Revista CDM Digital #40

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ano 14 - edição 40 junho de 2016

revista corpo da matéria CURSO DE JORNALISMO PUCPR

A solução está no lixo!

O descarte de alimentos demonstra que a fome no mundo é um problema de logística, e não de escassez.

Corpo da matéria

Ano 14 - Edição 40 - Junho de 2016

Revista Laboratório do Curso de Jornalismo PUCPR

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

R. Imaculada Conceição, 1115 Prado Velho, Curitiba PR

REITOR

Waldemiro Gremski

DECANA DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES

Eliane C. Francisco Maffezzolli

COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO

Julius Nunes

COORDENADOR EDITORIAL

Julius Nunes

COORDENADOR DE REDAÇÃO/JORNALISTA RESPONSÁVEL

Paulo Camargo (DRT-PR 2569)

COORDENADOR DE PROJETO GRÁFICO

Rafael Andrade

Alunos - 6º Período Jornalismo PUCPR

Alvaro Alves Lunardon, Ana Carolina de Souza, Ana Carolina Pacífico Cordeiro, Ana Paula Rusycki, Anna Caroline Augusto Pires, Bruna Caroline Santos Cavalheiro, Caio Ferreira Liberal, Caroline Cristine Costa Paulart, Caroline Ribeiro, Fabricio Calixto de Oliveira, Fernanda Maldonado Mocelin, Gabrielle Rocha Russi, Gilberto Stori Junior, Izabela Cristina Weber Azevedo, Karen Geovanna Loayza Taverna, Leticia da Silva Zan, Lucas Henrique Morking Ramos, Manoela Campos de Oliveira, Marjorie Coelho dos Santos, Matheus Rodrigues Urbano, Patricia dos Martyres, Paulo Rogério Morschbacher Junior, Renata Helena Fernandes, Sâmela Veiga Rodrigues de Carvalho, Stephanie de Morais, Veronica de Paula da Rocha Alves, Vinícius Frank Vaz

Imagem de capa: Patricia Martyres -6ºP Jornalismo

2 Revista CDM Jornalismo PUCPR
Jornalismo PUCPR Revista CDM 3 CIDADES O pote de lixo no fim do arco-íris 4 Uma odisseia silenciosa do desperdício 10 Um bairro em alerta 12 Nova lei altera licença-paternidade 16 SOCIEDADE Sem vagas no “cistema” 20 ECONOMIA Paixão pelos livros supera crise 26 BEM-ESTAR Boa noite, durma bem 28 SAÚDE A vida além do câncer 32 TECNOLOGIA A brincadeira acabou 36 CULTURA Vozes e sons da cena local 40 A queridinha da capital paranaense 46 COMPORTAMENTO Deu match! E agora? 52 ESPECIAL PERIFERIAS Feminismo negro 56 Racismo religioso 60 Imigrantes sírias tentam sucesso no Brasil 66 Livre para sorrir 70 Adoção, um gesto de escolha ou de amor? 74 O crime estampado na pele 80 Um mote de transformação 82 Boxe como projeto social 86 Vida longa 90 O rei da bandeja 94
cidades 4 Revista CDM Jornalismo PUCPR

O pote de lixo no fim do arco-íris

Da produção às pontas de mercado, o descarte de alimentos saudáveis é um caso de saúde pública em todo o mundo.

Os alertas sobre a questão do desperdício soam a muitos como discurso de mãe. “Nada de deixar comida no prato!” é o que muitos já ouviram, abaixo da birra diante da obrigação de raspar o prato. Com o passar dos anos, contudo, a consciência alimentar sai do microcosmo familiar e demonstra ser uma questão global – a solução para o problema da fome no mundo.

O maior espaço de comércio e distribuição

de hortifrúti do Paraná é a Ceasa (Central de Abastecimento de Alimentos) de Curitiba, que impressiona desde o lado de fora. Localizada no bairro do Tatuquara, as cancelas da entrada principal já transmitem uma sensação fronteiriça de aduana ao local, com enormes estacionamentos dentro e fora, e veículos de carga entrando e saindo a todo instante.

De fato, a Ceasa se assemelha a uma pequena cidade movimentada a todo vapor, em uma

área de mais de 500 mil metros quadrados onde aproximadamente 350 produtores

agrícolas e mais de 600 atacadistas circulam diariamente a partir das cinco horas da manhã.

No caminhar frenético dos transportadores de caixas e carrinheiros, a quantidade de frutas, verduras e legumes surpreende a cada olhada.

Entre o vai e vem, porém, até mesmo um visitante menos atento nota um comportamento comum entre a maior parte das pessoas ali dentro: a ação de descarte, intencional ou não, de produtos aparentemente bons para o consumo. A cada passo, há abóboras, tomates, abacaxis, mamões, pepinos e toda a sorte de hortifrútis jogados no chão, no asfalto e nos gramados.

O desperdício de alimentos na Ceasa é um imenso problema público sobre o qual grande parte da população pouco ou quase nada conhece. Todos os dias, a Central de Abastecimento de Curitiba – falando apenas da de Curitiba, sem contabilizar as outras quatro Centrais no Estado – despeja em torno de 40 toneladas de alimentos no lixo. Isso representa um impacto de 960 toneladas que vão diretamente para os aterros todos os meses. Se há tanta sobra de comida apenas em nossa região, como é possível que, ainda hoje, uma em cada

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Fernanda Maldonado e Patricia dos Martyres

nove pessoas no mundo passe fome, segundo dados da ONU?

O problema, portanto, não é a falta de comida no mundo, mas a sua má distribuição entre as pessoas. É essa a ideia defendida pelo líder do movimento Slow Food Pró-Vita no Paraná, João Alceu dos Santos. Através dos trabalhos realizados pela ONG Slow Food, que teve sua origem na Itália em 1986 e hoje tem representantes no mundo todo, Santos conquistou um espaço dentro da Ceasa, com o objetivo de interferir no ciclo do desperdício alimentício do sistema e dar um novo destino aos produtos viáveis para consumo que iriam para o lixo.

Foi então que a ONG reativou uma estrutura de cozinha industrial, anteriormente abandonada, e passou a promover eventos voltados à populações carentes. De ceias de Natal até festas juninas, a comida dos eventos é 100% preparada a partir das coletas realizadas na Ceasa. “Há quem não acredite que alimentos tão bons são considerados descarte, mas aqui ninguém passa fome”, brinca o representante da organização.

Para o gerente do Banco de Alimentos, Gilmar Palvelski, o desperdício acontece durante todo o ciclo econômico de alimentos. “Desde a própria produção rural, lá nas lavouras, muito se perde devido principalmente às dificuldades

de transporte e logística desses produtos, que geralmente são bastante frágeis”, destaca. Além disso, são poucos funcionários para atender as demandas de descarte, o que leva a maioria dos produtores a contratar o serviço de coleta de lixo para se livrar do montante, encaminhando-os direto aos lixões e ainda pagando por isso.

A ONG Slow Food está concretizando, aos poucos, medidas que visam à mudança do destino de bons alimentos para instituições filantrópicas e pessoas em vulnerabilidade econômica. “No início, salvávamos apenas cerca de quatro das 40 toneladas diárias de alimentos. Hoje estamos caminhando para mais de 12 toneladas recuperadas todos os dias”, diz Santos.

No complexo da Ceasa existem hoje três pontos de coleta chamados Ecopontos, cada um

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“Há quem não acredite que alimentos tão bons são considerados descarte”
Produtores descartam grande parte de sua produção por questões logísticas Patricia Martyres

com uma máquina de prensagem das sobras orgânicas que não podem ser aproveitadas, e alguns funcionários e voluntários para realizarem uma triagem dos alimentos recebidos. Esses alimentos são distribuídos para as entidades cadastradas gratuitamente no Banco de Alimentos. Em um dos Ecopontos, Raimundo Langner, voluntário de uma paróquia da igreja católica escolhia tomates de dentro de dezenas de caixas repletas da fruta. “Servimos almoços diários para a comunidade carente da região da igreja, que fica no Cajuru. Eu venho aqui uma vez por semana e consigo levar mantimentos suficientes para o almoço de todos os outros dias”, conta Langner, um senhor de cabelos brancos e energia invejável. Para ele, onde os produtores e atacadistas enxergam lixo, as entidades sociais veem alimento.

As várias facetas do problema

As Centrais de Abastecimento de Alimentos em todo o país são apenas o “ponto médio” do ciclo do desperdício. O problema continua bem depois da distribuição de produtos para

mercados municipais, redes de supermercados, feiras, restaurantes e no âmbito doméstico também. No Brasil, a Agência Nacional de

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Apesar de proibido, algumas pessoas recolhem os alimentos rejeitados na Ceasa. Patricia Martyres 40 toneladas de alimento são levadas aos lixões diariamente.
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Patricia Martyres

Vigilância Sanitária (Anvisa) responsabiliza os proprietários de estabelecimentos, civil e criminalmente, por eventuais danos a saúde de quem consumir alimentos doados ou distribuídos por eles.

A lei, que se aplica às pontas de comércio, tornou quase nula a doação dos alimentos que sobram nos restaurantes, a chamada “sobra limpa”. Mesmo que a comida preparada não tenha saído da cozinha sequer para a gôndola do buffet, o descarte dos excessos é feito na maioria das vezes direto no lixo.

A ex-garçonete Emília Zanote, que passou por diversos restaurantes em sua vida profissional, diz que de tão comum, o descarte se torna automático. “A gente se acostuma a jogar comida boa no lixo, já que na grande maioria dos restaurantes o patrão não deixa nem que os funcionários levem as sobras pra casa”, comenta.

Desperdício nos supermercados

Já nos supermercados, o cenário é semelhante. Segundo um representante de vendas para supermercados de Curitiba e região de uma marca de laticínios que não quis se identificar, é por causa dessa legislação que os mercados se recusam a destinar gratuitamente produtos com poucos dias da data de vencimento.

“Logo que chegaram ao Brasil, algumas redes internacionais tentaram doar parte desse estoque ainda consumível, mas por causa do embate com a Vigilância, a prática foi descartada e hoje eles têm uma parceira com uma empresa de recolhimento de lixos, que direcionam os produtos sem qualquer risco de serem desviados por alguém ou um grupo de pessoas”, relata ele.

Em alguns países do exterior, como a Dina-

marca e a França, por exemplo, essa realidade é bem diferente. Há um ano, Copenhague, a capital dinamarquesa, recebeu o primeiro “mercado de vencidos” do país. O empreendimento, chamado WeFood, é sustentado pela comercialização de produtos vencidos ou que estão prestes a vencer e anteriormente eram vendidos no comércio convencional. No WeFood eles têm uma etiqueta de menos da metade do valor original, ou seja, o consumidor paga uma bagatela por um produto ainda consumível.

“WeFood é o primeiro supermercado do gênero na Dinamarca e talvez até no mundo. Não estamos apenas estendendo a mão para os consumidores de baixa renda, mas tentando apelar para quem se preocupa com a quanti-

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“Sobras limpas” são destinadas à entidades filantrópicas.
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Patricia Martyres

dade de resíduos de alimentos produzidos em nossa sociedade”, é o que defente Per Bjerre, um porta-voz da iniciativa. Para Bjerre, enquanto 79 milhões de pessoas estão passando fome todos os dias no mundo, é inadmissível que continuemos vivendo um mesmo sistema falho de distribuição alimentar.

A consciência começa em casa

Apesar da falha que permeiam toda a cadeia alimentar, são as atitudes individuais que possuem a potência de alterar o micro e reverberar no macro. É assim que pensa Flávia Sotto

Maior, advogada que despertou para o assunto em uma viagem à Alemanha. “Fiquei sozinha na casa de uma amiga e me surpreendi com a quantidade de resíduos que produzi nesse tempo”, diz ela. A situação ficou mais evidente estando em um país com maior consciência a respeito do desperdício e com políticas públicas que estimulam as atitudes individuais. “Na Alemanha, se você jogar lixo orgânico no lugar do plástico, por exemplo, é capaz de irem na tua casa deixá-lo de volta”, brinca Flávia, ressaltando que lá existe multa para quem mistura os resíduos orgânicos com os recicláveis.

Após o contraste, a advogada passou a se atentar aos ciclos domésticos e, desde então, busca se especializar nas alternativas para o problema, afinal, para ela a consciência ambiental é o princípio necessário para a harmonia global. Assim, começou a dar palestras sobre o uso da composteira doméstica, para onde são destinadas as sobras orgânicas que se tornam novamente alimento no futuro e solucionam o problema dos lixões. Também aderiu à ONG Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA), uma iniciativa internacional que já acontece em 60 lugares do Brasil e estimula

o consumidor a comprar alimentos orgânicos direto dos produtores. Dessa forma, o agricultor sabe a quantidade exata de alimentos que deve produzir e tem seu salário garantido, sem depender das pontas de mercado, que são grandes responsáveis pelo desperdício.

Flávia participa há seis meses do projeto, vigente na região de Curitiba, e é positiva sobre a alternativa. “É algo simples, eficaz e sustentável, além de trazer vantagens tanto ao produtor quanto ao consumidor, que tem toda semana alimentos orgânicos com preço justo”, complementa.

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Flávia e sua composteira: iniciativas e soluções caseiras
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Patricia Martyres

Uma odisseia silenciosa do desperdício

Dos quase 60 anos de existência do Mercado Municipal de Curitiba, dona Maria está lá há 49. Já aposentada duas vezes, a franzina senhora deixa diariamente sua casa no Parolin para ocupar um cantinho em que, sentada numa estrutura de concreto, presta serviços a alguns feirantes. O caminho de cinco quilômetros até sua casa, que hoje é feito de ônibus, durante muito tempo foi feito à pé. “Eu ia e voltava de casa puxando meu carrinho, já que ganho dos feirantes os alimentos que eles iam jogar fora”, conta. Com esses alimentos, descartados em grande parte por alguma batida na casca ou

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Patricia Martyres

ranhura nas folhas, dona Maria alimentou seus cinco filhos com riqueza de cardápio. “Eles jogam tanta coisa boa fora que dá até dó”, diz ela, que leva apenas uma pequena parcela dentre os tonéis descartados diariamente.

Dona Maria permanece exatamente na divisa do corredor que liga o interior ao exterior do mercado. Fica entre o palco de quimeras coloridas, com frutas, legumes e verduras que reluzem impecáveis das gôndolas, e os bastidores, cujos alimentos já não tão lustrosos são amontoadas dentro de sacos plásticos e jogadas em algum dos cinco tonéis, recolhidos pelo caminhão de lixo duas vezes por dia.

Quem passa por ali logo conhece Cláudio, de 43 anos, que foi recentemente contratado pelo lugar para manter a ordem dos descartes. “Tinha gente que revirava os tonéis pra pegar os alimentos, mas daí acabavam abrindo os sacos e fazendo sujeira”, conta Claudio, orgulhoso de seu ofício.

Conscientes do desperdício diário, algumas pessoas, assim como dona Maria, adquiriram o

hábito de reaproveitar os alimentos das feiras. É o caso do rondoniano Rodrigo Alves, artista independente que conheceu os “Recicles”, nome dado à prática, através de um coletivo de Curitiba, o El Quinto. Com isso, o grupo garantia a alimentação completa de todos os integrantes e, com o tempo, desenvolveram até algumas estratégias. Dentre os passos, Rodrigo conta que a abordagem ao feirante é muito importante, já que alguns preferem ajudar apenas os recolhedores despretensiosos. “Se você aborda como uma necessidade eles não são muito receptivos, já que não querem que muitas pessoas vão pedir”, alerta.

Apesar disso, o recicler ressalta que a maioria dos feirantes apoiam a ideia e ajudam muito, alguns até criando vínculos de camaradagem ou práticas de trocas. Depois da coleta, o Recicle do dia passa pelo processo de seleção para descartar os que já estão passados, contudo, como bem frisam os adeptos do movimento, a maioria está em ótimo estado para consumo.

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Reciclers em ação após resgate de alimentos no Mercado Municipal Divulgação
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Arquivo pessoal

Um bairro em alerta

Guabirotuba é exemplo de engajamento de moradores e forma lideranças em prol da segurança do bairro

Caio Liberal

A Praça Abílio de Abreu atrai muita gente nos fins de semana graças à sua pista de asfalto.São skatistas, pilotos de carrinho de rolimã e ciclistas. Mas o local também é alvo de delinquentes e criminosos.

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Caio Liberal

Pouca gente sabe onde fica e muita gente confunde com Guaraituba, Guaratuba... O bairro tem um formato de losango bem peculiar, o que facilita a identificação de seus limites geográficos: Avenida Comendador Franco, Linha Verde, Canal Belém e Cel. H. dos Santos (recebe o nome de José Rietmeyer a partir da Av. Salgado Filho). Fato é que o bairro do Guabirotuba está em uma região muito bem localizada, há dez minutos de ônibus do centro da cidade.

“É um bairro muito antigo, muito tradicional e de classe média. Muitos aposentados vivem aqui, é só pegar a linha Guabirotuba e comprovar: só tem idoso! ”, diverte-se a presidente da Associação dos Moradores, Elza Jacob Bretas, que há 45 anos mora por lá e há 20 está à frente da organização ao lado de seu marido. Poderia ser um bairro de casas como outro qualquer, mas lá os moradores são conhecidos pela articulação à serviço da segurança.

Iron é idealizador do Vizinhos de Olho, projeto que antecedeu os grupos de internet.

Além de ter um Conselho de Segurança (Conseg) atuante, com presença fixa da Polícia Militar e da Polícia Civil, os moradores se ajudam de diversas formas: projeto Vizinhos de Olho, grupos de Whatsapp e Facebook. O projeto Vizinhos de Olho é de autoria de um ex-morador do bairro, Iron Ayres, professor de Tecnologia da Informação. Hoje ele mora no Cristo Rei, mas ainda mantém laços fortes com a antiga vizinhança. Ayres é integrante do Conseg e explica o projeto. “Ele funciona como um sistema, não como uma rede. Formam-se triângulos de cooperação, ou seja, três casas se ajudam, se protegem. Os triângulos se conectam entre eles, pois além das duas casas que formam meu triângulo, uma casa participa de outro triângulo”, explica. Ayres também disponibiliza uma sirene, a ser instalada em um ponto estratégico da rua, a preço de custo, montada por ele mesmo.

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Caio Liberal Stella e seu marido Nivaldo criaram o grupo O Guabi é Nosso para conhecer melhor os vizinhos.
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O grupo fechado dos moradores do bairro no Facebook foi criado pela promotora de Justiça

Criminal Stella Burda. Após invadirem sua casa e machucarem seus filhos e marido em setembro de 2012, ela decidiu que tinha que agir de alguma maneira. “O fundo do poço serviu para a atitude”, diz. Reunindo algumas lideranças do bairro já conhecidas do Conseg e da Associação dos Moradores, Stella idealizou um movimento chamado “O Guabi é nosso”, e que nomeia o grupo do Facebook.

