As viagens de Gulliver

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1.º Ato Qu e m Qu e r Vi aja r? ( Esp aço a mplo o nde d eve m concen t ra r -s e a s c rianç as. A pa rec e G ull ive r ou já lá est á à esp era d ela s.)

G ULLI VER ( convid ando que m pas sa) – Que m qu e r co rre r mundo? Qu e m que r vi aja r? Venha m co m o Gu ll ive r. Qu e v ai pa ra o ma r! ( As c rian ças , a u m g esto d e G ull ive r, a proxi ma m-s e.) G ULLI VER (d i rigi ndo -se às c ri ança s) – O lá, ju ventud e! M AR IA e M anue l (e m co ro) – Olá ! G ULLI VER – Voc ês s e rão c omo eu, que nã o posso fic a r pa rado mui to te mpo no me s mo s í tio ? M AR IA e MA NU EL – Nós ado ra mos v iaj a r. Viaj á mos junto s na s f érias. G ULLI VER – Anda m a estud a r, não é? Eu ta mb é m a nd ei na esc ola e fui bo m aluno . Depoi s, aos 17 an os, fi z - me a prend iz de c i ru rgi ão. A lgué m p reci sa d e t ra ta mento?


( Gull ive r ap rox i ma -s e da s c rianç as p a ra lhes ve r os dent es.) G ULLI VER ( mos t rando u m a lic ate) – Que m te m dente s p ara arranc a r? Ap rove ite m! Ap rov eit em! M AR IA e M A NU EL – Não! Nã o! Q ue ho rro r! G ULLI VER – O ra, a inda be m qu e es tã o de bo a saúde . Meno s t raba lho p a ra mim, qu e sou médi co d e bo rdo. (Dirigindo- se às crian ças.) Aqui toda a g ente lava os d entes? M AN U EL – Eu nunc a me esqu eço. A nã o se r às vez es. .. G ULLI VER – Pa ssa ra m no ex a me médico . Mas , se que re m e mba rc a r, va mos a sabe r: que m é c apa z de re ma r? M ARIA – Eu! Eu!


G ULLI VER – Que m é espe cia lis ta e m t rep a r ao s ma st ros? M AN U EL – Eu f arto- me d e t repa r às á rvo res .. . G ULLI VER – E que ta l s ão vo cês a p esc a r? M AN U EL – Já pesqu ei u ma bot a. .. G ULLI VER – É bo m qu e algu é m saib a pes ca r pa ra te rmo s se mp re pe ixe f resc o. Le mb re m-se d e que aind a ningu é m i n ventou os f rigo rí fico s.. . Já ago ra, dig a m- me lá: ch egou a té aqui not í ci a da s minh as v iag ens, d’ As Vi agens d e Gu ll ive r? T enho in c rív eis reco rda ções pa ra vos conta r.



2.º Ato No Reino de Lilliput ( O cen á rio é const ituído po r u m pa lác io, mu ra lha s, c asinh as d e bone cas e, à vo lta , u ma pa isag em e m mini atu ra . Tudo i sto de ve e sta r co locado sob re u m p lano a lto pa ra n ão se r ne cess á rio Gull iv e r enc a ra r os anões bai xando -s e multo e s e r poss íve l man ipula r ma rioneta s ou fanto ches po r t rá s do c ená rio . D e qua lque r fo rma , Gu ll ive r t e m se mp re d e se b aix a r ext rao rdina riament e pa ra f ala r co m os inte rlocuto re s. Ao lado d o pl ano a lto, há u m b raço d e ma r co m ba rquinh os.)

G ULLI VER (p ara a s c rianç as) – Es te é o reino de Li llipu t, onde v i m pa ra r quando o me u na vio n auf ragou . LIL I PUT IA NO 1 – Ai que ho rro r! O Ho me m- Montanha! LIL I PUT IA NA (co rrendo) – D eix a- me fug i r! Se me pi sas , esto u desg ra çada! G ULLI VER (faz endo u m cumpri mento) – Eu não fa ço mal a nin gué m! Você s é qu e me podi a m a juda r. Estou cá co m u ma f raqueza... e uma sede... LIL I PUT IA NO 2 (c a rregando u m deda l) – T oma, t ens aqui u m bald e cheio de água.


