A Edições Caiçaras é uma pequena editora independente artesanal inspirada nas cartoneras da América Latina, principalmente na Sereia Cantadora de Santos e na Dulcinéia Catadora de São Paulo. Nasceu pela dificuldade homérica e labiríntica em publicar meus livros em uma editora convencional. É uma forma de reavivar o ideal punk do “faça você mesmo”, incentivando a auto-gestão e o uso da habilidade manual, algo que está se perdendo em nossa sociedade tecnocrata. Assim, de fato, começa a tomar forma a filosofia da Edições Caiçaras, mais do que um caráter social, nos interessa, ousar na forma e no conteúdo. Na forma é um aprimoramento das técnicas das cartoneras - os livros são feitos com capa dura, costurados com sisal e presos com detalhes em bambu, e no conteúdo, priorizamos um diálogo profundo com a Internet e com as literaturas locais do Brasil. Márcio Barreto


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CATÁLOGO POESIA O Novo em Folha - Márcio Barreto Nietszche ou do que é feito o arco dos violinos - Márcio Barreto Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea - Marcelo Ariel (Org.) Perdas & Danos - Madô Martins Mundocorpo– as aerografias e outros desvios do tempo – Márcio Barreto Peixe-palavra (poesias caiçaras) – Domingos Santos DRAMATURGIA Atro Coração - Márcio Barreto Ácidos Trópicos – uma livre criação sobre a obra de Gilberto Mendes – Márcio Barreto ENSAIO Obras Cadáveres - Arthur Bispo do Rosário, Estamira, Jardelina, Violeta e o Deus do Reino das Coisas Inúteis - Ademir Demarchi Desaforismos (aforismos) - Flávio Viegas Amoreira Meu Namoro com o Cinema – André Azenha ROMANCE Teatrofantasma: O Doutor Imponderável contra o onirismo groove – Marcelo Ariel


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O IMAGINÁRIO COLETIVO O Imaginário Coletivo de Arte agrega artistas do litoral paulista em suas diferentes linguagens e tem como proposta fortalecer e propagar a “Arte Contemporânea Caiçara”, valorizando nossas raízes e misturando-as à contemporaneidade. Formado em fevereiro de 2011, é resultado de anos de pesquisas desenvolvidas em diferentes áreas que culminaram na busca de uma nova sintaxe através da reflexão sobre os processos criativos na Arte Contemporânea Caiçara. Seus integrantes convergem da dança, eutonia, teatro, circo, música, literatura, história, jornalismo, filosofia e artes visuais. Estão diretamente ligados à experimentação através de núcleos de pesquisas desenvolvidos no grupo Percutindo Mundos – música contemporânea caiçara (2008), Núcleo de Pesquisa do Movimento dança contemporânea (2011), no Espaço de Consciência Corporal Célia Faustino - eutonia (2003), no Projeto Canoa e Instituto Ocanoa – pesquisa da Cultura Caiçara (2007). Em seu repertório constam “Ácidos Trópicos – uma livre criação sobre a obra de Gilberto Mendes” (teatro), “Atro Coração – uma livre adaptação sobre o amor” (teatro), “Homo Ludens – fluxos, lugares e imprevisibilidades” (dança contemporânea), “Percutindo Mundos – universo em Gentileza” (música) e “Percutindo o samba – história e poesia” (música). Ao longo do tempo realizou encontros, oficinas e palestras, tais como o "Sarau Caiçara" - Pinacoteca Benedito Calixto - Santos /SP, "Mostra de Arte Contemporânea Caiçara" - Casa da Frontaria Azulejada - Santos/SP, "Itinerâncias Encontros Caiçaras" - Casa da Cultura de Paraty - Paraty /RJ, "Sarau Filosófico" - SESC Santos - Santos /SP, "Virada Caiçara" - São Vicente /SP e “Vitrine Literária” – SESC Santos – Santos /SP.


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Seu trabalho está presente em universidades, escolas públicas e instituições de cultura através de cursos, apresentações e palestras, além de inserir sua proposta artística em espaços públicos.

www.edicoescaicaras.blogspot.com


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www.youtube.com/projetocanoa www.percutindomundos.blogspot.com www.myspace.com/percutindomundos

excídio foi impresso sobre papel reciclado 75g/m² (miolo). A capa foi composta a partir de papelão e sacolas de papel doados pelo Espaço de


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ConsciĂŞncia Corporal CĂŠlia Faustino. www.espacodeconscienciacorporalceliafaustino.blogspot.com


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