O grupo atualmente não se restringe a questões de segurança, abrindo espaço para outros temas como limpeza, saúde pública e manutenção do patrimônio coletivo. O aplicativo que não abre espaço a outro assunto que não seja segurança entre os moradores do bairro é o Whatsapp.

Elenice Novak, professora de Empreendedorismo e Administração de Empresas, faz parte

de 14 grupos de Whatsapp com a mesma imagem, nomes diferentes, mas todos voltados à comunicação dos moradores do bairro para proteção, fiscalização e observação.

Elenice criou um sistema de exercício cidadão através do Whatsapp. “Os moradores fazem parte de um grupo da rua onde moram e escrevem sobre suspeitas, testemunho de roubos e fazem alertas aos vizinhos. O administrador desse grupo faz parte como membro comum de algumas ruas mais próximas.

Além disso, há um grupo apenas de administradores das ruas do bairro. Decidimos o que deve ser levado aos órgãos competentes”, explica. Dos 14 grupos aos quais pertence, um é o de sua própria rua, 12 são de ruas próximas à dela e outro é dos administradores.

Elenice montou um esquema de grupos de whatsapp envolvendo as ruas do bairro.

Tanto engajamento chamou a atenção da Polícia Militar. “O bairro do Guabirotuba é um exemplo. Usamos o bairro como referencial em palestras sobre cidadania para outros bairros da cidade”, revela o capitão Gil Alessandro Zwir, da 2ª Companhia do 20º Batalhão da PM. Já o capitão PM Eliéser Antônio Durante Filho, da Polícia Comunitária, transformou a experiência do bairro em trabalho de pós-graduação em gestão pública. “Os moradores do Guabirotuba representam a cidadania. Eles são

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“Os moradores do bairro representam a cidadania.” Capitão Durante, da Polícia Militar.

o exemplo de como o cidadão deve atuar, deve trabalhar em comunidade”, elogia. Informação demais no Facebook. Informação demais pelo Whatsapp. Os moradores do bairro ficam sabendo instantaneamente de casos de assaltos, furtos, roubos. Especulam quase diariamente sobre suspeitos que rondam de carro ou a pé as ladeiras da região. Dona Maria Leopoldina Malagurti é presidente do Conseg há pouco tempo e garante: “Eu me sinto mais segura sabendo que meus vizinhos estão cuidando de mim, principalmente quando saio a pé”. Para não entrar em paranoia, o capitão Durante Filho faz um alerta e um elogio. “Os próprios moradores precisam trabalhar com um filtro. Acredito que os líderes do bairro estão fazendo isso muito bem. ”

O bairro do Guabirotuba não chega a ser um Big Brother, mas exemplifica como bisbilhotar a vida do outro também pode ter seu lado positivo.

Guabirotuba

Por dentro do bairro:

• 11.461 habitantes

• 4.124 domicílios

• 265 hectares (ha)

• 2,65 km²

• 43,18 hab/ha

• Idade média de 35,8 (2010)

• 98,97% é a taxa de alfabetização de pessoas com 10 ou mais anos de idade

• 1,02 habitantes por veículo

• 12,70% da área do bairro é considerada área verde

• 1 área de ocupação irregular

Fonte: IPPUC

Maria Leopoldina é presidente do Conseg e tem uma sirene do projeto Vizinho de Olho em sua casa. O aparelho pode ser acionado por outras casas da rua que participam do projeto. Ela conta que já salvou sua vizinha da frente ao disparar a sirene, que ajufentou os criminosos.

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Nova lei altera licença-paternidade

Alteração da licença para 20 dias ainda não abrange todos os pais

Texto: Izabela Weber

Fotos: Stephanie de Morais

Edição e Diagramação: Sâmela Rodrigues

Onascimento de um filho representa um momento importante para todo casal. São nove meses de espera, imaginando como será o rostinho, com quem o bebê irá se parecer. Após o parto, a mãe também precisa de cuidados assim como a criança, e a figura paterna se faz necessária para dar apoio e ajuda nos primeiros dias de adaptação à nova rotina.

De um lado, o programador musical Lucas Bauermann, aguarda o nascimento da filha que em breve virá ao mundo. Ele vai ficar apenas

cinco dias em casa neste período. De outro, o bancário Dirceu de Lima conta como foi importante ter passado mais tempo em casa auxiliando sua esposa, após a chegada do bebê.

Recentemente, um projeto de lei foi sancionado pela Presidência da República, ampliando o benefício de licença-paternidade de cinco para 20 dias, inclusive em casos de adoção. No entanto, o projeto, chamado Marco Legal da Primeira Infância (PLC 14/2015), é válido apenas para empresas que participam do Programa Empresa Cidadã, criado pelo governo

Babies by Savana - Arquivo pessoal

O bancário Dirceu acompanhado de Heloísa e a filha Francisca.

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federal. O programa permite que as empresas declarem impostos de renda por meio de lucro real, ampliando assim, a licença-maternidade de quatro para seis meses para as funcionárias grávidas.

Segundo o advogado Osni Canfild Filho, todas as empresas devem conceder licença remunerada ao pai no primeiro dia útil do nascimento do filho, sendo uma obrigação legal o período de cinco dias. O funcionário deve avisar a empresa do nascimento do filho para que possa receber o benefício, e, no retorno da licença para o trabalho, deve comprovar a paternidade. Desta forma, a empresa fica responsável por comunicar o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e o sindicato da categoria do funcionário, da utilização do benefício.

“A empresa que não conceder a licença-paternidade, poderá sofrer sanções de cunho administrativo com as aplicações de multas, bem como pode responder junto ao Ministério

Público do Trabalho ação judicial própria diante do grau da ilicitude cometida”, afirma o advogado.

Dirceu Lima, bancário.

Uma das empresas participantes do programa

Empresa Cidadã é a Caixa Econômica Federal. Márcia Krambeck, gerente de filial de gestão de pessoas no Paraná, explica que a empresa já concede a licença-maternidade às funcionárias, são 120 dias, com prorrogação de mais 60

dias, possibilitando a mãe de ficar mais tempo com seu filho.

Na licença-paternidade, a Caixa dá ao empregado o direito de se ausentar do trabalho em decorrência do nascimento de filho ou adoção de menor. O período da licença é de até dez dias úteis, podendo ser consecutivo ou não, mas deve ser utilizado dentro de 180 dias, contados a partir da data do nascimento da criança.

O bancário Dirceu de Lima conta que utilizou cinco dias do período de licença, quando sua filha Francisca nasceu, e mais cinco dias depois, junto a alguns dias de férias que ele tinha para tirar, o que totalizou um mês. “A licença de cinco dias é insuficiente para um pai ajudar sua mulher nos cuidados com o recém-nascido. Só no hospital, ficamos uns três dias e se a licença fosse de cinco dias, sobrariam apenas dois dias em casa pra ajudar a cuidar do bebê”, comenta Lima.

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“O ideal seria no mínimo 30 dias, que é um período para ter uma melhor adaptação. ”
Stephanie de Morais cidades

Para Dirceu, a licença de 20 dias seria um tempo razoável, “o ideal seria no mínimo 30 dias, que é um período para ter uma melhor adaptação. Só depois de um mês, que eu consegui ter uma noite de sono um pouco melhor”, afirmou o pai.

Em sua experiência, o bancário relatou que foi um tempo cansativo depois do nascimento da filha, pois como é pai de primeira viagem tudo no começo foi novidade. Foram diversas noites sem dormir, quando suas atividades baseavam-se em aprender a cuidar de um bebê, trocar, dar banho e outras funções paternas.

À espera do nascimento da filha, o produtor musical Lucas Bauermann irá utilizar apenas cinco dias de licença, pois a empresa onde ele trabalha não participa do Programa Empresa Cidadã. Lucas aponta que a mulher também necessita de apoio no período do nascimento do bebê, pela questão de fragilidade, e de auxílio nas tarefas da casa.

Em relação à nova licença-paternidade de 20 dias, ele classifica como um fator importante para todas as empresas aderirem. “Precisamos de mais tempo ao lado do bebê após o nascimento, para curtir o filho, adaptar-se à nova

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“Precisamos de mais tempo ao lado do bebê após o nascimento, para curtir o filho, adaptar-se à nova rotina.”
Lucas Bauermann, produtor musical.
A chegada de um filho é como um presente aos pais. cidades
Stephanie de Morais

rotina. As empresas não saem perdendo, e o funcionário fica feliz”, disse.

O jornalista Chrystian Oliva tirou licença-paternidade no início deste ano e, para ele, os cinco dias foram válidos mesmo que na maternidade o bebê permaneça de dois a três dias. Oliva assistiu ao parto do filho Valentim pegou-o no colo minutos após o nascimento, acompanhou o primeiro banho, a primeira troca. Segundo ele, 20 dias de licença é um tempo aceitável desde que o pai usufrua deste período para curtir o filho e ajudar a mãe.

Licença Paternidade no

Mundo

Em comparação ao Brasil, vários países já estão à frente quando o assunto é licença-paternidade. A Revista Forbes publicou em agosto do ano passado, um ranking com 14 países que concedem maior tempo de licença.

1 Coreia do Sul e Japão (52 semanas)

2 França (28 semanas)

3 Luxemburgo e Holanda (26 semanas)

4 Portugal (21 semanas)

5 Bélgica (19 semanas)

6 Noruega (14 semanas)

7 Islândia (13 semanas)

8 Suécia (10 semanas)

9 Finlândia (9 semanas)

10 Áustria, Alemanha e Croácia (8 semanas)

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Arquivo pessoal
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O casal Dirceu de Lima e a esposa ainda à espera de Francisca.

Sem vagas no “cistema”

Preconceito e evasão escolar colocam transgêneros na prostituição e fecham as portas para o mercado de trabalho

Texto e Fotos: Vêronica Alves

Diagramação: Marjorie Coelho

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“Parabéns, agora você é digna de ser chamada de Fernanda” foi o que declarou um dos professores da banca julgadora do trabalho de conclusão de curso de Maria Fernanda Ramos. Sentada em um dos banquinhos da pequena sala da ONG em que trabalha, ela relembra com escárnio a frase ouvida após a apresentação de sua monografia: “Um estudo de modelagem de lingerie para pessoas transgênero”.

A escolha do tema do trabalho foi apenas uma de suas respostas às dificuldades encontradas no meio acadêmico, desde quando iniciou o curso de Design de Moda na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), e vividas até hoje. Quatro anos antes, quando terminara a faculdade, em 2011, Fernanda, mulher trans de 29 anos, recusou-se a ser chamada pelo nome de nascimento durante a formatura e, desde então, espera pelo dia em que poderá, enfim, colar grau. Após um longo processo judicial, a data para o recebimento do diploma agora está próxima, será em agosto deste ano, e só então ela poderá, quem sabe, procurar um emprego em sua área.

Mesmo ciente de que em breve terá como comprovar sua graduação e da necessidade de se qualificar para o mercado de trabalho atual, Fernanda sabe que talvez isso não seja suficiente. Não para transexuais e travestis, pessoas que se identificam com um gênero diferente daquele que lhes foi atribuído no nascimento. “Conhecemos muitas meninas que são selecionadas, mas na hora de fazer a entrevista de emprego e apresentar a documentação, se elas não retificarem o nome, elas são barradas porque não condiz com o gênero apresentado”, explica Rafaelly Weist, 33 anos, presidente do Transgrupo Marcela Prado, mesma ONG em que Fernanda é coordenadora de projetos. Segundo ela, muitas empresas não estão dispostas a ter pessoas transgêneros em seus quadros de funcionários por conta da adaptação que isso exige, como por exemplo o uso do nome social, e principalmente por conta do preconceito. “Transexuais e travestis não podem ser o que elas querem ser; ou elas trabalham em call center, salão, ou fazem programa”, Rafaelly chama a atenção.

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“Transexuais e travestis não podem ser o que elas querem ser; ou elas trabalham em call center, salão, ou fazem programa.” - Rafaelly Weist, presidente do Transgrupo.

No Brasil, a prostituição não é considerada crime e é dela que, segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil), 90% das mulheres transgêneros vivem atualmente. Um número que coloca em evidência a dimensão de um grande paradoxo vivido no país: uma nação que consome tanto a prostituição e pornografia trans, é ao mesmo tempo, o país que mais mata pessoas desse grupo.

Foram quase 700 assassinatos registrados nos últimos seis anos, quase quatro vezes mais do que o número de homicídios desse tipo contabilizados no México, o segundo colocado na lista divulgada pelo Transgender Europe, instituto europeu especializado em levantamentos como esse.

Em um cemitério de Curitiba, um túmulo é mantido pelo Transgrupo. Lá, muitas dessas vítimas, cujas identidades são desconhecidas por falta de documentação ou familiares para realizar o reconhecimento, são enterradas. Uma tentativa de levar um pouco de dignidade, mesmo que após a morte, a quem teve a vida roubada das mais assustadoras formas. “Só que é um túmulo só e demora um tempo para poder abri-lo de novo”, completa Maria Fernanda, cuja uma das atividades na ONG é justamente coletar dados nacionais sobre assassinatos de pessoas transgêneros.

Exercendo uma atividade que muitas vezes não é uma escolha, expostas na rua e sem proteção, essas mulheres enfrentam as consequências de atos de outras pessoas. “É toda uma gama de fatores que nos faz entrar na prostituição; é a falta de estudo, de acesso para qualquer questão básica de saúde, de educação ou de trabalho”, afirma Carla Amaral, representante transexual entre os funcionários do único ambulatório de saúde pública no estado do

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“ Rafaelly Weist e Maria Fernanda .
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Veronica Rocha

Paraná, voltado especialmente para a população transgênero.

Se a prostituição entre as mulheres trans é tão comum como saída para a falta de oportunidades no mercado de trabalho formal, você deve estar se perguntando qual é o cenário enfrentado pelos homens transexuais.

Para entender tal situação, segundo Carla, é necessário compreender principalmente as diferenças no tratamento hormonal a que a maioria dos homens trans são submetidos. Ao contrário do que passam as mulheres que optam por hormonoterapia, os resultados do tratamento com hormônio masculino, testosterona, são muito mais rápidos, ou seja, eles acabam tendo chances maiores de serem aceitos, inclusive pelo mercado de trabalho. “Eles ficam invisíveis enquanto homens trans dentro da sociedade quando conseguem alcançar uma transição bacana”, diz Carla, que relaciona a maior rejeição da mulher transgênero ao machismo ainda presente na sociedade. “Quando falamos de mulher trans, a sociedade machista não consegue entender como é que aquele ser

de poder, que tem um falo, abre mão de todo esse poder para ser o submisso, a mulher”, comenta.

Apesar dos fatores que diferenciam as dificuldades sofridas por homens das vivenciadas por mulheres trans, é preciso ressaltar que eles não atenuam a gravidade de nenhuma delas. Mesmo porque não são todos os homens transgêneros que passam por tratamentos hormonais e adquirem traços físicos tidos como mais masculinos. Operário de construção civil, desde 1987, “Seu Alex”, de 50 anos, sabe muito bem disso.

Natural de Belém e em Curitiba para participar, ao lado de outras pessoas transgêneros, de uma roda de conversa sobre o assunto promovida por estudantes da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Alex Silva, ou seu Alex, como é chamado pelos alunos ávidos por ouvir o que ele tem a dizer, conta que não foi fácil conseguir um emprego e tampouco mantê-lo. Após a conversa com os estudantes, ele nos concede uma entrevista no corredor da universidade, um ambiente que não lhe é

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“ Alex Silva na roda de conversa promovida pelo DCE da Universidade Federal do Paraná.
sociedade

muito familiar. Ao contrário de Maria Fernanda, que aguarda o recebimento do diploma, e de Rafaelly, que após uma pausa nos estudos conseguiu terminar o ensino médio por meio de supletivo e hoje está no primeiro semestre da faculdade de Ciências Sociais, Alex estudou apenas até a quinta série. No trabalho que realiza de segunda à sexta-feira em obras de construção civil, um ambiente historicamente dominado por homens cisgêneros, aqueles que se identificam com o gênero designado no nascimento, ele é ainda hoje chamado pelo nome que recebeu dos pais, Ana Lúcia, e precisa conviver diariamente com os colegas que não respeitam sua identidade. “Se falar mais alto, é suspensão, três dias de gancho. Isso se não for mandado embora”, comenta um dos motivos pelos quais se sente silenciado em seu ambiente de trabalho, embora fora dele seja militante declarado por seus direitos.

Assim como muitas pessoas transgêneros, Alex ainda não conseguiu mudar o nome legalmente. Porém, como explica a advogada Gisele Schmidt, que já passou pelo processo de mudança do primeiro nome e hoje acompanha muitos clientes que buscam o mesmo feito, isso não impede que as empresas respeitem o nome social do funcionário transgênero. É preciso, sim, que o contrato de trabalho contenha o nome de registro para ter validade legal, mas muito do restante das relações entre colaborador e contratante diz respeito somente às políticas de cada empresa. “Na carteira de trabalho, é colocado o nome civil da pessoa, mas a empresa pode fazer o crachá com o nome social”, exemplifica Gisele. Nesse sentido, algumas empresas têm percebido a necessidade de uma preparação para a recepção desses funcionários.

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Gisele Schmidt é transexual e advogada.
sociedade
Veronica Rocha

Karen Soares de Lima, diretora do Comitê de Diversidade da Copel de Curitiba, empresa gerenciadora de ener gia no estado do Paraná e que seleciona candidatos por meio de concurso público, compartilha que mesmo não existindo ne nhuma limitação para que transexuais e travestis participem do processo seletivo, recentemente, a contratação da primeira funcionária transexual da em presa foi uma surpresa. “Não se tinha essa ideia de que teríamos uma pessoa trans. Então, no primeiro momento, foi um despertar para como trataríamos essa questão”, reconhece.

Um trabalho em conjunto dentro da empresa foi a solução encontrada e que bastou para proporcionar um melhor entendimento sobre o assunto.

Enquanto esperam pela mudança no mercado de trabalho, que começa a acontecer, mas que ainda parece seguir o mesmo ritmo de um processo para a troca de nome que passa de mãos em mãos no Judiciário, travestis e transexuais também esperam que outras portas sejam abertas. Passagens que tragam luz para tanta invisibilidade e que deem acesso a um lugar onde o preconceito não seja mais uma arma tão letal, e tão facilmente encontrada dentro de qualquer um.

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sociedade
“É toda uma gama de fatores que nos faz entrar na prostituição; é a falta de estudo, de acesso para qualquer questão básica de saúde, de educação ou de trabalho.” - Carla Amaral, transexual.