( Gull ive r engo le-a co m sof regu idão e ped e ma is. ) LIL I PUT IA NA (vo ltando at rá s) – E u m pão co m que ijo ... ta mb ém não que re mo s que pas ses fo me. ( Gull ive r engo le o pão co mo s e fo sse u m co mp rimido .) G ULLI VER – Ne m me t apa o bu ra co du m dent e! Eu co mia à vontad e vinte bois! ( Os Li lipu tiano s t ra ze m-lh e a li mento s e m miniatu ra , que ele devora.) G ULLI VER – A i, já me sinto melho r.. . R EI (ch egando à va rand a do pal ácio) – N ão há dinhe i ro que ch egue pa ra mata r a fo me a este gigan te. Vamo s l á v er se el e te m alguns ben s que nos dê em t roc a. ( Di rigindo -se a Gull iver. ) Mos tr a o que gua rd as n as alg ibei ras. ( Gull ive r ti ra u m po rt a - moeda s de rede metá lica , co m a lgu m as moedas, e exibe-o.) LIL I PUT IA NO 1 – Ah, é u ma rede d e p esca ! E te m lá d ent ro duas mós de mo inho d e ou ro! (Apon ta m p a ra a moeda .) G ULLI VER – N ão, isto é apena s a minh a bol sa!




LIL I PUT IA NO 1 – Qu e ma is tens? ( Gull ive r ap res enta u ma cig a rrei ra. O s Li liput ianos p ro cu ra m e m vão abri-la.) LIL I PUT IA NO 2 – Ai que p eso! Que cof re tão fo rte! R EI – Ve m já pa ra o meu tesou ro ! ( Gull ive r ent rega a c iga rre i ra, pousando -a junto ao R ei. ) LIL I PUT IANO 2 – E no co lete , que ten s? (Gulliver tira um pente . Todos se afastam com receio.) R EI – Que a rma é e ssa , co m mais de v inte espe tos? Dev e s e r pa ra mat a r u m b ata lhão d e u ma só ve z. ( Gull ive r ri -se . Pe ntei a-se , most rando pa ra qu e serv e o pen te, qu e ent rega ta mbé m. Gu ll ive r ap rox i ma -s e da to rre e um dos Li liput ianos co me ça a pux a r-lhe pe la co rrente do re lógio .) LIL I PUT IA NO 1 – Que g rande co rrente! Da va pa ra nos p rend e r a todo s! Ajude m -me, ajud e m- me a pux á-l a. (Todo s pux a m, Gul liv e r co labo ra e n a pont a da co rrent e ap a rec e um relógio a baloiçar.)


( Gull ive r pega no relógi o e dá - lhe co rda.) LIL I PUT IA NA – Qu e objet o mais est ra nho! E relu zent e. Dev e se r a ma io r jo ia do mundo . ( Gull ive r enco sta o re lógio ao ou vido do Rei .) R EI – Ai , qu e f ico su rdo co m est e b a rulho inf e rna l. D eve se r u m an i mal que ronca ass i m: tic- tac , t ic-ta c. .. G ULLI VER – Ê po r ele que me gu io. Con sulto -o a tod a a ho ra. LIL I PUT IANO 1 – Dev e se r um obje to sag rado. O deu s a qu e e le obedece. ( Gull ive r ri-s e e d á-lh es o relóg io, após v á ria s tent ati vas d e os Li lipu tiano s lh o t ira re m.) GULLIVER (pu xando d e duas p isto las) – E isto, sab em o qu e é? LIL I PUT IA NO 1 (obse rv ando) – São duas to rres de metal .. . LIL I PUT IA NO 2 ( esp re itando po r u m dos bu ra cos) – Qu e escu ridão! D eve se r u m tún el onde se escond e a lgu m mons tro. .. G ULLI VER (di spa rando p a ra o a r) – Não se a ssuste m, que n ão tê m balas. (Os Liliputianos caem todos, desmaiados.) G ULLI VER – A i, que o s mat ei co m o susto !