Paixão pelos livros supera crise

Situação economica afetou vários setores do comércio brasileiro, mas nem todos sofreram grandes prejuízos. Os sebos, por exemplo, se beneficiam do momento de país para aumentar suas vendas

Otema da crise econômica brasileira é frequente nos jornais, revistas e conversas desde 2015, quando o país sentiu um baque na redução das vendas do comercio e com o aumento do dólar. O país esta vivendo uma crise financeira.

É claro, o Brasil não vai parar por conta disso, mas a crise, para muitos, é sinal de desespero: para os consumidores, os preços aumentam e, para o comércio, as vendas diminuem.

Porém a crise não é para todos. Há comerciantes se dando bem em meio à descrença. É o caso dos sebos, lojas que vendem, compram e trocam livros, revistas, CDs e DVDs usados.

Paulo José da Costa, dono do sebo Fígaro, um dos mais conhecidos de Curitiba, conta que para eles o movimento aumentou. “Quem precisa de dinheiro traz aqui para vender e, se a gente tem material para vender, vem mais gente comprar. O sebo vive das novidades,

novidades velhas, então se chega uma pessoa, por exemplo, e diz ‘Tenho este livro aqui para vender’ e você fala ‘Não, não estou comprando por causa da crise’, você fecha”, disse.

Quem sustenta essa tese é Itamar Navarro, dono da franquia de sebos Líder. “Sempre fomos procurado por essa oportunidade de comprar um livro mais barato do que o novo das livrarias. Talvez a única diferença seja que agora o pessoal abriu o olho para isso. As pessoas vão procurar nas livrarias e veem que custa R$ 100 e pensam ‘Estou sem dinheiro’, porque quando têm, pagam e não reclamam, mas agora, com essa crise, esse preço pesa no bolso e as pessoas buscam o mais barato em sebo”, analisa.

Os sebos, muitas vezes, possuem em estoque livros raros, edições esgotadas e autografadas, além de títulos mais comuns, se tornando um grande acervo que vendo mais barato do que as livrarias.

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economia

Quetzalcoatl Wood, funcionário do sebo Líder

Quetzalcoatl Wood, funcionário do sebo Líder, conta que o movimento cresceu há cerca de dez anos, quando o “tabu” contra os sebos caiu. “As pessoas tinham preconceito. Elas pensavam que eram livros estragados, mofados, poderia passar doença, uma bactéria. Agora isso caiu, e perceberam que livro novo e usado são a mesma coisa”, contou.

Além do preço barato e dos itens raros, os sebos apresentam um valor cultural para as

cidades. “É um lugar onde você passa acervos culturais de uma geração para outra. Isso não tem preço”, disse Costa.

Os sebos, conhecidos pela vasta diversidade em títulos e autores, agora também chama a atençao por seus preços mais em conta. Uma ótima oportunidade para os amantes de livros que procuram sempre manter sua rotina de leitura sem pesar no bolso.

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Manoela Campos
“As pessoas tinham preconceito.
Elas pensavam que eram livros estragados, mofados.”
economia
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Boa noite, durma bem.

Nos tempos modernos, está cada vez mais difícil uma noite de sono tranquila.

Leticia Zan

Renata Fernandes na área de medicina do sono, e fazer os exames adequados”.

Passamos cerca de um terço da nossa vida dormindo. Ajuda na conservação da energia vital, consolidação da memória, liberação de hormônios, reparo muscular, entre outros benefícios. E, depois de um dia cansativo, nada melhor do que chegar em casa, descansar e dormir para se preparar para o dia seguinte. Estudos afirmam que o sono é tão essencial quanto a alimentação na vida de um ser humano. Ou seja, quando isso não acontece de forma correta, começam os problemas que podem afetar a nossa vida de curto a longo prazo.

Os distúrbios do sono costumam ser o maior incômodo da população, sendo conhecidos mais de 80. Entre os mais reconhecidos estão o ronco, a apneia do sono, insônia, parassonias, distúrbio do movimento periódico dos membros, bruxismo noturno, entre outros. Cada um com uma especificidade e tratado de maneira diferente, variando de paciente para paciente. E, para tal, é vital um acompanhamento médico.

A otorrinolaringologista Danielle Salvati de Campos, do Instituto do Sono de Curitiba, afirma que “o importante é o diagnóstico correto, procurar um médico com formação

Entre os fatores que costumam causar distúrbios e outros problemas, podemos citar: excesso de peso, doenças endocrinológicas e respiratórias. O ronco, por exemplo, pode ser originado por um sobrepeso, assim como problemas na faringe podem chegar a causar apneia, considerada a evolução do ronco. Situações como a depressão, a fibromialgia, doenças na tireoide, podem ser motivos para agravar as doenças do sono.

Segundo a neurologista Elyvéia Hannuch, hábitos também prejudicam a qualidade do sono.

“Além de questões genéticas e doenças, a modernidade afetou a qualidade do sono. A claridade de uma tela de celular ou de uma televisão, por exemplo”. Ela também explica que a questão emocional pode ser um fator determinante no diagnóstico, “em longo prazo podem gerar doenças psiquiátricas; em curto prazo, mais ansiedade, humor instável, memória recente ruim, capacidade de concentração baixa, em uma noite mal dormida só”.

Um distúrbio maltratado pode resultar em outras doenças, como a obesidade, a sonolência diurna, a irritação excessiva, e a dificuldade de aprendizado. É o caso da pequena Laura

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bem-estar

Gonzaga, que fala, ri, conversa e até chora durante a noite. A mãe, Allana Lemos Gonzaga, conta que sempre foi assim. “Ela nunca foi de dormir muito, dormia tarde e acordava cedo. Na escola, era sempre uma dificuldade para dormir o soninho da tarde.” Ela acredita que a irritação de Laura e sua dificuldade em prestar atenção estejam relacionadas, apesar de não ter iniciado um tratamento ainda, afinal tem apenas 7 anos. “Tem dias que a sinto mais irritada e chorona, mas prefiro ficar de olho durante a noite a usar remédios, igual uns médicos me recomendaram.”

No caso do professor de História Felipe Negreli, a depressão foi à causadora. “Meus problemas com sono começaram na reta final da faculdade. Eu precisava terminar o trabalho de conclusão de curso e formatá-lo, trabalhava durante o dia e estudava à noite, quando voltava para a casa produzia o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) ou, ainda, estudava para provas e outros trabalhos. Foram seis meses dormindo em média três horas”, comenta. Para Felipe, a falta de sono foi ocasionada pela ansiedade e pressão da reta final da faculdade. Hoje ele afirma que, apesar de não conseguir dormir cedo, dorme o suficiente para me sentir bem.

Alimentação noturna

Passamos cerca de um terço da nossa vida dormindo. Ajuda na conservação da ene Grande parte da população não sabe, mas o que você come durante a noite pode ser a causa de uma noite mal dormida. Como o consumo de cafeína, doces e refrigerantes que tendem a nos deixar mais acordados. Segundo a médica Danielle Salvatti, o consumo de be-

bidas alcoólicas interfere. “Tende a causar mais relaxamento muscular, e embora possa parecer ajudar a iniciar o sono, atrapalha muito, pois fragmenta o sono e pode piorar distúrbios respiratórios, como ronco e apneia”.

É importante, principalmente para quem sofre de algum distúrbio, evitar alimentação pesada, pois assim, na hora de dormir, o corpo estará em pleno funcionamento na digestão, contribuindo para uma demora do sono mais pesado, responsável pelo descanso do corpo.

Distúrbios do sono

• Ronco: caracterizado pelo barulho da passagem de ar durante o sono pelas vias aéreas superiores e ficam parcialmente obstruídas e pode ser indício de algum problema mais grave, como a apneia.

• Sonambulismo: o paciente começa a se mexer durante o sono, senta-se de repente na cama, movimenta-se, levanta-se e sai andando ainda dormindo.

• Insônia: é a diminuição total ou parcial da quantidade de horas de sono ou da sua qualidade durante a noite.

• Apnéia: distúrbio do sono, no qual a pessoa para de respirar com frequência quando encontra-se dormindo. A pessoa não obtém o oxigênio que seu corpo necessita e não consegue repousar adequadamente..

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bem-estar

Remédios

Necessário ou substituível?

Muitas pessoas tendem a acreditar que somente o uso de remédios pode aprimorar a qualidade do sono. Porém, outros métodos são bem-vindos no tratamento de alguns distúrbios. Venâncio Filho é professor de ioga e começou a praticá-lo por várias razões. Para ele dormir melhor foi um dos primeiros benefícios conquistados.

“O alívio da ansiedade e a melhora nos padrões de sono foram as primeiras vantagens que surgiram. Havia questões mais profundas no meu processo, mas a partir do momento em que percebi meu corpo vivo, outras melhoras vieram”. Para ele, métodos alternativos como o ioga, podem ajudar a tranquilizar e ajudar quem tem dis-

túrbios ou doenças que influenciam no sono.

Já para quem toma medicamentos para dormir melhor, o ioga pode ser uma opção para quem pretende diminuir o uso de remédios ou parar de vez com eles, mas sempre com a supervisão de um médico.

“Caso a pessoa esteja sendo medicada, é importante conversar antes com o médico. Nenhum professor de ioga sério irá intervir no que prescreveu o especialista. O que acontece é que aos poucos a pessoa irá perceber a possibilidade de redução da medicação e, sempre com acompanhamento, decidir se já é hora de largar os comprimidos.”

Arquivo pessoal

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bem-estar
Venâncio compartilha de seus novos habitos nas suas redes sociais

A vida além do câncer

A luta diária contra o câncer não tira o sorriso e a esperança de quem passa por um tratamento difícil e doloroso. Muitos continuam tentando conciliar a vida profissional e pessoal com o tratamento que exige tanta restrição

Gilberto Stori Junior
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Caroline Paulart
PUCPR

Ele não escolhe cor, escolaridade ou posição social. Ninguém quer a sua companhia, mas a vida ensina muitas pessoas a conviver com ele. O câncer é, e tem sido, um dos maiores pesadelos dos seres humanos muitas são suas vítimas

Há quase 50 anos, dona Maria Teresa Pazmino Flores de Moosmayer saia do Equador para acompanhar seu marido, que iniciava um projeto de estudo na área de engenharia florestal no Brasil, em Minas Gerais. Mas o destino a traria para o clima bipolar de Curitiba, onde moraria com seu marido e teria seus filhos. Apaixonada pela natureza, Maria e seu marido tinham uma chácara de 14 alqueires para passar o fim de semana na Região Metropolitana de Curitiba. Após ficar viúva e ser diagnosticada com um linfoma encontrou na chácara a sua principal aliada na luta contra o câncer, e que carinhosamente chama de sua psicóloga: a natureza.

Atualmente, no Brasil, Maria faz parte do pouco mais das 590 mil pessoas que lutam contra algum tipo de câncer, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA).

A médica oncologista Karina Costa Maria

Vianna explica que o tratamento dos pacientes com câncer pode passar por diversas etapas, como: cirurgia, quimioterapia, radioterapia e medicamentos via oral. Mas a que mais demanda cuidados é a quimioterapia. “Ela pode abaixar a imunidade e, nesse período, os pacientes ficam mais suscetíveis a infecções”.

Karina ainda explica que os pacientes são estimulados a ter uma rotina normal como auxílio a parte psicológica. “Nós estimulamos muito que o paciente tente viver uma rotina normal, isso para a parte psicológica é muito importante para ele sentir que essa parte do tratamento é uma etapa, vai ter um início e vai ter um fim.”

A odontopediatra Louise Liu R. Vargas de Oliveira foi diagnosticada com câncer de mama e, como ela mesma diz na entrevista, sentiu-se no “olho do furacão”, e para lutar, foi necessário todo o apoio da família. “Com a ajuda do marido e da família, ganhei coragem e confiança para focar no meu tratamento. Esse suporte emocional foi fundamental”, conta.

Fundamental é também como define a psicóloga e psicoterapeuta familiar Luciane Bozza Bertoncello sobre a participação da família na luta de pacientes contra o câncer. “Dá mais serenidade para o tratamento.” Ela explica que, quando temos um choque, é normal ter pensamentos negativos. “Quando se tem o choque, existe aquele famoso mecanismo de defesa que, para alguns pacientes, vem de uma forma e em outros vem de outra.”

E, para ter pensamentos positivos, Luciane sugere a atividade manual. “Artesanato e cuidar do jardim é extremamente terapêutico, e faz com que a gente melhore a qualidade do

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saúde
“Com a ajuda do marido e da família, ganhei coragem e confiança para focar no meu tratamento.”

pensamento e o deixe mais positivo.”

Maria passou por essas três situações. Apoio da família: “Temos de encontrar um ponto de apoio, minha família e morar ‘dentro’ da natureza foram pontos muito positivos”; choque com a descoberta: “É um choque tão grande a palavra câncer, que pensei, vou morrer”; e a busca por pensamentos positivos, deixando a mente ocupada: “Uma das principais soluções é ter fé e ocupar a cabeça, nem que seja dormindo”.

Ela conta, dando risadas e ainda acrescenta sobre suas atividades que ajudam a espairecer: “Faço tricô, pinto quadros e controlo o trabalho da chácara. Mesmo que depois da quimio minhas pernas doam, vou caminhando bem devagarinho”. Nos fins de semana, a chácara de dona Maria é usada para eventos, como festas de casamentos e aniversários ou pousada para palestrantes que ajudam a comunidade. Com um semblante bastante harmonioso, Louise ficou três anos em remissão, porém em 2013 foi diagnosticada novamente com a doença e teve que parar de clinicar. Ao contar como está sua vida hoje, ela diz: “Minha vida hoje está diferente. Mais simples, mais prática. Mais desapegada. Com mais família, mais amor. Mais apaixonada. Mais agradecida”.

Mesmo com o novo diagnóstico, Louise tenta ter uma vida normal. “Leio muito e adoro sair para passear com meus cachorros quando estou bem disposta. Participo da ONG de apoio Oncoguia que possui um portal de notícias, orientações e pesquisas para pacientes oncológicos.” Como muitas mulheres, Louise tem

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A odontopediatra Louise conta que em um primeiro momento se sentiu no olho do furacão.
saúde
Bruna Caroline

sonho de ser mãe e está na fila de adoção. Fazer o bem sem olhar a quem

Aqueles que sabem a luta que é enfrentar o tratamento de câncer, também entendem como é importante o apoio de outras pessoas durante esse período. Foi por esse motivo que depois de vencer o câncer de mama, Gladys Haluch decidiu criar a Associação Amigas da Mama, que oferece apoio a mulheres que passam pelo tratamento da doença.

A Associação existe há 17 anos e, segundo Gladys, veio de uma necessidade que ela mesma sentiu durante o tratamento, “Quando a mulher passa por um tratamento como esse, ela se sente com a autoestima destruída, se sente sozinha. E aqui nós fazemos ela se sentir bonita de novo, oferecemos apoio, assim ela sabe que não está sozinha na luta”, conta Glades.

As Amigas da Mama oferecem assistência jurídica, psicológica, além de proporcionar próteses, lenços e perucas para mulheres em tratamento. Maria de Lurdes foi diagnosticada

em 2001 com câncer de mama, e encontrou o grupo Amigas da Mama, que estava iniciando. Agora curada, Maria é voluntária na Associação e diz que o trabalho é importante para que elas saibam que não estão sozinhas, “Quando

elas chegam aqui, veem que não estão sozinhas, fazem trocas de experiências e percebem que assim como elas outras tantas também lutam contra o câncer.”

A psicólogo Naim Akel diz que a mente pode influenciar na cura em dois aspectos. “Quando estamos depressivos e ansiosos o corpo libera o cortisol, que é o hormônio do estresse e tem o efeito de inibir os mecanismos de defesa do organismo. Já, quando estamos confiantes e otimistas nosso organismo funciona melhor”, reafirma.

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“Nós fazemos ela se sentir bonita de novo, assim ela sabe que não está sozinha na luta.”

A BRINCADEIRA ACABOU

Os videogames que eram odiados pelos pais e principais culpados por atrapalhatem nos estudos e incentivarem a violência, agora são reconhecidos de outras formas. Presentes nas escolas de maneira educativa, e no mercado de trabalho, com sálarios altos e opções de boas carreiras futuras. Os jogos não são mais “tempo perdido”. Na era digital, trabalhar como gamer pode ser o sonho do papai

Osgames podem levar as pessoas para outros mundos, lugares divertidos, desertos e até mesmo sombrios. Mas cada jogo dá uma sensação diferente, são todos distintos em algum aspecto, não importa qual seja o gênero, de aventura, de esporte, de ação, corrida, e até mesmo os infantis. E podem ser educativos, como jogos de História, que reconstituem o que ocorreu no passado, e, além disso, proporcionam uma grande esfera de benefícios para a saúde.

O game também é uma forma de socialização, foi o que comprovou um estudo realizado na Holanda por pesquisadores da Radboud University Nijmegen, com os jogos on-line as pessoas podem se conectar e jogar de diferentes

partes do mundo. “Quando eu jogo vídeogame eu me sinto bem, mais relaxado e tranquilo, e eu sei que isso me traz benefícios, tanto para a minha saúde, quanto para a minha vida social. Porque é um jeito de me socializar também, quando eu jogo online, por exemplo”, conta Lucas Wille, 17 anos, jogador casual.

Virou trabalho

Muitas pessoas gostam tanto de jogar que acabam se tornando jogadores profissionais, ganham dinheiro para jogar, participar de campeonatos, torneios e levantar o troféu de campeão. Algumas criam equipes para participar de campeonatos, os jogadores profissionais

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Álvaro Lunardon e Paulo Morscbacher Freepik

também ganham patrocínio de muitas marcas de aparelhos eletrônicos, e também de empresas que desenvolvem os jogos.

É uma forma de motivar os gamers e trazer mais pessoas para esse mundo. É algo novo, que é uma realidade. E é assim que vive Bruno “Brucer” Pereira, jogador profissional de League of Legends, “Conheci o videogame quanto ainda era bem novo, e comecei a jogar jogos infantis quando tinha cerca de 4 anos. Quem me ‘ensinou’ a jogar e me mostrou os primeiros jogos foi meu primo, que hoje também joga profissionalmente.”

Mas é claro que nem sempre os pais apoiam essa escolha, querem que os filhos façam um curso na faculdade, para que tenham um futuro. Já para Matheus Mariotto, que trabalha na área de desenvolvimento de jogos, a opinião é diferente, “O mercado de jogos cresce cada vez mais no mundo, e já movimenta mais de US$ 60 bilhões no mundo, e jogos competitivos estão se tornando uma realidade.

Em 2015 o campeonato mundial de League of Legends estava entre os cinco maiores eventos

Freepik

esportivos do mundo, com cerca de 60 milhões de espectadores simultâneos. Os salários de jogadores profissionais podem ultrapassar R$ 1 milhão”, explica Mariotto. Muitas vezes os pais não têm conhecimento da possibilidade da profissionalização no mercado de games, seja como jogador ou como criador.

E os games não são criados apenas para obter lucro. Servem para entreter e educar jovens que encontram no videogame um momento de lazer, “Sempre busco entreter as pessoas, afinal, jogos são feitos exatamente para isso, mas durante o processo de desenvolvimento quem

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se diverte mais sou eu mesmo”, complementa Matheus.

O público feminino está crescendo no mundo dos games, as meninas também estão em equipes que participam de campeonatos de LOL (League of Legends), e no Brasil elas já são a maioria que joga. Segundo a pesquisa Game Brasil 2016, as mulheres já representam 52,6%, e elas não são noobs (jogadores iniciantes), jogam muito bem, principalmente os jogos de estratégia.

Benefícios dos jogos

1 Raciocínio Lógico: Jogos de estratégia, em que é preciso encontrar a solução certeira, estimulam o raciocínio. Para ultrapassar os obstáculos do videogame, é preciso tomar as atitudes certas, o que favorece o pensar lógico. A vontade de vencer impede que a criança simplesmente desista frente à dificuldade. Além disso, a melhora é progressiva, já que cada fase é um pouco mais difícil que a anterior.

2 Agilidade: Ultrapassar obstáculos, encontrar a saída ou achar a resposta com rapidez faz com que a mente fique mais rápida. Além disso, joguinhos que colocam limite de tempo são ainda mais eficientes para desenvolver esse aspecto. Um estudo realizado pela Universidade de Rochester (EUA) analisou a resposta de dezenas de jovens a desafios rápidos. Os pesquisadores observaram que aqueles que jogavam games de ação eram, em média, 25% mais rápidos para chegar a uma conclusão e responder corretamente às perguntas. Além disso, os brinquedos que oferecem a possibilidade de exercício físico geram tanto agilidade mental quanto física.

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“ Jogar profissionalmente não era meu objetivo inicial, agora virou meu trabalho”
Bruno Pereira, gamer
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Paulo Morschbacher Freepik

3 A cura: Um estudo realizado pela Universidade de Ottawa, no Canadá, que testou videogames que estimulam a atividade física, como o Nintendo Wii, em pacientes com doença de Parkinson. O resultado foi uma melhora expressiva no equilíbrio e no quadro dessas pessoas.

4 Coordenação: Quem já tentou jogar videogame sabe que não é fácil apertar os botões certos na hora certa. Os estímulos visuais, auditivos e, em alguns jogos, sensoriais, surgem todos ao mesmo tempo. Existem estudos que comprovam que quem joga vídeo game com frequência, têm melhor coordenação motora. Um deles, realizado na Universidade de Albuquerque (EUA), encontrou que o córtex cerebral de quem joga videogame é mais espesso justamente na área relacionada a essa função.

5 Frustrações: Estudos também mostram que crianças que jogam videogame passam por muitas frustrações quando perdem em determinado jogo, e quando crescem aprendem a lidar mais rápido com as frustrações da vida, pois sabem que como no videogame elas podem errar, mas depois corrigir os erros.

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“Quando tinha 9 anos desenvolvi meu primeiro jogo e ascredito que desde então me apaixonei pelo mercado de jogos e faria qualquer coisa pra trabalhar nele.”
Matheus Mariotto, desenvolvedor
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Paulo Morschbacher

Vozes e sons da cena local

Artistas da música curitibana compartilham as perspectivas do momento da produção independente da cidade

Fabrício Calixto O jazz da cantora Jenni Mosello é destaque em Curitiba.
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Fabrício Calixto Gabrielle Russi Vinícius Frank Vaz

Foi batucando em um balde e inventando letras sobre sua casa e seu cotidiano que, na Itália, uma garotinha de 2 anos começou a perceber sua sensibilidade para a música. Mais tarde, essa menina, agora com 21 anos, é uma cantora de jazz de destaque na cena musical curitibana. Jenni Mosello nasceu aqui, mas com apenas dois meses foi morar em Roma, cidade natal de seu pai. Lá viveu até os 10 anos, quando sua família decidiu voltar para o Brasil atrás da realização do sonho de iniciar um negócio próprio. Em um país diferente daquele onde cresceu, teve dificuldades e demorou a se adaptar. Enxergou na música um escudo, o seu mundo. Um lugar onde não importava o que acontecesse, ela podia ser ela e se sentir protegida.

Sentada em um pequeno café, o mesmo aonde vinha quando mais nova para compor – localizado no bairro do Batel, em meio a livros, ao som de jazz como música ambiente –, ela conta um pouco sobre sua carreira, ascensão e fala da cena local. “Minhas maiores influências são os cantores antigos de jazz, por isso que escolhi esse lugar para a entrevista, ele me inspira.”

cantar minhas composições, lançar meu trabalho autoral.”

Foi atrás de um produtor, produziu seu primeiro single, e logo depois seu primeiro EP. Ela se apresentou com o Queen Symphonic, na Ópera de Arame, e ela viu que tinha chegado seu momento. Trancou a faculdade e hoje se dedica a seu verdadeiro amor: a música.

Hoje é um exemplo de ascensão e da força da cena independente. Já participou de quase todos os projetos e festivais dedicados a músicos da cidade. Lançou seu primeiro single pelo projeto #bomdiacuritiba da página da Funda-

- Jenni Mosello, cantora.

ção Cultural de Curitiba (FCC), e foi destaque de visualizações.

Incentivada a ter o sonho como hobbie, decidiu estudar Psicologia na PUCPR, mas levava o curso em paralelo com sua banda de jazz cover. Era um trabalho profissional, mas faltava alguma coisa; ela não se sentia completa. “Eu amo cantar jazz, mas fazer minhas músicas é diferente, falar sobre mim, minhas angústias, críticas, vontades e desejos. Eu sentia falta de

O primeiro show autoral foi pelo projeto Mais Música, da É-Paraná, e lotou duas sessões no auditório do Museu Oscar Niemayer. Ano passado, se apresentou na Corrente Cultural, e mesmo com chuva, lotou as Ruínas e fez o público dançar. Deu entrevistas a quase todas as rádios da cidade que têm algum programa voltado a artistas locais. “Eu me joguei e entrei de corpo e alma, testei muitas coisas e corri atrás dos meios que achava que iriam me ajudar, afinal não tem uma apostila ou um manual a se seguir, depende de você. Consegui fazer meu primeiro EP e vendi mais de 1.000 cópias

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“O legal de Curitiba é que todo dia tem algum evento cultural, relacionado a arte. Os curitibanos anseiam por coisas diferentes.”

sozinha, sem nem mandar pra lojas”, conta. Jenni considera Curitiba uma cidade muito receptiva. “O legal de Curitiba é que todo dia tem algum evento cultural, relacionado a arte. Os curitibanos anseiam por coisas diferentes.”

Com uma produção ampla e diversificada, tem atrações para todos os gostos e públicos. E, pelo visto, tem espaço para tudo. “O meu maior medo quando lancei o EP era saber se as pessoas iriam gostar, afinal meu estilo é diferente e eu canto em inglês. Mas eu tive uma recepção muito boa, pessoas cantando minhas músicas no show de lançamento e dizendo que buscam e gostam de conhecer artistas locais. Eu fico muito feliz que a cidade se valoriza. Afinal, sempre fui uma pessoa que buscou conhecer e ouvir artistas daqui e, ‘sem querer querendo’, acabei virando uma”, disse.

Para Igor Cordeiro, superintendente da Fun-

dação Cultural de Curitiba, há um enorme avanço do ponto de vista técnico e da qualidade. “Vivemos um momento tão positivo quanto vivemos no início da década de 1990, com uma cena um pouco mais pesada, underground.” Para ele, esse panorama se beneficia do fato de ela se organizar pela internet e que a possibilidade de construir com o poder público uma parceria, para identificar esses artistas, tem lhes dado maior visibilidade. “Isso está fazendo com que consigam projetar melhor seu trabalho. Há uma produção de muita qualidade, mas é importante que o país reconheça que nós somos hoje uma cena pujante. Eu vejo que há uma possibilidade de explodirmos”, afirma.

As pessoas já estão ocupando as ruas para vivenciar a cidade, o próximo passo é criarem o hábito de conhecer e consumir o que é produzi do aqui. “Eu sempre digo que as pessoas podem cantar os seus refrãos da vida com pro-

Gabrielle Russi
cultura 42 Revista CDM Jornalismo PUCPR
O grupo Molungo tem influência na cultura popular afro-brasileira.

duções feitas em Curitiba, porque qualidade temos de sobra”, declara Cordeiro.

CENÁRIO MÚLTIPLO

A musicista Mariele Loyola, locutora dos programas Geração Mundo Livre e Acústico Mundo Livre, dedica seu trabalho ao cenário independente. Para ela, a diversidade das bandas curitibanas é gigante. Temos desde o death metal extremo, alguns grupos conhecidos e respeitados no mundo inteiro, passamos pelo pop, hardcore, nova MPB, o folk, o blues e vamos até o psychobilly (também considerado um dos melhores do mundo). “Cada estilo tem seus destaques. Muitos são até melhores do que é considerado de melhor qualidade no mercado nacional. Nossa infelicidade é não conseguir chegar com força e respeito na grande mídia”, declara.

dançante facilmente contraído pelo público. Com tanta raiz e personalidade assim, não demorou muito para o grupo ganhar notoriedade na mídia local e até mesmo fora do Brasil. Atualmente, o Molungo ostenta um portfólio interessante, tendo seu trabalho lançado, no caso dos discos, e suas pesquisas divulgadas em mais de 20 países, além de ser considerada

Enraizado na cultura popular afro-brasileira, o grupo curitibano Molungo é fruto de uma união firmada há cerca de oito anos atrás, em meio a ritmos compassados e à cultura do Maracatu de Baque Virado (ou Maracatu Nação) – ritual religioso essencialmente calçado em origens africanas. Seis amigos, de uma formação inicial, se identificaram com um mesmo propósito: criar, pesquisar e compor canções inspiradas na cultura e no ritmo popular tupiniquim.

Do baião ao coco, do samba ao rap, do maracatu ao nayabing, o Molungo promove verdadeiras festas dentro do palco, empoderadas pelo ritmo harmônico e sinérgico dos batuques, violões, vozes e guitarras que vestem cada show do grupo e promovem um “contágio”

uma grande revelação no circuito de bandas independentes de Curitiba.

FESTIVAIS INDEPENDENTES

A proliferação da linguagem sonora multicultural do grupo Molungo é realçada pelo cenário arejado e convidativo que os festivais a céu aberto proporcionam a bandas do gênero, em Curitiba.

Cauê Menandro, um dos percussionistas e vocalistas do grupo Molungo, explica que eventos de rua, como a Corrente Cultural e o Expressões Curitibanas (cerimônia que abrigou nosso bate papo) permite idas e vindas de diferentes tipos de pessoas, de idades e gostos diferentes. Que, de repente, “por estarem de bobeira por ali”, podem conhecer e se engajar em um novo tipo de som – fora do espectro

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“Eu sempre digo que as pessoas podem cantar os seus refrãos da vida com produções feitas em Curitiba, porque qualidade temos de sobra.”
cultura
Igor Cordeiro,

midiático e digital. “Se você pegar um palco em um lugar como este, nas ruínas, em pleno domingo, onde tem gente passando de tudo que é lado e de outros lugares, inclusive, só vem a acrescentar para nós.”

Para o superintendente da FCC, Igor Cordeiro, o cenário da música curitibana vive um bom momento e a criação de shows ao vivo e gratuitos tem contribuído positivamente para que os artistas que produzem música autoral possam se aproximar do grande público.

Loyola

acrescenta que esses festivais geram maior visibilidade e acesso aos músicos. “Eu, como produtora de eventos, de programas especiais para artistas independentes nacionais e locais, espero que por meio desses palcos a céu aberto, as pessoas parem para ouvir o que nossos artistas têm a dizer, que se identifiquem. Descubram que a grama do vizinho (as bandas de fora) só é mais verde (melhor) que a nossa, por prestarmos mais atenção nela”, declara.

como festas de produções próprias durante o dia, em um local que tenha um gramado, por exemplo, estejam abrindo os caminhos por aqui”, conta Menandro.

A exemplo, Luciane Alves, vocalista do grupo Braseiro e entusiasta de festivais independentes de rua, marca presença em todos os eventos que pode frequentar. A artista não comparece somente por obrigação – quando sua banda é atração confirmada no palco –, mas também

- Cauê Menandro, percussionistas e cantor.

Além disso, o segmento não depende exclusivamente de holofotes e estruturas montadas em pontos estratégicos, partindo unilateralmente de iniciativas culturais e específicas do ramo. Dificilmente um grupo independente se elabora sozinho: é uma tarefa colaborativa, que ganha tom e forma com a ajuda de outros profissionais que compõem a cena local. “Acredito que o próprio movimento entre os artistas,

vai como espectadora, como fã, como admiradora da cena. Ela ainda atenta para o choque cultural que as apresentações promovem durante as horas que se expõem ao público. “Tem todas as minorias sendo representadas ali. Acho que é bem característico desse mosaico musical que a gente tem. Nós não temos necessariamente o ritmo curitibano, ou a cara. Estamos passando por isso agora, e, por isso, acho que temos que ter mais espaços para sermos valorizados”, analisa.

O mercado é amplo e está ganhando visibilidade. Nossos músicos têm potencial para ganhar o Brasil, o mundo. Não tem uma fórmula de sucesso, é necessário se arriscar. Jenni considera que as coisas deram certo para ela porque colocou a cara a tapa, sem medo de errar. “Pensava assim: na pior das hipóteses, eu estou passando

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“Acredito que o próprio movimento entre os artístas, como festas de produções próprias durante o dia, esteja abrindo os caminhos por aqui.”
cultura

vergonha. Mas, ainda assim, fazendo o que gosto. Eu acredito que para se conseguir realizar os sonhos, basta querer e ter muita vontade. Temos tantos exemplos de pessoas que são bem-sucedidas, então quem sou eu para dizer que não posso ser cantora.”

Confira as playlists no Spotify

Jenni

Gabrielle Russi Luciane Alves, vocalista do grupo Braseiro, marca presença em todos os eventos que pode frequentar.
Mosello
Molungo
cultura Jornalismo PUCPR Revista CDM 45
http://bit.ly/jennimosello
http://bit.ly/grupomolungo

A queridinha da capital paranaense

Pedreira Paulo Leminski carrega memórias e emoções dos fãs de rock’n’roll

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Show de David Gilmour em dezembro de 2015
cultura
Ana Carolina de Souza, Ana Carolina Pacifico. Karen Loayza
Egler Cordeiro

“Lembro de Paul McCartney entrando para o show com a camisa do Brasil. Um artista extremamente simpático, falava o tempo todo com a plateia, sempre sorrindo, deixando nítido, além das palavras, que estava ali por amor à música. Executou todos os seus clássicos como “Live and Let Die”, e, claro, do tempo em que fazia parte dos Beatles, “Let It Be”.

O momento emocionante do show foi quando fotos sua e de John Lennon surgiram no telão atrás dele, uma de cada lado do palco e foram sendo levadas em direção ao centro, até que se encontraram, em uma performance que demonstrava que, entre eles, apesar da morte de John, tudo estava em paz. Foi muita sorte a ida ao show. Um amigo tinha ingressos para ele e para a mulher que não pode ir. Fomos nós dois, tomamos cerveja na maior alegria e não arredamos o pé para longe do palco nem mesmo com a chuva.” Essa é a história do produtor de cinema Müller Barone e um dos momentos que a Pedreira proporciona aos fãs de música.

Considerada especial por artistas e também pelo público, a Pedreira Paulo Leminski, espaço para eventos situado no bairro do Pilarzinho, se tornou um dos palcos mais cobiçados por cantores e bandas nacionais, e até de outros países. Mas por que o local ganhou o nome do poeta paranaense?

Em agosto de 1989, dois meses após sua morte e na data em que comemoraria seu aniversário, o espaço recebeu o festival literário Perhappiness, em homenagem ao escritor curitibano. Por isso, algum tempo depois, foi batizado com seu nome.

Em 2008, o lugar foi interditado por conta de uma ação civil pública movida por moradores da região. Eles reclamavam que havia muito barulho. Luigi Poniwass, então jornalista do jornal Gazeta do Povo, não se conformou e, postou um manifesto em seu blog hamado“A Pedreira é Nossa”, causando muito burburinho à época. “A pedreira foi feita para receber os shows depois de sua revitalização. A solução não é interditar. Quem mora perto do [estádio] Couto Pereira, da Arena da Baixada ou da Vila Capanema, eu acredito que sofre mais. Há mais barulho, mais gente circulando e ainda o problema de existir torcidas rivais. Jogo de futebol tem toda semana, já a Pedreira recebe três, quatro shows por ano”, constata Poniwass.

O vereador Jonny Stica (PT) organizou em 2009 uma campanha de mesmo nome que o manifesto de Poniwass, pois “A Pedreira é Nossa” já havia ganhado força na internet.

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cultura
Imagens exclusivas do show de Paul McCartney no dia 5 de dezembro de 1993.

Stica, junto com os fãs da Pedreira e com empresários artísticos, fez um abaixo-assinado para contestar, negociar e tentar reabrir o espaço. Porém, apenas em 2014, com o acordo feito com a associação de moradores da região em parceria com a Prefeitura e com o Ministério Público, a Pedreira pode receber os grandes músicos em seu palco.

Vários artistas que já se apresentaram na Pedreira ficaram encantados com a magia e a acústica perfeita do lugar. “Lembro do momento em que Rita Lee

entrou no palco, parou o show e perguntou ‘O que é isso?’, pedindo um tempo para admirar o local, que não é usual, mais parece um ‘buraco’ em meio aos paredões de pedra”, relembra Crizanto Westphalen, ex-administrador da Pedreira.

Com capacidade para mais ou menos 25 mil pes-

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Arquivo pessoal
cultura
“Lembro do momento em que Rita Lee entrou no palco, parou o show e perguntou: ‘O que é isso?’ pedindo um tempo para admirar o local.”

soas, a Pedreira, na verdade, é uma escavação nas rochas naturais da região. É uma antiga pedreira municipal e também uma usina de asfalto, cercada por paredões de pedras de 30 metros de altura.

A DC SET Produções, nova administradora do espaço, gastou R$ 20 milhões nas obras de infraestrura para a volta da Pedreira. Helinho Pimental, sócio da empresa, disse em uma entrevista coletiva em 2014, na fase de reabertura do local, que toda a parte elétrica e hidráulica foi refeita, mais cinco camarins e duas salas para produção.

Artistas internacionais também se impressionam com a estrutura do palco curitibano, como o vocalista da banda Pearl Jam, Eddie

quando a banda australiana veio para cá, não tinha dinheiro para comprar os ingressos, mas, mesmo assim, foi curtir o show do lado de fora.