( A pouco e pouco , as c ri atu rinh as vo lta m a si . O Re i a sso ma à v a randa .) R EI (todo e mp roado) – Ho me m-Mo ntanha , se q ue res v ive r en t re nós , ju ra f ide lidad e ao mai s pod e roso i mpe rado r do Un ive rso . G ULLI VER (à pa rte pa ra as c rian ças) – Est a a mo stra de gen te c ons ide ra- se o máx i mo. Faz de conta .. . ( Gull ive r fa z u ma vén ia ao rei e a joe lh a-s e di ante d ele .) G ULLI VER – Estou às voss as o rd ens, magn ífico sobe rano. ( O Rei exp ri me po r gesto s a su a i rritaç ão.) G ULLI VER – Ah , já me esque cia . N esta t e rra nã o é a ssi m qu e se fa z u m ju ra mento. (To ma u ma a titud e que con si ste em conse rva r o a rtelh o na mã o e sque rda e co loca r o dedo g rande da mã o di re ita no a lto da cabe ça e o po lega r n a ponta d a o relha d i rei ta. ) Mui pode ro so i mp e rado r, de líc ia e te rro r do Univ e rso, e stou à s vo ssa s o rden s. R EI – Deix a- me ve r be m a tua ca ra. ( Gull ive r enc a ra-o de f rente e d epo is be ija- lhe a mão . A p rove ita p a ra es p re ita r pa ra dent ro d o pa lác io.) G ULLI VER (pa ra a s c ri anças ) – Is to p a rec e um mundo de b rinquedos...


R EI – F ala ste e m b rinqu edos? O lha qu e nós , os pode ro sos s enhore s de Li llipu t, não somos p a ra b rincad ei ras . G ULLI VER (t ro cis ta) – Ai , não? R EI ( most rando u m ovo de a vest ru z de Li lli put) – Esta mo s e m gue rra co m os nosso s i ni migo s po rque e les i n siste m e m p a rti r os ovo s pe la ponta mais es t reit a, quando o meu avô de c retou que se de ve m p arti r p ela ponta mai s la rga . G ULLI VER (p egando nu m o vo e d i ri gin do-se às c rianç as) – Po r u ma coi sa dest as se d ecl a ra u ma gue rra! E pedem - me que ent re ne la. Vou f aze r -lhe s a vont ade. ( Endi reit a-se , re tesa os múscu los, p repa ra -se pa ra o co mb ate .) G ULLI VER – Al é m e stá a e squad ra in i miga . Já vã o ve r co mo dou cabo dela num instante. ( Sol ta u m g rito de gue rra e, rindo, puxa os ba rqui tos com uns co rd éis que co rrespond e m a g rosso s co rd a mes de nav ios. O s L il iputi anos apl aude m, ag ita m band e i ra s, danç am d e contentamento.) G ULLI VER ( aproxi mand o -se dos espe ctado re s) – Qu e t al? M AR IA ( ent re os e spec tado res ) – Ah , deve m t e r ach ad o que o se nho r e ra u m he ró i fan tást ico! G ULLI VER – N e m s emp re. .. Ve ja m só o que aconte ceu d epois !




( Ve em-se lu zes ve rme lhas a acend e r no pal ácio re al. ) LIL I PUT IA NO S – Fogo ! Fogo! É o p alá cio real que está a a rde r. ( Os L il iputia no s co rre m, afl itos , de u m lado p a ra o o ut ro.) G ULLI VER (g ritando) – Já vou! Cont em co mi go! ( Gull ive r pega e m va silh as minúscu l as co m água p a ra a paga r o fogo.) LIL I PUT IA NO S – Ai , que va mo s todo s mo rre r queimado s! Sa lva-no s Ho me m-Mont anha, só tu nos pode s s alv a r! ( Gull ive r vi ra -se d e co stas pa ra o p úbli co e , com u ma bisn aga, f inge urina r pa ra c ima do pa lác io. As lu ze s v e rme lhas apag a m -se.) G ULLI VER – Que bo m, cons egui apaga r o fo go! R EI (à jane la) – É punido co m pena d e mo rte qu e m u rin a no pa lác io real! ( Gull ive r sa i do pal co e va i p a ra junto d as c rian ça s.) G ULLI VER – Ache i me lho r fugi r d al i e vo lta r p a ra a minh a te rra . Ma s, pa ssado pouco t e mpo, f i z- me no va ment e ao ma r e s abe m onde fui te r? Vej am se ad ivinh a m.



3.º Ato No Reino dos Gig antes ( Aqui é tudo e m p onto g rande . O cená rio con si st e nu m p átio ond e há vaso s co m f lo res en ormes dos lado s e, a meio , u ma mesa ond e Gu ll ive r se d eve ex ibi r. A s pe rson agens sã o gigant es. A lgu mas pode m se r g iganton es co m anda s ou e sta r apenas pintad as, mas a M enina s e rá nec ess a ria m en te u ma gig antone com anda s ou te rá s aia s co mp ridas e esta rá e m ci ma de u m ban co largo. Gu ll ive r est á s entado à so mb ra d e u m vaso .)