“Um show que marcou Moritz foi o da banda Kiss pelo fato de ser o primeiro show que ele foi depois da reabertura da Pedreira.

“Voltar a ver um show lá depois de tantos anos foi como voltar para casa. Depois de dez minutos lá dentro pisando naquelas pedrinhas nem parecia que tinha passado tanto tempo. Mesmo que o show não tivesse sido bom, teria valido a pena só por estar lá, mas com o Kiss não tem erro, foi um espetáculo a altura do meu retorno [à Pedreira].”

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“Voltar a ver um show lá depois de tantos anos, foi como voltar pra casa.”
Arquivopessoal cultura
Arquivo pessoal

VÁRIOS SENTIMEN

HELEM BARROS

Katy Perry

“Então eu achei maravilhoso, não só pela Katy Perry, mas por conta da organização e pontualidade. Começou na hora certa e terminou na hora certa, fora que o cenário da Pedreira é sensacional! Ter sido lá fez toda a diferença, pois o lugar é lindo e qualquer show lá fica maravilhoso. Ainda bem que resgataram o local para shows. Sem duvidas é uma das melhores casas de show de Curitiba.”

EDSON MANASSÉS Pearl Jam

“Estava muito ansioso, pois sou um grande fã da banda, ainda mais por este show ser na Pedreira, um lugar maravilhoso para show. Não só a acústica, mas também todo o misticismo que a Pedreira fornece aos shows, tanto para a plateia quanto para os músicos que ali se apresentam. Estava explícito na banda que eles estavam em delírio por estar tocando lá, foi um desempenho fantástico por parte do Pearl Jam. O próprio Eddie Vedder se manifestou a respeito de toda a energia que se desprendia daquele lugar.”

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Arquivo pessoa; Arquivo pessoa; cultura

SENTIMENTOS UMA PEDREIRA

RAFFAELA PORCOTE

Iron Maiden

“A Pedreira tem infraestrutura para receber shows internacionais, o problema é que infelizmente é localizado em um bairro residencial. O antes e o depois do show é sempre caótico. O que mais me emociona no Iron é que não importa se o show é na América Latina, eles trazem todos os aparatos deles, como o mascote da banda, o Eddie the Head.”

ALCEU MARCOS VIEIRA NETO

AC/DC

“Apesar de ter sido em 1996 a banda trouxe para Curitiba a mesma produção dos shows na Europa, coisa que não tinha aqui naquela época: telão gigante nos dois lados do palco, com uma conversa do Beavis and Butt Head [animação americana exibida na MTV] . O ACDC na época disse que não tinham tocado em um lugar tão doido que nem a Pedreira, principalmente por causa da acústica. Esse show foi um dos últimos na pedreira com grande público.”

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Arquivo pessoa; Arquivo pessoa; cultura

Deu match! E agora?

Tinder, Grindr, Happn, Hot or Not...Os aplicativos de namoro viraram febre mundial e provam que nos dias de hoje, as chances de encontrar amor estão apenas a um clique de distância

Matheus Urbano e Anna Pires

Isabela Maria Santos
52 Revista CDM Jornalismo PUCPR comportamento

Com mais de milhões de usuários, aplicativos de relacionamentos viram febre no país, prometendo apenas uma noite de amor ou um casamento. Há mais mistérios entre os likes e os dislikes do que pensa nossa vã filosofia. Agora o like tem uma função mais do que especial: a de cupido. Hoje, mais do que nunca a tecnologia funciona a serviço do amor. Se antes contávamos com o Bate Papo UOL entre outras redes sociais, com a evolução dos smartphones o amor está a um clique de distância e com um universo de possibilidades: Tinder, Grindr, Hot or Not, Happn, Hornet, Kickoff, entre outros aplicativos que promovem encontros.

Os números são surpreendentes (veja abaixo) e cada aplicativo para namoro busca seu espaço no mercado. Mas, afinal de contas, por que tantas pessoas buscam se relacionar mais por aplicativos do que sair com os amigos, como nos velhos tempos? Para a psicóloga e

Estimativas

• No Brasil, são 10 milhões de usuários e no mundo todo são cerca de 100 milhões.

• 80% dos usuários brasileiros são solteiros e com idade entre 14 e 35 anos.

• 1 milhão de downloads nos meses de dezembro/2013 e janeiro/2014.

• Usuários fazem login 11 vezes por dia, totalizando 7 minutos de navegação.

especialista Uiliana Fernanda Pozzobon, é um pouco mais do que sinal dos tempos. É uma necessidade de ser aceita, buscando afirmação, segurança e melhora da autoestima. “Elas (as pessoas) almejam pertencimento, fazer parte de um grupo, serem aceitas, admiradas ou, no mínimo, descoladas o suficiente pra receber likes ou matches. Não existe nada de inadequado com essa busca, se esta acontecer de maneira consciente e menos como uma fuga ou compensação de nossos afetos”, diz

Mas se tem aqueles que instalam esses aplicativos por ser “bom para o moral”, existem os que viveram histórias de amor graças a essas redes sociais. Victor Romero Perez tem 29 anos e já usava esses serviços antes de se mudar para a Europa. Chegando lá, acabou conhecendo seu atual marido graças a essas ferramentas “Quando reinstalei meus aplicativos, vi aquele primeiro cara e puxei conversa. Nos encontramos e algum tempo depois, começamos a viver juntos e casamos”.

crédito: Tinder/UOL

Porém, nem tudo são flores. Se o Victor se deu bem, a estudante Marcela se viu numa sinuca de bico ao ser xingada por uma das suas possíveis combinações não correspondidas no Tinder, que foi procurá-la no Facebook. “Não dei bola, ele simplesmente me xingou de biscate por conta disso. E, logo depois, deletei o aplicativo e nunca mais usei”. Já com o Lucas Toral, de 21 anos, a situação foi mais estranha ainda: o estudante de Design conseguiu combinar com dois garotos diferentes, mas; no fim das contas, eles tinham mais coisas em comum do que ele pensava: os dois namoravam um com o outro. “Nos falamos pouco e logo ele já estava em minha casa. No final, ele me disse que namorava e fiquei surpreso”, provando mais uma vez que

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comportamento

poliamor não é um conceito para todo mundo. E de um aplicativo de namoro pode surgir uma grande amizade? Diversos interesses em comum e frequentar até os mesmos lugares podem não gerar um romance, mas conseguem reservar um lugar especial no lado esquerdo do peito. A estudante de Direito Ana Carolina Alvarenga, de 23 anos, acabou achando no Tinder um de seus melhores amigos e é grata pelo match até hoje. “Conheci um menino na balada e o chamavam de ‘Luan Santana’ e ele era realmente muito parecido com o cantor. Tinha terminado um namoro, queria conhecer pessoas novas e o encontrei lá.”

Já a história do estudante de Engenharia de Produção Peter, de 18 anos, é um pouco mais inusitada. Foi baixar um desses aplicativos e acabou conversando com esse homem estrangeiro. “Começamos a conversar em inglês e depois de 30 minutos estava lá ele, dentro de um táxi na frente da minha casa me esperando pra mostrar Curitiba a ele”. Seria romântico se não fosse por um

pequeno detalhe: Misha, o estrangeiro, estava acompanhado de seu namorado no taxi e fazendo um tour pelo Brasil.

Por fim, um aplicativo de relacionamento não é um milagre. Assim, como na vida real, há casos e casos.

Esses aplicativos servem como um empurrão, seja para fins sexuais ou para amizades e compromissos.

Tudo depende da importância que você dá, e qual será a sua intenção.

Dicas

Para o cabeleireiro

Victor Romero Perez, a melhor aproximação é através do bom humor. “Procura algo de destaque na pessoa. Se for muito clichê, usa a seu favor, fala que sabe que clichê e solta a cantada. Um pouco de humor é bom. É atraente na dose certa.” É o que afirma também a estudante de direito Ana Carolina Alvarenga.“A minha dica é apostar sempre no humor. Relacionar algo ou uma frase engraçada que tenha relação com a descrição do perfil da pessoa. Chama mais atenção de maneira simples.”.

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“Não existe nada de inadequado com essa busca, se esta acontecer de maneira consciente e menos como uma fuga ou compensação de nossos afetos.”
- Dra. Uliana Fernanda
comportamento
Pozzobon, psicologo.

E aí, doutora?

De acordo com a psicologa Uliana Fernanda Pozzobon, o comparativo de prós e contras sobre o uso constante de aplicativos para relacionamentos, depende muito da intenção dos usuários, histórico familiar e genético, temperamento e personalidade.

Prós

• Facilidade na comunicação que acontece em tempo real.

• Menor custos.

• Exposição e energia mental.

Contras

• O risco da superficialidade.

• Impulsividade por ser fácil demais.

• Terceirização das relações.

Perez e seu atual marido, eles se conheceram no app Grindr

A estudante de direito Ana Carolina Alvarenga recomenda o bom humor nas investidas online

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Victor Romero Arquivo pessoal Arquivo pessoal
comportamento
Julyana Dal’Bo
Ana Paula Rusycki sociedade 56 Revista CDM Jornalismo PUCPR

PERIFERIAS

Feminismo negro

Uma luta dentro da outra: mulheres afrodescendentes enfrentam duplo preconceito

CDM DI G I T A L E S P ECIAL
sociedade Jornalismo PUCPR Revista CDM 57

Omovimento do feminismo negro leva em consideração a combinação de diversas reivindicações. As pautas feministas em si já exigem a igualdade de gêneros na sociedade, porém quando se considera a mulher negra existem outras discussões. O machismo, o preconceito de classes sociais e o racismo são os principais pontos, que devido à opressão da sociedade, abalam a mulher psicológica e fisicamente.

A mulher negra carrega em suas costas o peso da lembrança da escravatura, da subordinação, da posição servil perante á mulher branca. E a partir dessa percepção, a conscientização a respeito do movimento ganha espaço, e se solidifica na sociedade, como um pedido de atenção.

Para definir o movimento, a estudante Raquel Moraes, de 21 anos, afirma que é uma luta pelo fim da exploração de gênero. “O feminismo negro luta pelo fim do racismo, pelo empoderamento da mulher negra. O objetivo é priorizar a mulher negra e a luta contra o racismo e exploração racial e de classe.”

Apesar de ser um assunto delicado, essa aparência sentida pelas feministas negras, de um real preconceito de raça, é deixada de lado quando se trata de buscar um mundo mais igualitário. A estudante Larissa de Paula conta que atualmente a visibilidade da mulher negra é maior. “As pessoas estão tirando as vendas e vendo como ela sofre e precisa ser cuidada, e sofre triplamente, pois está à mercê do machismo, preconceito de classes, racial e também é vista como objeto sexual desde os tempos da

escravatura, o que mexe com a sua autoestima.”

Há quem releve as questões trazidas pelo movimento, porém ao analisarmos por diferentes temas, percebemos que é algo maior do que imaginamos. O “padrão” de beleza estipulado pela mídia, traz mulheres brancas, cabelos lisos, olhos claros. A violência doméstica é destinada às mulheres negras em 60% dos casos de feminicídio, segundo a Revista Fórum, sendo tratadas como objeto de exploração. O feminismo negro existe para fazer emergir as questões periféricas repudiadas. Ele é um ato de resistência motivado pela existência livre.

A população negra, ainda de acordo com a revista, corresponde a 50% da do Brasil, ressaltando a importância de um reconhecimento e respeito das diferenças. O Mapa da Violência – Homicídio de Mulheres 2015 mostrou que, enquanto que o assassinato de mulheres brancas diminuiu 10% no país, o de mulheres negras aumentou 54%.

A mestranda em Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Vanessa Fogaça Prateano comenta a importância dos movimentos feministas serem interseccionais, ou seja, quando aliados a outros movimentos, possuem a chance de fazer a diferença. “Quando o feminismo tem um olhar acolhedor e de respeito por todas as lutas, seja a luta negra, a luta indígena, a luta por melhores condições nas prisões, contra a pobreza e outras, ele se fortalece e fortalece outros espaços.” Dar voz às mulheres, se adaptando aos novos tempos que vivemos, principalmente com a existência da

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Ana Rusycki Letícia Zan Renata Fermnandes

tecnologia e a facilidade de comunicação, em que entendemos que o mundo é apenas um só.

Raquel Moraes comenta a importância da popularização dessas questões. “Espero que elas possam se juntar a nós e espero cada vez mais que consigamos fazer a diferença política, econômica, social e culturamente falando. Espero que o movimento feminista se torne cada vez mais um lugar seguro para mulheres negras estarem.”

O feminismo foi e continua sendo necessário, apenas de muitos acreditarem que o movimento já cumpriu o seu papel. Na verdade, não

Feminismo no Brasil

As primeiras transformações ocorreram no século XIX, quando foi reconhecido o direito da mulher à educação. No século XX, elas se inseriram na sociedade industrial. Até essa época percebíamos a sua luta por direitos à cidadania, a defesa de uma vida mais pública.

Entre as décadas de 1930 e 1960, as manifestações feministas se tornaram mais específicas. Em 1937, o voto feminino foi reconhecido. Em 1942, após o fim da Segunda Guerra Mundial, o direito à tomada de decisões sem depender do próprio marido.

Foi em 1960, que seu papel na sociedade foi mais questionado, na busca da quebra do paradigma de que a mulher deve se dedicar totalmente à família. A revolução dos costumes

existe um feminismo, e sim vários feminismos, a depender da realidade da mulher que compõe esse movimento. E todos eles merecem seu espaço, seja a luta pela igualdade, pela independência econômica, liberdade sexual, entre outras. Assim como afirma Vanessa Prateano: ”Eu diria que, além das lutas que são comuns a todos, como o fim da violência e a busca por liberdade, as reivindicações das mulheres negras, das mulheres presas, do campo e da periferia, das mulheres mães e das mulheres lésbicas, das mulheres imigrantes e migrantes, são pautas muito urgentes.”

engendrada na década de 1960 abriu caminho para que o feminismo se tornasse um movimento de maior força e combatividade.

Dessa forma, o movimento feminista, atualmente, busca por uma igualdade, que apesar de já estabelecida no papel, não está presente na sociedade. Entre as grandes e pequenas demandas, as mulheres observam que a conquista de sua emancipação abre portas para a compreensão e a resolução de outros novos desafios.

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sociedade

RACISMO RELIGIOSO

Religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, sempre foram alvo de preconceito e generalizações, enfrentando uma onda de agressões e ataques contra seus símbolos e instituições.

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Rômulo Miranda acredita que Curitiba é uma cidade que cria tradições falsas Texto: Ana Carolina Pacífico
sociedade
Karen Loayza

Rômulo Miranda é do estado do Amapá, criado em Salvador (BA) e, quando recém-chegado a Curitiba, decidiu fazer um despacho em frente ao Shopping Mueller. O que ele não esperava era que o segurança do centro de compras chamasse a polícia e que ele precisasse ir até a delegacia.

Quem o tirou de lá foi seu cunhado, carregando consigo a constituição, aberta no Artigo 5º, inciso VI, que diz ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

A resposta oficial da polícia em ocorrências ligadas a de preconceito contra religião é de que qualquer tipo de discriminação, seja ela racial ou religiosa, todos os envolvidos têm que ser encaminhados para a delegacia de polícia e dependendo da situação podem ser autuados em flagrante pelo crime.

O capitão Nelson Stoccheiro Gonçalves Junior está há 26 anos na polícia e nunca pegou nenhuma situação envolvendo discussão racial, liberdade de expressão ou religiosa, mas diz que seus policiais são bem instruídos quanto a essa questão, e que o cidadão, desde que não esteja ferindo o direito de outra pessoa, pode ter a sua liberdade de expressão assistida e tem o direito de fazer isso a qualquer momento. Conforme a lei 7.716/89, o crime de intolerância religiosa não prescreve e é punido com pena de um a três anos de detenção.

Rômulo é babalossian [sacerdote encarregado da coleta e da preparação das ervas sagradas] do terreiro Ile Axé Iba Igue Ijeba Onin Ode Akuaran. Ele diz que Curitiba é uma cida-

de especialista em criar tradições falsas, em maquiar a religiosidade de matriz africana. Ele questiona como pode se construir a formação de algo tão sofisticado e delicado, como o candomblé, em um estado majoritariamente branco. No Rio de Janeiro e na Bahia, quem é de umbanda é de umbanda, e quem é de candomblé é de candomblé. O babalossian declara que o Paraná tem um fenômeno chamado umbandomblé.

“Eu visitei 286 casas quando eu cheguei aqui, para fazer um trabalho de pesquisa, e fiquei assustado, pois quando chegava em um terreiro que tinha tudo para ser de candomblé, estava tendo uma gira de caboclo, que é da umbanda.

Aquilo me deixava maluco, porque esse estado misturou tudo.” Ele diz ainda que sua casa é a terceira a ser montada aqui no Paraná e até hoje é a única que cultua apenas os orixás. Todas as outras são umbandomblés. Rômulo conta que sofre repressão por diversos motivos, um deles é por causa do território: todo terreiro é expulso do centro da cidade porque incomoda com o barulho. Outro problema é com o senso comum de que candomblecistas fazem pacto com o satanás. Ele aponta o agronegócio, juntamente com os neopentecostais, seus grandes inimigos. As casas de candomblé

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“E se eu fizesse uma sessão para queimar a Bíblia?”
sociedade
- Rômulo Miranda, candomblecista

são queimadas diariamente, os integrantes são perseguidos, apanham na escola por usarem guias. Localizado em Colombo, seu terreiro tem como vizinhos muitos evangélicos, mas ele diz não sofrer dificuldades quanto a isso, porque construíram uma relação com a comunidade. Estão ali, e dão algo em troca para eles. “Eu preciso que as leis sejam cumpridas, meu povo está sendo cada vez mais expulso do seu espaço. Já está sendo falado na Igreja Universal sobre a queima do Adjá [instrumento que serve para invocar e manter a vibração do Orixá na sala, para que a energia não saia daquele local onde está sendo realizada a festa]. E se eu fizesse uma sessão para queimar a Bíblia?”

linhas se firmaram: umbanda e candomblé, ambas mescladas com elementos do cristianismo, que era a religião oficial do estado.

“Essa mistura é chamada de sincretismo religioso, causada pela repressão dos colonizadores, que consideravam as religiões dos negros um tipo de feitiçaria. Logo, estes encontraram uma maneira de praticar sua fé, invocando seus deuses sob a forma dos santos católicos: Oxalá era Jesus Cristo; Iemanjá era Maria; Ogum era São Jorge e assim por diante.

Bruno Klammer é pai de santo do Centro Espiritualista Caboclo Tupinambá (Cecatu). Seu encontro com a religião foi desde os 12 anos. Entretanto, ele diz que não foi algo que escolheu, mas sim um caminho que foi trilhando em sua vida, pois toda a sua família, tanto por parte de pai quanto de mãe, tinha alguma ligação com as origens africanas e indígenas.