G ULLI VER (vendo u m ra to gigan te) – Ai , que est e monst ro vai come r- me ! (Fog e, es conde-s e at rás de u m vaso . O rato pe rsegu e-o e ele v ai fugindo e escondendo-se.) GULLIVER (pu xando d a espada) – Já te vou tratar d a saúde! (Lut a con t ra o rato e mata-o à espad ei rada . Fi ca exau sto, sent a -se no chão, l i mpando o suo r da tes ta. A pa rec e u ma menin a g igante , com t ran ças e lac inhos .)


M EN IN A – Meu pob re bonec o! Es tás can sadi nho? N ão admi ra , é s tão pequenino! G ULLI VER – Aqu ele rato ata cou - me . Po r pou co não me de vo rav a. M EN IN A – Que v ale nte! Não hã out ro bo neco tão b ra vo co mo tu! Ma s já te d iss e p ara n ão and a res pe lo ch ão. A lgué m pode pis a r-te sem querer... G ULLI VER ( est re me cendo) – Eu fi cava esbo rrachado! M EN IN A – Vá , sob e p ara c i ma da me sa. A í n ão co rre s pe rigo. ( Gull ive r, a cus to, t rep ando ou co m o auxí lio de u m pequen o esc adote , sob e pa ra c i ma d a me sa.) M EN IN A – Tapa- te co m o meu l enci nho, pa ra do rmi res u m pouc o antes de o espetáculo começar. ( Gull ive r de ita -s e na mes a e tap a -se co m u m pano. ) G ULLI VER (bo cej ando) – Acho qu e vou des cans a r. M EN IN A – Eu fico aqu i a gua rda r- te. Do rme so ssegad inho. Ah, é tão bom brincar com um boneco vivo! G ULLI VER – Se n ão fo sses tu, que se ria d e mi m?




( Gull ive r não te m te mpo p ara re lax a r. Su rge um gig antone , co m um vo zei rão, qu e s e dirig e à as sist ência.) G IG ANT E 1 – Senho ras e s enho res , men inos e men inas , v enha m v e r o mais inc ríve l espet áculo do mundo . Venha m ve r a mini - c ria tu ra fa lant e! A mini -c ria tura faz endo hab ilidades. U ma moed a c ada b ilh ete! N ão há nada mai s ba rato! ( Ouve- se u ma voz ea ri a d e g igant es, que s e apinha m, qu e se e mpu rra m.) M EN IN A – Não se pode me xe r no bi chinho , que é mui to de lic ado. G IG ANT E 2 – É u m boneco de co rda? M ULHER G IG ANT E – Pa rece u m ga fanhoto! G IG ANT E 1 – Va i inic ia r-s e o esp etácu lo. At enção à dança dos palitos! (To ca uma ma rcha mi lita r. Gul li v e r põ e-s e d i reito, ma rca passo , baixa-se para apanhar um palito dos gigantes, que é de facto uma v a ra co mp rida , com que i mita u ma d ança gue rre ira , b ra ndindo- a co mo se foss e u ma l ança . A mús ica pa ra . O s g igante s ap la ude m.)


G ULLI VER (di rig indo -s e à Men ina) – A i, e stou che io de sed e, dá - me u m cop o de água . MULHER GIGANT E – O gafanhoto até fala! (A Menina dá-lhe ou aponta-lhe um balde de água.) M EN IN A – To ma l á. G IG ANT E 2 – O lhe m, bebe águ a po r u m deda l! ( Os gigan tes ri e m enquanto Gul liv er b ebe. ) – O que é qu e ele come? G ULLI VER – A inda be m qu e fa la m e m co mida. Est á na ho ra do a l moço. .. (Todo s ri e m.) ( A Menin a t raz -lhe u m p rato eno rme co m u ma pe rn a d e f rango a co mpanhado de esfe ro vit e, fing indo a rro z.)