Origem

O professor de Cultura Religiosa da PUCPR Mario Antonio Betiato explica que lá pelo ano 1600, mais de quatro milhões de negros africanos vieram para o Brasil como escravos e quando chegaram aqui, trouxeram consigo três religiões: os muçulmanos do norte da África, que desapareceram completamente; os nagôs, da Africa Ocidental, que deram origem ao candomblé; e os bantos, da Africa do Sul, que deram origem ao candomblé caboclo, à quimbanda e à umbanda e dessa religiosidade, duas

A função do pai de santo é zelar por toda a parte espiritual da casa, preparar e orientar os filhos e as filhas de santo. Uma palavra essencial dentro do terreiro é acolhimento. É preciso estar sempre pronto para acolher as pessoas com cuidado e com carinho, quando elas chegam pedindo ajuda. Além disso, é necessário o conhecimento mediúnico, de passar os fundamentos para os outros integrantes.

De forma pessoal, Bruno diz que não sofre intolerância religiosa diariamente. “Não tem como eu ver o povo de axé, a comunidade de

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“A intolerância existe, sim, mas eu não quero ser tolerado, eu quero o mínimo de respeito”
sociedade
- Bruno Klammer, pai de santo
Jornalismo PUCPR Revista CDM 63
Bruno Klammer em sua casa, seu ponto de paz.
sociedade
Acervo Pessoal

terreiro sofrendo agressões, eu ver um terreiro sendo incendiado, uma menina sendo apedrejada e fingir que não é comigo. É comigo também e eu não me faço calar.” O pai de santo é também professor de Educação Física e diz que se coloca de uma maneira muito empoderada e que não há espaço para o preconceito alheio.

Ele conta que, uma única vez, um outro professor perguntou por que ele usa o cordão de conta para ir dar aula e se ele se sente bem ao fazer isso, já que ele não estava dentro terreiro. “Eu respondi a ele que é pela mesma razão que ele usa oescapulário de Jesus Cristo no pescoço. A intolerância existe, sim, mas eu não quero ser tolerado, eu quero o mínimo de respeito.”

Bruno é branco, loiro e tem olhos azuis. Há, atualmente, um forte discurso de apropriação cultural dentro das religiões afro-brasileiras, mas para o pai de santo, isso faz parte apenas de um pequeno grupo que levanta essas questões, pois na prática, nunca viu isso acontecendo. “Conheço muitos terreiros na Bahia, em Pernambuco, no Rio de Janeiro onde há pais e mães de santo brancos e isso não impede nada. O que importa no fim das contas é a sua sensação de pertencimento e acolhimento dentro do terreiro. ”Ele diz também que a estruturação religiosa da umbanda não é exclusivamente negra, nem indígena, como também não é apenas branca. Ela é o reflexo da ressignificação cultural, miscigenada através do encontro dessas três raças.

foi feito nos 500 anos deste país, separando as várias formas de manifestação.

Bruno conta que o trabalho direcionado à comunidade foi desarmando as pessoas, então hoje boa parte delas já enxergam o Cecatu como parte daquele bairro. “A gente levanta as demandas lá dentro, se aproxima das famílias e viabiliza algumas ações de arrecadação e doação. Eles tinham dificuldade de acesso à saúde, de aposentadoria dos mais velhos e até algumas mulheres se queixavam de não ter um salão de beleza.”

O centro levou até eles médicos, advogados e cabeleireiros, além de também gerar empregos, como por exemplo, o senhor que cuida dos carros que estacionam na rua e contratação de pedreiros da região, na época de construção da casa. Além da comunidade, o terreiro ajuda moradores de rua e aldeias indígenas, como a Araçaí em Piraquara.

Ela é o retrato do Brasil, e a partir do momento em que atender só a uma parcela das pessoas, estará segmentando e reproduzindo o que

Thais Rolim frequenta o Cecatu desde 2012. Ela fazia parte da assistência, que são as pessoas que vão até lá para buscar ajuda, tomar passes, se consultar com as entidades ou apenas assistir à gira [o culto]. A partir de 2013, ela começou a integrar a corrente, que são aqueles que incorporam. O terreiro fica no Pilarzinho e alguns vizinhos se incomodam por estarem lá. Alguns jogam pedra no telhado ou se estacionam o carro na frente da casa deles, furam o pneu, jogam óleo queimado nos vidros. “Já aconteceu de a gente estar parado na frente do centro, com a roupa branca que usamos na gira, e eles gritarem ‘macumbeiros do diabo’ e fazerem essa relação da umbanda com coisa ruim. A umbanda não faz o mal, a minha religião é caridade, fé e amor.”, desabafa Thais.

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sociedade

População residente, por cor ou raça que pratica umbanda e candomblé

Jornalismo PUCPR Revista CDM 65
BRANCA PARDA PRETA INDÍGENA AMARELA Umbanda Candomblé *FONTE: IBGE - CENSO DEMOGRÁFICO (2010) 277.150 124.514 3.408 181.214 2.511 TOTAL 588.797 112.435 2.158 220.526 70.927 65.777 1.214 50.670 48.849 1.286 853 TOTAL 407.331 TOTAL 167.363 sociedade

Imigrantes sírias tentam sucesso no Brasil

As mulheres contam sobre a dificuldade de adaptação em um país completamente diferente do seu e a luta diária para conquistar seu espaço nesse novo mundo

Manoela Campos

Em março de 2011, a sociedade começava a presenciar as primeiras cenas da crise humanitária na Síria, que se estende até hoje. Cerca de cinco anos depois, o mundo ainda tenta, sem sucesso, reverter essa grave situação, que já vitimou milhares de pessoas.

Hanady Mitry, imigrante síria de 30 anos, que chegou ao Brasil há apenas dez meses, conta como foi a experiência de sair de Tartus, sua cidade natal, para se instalar em um país com uma cultura totalmente diferente.

“Nos primeiros meses, eu não senti nada, mas agora eu começo a enxergar o que acontece aqui, e perceber as diferenças entre o Brasil e a Síria. São países de culturas muito distintas. Na Síria, há limites no relacionamento do homem com a mulher. Aqui no Brasil, já é bem diferente.”

Devido ao número assustador de imigrantes, Europa e Ásia fecharam suas fronteiras, e países como Alemanha, Eslovênia, Sérvia, Turquia, Líbano e Iraque passaram a monitorar suas proximidades, dificultando ao máximo a entrada de refugiados sem visto válido.

O Brasil, no entanto, acolheu os sírios que aqui chegavam, facilitando a emissão de documentos como identidade e carteira de trabalho.

Em um pequeno apartamento em Curitiba, Hanady vive com o marido sírio e os dois filhos pequenos. “Meu filho mais novo teve dificuldades quando entrou na creche, por ser um país diferente, de língua estranha e pessoas novas. Foi muito difícil no começo, mas agora ele gosta de morar aqui. Com meus filhos, está tudo bem. Como são crianças, a adaptação é mais fácil, aprendem rápido a língua. As dificuldades maiores são comigo e com meu marido”, conta.

À procura de emprego, Hanady tem ótimas lembranças da vida na Síria antes da guerra. “Lá, nós tínhamos trabalho, eu e meu marido éramos funcionários públicos. Eu era professora de francês e tinha uma boa casa, com carro próprio e muita estabilidade. Mas o importante agora é que estou com a minha família reunida e meus filhos estão estudando.”

Ao contrário do que muitos brasileiros pensam, a Síria pré-guerra era um ótimo lugar para viver. “Tudo estava bom antes, o país

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é muito grande, e tinha cidades modernas e muitos prédios. Mesmo não tendo tanta liberdade como aqui no Brasil, antes dos conflitos, a gente podia sair na rua de madrugada sem preocupação nenhuma, as casas ficavam abertas e tudo era bem tranquilo. Mas agora isso mudou, os lugares se tornaram perigosos, e os preços aumentaram muito. Hoje em dia, para viver lá com o básico, precisa ter muito dinheiro.”

Para a população síria, que só queria viver em uma nação com mais liberdade e democracia, restaram a morte e a destruição. E a única saída encontrada por esse povo foi a fuga. Tanto cristãos quanto mulçumanos iniciaram um

processo em massa de evasão da Síria à procura de uma vida melhor em outros países.

De família cristã ortodoxa, a professora explica um pouco sobre a vida da mulher na Síria.

“Nós ortodoxos vivíamos normalmente, lá era como a Europa. As mulheres podiam estudar, dirigir, sair à noite com os amigos, com o marido, podiam trabalhar e tinham direitos. A Síria era um país muito evoluído.”

Em 2013, dois anos após a eclosão da guerra na Síria, o Estado Islâmico invadiu o país e passou a reivindicar os territórios da região. A partir daí, a luta por direitos deixou de ser do povo e passou a ser a disputa pelo poder entre os extremistas.

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Manoela Campos Hanady Mitry segura a foto da família, e fala do seu desejo de um dia voltar.

A imigrante explica que deixou seu país temendo pela vida do marido. “Ele estava sendo obrigado a ir lutar na guerra, e nós já sabíamos que todos que vão, não voltam vivos. Então nossa única opção era deixar o país.”

Sobre a escolha de vir ao Brasil, Hanady conta que seu marido já tinha parentes instalados no país. “Um tio do meu esposo vive aqui há 45 anos, e o outro há 32 anos. Mas se eles não es-

Hanady é uma mulher forte que passou por muitos momentos difíceis nesses últimos anos. Hoje ela estuda português na Universidade Federal do Paraná (UFPR), e enquanto as oportunidades de trabalho não aparecem, a professora segue cuidando do marido e de seus dois filhos pequenos, com a esperança de um dia ver seu país crescendo novamente.

Já Lucia Loxca, de 25 anos, por ser uma das

tivessem no Brasil, não pensaríamos em viajar para cá, tentaríamos ir para a Europa. ”

A respeito da criação dos filhos aqui no Brasil, ela explica: “Com o tempo a cabeça dos meus filhos vai mudar e eles vão aprender essa cultura. Mas em casa nós falamos em árabe, porque não quero que esqueçam da língua, caso um dia a gente volte para a Síria.”

A imigrante e sua família foram bem recebidos no Brasil, apesar de o governo brasileiro não ter prestado muitos auxílios além da emissão dos documentos. “Os brasileiros são pessoas realmente boas, vi muita gente aqui que gosta de ajudar. Meus vizinhos são atenciosos e sempre me oferecem ajuda.”

primeiras imigrantes sírias a chegar a Curitiba, encontrou mais dificuldades. “O Brasil só auxiliou com a entrada, eu cheguei a esperar um ano para emitir um documento.’’

Mas a respeito da aceitação dos brasileiros, a estudante afirma que foi bem recebida. “Os brasileiros foram bem acolhedores. Quando comecei a estudar aqui, meus amigos de curso traduziam as aulas em inglês para mim, já que eu ainda não entendia o português.”

Lucia será a primeira imigrante síria a se formar na UFPR, e conta como foi aceita, em 2014, para o curso de Arquitetura e Urbanismo. “Entrei para a Federal porque eles tinham uma lei específica para os refugiados, mas não estava em funcionamento porque na época não

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“Eu fui a primeira a chegar, e eles até me agradeceram por estar abrindo as portas para outras pessoas.’’
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Lucia Loxca, primeira imigrante a se formar na UFPR.

tinham refugiados aqui ainda. Eu fui a primeira a chegar, e eles até me agradeceram por estar abrindo as portas para outras pessoas. Fiquei muito feliz em saber que eu estava ajudando, de alguma forma, pessoas que estavam na mesma situação que eu.”

Apesar da pouca idade, Lucia impressiona pela maturidade com que lida com a vida. “A guerra ensina muito. Quando você não tem comida, tem que achar um jeito. Quando você vê pessoas morrendo na sua frente, tem que ficar forte. Todos os jovens não são mais jovens, agora são velhos, por causa da guerra. Eles mudaram, cresceram muito. Essa geração está totalmente diferente, o corpo, o pensamento, o coração. Toda essa situação nos ensina muito.”

A vida da imigrante antes da guerra era bem diferente, como ela conta: “Minha família é de Alepo, tínhamos casa lá. Antes dos conflitos

começarem nossa vida era muito boa, podíamos andar pelas ruas até quatro horas da manhã sem problemas com violência. Na Síria não existiam moradores de rua, até os mais necessitados tinham uma casa.”

A respeito da guerra, a estudante desabafa: “Perdi muitos amigos e conhecidos. Eu me sinto mal porque a gente tinha uma história lá na Síria, muitas memórias, e é muito ruim perder tudo isso desse jeito.’’

Mas sobre os planos de voltar para seu país, Lucia finaliza. “A guerra e os terroristas podem até fazer a gente sair da Síria, mas nós sempre iremos amar nosso país. Se eles estão destruindo tudo, nós somos obrigados a sair de lá, para não perdermos nossos parentes queridos e nossas vidas, mas o amor pela Síria continua.”

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Caroline Ribeiro
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Lucia Loxca, primeira imigrante síria a se formar na Univerdade Federal do Paraná.

Livre para sorrir

Dificuldades, preconceitos e superação: conheça um pouco da história de José Ailton, que conseguiu recuperar-se da dependência química com ajuda da fé e do Instituto Social Manassés

Liberdade. É assim que descreve José Ailton (37) após passar por um tratamento que o livrou do vício do crack e de outras drogas há três anos. Depois de sair de Alagoas com a sua mãe, ele chegou a São Paulo aos 13 anos em busca de uma vida melhor. Começou a trabalhar e também a se envolver com drogas como lança perfume, maconha e cocaína. Buscando sensações novas, conheceu o crack com 14 anos, droga que o aprisionou, como ele mesmo diz, por dez anos.

Sua mãe, tentando tirá-lo do envolvimento com as drogas, resolveu tentar a vida em

Curitiba, mas Ailton ainda continuava usando as substâncias. “Eu nunca fui de ficar na rua, usava drogas apenas em casa, trancado no meu quarto”, conta. “Eu cheguei ao ponto de tirar até comida de casa para trocar por droga”, relembra Ailton.

“Eu tenho consciência dos males que a minha dependência trouxe não só para mim, mas para a minha família. Fundo do poço é pouco, fui ao fim da fossa”, relata Ailton que atualmente ajuda outros jovens a sair desse labirinto chamado vício em drogas. Ailton hoje é obreiro da Instituição Social Manassés, que desempenha

Conhecidos pelo trabalho social, a instituição atende somente homens e já possui 21 sedes no país.

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Bruna Caroline Cavalheiro
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Divulgação

um papel social muito importante recuperando homens, com idade entre 18 e 40 anos, da dependência química.

A instituição trabalha há 15 anos na recuperação de jovens com dependência química. São mais de mil pessoas beneficiadas com o programa, que atende em 21 unidades espalhadas pelo país, oferecendo serviços de forma gratuita durante nove meses de tratamento. Lawrence Garcia é o supervisor geral da organização em todo Brasil, e acredita na importância do trabalho que realizam: “A cada pessoa que tiramos das ruas, é menos um traficante que vicia uma nova vítima, é um trabalho de longo alcance”.

O obreiro também já foi uma das pessoas recuperadas pelo programa. Já na primeira internação, conseguiu encontrar na fé forças para continuar o tratamento e ir até o fim. “Hoje uso a minha fé para ajudar outras pessoas. Ninguém melhor do que um ex-dependente químico para saber o que passa na cabeça de quem está iniciando o tratamento. É difícil, mas formamos um elo, uma corrente forte, onde um ajuda o outro a se recuperar”, explica.

De acordo com o supervisor, a instituição tem sucesso de recuperação em 40% dos tratamentos. Lawrence ainda fala da importância da família durante esse processo. “Nós fazemos a nossa parte, mas é de suma importância que a família do dependente esteja envolvida durante o tratamento, principalmente quando o paciente volta para casa”, explica o supervisor.

A psicóloga Angelica Neris explica que a vontade da mudança deve partir do próprio

dependente. “Buscar por ajuda significa que tomou consciência de que não consegue alcançar as aprendizagens necessárias, desejáveis e possíveis, sozinho. O processo de tratamento envolve aceitar, buscar e responsabilizar-se por suas aprendizagens e mudanças.”

O tratamento passa por duas fases. Na primeira, acontece a desintoxicação. Este processo acontece totalmente dentro das dependências da Instituição, e sem o uso de medicamentos. No segundo momento, acontece a reintegração social, na qual os residentes realizam a divulgação do trabalho realizado pela instituição.

A parte da reintegração social é o momento em que a sociedade fica conhecendo o trabalho da Instituição Manassés. Geralmente, após o término dos nove meses de tratamento, o interno já recuperado realiza a venda de canetas e chaveiros dentro dos ônibus das cidades que têm uma sede. O produto custa geralmente R$ 2, e é a única fonte de renda para a manutenção da Instituição. Ao se inscrever para o tratamento, o interno paga uma taxa de R$ 450 e, depois disso, não é cobrado nenhum adicional.

Os produtos são embalados pelos outros internos que ainda estão em fase de tratamento em um sítio, para atividades de lazer no fim de semana. Quem vai para a rua vender, recebe um treinamento de como agir em caso de respos

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“Deus te abençoe, irmão. É isso que nós dizemos quando nos xingam dentro dos coletivos.”

tas ríspidas da população. “Deus te abençoe, irmão. É isso que nós dizemos quando nos xingam dentro dos coletivos”, conta Ailton. Ele também revela que muitas vezes a própria sociedade defende a Instituição. “Ao mesmo tempo que existem pessoas que nos hostilizam, têm aquelas que nos defendem porque já conhecem o nosso trabalho e apoiam. Costumamos dizer que Deus não deixa que o ‘mal’, manifestado naqueles que nos maltratam, seja mais forte e desanime os meninos”, afirma Ailton.

A instituição utiliza a fé para manter o ânimo dos seus internos, que saem de lá transformados. A psicóloga Angelica explica que a fé é um importante fator para suporte emocional durante o tratamento. “Muitas instituições que trabalham com dependentes envolvem a questão religiosa, inclusive há espaços físicos específicos para orações e outras atividades. Esses locais acreditam que a religiosidade traz vantagem ao tratamento e a vida do indivíduo como um todo, ajudando no resultado final.”

Família

Caroline Fischer vive na pele as dificuldades de quem sofre por ter um familiar que tem dependência química. Alessandro Fischer já passou por nove internações, e infelizmente nenhuma delas teve resultado. “Meu irmão já perdeu dois casamentos por causa do álcool e das drogas, não está vendo os filhos crescerem, perdeu tudo pela dependência. A gente como família faz o que está em nosso alcance, mas uma hora a gente também cansa”, conta Caroline.