G IG ANT E 1 – Hoj e o p etis co é u ma pe rna d e p arda l co m cin co g rão s de a rroz . (Gulliver tenta cortar a comida.) G ULLI VER – Esta pe rna de ave st ruz é d ura co mo u ma ped ra! (Todo s ri e m.) G IG ANT E 2 – Pa ra el e u m pa rda l é u ma aves t ruz! A h! Ah! Ah! ( Gull ive r e rgue nu m g arfo eno rme u m g rão de a rro z.) M EN IN A – Mast iga be m. Não engul as int ei ro o g rã o de a rroz s enão podes engasgar-te. G IG ANT E 1 – D espa cha-t e, que est á mais gente lá fo ra. Va i co meç a r o p róx imo e spet áculo! ( Dá- lhe u m p equeno e mpu rrão ou pipa rote .) Vá, lev anta- te e de spede- te d a s i mpáti ca audi ênc ia. ( Gull ive r da nça à vo lta do p rato , cu mp ri ment a, fa z endo u ma v énia pa ra a esque rd a, pa ra a d i reit a e pa ra a f rent e, ac ena co m o chapéu . Ati ram-lhe flo res (de p apel ) do ta manho de couv es. Gu ll ive r foge d as f lo res , ma s a inda apanha co m uma num pé , out ra na c abeç a. Solt a u m g ri t o d e do r e coxe ia, levando a s mãos à cabeça.)


M EN IN A – Cuid ado, q ue p arte m o meu bon eco! A i, des ta é que e le mo rre ! ( Os g igant es sae m. ) G ULLI VER (d escend o da mesa e di rig indo -s e à s cri ança s.) – Co m t rint a esp etácu los daqu ele s po r dia d ep res sa fi qu ei e stoirado . Pen sei que não ia resi sti r. Qu e m me va leu fo i a ra inha dos gigant es que me co mp rou e me l evou co m a M enin a pa ra o se u pa lác io onde passe i a t e r u ma v i da reg alad a, a té ao d ia e m qu e u ma águ ia ap anhou a cai xa onde me gua rd ava m. Co mo a so rt e esta va do meu l ado , cons egui reg re ssa r à minha te r ra . M as acha m que foi p a ra se mp re? MARIA – Acho que não. G ULLI VER – C la ro que não . Co mo a minh a pai xão era m a s viag ens, to rne i a e mb arca r. E s abe m ond e fu i t e r? M ANUEL – Ao Jap ão. M AR IA – À ilh a da Made i ra . G ULLI VER – Já vos vou mo st ra r...




4.º Ato Na Ilha dos Cavalos ( Cená rio co m li ndos p rados . À di reit a, u ma man je dou ra e u m b ebedou ro . Ao fundo , e legant es c ava lo s e u m c asa l d e ho mens -macacos. A lguns ca valo s ap roxi ma m-se . O s ho men s- mac acos fa ze m macaquices.)

C A VALO BR A NC O ( re lin chando) – Que macac ão t ão est ran ho! GULLIVER – Macaco, eu? Sou u m ho mem. C A VALO B RA NC O ( solt ando u m rel incho - risad a) – U m ho me m? N unca ouvi fa la r. .. Po r cá há mu itos pa rec idos con t igo, só q ue s ão u m bocado mais p eludos . ( Aponta p a ra u ma c riatu ra qu e pare ce u m macaco .) São bi chos b rutos , po rcos, sel vag ens, qu e go sta m muito de anda r à p a ncada ria . Cha ma mos - lhes yahus . G ULLI VER (of endido) – F aça favo r d e não me co nfund ir co m esse s an i mai s p ri miti vos. Nó s, os Ho mens , somos o s rei s da c riação ! C A VALO PR ETO – Qu e p re tens ioso! Aqu i que m mand a s ão os C avalos. ( Os out ro s c ava los abana m a cabe ça e re linch a m.)


G ULLI VER – Os ca valo s?! (à p arte. ) A minh a a l ma está pa rv a. N a minha te rra ta mb é m h á c ava los, ma s s e rve m pa ra n ós mont armos . Qu e r v e r co mo é? ( Gull ive r tent a mont a r o cav alo. ) CAVALO BRANCO (dand o u m p inote) – Respeitinho, respeitinho que é bo nito e eu gosto ! Co m que entã o na tua te rra voc ês mont a m os cavalos... Que mais fazem com eles? G ULLI VER – O ra .. . po mo -l os a puxa r ca rro ças , a c a rrega r p esos . Quando não obedecem levam com o chicote. (Fa z u m ges to de chi cote a r) C A VALO PR ETO ( indign ado) – Ne m posso ac red ita r! E quando o s c ava los enve lhec em? G ULLI VER ( at rapa lhado) – Be m... ta lve z s eja melho r n ão d ize r.. . C ava los (e m co ro) – Diz ! Di z! Di z! CAVALO BRANCO (batendo co m a p ala no ch ão) – Relincha, relinch a, q ue eu que ro sab e r. G ULLI VER – Be m, qu ando já não s e rve m pa ra n ada , mata m - se e e sfola m -se pa ra s e ap rove ita re m a s p ele s. A c a rn e é pa ra d a r aos cães. ( Cav alo B ran co s alt a pa ra t rá s ho rro ri zado .)




C A VALO PR ET O (in dignado ) – Q ue b ruta lid ade! E d ize s que a tua te rra não é d e s elv agens ! Poi s fi ca sabendo que aqui são os yahu s co mo tu qu e t ra balh am pa ra nós . GULLIVER (pondo -se de g atas) – E vocês andam a cavalo neles? Vão anda r a cava lo em mi m? C A VALO B RA NC O ( faz endo u m ges to p ara o ho me m se e rgue r) – Você s s ão t ão f ra cos que n e m pa ra i sso se rve m. ( O an i mal re linch a e ap ro xi ma -se de Gul li ve r. Anda à roda del e, ch ei ra-o , relin cha, re linch a, apa rent a e spanto .) C A VALO B R AN CO – Não chei ras tão mal co mo os n o ssos ma cacõ es. Provav el men te a chu va a rrancou -t e a lgu ma su jida de. G ULLI VER – O ra es sa, eu la vo - me! C A VALO B RA N CO (toc ando no chapéu de Gull ive r) – Ten s u m a lto na cab eça ... e o t eu co rpo é d e v á ria s co res. .. Que est ranho. .. (To ca n as d ive rsas peça s de roupa de Gul liv e r .) G ULLI VER ( rindo , ti ra o c hapéu) – Isto n ão fa z p arte d a cabe ça, é um chapéu. (o cav alo recua , ad mi rado .) G ULLI VER ( apontando o re sto d a roupa) – En tão a chas que ist o é a minha pe le?


CAVALO BRANCO – Ah , escondes -te po r b aixo desses objetos? D ece rto de ves se r ho rrív el, u m au tênt ico mon st ro. G ULLI VER ( i rrit ado, des ape rtando a ca misa e ti rando - a) – Est ás a v e r? (o cav alo enco sta o foc inho ao p e ito d ele pa ra apre cia r melho r.) C A VALO B RA N CO – Que pe le tão ma cia ! Olhand o pa ra os pé s de Gu ll ive r. Qu e e st ranho , nã o tens ca scos co mo nós ne m d edos co mo os ou t ros macaco s. G ULLI VER (ti rando os sap atos) – O ra es sa! Tenho d edo s, mas estão dent ro das bota s. (Mo st ra o s pé s.) CAVALO PRET O (apont ando as cal ças) – E o qu e tens aí po r ba ixo? G ULLI VER (d espindo as ca lça s) – O ra, tenho as ce rou las . ( O c ava lo t rot a à vol ta d ele .) C A VALO PR ETO – Então ti ra-as pa ra ve r co mo és po r b aix o . G ULLI VER – Qu e pouca -ve rgonh a! Se mp re me ensin a ra m a esconde r ce rt as p a rtes do co rpo. Iss o não ti ro . C A VALO B RA NC O – Nós, os Ca val os, anda mo s se mp re nus . Que ma l te m? N ão en tendo as tuas mani as.




( O C ava lo Preto va i at é à manj edou ra e t i ra u m punhado de p alha , que oferece a Gulliver.) C A VALO PR ETO – Prova , qu e é u ma espe cia lida de. ( Gull ive r p ega na pa lha. Vi ra-a e re vi ra- a, ma s não s e at re ve a comê-la.) G ULLI VER – Ê muito indig esta , pode f az e r- me cóli cas .. . Na minha te rra, usa- se p a ra enche r os colchõ es. CAVALO PRETO – Be m s e vê qu e és u m yahu , u m bi cho da fa míl ia dos macaco s. ( Dando- lhe u ma s raí zes t odas su jas de t e rra. ) Di sto é que tu deves gostar... Gu ll ive r tent a l eva r à bo ca as raí ze s , mas eno ja-se . G ULLI VER – Es ta po rc a ria dá - me volt a ao estô mago . ( Di rigindo -s e à s c ri ança s.) Que m me de ra uma be la b ifana ! Ma s e m te rra d e c ava los co m c ertez a é p rec iso se r vege ta ri ano. CAVALO BRANCO – Então , o qu e é qu e tu co mes? Ali mentas -te do a r? GULLIVER (vendo ao long e u ma vaca) – Já qu e por aqui há vacas, s e rá po ssí vel bebe r le ite?