A família já sofreu com o pai que também era dependente do álcool e acabou falecendo por complicações de uma doença decorrente do vício. Rejani Fischer, também irmã de Alessandro, conta que a maior tristeza é ter que ver o irmão morando na rua por causa da dependência. “Nós internamos o Alessandro nove vezes, ele sai da clínica e vai para rua, não consegue parar em nenhum emprego e não passa um dia sem beber. Várias vezes já tivemos que buscá-lo em praças, vivendo como mendigo, trazer para

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União e orações são carros chefes na recuperação dos dependentes químicos.
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A psiquiatra Raquel Bertozzi explica que o uso de substâncias químicas altera o funcionamento dos neurotransmissores cerebrais, o que causa uma sensação de bem-estar, por isso acontecem as recaídas. “Os tratamentos que realmente têm sucesso são aqueles em que o próprio dependente sente a necessidade. Por isso, é difícil quando a pessoa é forçada a se tratar. Nesses casos, a chance de sucesso é me-

nor”, explica a psiquiatra. Para a médica, a família tem fundamental importância no processo de cura da dependência química, ela explica que “crucificar” a pessoa apenas agrava o caso. “É importante lembrar que a dependência química é uma doença, e é importante que a pessoa sinta o apoio da família. Essa entra como papel fundamental para mostrar que existem outras formas de se ter prazer e que é possível ter a sensação de bem-estar sem estar sob o efeito de determinadas substâncias”, reforça.

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casa, mas ele sempre acaba voltando para o álcool”, lamenta a irmã.
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Quando são internos os dependentes desenvolvem atividades como horta e esportes.
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“Os tratamentos que realmente têm sucesso são aqueles em que o próprio dependente sente a necessidade.”

Adoção, um gesto de escolha ou de amor?

Saiba por que jovens portadores de HIV são esquecidos pelo judiciário e passam a infäncia em instituições de acolhimento sem serem adotados

Texto: Verônica Alves

Fotos: Marjorie Cpelho e Verônica Alves

Diagramação: Marjorie Coelho

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma criança não deveria ultrapassar o prazo máximo de dois anos nas instituições de acolhimento.

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Marjorie Coelho

Aos 3 anos, ele não fazia ideia do que estava acontecendo, muito menos do que ainda iria ocorrer. Dividindo com cerca de 15 pessoas uma casinha de quatro cômodos na Vila Verde, comunidade da Cidade Industrial de Curitiba, um dos bairros mais pobres da capital paranaense, Douglas Alberto da Silva via o irmão caçula, ainda bebê, adoecer e ser hospitalizado com frequência e, assim como os médicos, não entendia o motivo.

Era meados da década de 1990, quando o surto da aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) atingia ainda de forma descontrolada o Brasil e começavam a nascer as primeiras crianças portadoras do vírus HIV e, em meio a tão assustador e desconhecido cenário, o irmão de Douglas era uma delas. Depois da descoberta, ciente da condição precária em que a família do menino vivia, uma intervenção do Conselho Tutelar e da Secretaria de Saúde Pública fez com que todos na casa realizassem os testes e o resultado já não foi tão mais surpreendente: assim como o irmão mais novo,

Douglas também possuía o vírus, contraído da mãe, que também não sabia ser soropositiva e não recebeu nenhum tratamento para evitar a transmissão durante a gestação.

Depois disso, a vida do pequeno Douglas sofreu a primeira reviravolta. Hoje, aos 24 anos, publicitário, na sala de uma das ONGs em que trabalha como voluntário, realizando ações, inclusive, com crianças soropositivas, ele relembra sua trajetória após o acontecimento. “A minha mãe não tinha condições de nos manter, já que ela vivia basicamente na rua; a minha avó tinha uma situação totalmente precária para o nosso sustento e, mediante tudo isso, o Conselho Tutelar foi obrigado a nos tirar daquele local”, ele conta. Assim, Douglas e seus dois irmãos foram apresentados pela primeira vez à uma “casa de apoio”.

Casas de apoio, instituições, associações, ou, simplesmente abrigos. Esses são os locais para onde são levados as crianças e jovens que, por alguma razão, seja por estarem em situação de risco, por sofrerem abuso ou perderem os pais,

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“Para mim, sempre foi um momento delicado ver uma criança ser adotada e perceber que eu continuava ficando e crescendo. E depois descobrir que nós nem constávamos na lista.”Gesser Rodrigues, ex-abrigado.

devem aguardar uma resolução para suas situações. Processo esse que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não deveria ultrapassar o prazo máximo de dois anos, mas que, em muitos casos, principalmente os que envolvem crianças mais velhas e adolescentes portadores de alguma deficiência ou necessidade de tratamento especial, acaba levando mais de uma década, contrariando totalmente o estabelecido por lei. “O ECA prevê em seu artigo 47º, inciso 9º, que os processos envolvendo a adoção de portador de deficiência ou doença crônica, como o portador do vírus HIV, terão prioridade de tramitação, ou seja, que deverão ser mais céleres que os demais”, esclarece o advogado Thiago Zeni Marenda, especialista em adoção e direitos da família. Se o Legislativo afirma que os portadores do HIV devem ser adotados primeiro, o Judiciário parece não acreditar nem mesmo que há famílias interessadas em recebê-los. Prova disso é o que enfrentaram várias crianças e adolescentes abrigados na Associação Paranaense Alegria de Viver (APAV), que até 2014 foi uma das duas instituições em Curitiba especialmente voltadas para o acolhimento de soropositivos. “Verifiquei em diversos dos processos, os quais levaram ao abrigamento de vários dos jovens que lá estavam, que o exclusivo motivo de jamais terem sido inscritos nos cadastros e disponibilizados para adoção foi justamente o fato de serem portadores do HIV”, afirma Thiago, que hoje move ações para a indenização desses jovens.

“Para mim, sempre foi um momento delicado ver uma criança ser adotada e perceber que eu continuava ficando e crescendo. E, depois, descobrir que nós nem constávamos na lista”, explica Gesser Rodrigues, de 23 anos, que após

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Douglas Alberto passou 10 anos abrigado em uma instituição e hoje é fomado e atua como publicitário.
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Verônica Alves

ficar órfão em 2001, aos 8 anos, e viver algum tempo com a senhora dona da casa em que morava com a mãe de favor, chegou à associação em 2003 e nela permaneceu até o seu fechamento. Na lista à qual se referem Thiago e Gesser, também não estava o nome de Douglas, a quem, com carinho, Gesser chama de “irmão”, pois viveu com ele na associação por cerca de dez anos, onde iniciaram uma amizade que permanece até hoje.

Mesmo vivendo em outros abrigos desde os 3 anos, e na APAV desde os 10, Douglas jamais foi adotado. Depressivo, ele teve que lidar sozinho com as mudanças geradas pela transição da infância para a adolescência. Além dos efeitos colaterais da medicação que tomava, da descoberta da sexualidade e do preconceito sofrido no colégio. Por muito tempo nem

mesmo sabia que tinha o direito de ter tido a possibilidade de ser adotado. “Com 12, 14 anos, eu não entendia o que era ser adotado. Eu vivia no abrigo e para mim aquilo era o comum. Mas depois de entender, é claro que eu queria”, ele relembra.

A ineficiência e a demora nos procedimentos de responsabilidade do Judiciário e das Varas da Infâncias e da Juventude, que em grande parte impediram que o desejo de Douglas, de Gesser, e o de tantas outras crianças e adolescentes fosse realizado, é uma evidência de que os motivos que fazem com que esses jovens permaneçam nos abrigos vão muito além da ideia de que eles não são adotados apenas porque não estão dentro do perfil procurado pelos pretendentes. Exemplo disso foi a saga vivida pela família Rau.

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Marjorie Coelho Instituição de acolhimento no bairro São Braz, Lar infantil Sol Amigo (LISA).
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Em 2010, Alberto Rau e Aristéia Moraes Rau, um casal de advogados, que até então eram pais de dois meninos já adolescentes, queriam aumentar a família, e decidiram pela adoção. Inicialmente, Alberto admite, o casal procurava por duas garotas de até 7 anos, porém, ao preencherem os formulários para se submeterem à fila de espera e serem questionados nele se estariam dispostos a adotar crianças portadoras de HIV, foram apresentados a uma nova realidade.

“Havia essa pergunta e, então, nós nos questionamos qual seria a dificuldade de adotar uma criança com HIV e decidimos dar oportunidades a elas”, ele explica. Após isso, o casal chegou a procurar ajuda médica para entender mais sobre o tratamento e necessidades dessas crianças. Entendendo como tudo funcionava, eles visitaram os abrigos que acolhiam jovens soropositivos em Curitiba e saíram de um deles dispostos a adotar não mais duas crianças, e sim quatro meninas, duas delas acima da idade pretendida de início.

Essa mudança de perfil procurado por potenciais adotantes não é incomum quando eles têm contato com os abrigados. “Muitas vezes, se você tiver a oportunidade de conhecer crianças em dificuldade, que necessitam

de uma atenção maior, e você se predispor a fazer um trabalho voluntário com elas, é muito fácil criar um laço maior e querer adotar essa criança”, explica Maria Rita, ex-presidente da APAV.

Com tudo encaminhado, o casal Rau deu continuidade aos procedimentos, até que as dificuldades começaram a aparecer. Mesmo há anos no abrigo, nenhuma das garotas tinha sido oficialmente destituída do poder familiar, o que significa que elas não estavam aptas à adoção, pois isso só é possível após esgotar todas as possibilidades de reinserção da criança na família biológica. Um procedimento que, segundo a lei, deve ser feito em no máximo 120 dias.

Cientes desses e de outros direitos desses jovens que não estavam sendo respeitados, o casal entrou com vários pedidos na Justiça para que o processo fosse acelerado e também recorreu à imprensa, o que, segundo acredita Alberto, só contribuiu ainda mais para que a guarda das crianças lhes fosse negada. Cinco anos depois, Alberto e Aristéia ainda mantêm o Movimento Nacional das Crianças “Inadotáveis” (Monaci), que foi criado em meio a experiência vivida pelo casal, e continuam trabalhando para que a história de outras pessoas possa ser diferente.

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“Havia essa pergunta e, então, nós nos questionamos qual seria a dificuldade de adotar uma criança com HIV e decidimos dar oportunidades a elas.” - Alberto Rau, Grupo Monaci.
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Verônica Alves Marjorie Coelho Alberto Rau, Advogado e fundador do grupo Monaci.
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Instituição de acolhimento no bairro São Braz, Lar infantil Sol Amigo (LISA).

O CRIME ESTAMPADO NA PELE

A tuatuagem é uma arte milenar realizada com agulhas e tintas, e tem como uma das principais características a representação ou significados diferentes. Muitos gostam de tatuar pelo simples fato de eternizar um desenho em seu corpo, já outras pessoas se tatuam para serem diferenciadas

No mundo do crime, existem inúmeras tatuagens com vários significados cada uma, que podem representar desde um ato cometido pela pessoa, sua posição na hierarquia criminosa, ou que represente o que aquele indivíduo já viveu e passou durante a sua vida até o momento de ser tatuado.

Para a psicóloga Michelle Rodrigues Nogueira, tal forma de comunicação surge por consequência do meio hostil e violento no qual

se encontram. “Na prisão os detentos ficam restritos a um convívio social, e seu contato com os familiares é muito pequeno. Isso gera uma limitação à interação. Dentro de um espaço com normas e regras rígidas e de funcionamento ocioso, é grande a criação e aprendizado de formas alternativas de comunicação”, explica Michelle.

Dentro dos presídios e penitenciárias, as tatuagens são o cartão de visitas do detento,

Aranhas e teias quando desenhadas no pescoço e na cabeça, significam morte de algum comparsa

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Álvaro Lunardon e Paulo Morschbacher
comportamento
Jhony Pires

fazendo com que seja idenificado mesmo sem trocar uma palavra sequer com os demais.

“Muitas dessas tatuagens podem levar um preso à morte em questão de dias, pois crimes como estupro e abuso de menores ou incapazes são facilmente reconhecidos por terem sido marcados pelo desenho de Nossa Senhora Aparecida”, conta Ewerton de Souza, que já esteve preso e foi tatuado dentro da cela.

O ex-detendo ainda explica que, uma vez dentro do sistema carcerário, o indivíduo não tem escapatória, e é tatuado mesmo que não queira, à força, pois é a unica forma de identificação entre eles. Por falar em identificação, quando saem das cadeias para a sociedade, os presos são facilmente reconhecidos por terem essas marcas na pele, seja pelo trabalho “mal feito” ou desenhos muito inusitados. Os intrumentos usados para tatuar são totalmente improvisados, e vão desde agulhas comuns, até facas, canivetes e outros objetos cortantes.

“Na maioria das vezes, a tinta usada é a de de caneta, ou até mesmo borracha derretida, pois dentro de uma cela não se têm intrumentos especializados para fazer o desenho. Muitos dos presos são infectados com doenças e acabam com sequelas na pele, pelo fato de não ter qualquer tipo de higiene no ambiente e nos intrumentos.”

Jhonny Pires é tatuador há dez anos, e conta que já fez muitas tatuagens cujo o significado era representar facções criminosas e semelhantes. “O desenho que deixo na pele das pessoas é a divulgação mais concreta do meu trabalho. Então, sempre que vou tatuar alguém, procuro saber o significado do desenho, o porquê da escolha, entre outros detalhes, que fazem toda diferença depois que o trabalho é finalizado. O

fato de o desenho ser a repesentação de algum crime cometido ou algo parecido é apenas um detalhe perto daquilo que é realmente importante em uma tatuagem, a qualidade do trabalho e a satisfção do cliente.”

Matheus Anunciação, de 20 anos, já tem muitas tatuagens. Algumas fez apenas por gostar, que não significam nada demais, mas outras delas possuem um significado que identificam gangues, o movimento skinhead, hardcore e Straight Edge. “Minhas tatuagens indicam os movimentos que eu represento. Eu sou ligado a essas ideologias, eu acredito que o ideal delas seja o melhor para a sociedade.”

O preconceito com quem tem tatuagens é muito grande, principalmente de quem é contra a ideologia representada pela tatuagem, Matheus já sofreu isso por parte de outros grupos ligados a ideias contrárias às suas, “por existir divergências extremas entre outras pessoas que estão ligadas a questões ideológicas diferentes, sempre pode ocorrer algum tipo de confronto”.

O desenho do cabeça

Geralmente quem executa o serviço, ou seja, quem faz a tatuagem nos demais detentos, é o líder de cada facção criminosa presente dentro dos presídios, mesmo não tendo habilidade alguma com desenhos.

Os novatos também fazem um fazem um papel fundamental, e ajudam segurando o indivíduo a ser tatuado, pois na maioria das vezes eles são tatuados a força.

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comportamento

Um mote de transformação

Em Curitiba existem muitos projetos literários, que têm como objetivo aproximar a leitura da comunidade e formar leitores

Um livro, uma história e a literatura podem ser considerados por muitas pessoas como um amigo. Aquele companheiro de longa data, por quem se tem um carinho especial. Já para outras, essas mesmas ferramentas podem parecer algo distante, um universo desconhecido, pois, muitas pessoas consideram a literatura como algo inalcançável, distante e não pertencente a sua realidade de vida.

É para quebrar esses paradigmas e mitos que existem os projetos literários. São eles que tornam a magia dos livros presentes, próxima de toda uma comunidade, formando leitores. Em

Curitiba, existem espaços próprios para esses projetos e alguns deles estão localizados em locais estratégicos, bairros considerados periféricos, em que, seus moradores não têm muito contato e aproximação com os livros. Isso é proposital, pois, como dito acima, um dos principais objetivos desses projetos é mostrar que a leitura é para todos.

Nesses locais, além da disponibilidade de empréstimos gratuitos de livros, são realizadas contações e rodas de leitura, intermediadas por um mediador, que é a figura disposta a aproximar a história do público e contribuir

Vinícius Frank Vaz
Fabrício Calixto Gabrielle Russi Vinícius Frank Vaz
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Pessoas utilizam os espaços municipais como ambiente de leitura.

para com que o leitor se sinta pertencente ao espaço. Essas intervenções também são levadas às escolas, aos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS) e outras instituições que quiserem receber as ações, e os mediadores promovem essas ações nesses grupos, os aproximando do universo literário. Para Thiago Corrêa, mediador de leitura, fazer parte de um projeto de leitura é muito satisfatório por poder ter um contato próximo com a comunidade e poder compartilhar histórias e ver qual a recepção deles nas conversas que ocorrem após as leituras. O mediador Alisson Freyer explica que a grande função da mediação literária é poder estender o diálogo, fazer com que as pessoas conheçam o que elas ainda não conhecem, leiam coisas novas, pensem naquilo em que elas ainda não pensaram. “A grande graça é essa relação que vai se construindo e o modo como a gente vai se reconstruindo. Dentro do contato com cada autor, com cada obra, cada pensamento que aquilo vai engendrando, isso vai transformando você.”

A enfermeira e estudante Eliane Bucholds Ball, de 31 anos, mora próximo ao Terminal Carmo e é uma frequentadora assídua do Espaço de Leitura Eucaliptos, localizado no Portal Futuro do Alto Boqueirão. Para ela o mais legal de participar de rodas de leitura é a troca realizada entre os participantes. “Podemos contar nossas experiências com os livros e como as histórias influenciam nas nossas vidas e escutar as do demais participantes, isso nos aproxima ainda mais da leitura, dos livros.”

Quem transita corriqueiramente pelo Largo da Ordem, com certeza já topou com o Palacete

Wolff, antiga sede da Fundação Cultural de Curitiba (FCC), que abriga a Coordenação de Literatura e a histórica Livraria Dario Vellozo: local onde pode-se encontrar obras literárias independentes e de cunho histórico, além de muitos olhares curiosos de crianças, adolescentes a até mesmo de idosos que desejam ter acesso a todo o acervo.

A coordenadora de Literatura da FCC, Marianne Torres, que atua na instituição, conta que o ato de ler é transcendental e pode ir

além da prática. “Existem várias camadas na relação entre o leitor e a leitura. Quem lê, pode se divertir enquanto busca formar e compreender a subjetividade. A pessoa consegue se ver como individuo, pensar em si mesma como individuo, pensar nas suas próprias questões, na sua relação com os outros e para com a sociedade em geral.”

Ball conta que, para ela, a leitura representa a possibilidade de mudança. “Quando abro um livro, estou dizendo para eu mesma ser diferente, no sentido do que eu posso melhorar com esta leitura. É um desafio de sair da minha zona de conforto, pausar quando estiver difícil de abrir mão de dogmas e retomar quando vejo que consigo digerir essas diferenças. No ato da leitura, é preciso deixar algumas vaidades de lados e abrir a mente para as muitas opiniões que, ao viés do autor, são verdades.”