C A VALO BR A NC O – Subist e na minh a co n side ração . Os cava los , quando jov ens, ta mbé m bebe m le ite. Que di zes d e u ma co rrida até à past age m? (La rg a m os doi s, a t rot e, depoi s a ga lope. Gu ll ive r reg ress a pouco depo is, soz inho, po is não consegu e a co mpanha r a velo cidad e do cav alo .)

G ULLI VER (de scendo do p a lco e di rig indo -s e às c rianç as) – Aqu i v ivi f eli z ent re o s cava los s ábios , pass eando nos p rado s c o m o meu senho r, o Cavalo Branco, e os seus filhos. N a ilha dos Ca valo s nã o há g ue rras , ne m mentira s, n e m so f rimento. É uma espécie de paraíso. Mas não consegui que todos os cavalos pen sassem que eu era di fe rent e dos mac acos . Ti ve ra m rece io d e mi m e fu i ob rigado a p a rti r. Com mu itas saud ades.




5.º Ato Gu ll ive r e m Po rtug al (L isboa , no te mpo d e D. Joã o V. O cená rio é u ma va randa co m ban cos de a zul ejo e ao fun do a vi sta da cidade.)

( Gull ive r, junto à fa ce ext erio r do pa lco, di rige -se às c ri ança s.) G ULLI VER – Ape treche i u m b a rco e fi z - me no va ment e ao ma r. Sonha va ir vi ve r pa ra u ma ilha d ese rt a. M as a ilh a onde fui t e r es tava ch eia de sel vagen s. At aca ra m- me. Sabe m qu em me sa lvou? MARIA – Um go lfinho ... G ULLI VER – Que m me re colh eu fo ra m o s ma rinh ei ros d e u m na vio. Adivinham quem eram eles? M AN U EL – Era m p i rata s! M AR IA – Era m pes cado re s!


G ULLI VER – Era m po rtugu eses , os g rande s senho re s do s mares. Você s po r aca so já ou vi ra m fa la r do s Po rtugue ses? C R IA NÇ A S – Nó s v ive mo s e m Po rtugal ! G ULLI VER – Os Po rtugu ese s co rre ra m todos os ma res . Já ou vi ra m fa la r de algu ma s da s su as viag ens? O ra conte m lá .. . M AR IA – De scob ri ra m o B ras il! M AN U EL – D escob ri ra m o ca minho ma ríti mo pa ra a Índ ia. G ULLI VER – À p rimei ra vist a, t ive medo qu e el es fos se m u ma e spé cie d e mac acos co mo os qu e vi via m n a i lha dos C ava los . Vocês , que já v i ra m po rtugu ese s, co nfunde m-n os com ma cacos ? M AN U EL – O ra es sa! Eu sou po rtuguês . Nada de confu sões . M AR IA – E eu sou po rtugues a . Não me di ga que lhe pa reço u m go ri la ou u m chi mpan zé . Não me ofen da. G ULLI VER – De fact o, n ão podi a m se r mai s gent is , s i mpáti cos e a colhedo res. Vou a presen ta r-lh es o c apitão d o na vio que me reco lheu , D. Ped ro Mend es. Levou - me p a ra a su a c as a. Ele aí ve m.



( Gull ive r sobe pa ra o p alco . D . Ped ro Mend es avan ça e cu mp ri menta G u lli ve r. ) D . PED RO – Então , meu a migo, cheg á mos a bo m po rto . É ho ra d e descansar das viagens. ( Gull ive r rel inch a.) D. PEDRO – Senho r Gu ll ive r, nã o s e esqu eça d e que já n ão est á na t e rra dos C ava los. L isboa é u ma cidad e d e mui tas e v a riad as gen tes , onde que m go ve rna ê Su a Ma jes tade D . João V. G ULLI VER – Te m anões , co mo e m L il liput? D. PEDRO – Ah , não ! GULLIVER – E gig ante s? D . PED RO – Ta mb ém n ão. O s enho r vi veu tan to te mpo e m s íti os e xt rav agante s que at é já se es queceu d a Velh a Eu ropa . Va mos b rind a r ao seu reg re sso à c iv ili zaç ão. (Le vant a u ma ta ça que dá a G ul liv e r e ba te nel a co m a out ra que gua rdou pa ra s i.) D. PEDRO – À sua saúd e!




G ULLI VER – Que beb ida é e sta? Te m u ma co r t ão es cu ra. .. Te rá te rra mi stu rada? D . PEDR O ( indign ado) – Isto é v inho, e do me lhor! Pis ado na mi nha adega. GULLIVER (rejeitando o vinho) – Na ilha dos Cavalos de onde eu v enho só se beb ia águ a pu ra . Lá co nvenc e ra m- me de q ue é po rcari a beb e r u m líqu ido qu e s e rviu pa ra la va r o s pé s. D . PEDR O – O ra essa ! O lhando e m redo r. Fe li zmente ni ngué m no s e stá a ouv i r, mas a viso -o qu e tenha cu idado com a l íngua. Nã o dig a tudo o qu e pen sa. Le mb re -se de qu e aqu i h á a Inquis ição . G ULLI VER ( dando u m p asso at rás) – Que i ma m as pe ssoa s qu e t ê m id eia s d ife ren tes , nã o é? R eal mente os cav al os não são a ssi m... Ond e é que já s e v iu u m cav alo f aze r u ma fogue ir a p a ra que i ma r out ro s c ava los?! O s Homens é que são esqui sito s. T ê m cad a man ia! Até inv enta ra m a gue rra!


( Co meç am a ent rar os fi dalgo s e a s f idalg as, ri cament e vest idos, con ve rsan do e fa zendo sal a mal eques . Gulliver olha -os, espantado.) G ULLI VER – Tant as jo ias ! Tanto ou ro! Po rtug al é u m p aís cheio de mina s? D. PEDRO – Tudo i sto ve m do Brasi l. L isboa é uma da s cid ades ma is espl êndida s do mundo. G ULLI VER – Mas os fida lgos deve m se r ca re cas , coi tados .. . (Le va a s mã os aos cab elo s e pu xa -os , ve ri fic ando co m a lív io que est es não es tão a cai r.) Há aqu i a lgu ma epid e mia de tinh a ou de piolhos? D . PEDR O – D e modo n enhu m. De onde ti rou ta l ide ia? G ULLI VER – Muito s usa m cab ele i ras posti ças! Cab ele i ra s b ranc as, co mo a s dos velho s! (s audoso) Co mo é bo m d eix ar voa r o s c abelo s ao v ento co mo c rina s de c ava los (p assa os dedos ent re os cab elos). D . PED RO – Ma is u ma vez lhe p eço que esque ça e sses quad rúpedes.




( Co meç a a mú sic a a toca r. Vão apa rec endo na va ran da fid algos ri ca ment e v esti dos. In ici a -se o b ail e.) D . PEDR O – Po rque não vai dan ça r? Repa re como são bel as as damas... ( Gull ive r avan ça, h esi tante , olh a à vo lta pa ra ve r co mo se con vida m as senho ras e ganh a f inal mente co rage m. D ança co m u ma f idalg a, mu i to des aje itad amente , co m t reje itos d e cavalo de alta escola. Os fidalgos não conseguem conter o riso.) D . PED RO (di rigindo - se às c rianç as) – N ão qu e ro v e r a juven tude pa rada. Gen til menin a, b ravo rapaz , a co mpanhe m -nos nest e ba il e. Venha m danç a r. ( D. Ped ro conv ida Ma ria e Manu el , en sina ndo -lhes os pas sos da dança. Todos bailam. A mús ica pa ra . D . Ped ro ap ro xi ma - se d e Gu ll ive r, põe -lhe a mão no omb ro .) D . PEDR O – Então, i lust re v iaj ante, que me d iz dest e Po rtuga l? G ULLI VER – É s e m dúv ida u m be lo p aí s ch eio d e sol . E gente ma is a má vel nunc a conh eci . M as t enho u m ba rco à minha esp e ra. ..



( D. Ped ro , as c ri ança s e o s fida lgos rode ia m Gu lliv e r, can tando e dançando.) TO DO S ( menos Gu lli ve r) – Ó ete rno vi ajan te, Tu nunca podes pa ra r, O sangue das tuas veias É f eito de água do ma r. É f eito de água do ma r, Ondas de imaginação. C onta- me as tua s v iagen s, Qu e r s eja m rea is ou não .

( Gull ive r esc apa-s e, enquanto o s Po rtugue ses con tinua m cantan do. De u m can to do palco diz ad eus à p lateia co m u m len ço b ran co.)





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