Para Freyer, pensar em trabalhar com qualquer

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“A grande graça é essa relação que vai se construindo e o modo como a gente vai se reconstruindo.”
cultura
- Alisson Freyer, mediador de leitura.

linguagem dentro da área cultural hoje é muito árido, mas muito prazeroso também. “As conquistas e os diálogos interessantes que se estabelecem vão te alimentando a continuar se propondo a fazer, a recriar possibilidades de contato que as pessoas tenham com leitura e com a arte.”

Ele dá como exemplo a realização de uma contação de histórias com um grupo de adolescentes, no qual todos dizem detestar ler, mas aquele momento se caracteriza como uma experiência interessante, que talvez consiga limar algum trauma que essa pessoa tenha, como se em sua vida inteira a leitura foi apresentada para ela como uma obrigação, um lugar chato ou um castigo, e de repente ela descobre que isso pode ser prazeroso.

nina. Ela dizia o seguinte: “A vinda dos professores do círculo de leitura aqui no presidio nos proporcionou um sentimento de valorização humana, pois além de ser algo diferente sendo

Segundo Eliane, o projeto e os encontros de leitura fortalecem a convivência em comunidade dos participantes. “Nas rodas, frequentam desde a crianças a pessoas mais velhas. Com isso, a mutualidade no respeito flui sem cobrança. A cada relato contado sobre as experiências com os livros, as diferenças diminuem e o respeito aumenta.”

Thiago Corrêa leu uma carta contendo um depoimento de uma participante de uma roda de leitura realizada numa penitenciaria femi-

implantado para nós, é construtivo e nos faz sentir importantes. Aqui neste lugar, por muitas vezes, somos esquecidas por nossas famílias e amigos, ficamos à mercê do sistema. Então só o fato de sairmos de dentro do nosso ‘x’ já é maravilhoso, ainda mais sendo para participar desse ciclo de leitura. Com o círculo, nos sentimos importantes e valiosas. Quando lemos um texto, nós nos transportamos para dentro dele, vivemos aquele momento, isso é incrível. ”

Alisson Freyer conta, emocionado e com olhos marejados, que, para ele, trabalhar com crianças que enfrentam situações difíceis também é muito compensador.

“Você chega para fazer uma contação e eles estão completamente embrutecidos. E você pensa: como é que uma criança de uns 6 anos pode estar assim, com esse olhar duro, desinteressado? Aí você começa, aos poucos a ler,

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“Quando abro um livro, estou dizendo para eu mesma ser diferente, no sentido do que eu posso melhorar com esta leitura.”
Vinícius Frank Vaz cultura

a mostrar os livros, contar as histórias e você vai vendo eles se transformando em crianças, demonstram curiosidade. O olhar começa a brilhar. Aí eu penso, poxa, o que que aconteceu nessa uma hora? Isso vale todo o trabalho.”

E quem disse que as rodas de leitura são efetivamente um espaço restrito apenas para o público alfabetizado? Não para Torres, que tem uma história para contar. “Há um tempo atrás, tinha uma senhora que pegou um texto em uma roda de leitura, mas ela não estava acompanhando a gente. O mediador da leitura percebeu que ela era analfabeta. A idosa provavelmente deve ter ficado com vergonha de admitir isso, então ela só ficou ouvindo a leitura. Depois, na hora de falar, ela pôde explicar sobre o que ela entendeu do texto, mesmo não sabendo ler. Então, a gente também parte do princípio de que a primeira leitura é a leitura do mundo. Ela pôde se inserir, interpretar, ter uma voz, ser ouvida”, descreve Torres.

Eliane Ball demonstra ser uma mãe coruja e expressa sua emoção por suas filhas Sara, Samara e Melissa, de 8, 7 e 6 anos, serem apaixonadas pelo espaço e projeto assim como ela. “Tive o prazer de apresentar alguns livros de figuras para elas. Elas se impressionaram pois eu tinha perguntado se um livro sem escrita pode dizer algo e a resposta delas foi não. Quando terminamos de ler, estávamos emocionadas. Foi algo surpreendente para elas e me surpreendi com a compreensão delas do livro.”

Segundo Freyer, dentro das mediações não se costuma salientar o lado social, porque se trabalha com a literatura enquanto uma linguagem artística. Mas toda vez em que a pensam na relação com um objeto literário, o enxergam como democratizador do acesso de

opiniões. “Ele refaz, e eu acredito particularmente nisso, a forma como a gente olha para o mundo, a nossa forma de interferir no mundo politicamente e socialmente falando.”

Para ele, a literatura é uma grande arma de conscientização, politização e democratização.

“O contato com ela nos humaniza, nos torna menos ásperos e insensíveis com relação ao mundo. E isso faz com que, talvez, eu passe a relativizar a importância só da minha opinião, me torne menos fechadinho, formatadinho e mais aberto.”

“As palavras são portas e janelas. Se debruçamos e reparamos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancamos as portas, o enredo do universo nos visita. Ler é somar-se ao mundo, é iluminar-se com a claridade do já decifrado. Escrever é dividir-se. Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia outra estação. E os olhos, tomando das rédeas, abrem caminhos, entre linhas, para as viagens do pensamento. O livro é passaporte, é bilhete de partida.”

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- Bartolomeu Campos Queirós, poeta e escritor brasileiro. Gabrielle Russi
cultura
Alisson Freyer realiza contações de histórias com crianças.

Boxe como projeto social

Como um esporte tradicional pode mudar a vida de crianças e adolescentes

Texto: Stephanie de Morais

Fotos: Stephanie de Morais

Edição e Diagramação: Izabela Weber e Sâmela Rodrigues

Oboxe é um dos esportes mais tradicionais e antigos do mundo. A arte marcial vai além de colocar luvas e sair por aí socando alguns sacos de areia. O boxe é hoje uma modalidade esportiva que proporciona benfeitorias como o autoconhecimento, a confiança, o foco e a disciplina a seus praticantes. Além disto, o esporte é reconhecido mundialmente como a nobre arte, por ter regras justas, equilibradas e pouco violentas.

Para manter viva a tradição do boxe e beneficiar crianças e adolescentes da periferia com a

prática esportiva, é que foi criado em São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), o primeiro Centro de Excelência de Boxe do Paraná e do Brasil.

O projeto social foi aprovado no Ministério do Esporte, por meio da Lei de Incentivo ao Esporte do governo federal e conta com o apoio da Prefeitura de São José dos Pinhais, por meio da Secretaria de Esporte e Lazer e em parceria com o Ministério do Esporte e governo do Paraná. O local é administrado pelos pugilistas Macaris do Livramento e Rosilete dos Santos,

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O boxe é uma arte marcial que utiliza os punhos para defesa ou ataque.
Stephanie de Morais
Freepik esportes

grandes campeões brasileiros e mundiais.

Segundo Rosilete, o objetivo do projeto social é muito mais do que apenas ensinar o esporte aos participantes. “O Centro de Excelência de Boxe não ensina aos alunos apenas a luta e os golpes em si. O projeto vai muito além disso. Nós procuramos integrar as crianças e adolescentes com a atividade física, ensiná-los a ter disciplina e aprimorar o raciocínio e a coordenação motora e trabalhamos também com a saúde e o respeito ao próximo, porque aqui tudo é feito em conjunto, sempre atuando um pelo outro”, declarou a boxeadora.

Criado em 2015, o projeto de cunho social tem o intuito de tirar as crianças e adolescentes das ruas e também revelar novos talentos no cenário esportivo paranaense. Atualmente, o projeto atende mais de 300 jovens, que encontraram no esporte tanto qualidade de vida, quanto ensinamentos esportivos e sociais.

A Prefeitura de São José dos Pinhais é uma das maiores incentivadoras do projeto social, já que foi quem abraçou a ideia e forneceu toda a infraestrutura do centro, juntamente com repasses financeiros para manutenção.

Por ser pioneiro, trabalhar com pessoas carentes e ter esse apoio da administração, o local é

um orgulho para o município. É o que diz o secretário de Esporte e Lazer da cidade, Thiago Buhrer. “O Centro de Excelência do Boxe representa muito para São José dos Pinhais. Através do esporte, nós conseguimos promover a cidadania entre nossos jovens e proporcionar a eles uma melhor qualidade de vida”, declarou. O secretário acrescentou ainda que o objetivo da prática esportiva não é apenas ensinar as técnicas as crianças e adolescentes, mas também promover valores entre eles, para que desta forma possam ser exemplos de cidadãos.

“Com o trabalho desenvolvido, tenho certeza que as crianças e adolescentes ficarão marcadas pelo resto da vida por terem recebido a oportunidade de conhecer e praticar o boxe e de

O Centro de Excelência de Boxe conta com uma estrutura que atende mais de 300 jovens.

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“ Pensamos em formar pessoas melhores através do esporte e não apenas ensiná-los a prática do boxe.”
Rosilete dos Santos, pugilista.
Stephanie de Morais
esportes

receber ensinamentos sociais que podem levar para sempre consigo”, terminou Buhrer. Foram 18 anos de luta para tirar o projeto do papel e fazer com que ele virasse uma realidade para a comunidade. O programa não é voltado ao esporte de alto rendimento em si, mas tem uma intenção maior, que é a de participação social e comunitária de quem precisa, já que muitos dos jovens que estão ali não têm condi ções de pagar pela prática esportiva.

Para a campeã Rosilete, o Centro de Excelên cia é um grande orgulho, principalmente por ajudar na formação de vida dos praticantes. “O que nós queremos é ajudar no desenvolvimento social dos alunos. Pensamos em formar pessoas melhores através do esporte e não apenas ensiná-los a prática do boxe. Nós oferecemos técnicas esportivas e instruções de vida às nossas crianças e adolescentes”, afirmou.

A nobre arte, como o boxe é mundialmen te conhecido, é então uma saída social para essas crianças que participam do projeto. Ao ver o rosto de quem está treinando, é possível perceber a influência do esporte na formação prática e de vida de quem está ali diariamente.

O brilho nos olhos mostra a importância do boxe para os jovens, que viram no esporte uma oportunidade de fazer o bem e estar longe dos perigos das ruas.

O futuro do boxe e da vida

No Centro de Excelência de Boxe, o principal objetivo é formar cidadãos. Porém, alguns alunos já vêm se destacando no esporte e mantendo a tradição do boxe cada vez mais viva.

O projeto é uma forma de abertura de portas para o futuro de muitos destes jovens que pen-

sam em seguir carreira de pugilista.

Rosilete confessa que alguns campeonatos de boxe estão se aproximando e a intenção é inscrever alguns alunos interessados e, quem sabe, formar campeões. “Neste ano, nós faremos a estreia de alguns talentos que nos preparamos e lapidamos para campeonatos que estão por

realmente seguir carreira, porque o intuito do projeto não é formar atletas e, sim, pessoas de bem. Quem sabe tenhamos aqui no Centro de Excelência de Boxe um futuro campeão”, declarou empolgada a campeã mundial.

Um dos parceiros do local para a formação dos atletas e cidadãos é o professor Wender Rosa, que desde o início do projeto dá aulas no local. Para eles, é inexplicável a sensação de ensinar o boxe para quem está ali. “É gratificante trabalhar com essas crianças. É legal ver jovens se

Tentando superar a perda do pai, Kainan Lang treina há oito meses.

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esportes

interessando pelo que você ama fazer e ensinar. É um sentimento único, não tem como explicar”, afirmou.

O professor destaca que no Centro de Excelência não é trabalhado apenas aspectos técnicos do boxe, mas também lições de vida. Segundo Rosa, alguns alunos na primeira aula já o surpreendem com a forma rápida com que aprendem as técnicas do boxe. Com a força de vontade que os alunos colocam quando estão aqui praticando acabam aprendendo o esporte muito mais rápido que os adultos.

Os alunos aprendem no local aspectos físicos, técnicos e de vivência do boxe. Alguns já se destacam em meio aos outros, principalmente pelo empenho e dedicação com que praticam o esporte. É o caso do jovem Samuel D’Lucca, de apenas 14 anos. O adolescente começou a praticar o esporte por questões de saúde e acabou se apaixonando pelo boxe. “O boxe acolhe, pois não é igual ao futebol que você tem de ser treinado, o próprio boxe treina você”, disse.

Ainda mais marcante é o jovem dizer que o boxe o mudou e para melhor. “O boxe é importante na minha vida. Sem ele eu seria outra pessoa, ele me mudou para o bem. Antigamente, eu era muito brabo, ficava irritado toda hora com qualquer coisa e agora sou uma pessoa disciplinada, mais tranquila e, de quebra, ainda melhorei na educação escolar. Devo tudo isso ao boxe”, terminou dizendo D’Lucca.

Mas, se você pensa que apenas homens participam do Centro de Excelência, está muito enganado. As mulheres já chegaram a ser maioria de participantes no local e hoje estão quase em mesmo número que os meninos. Uma prova

disso é a adolescente Suelen Fontes Correia, de 13 anos, que entrou no boxe para cuidar de sua saúde. “Minha mãe me colocou para treinar porque eu estava um pouco acima do peso e, com a prática do boxe, emagreci bastante. Mas o esporte não me ajudou somente com a saúde, mas também com educação, respeito e comprometimento”, disse.

Mesmo tendo iniciado no boxe por influência de sua mãe, a menina confessou que acabou gostando do esporte e está praticando há mais de um mês sem parar. Para ela, o boxe é uma forma até de descontar sua raiva. “O boxe é uma saída até mesmo para descontar a raiva nos sacos de pancadas”, finalizou.

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Correia
uma das meninas que treinam no local. esportes
Stephanie de Morais
Suelen
é

VIDA LONGA!

A gourmetização chegou aos bares, mas os botecos conseguem manter seu público cativo e não pensam em inovar tão cedo

“Cerveja gelada! ” Na lista daquilo que um bom boteco tem que ter, a temperatura da bebida é um pré-requisito. Não é que os bares novos, abertos nos últimos anos, não sirvam uma bera trincando, mas é que os botecos têm isso como prioridade. “A única coisa que não falta é cerveja gelada”, garante seu Nilson, dono do Boteco Natividade. Mas não é apenas disso que se faz um bom boteco.

Conhecido entre os amigos por frequentar lugares assim, Alexandre Stresser, engenheiro agrônomo, não nega a fama que tem. Ele, obviamente, elenca a cerveja gelada como fator determinante para um boteco, mas adiciona o preço e a liberdade de se pedir uma cachaça. “A cerveja tem que ser gelada e barata e a cachaça

não pode faltar!” Já para Tiago Ribas, botequeiro cuja segunda casa é o Amor y Cana, um bar não precisa de nada: ele simplesmente é! Nesse clima existencial, Tiago diz que os botecos são necessariamente despretensiosos, não “fazem luxo” pra ninguém, apenas contentam-se em ser o refúgio dos necessitados. “É tipo a casa da vó, sabe?”, brinca.

Cabe lembrar que, conforme frisou Tiago, botecos não se autodenominam assim – normalmente escondem-se sob o nome de restaurante, lanchonete e até mercearia. Um bom exemplo é o “Bar e Restaurante Amor y Cana”, localizado na Rua Nilo Cairo. Na fachada, além do nome na placa patrocinada por uma marca de cerveja, há um cartaz com o dono, Marcelo Bechara, apresentando seus quibes.

Descendente de árabes, Marcelo serve durante a noite sua especialidade, uma opção saborosa dentre as vinas em conserva e o famoso rollmops (pele de peixe enrolada em uma cebola ou pepino).

Aliás, o rollmops é um bom critério para conferir a autenticidade de um estabelecimento.

“Eu nunca vi rollmops fora de boteco e nem boteco verdadeiro sem rollmops”, diz a artista Júlia Queiroz, uma das frequentadoras do Amor y Cana e que garante uma experiência

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Caio Liberal e Patricia dos Martyres Divulgação Os tradicionais rollmops, típica comida de boteco

assídua pelos botecos da cidade. Além disso, as mesas de sinuca e uma jukebok antiga completam o clima e compõe uma trilha sonora eclética, que vai desde o pop dos anos 90 até músicas sertanejas raiz, todas embaladas pelas tacadas na mesa de sinuca. “Mesmo que alguém não goste de alguma música, mesmo assim respeita o gosto do outro”, diz Júlia.

André Negrello, mecânico, é outro botequeiro. Frequentador do Natividade desde 2008, é fácil encontra-lo por lá. “De segunda a sexta”, confessa. Para ele, boa companhia, simplicidade e o ambiente democrático complementam a lista. “O boteco te dá liberdade de falar sobre

tudo. Se parece um zoológico pela diversidade encontrada aqui. Ele não discrimina ninguém”, afirma André, que é categórico ao dizer que não troca o boteco por nada. “Eu me identifico, é a minha vida. O boteco sou eu.”

A assiduidade de Negrello tornou possível novas amizades. Ele assegura que é mais fácil conversar com desconhecidos em um boteco do que em qualquer outro tipo de estabelecimento e, como um botequeiro nato, também fez amizade com os donos. “O público se mantém cativo porque eles nos conhecem, conhecem os garçons, os donos. Nos chamam pelo nome” explica dona Mazilda, mulher do seu Nilson. Ela, inclusive, revela o segredo de tanto sucesso principalmente entre os jovens. “Atendimento e amizade.” Da mesma forma, Marcelo cumpre um papel social no Amor y Cana. Aconselha, conversa, fala desde o placar do jogo até os embates políticos. “Dono de boteco tem que ser psicólogo também”, diz ele, que aprendeu a lidar com pessoas na prática. “Se fosse escrever um livro, tem cada história...”

Henrique Cruz é beer sommelier e consultor de negócios cervejeiros. O especialista prefere frequentar lugares com o mínimo de conforto e que vendem cervejas boas com bom preço. A tendência de aumentar o menu de cervejas, apostando em cervejas artesanais e importadas, e sofisticar pratos da casa, sobretudo na montagem de hambúrgueres, é na realidade um ciclo, segundo Cruz. “Hambúrguer está na moda agora. Daqui a pouco, passa e o pessoal que investiu nesse nicho de mercado vai pre

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Caio Liberal
Eu me identifico, é a minha vida. O boteco sou eu.”
Seu Nilson, dono do Natividade - homem de poucas palavras
André Negrello, mecânico

cisar mudar.” O consultor garante a sobrevida dos botecos justamente por ir contra modismos. “Os botecos estão a salvo por um bom tempo. Sem falar que épocas de crise fortalecem os lugares mais econômicos”, afirma.

O boteco tem seu espaço muito bem definido na cidade. Sabendo disso, Adelar Lemes, 44, dono do América há 16 anos, não pretende inovar não cedo. Para ele, não faz sentido mudar a proposta de um local que dá certo há muito tempo. Antes de virar dono, ele trabalhou lá como garçom, chapeiro, caixa, um faz-tudo, durante uma década. E aprendeu muito sobre cultura botequeira

graças a essa experiência.

Lemes sabe que a essência do boteco é o que mantém seu negócio em pé até hoje. A crise econômica que assola o país passou batida por aqui. “O cliente de boteco se sente bem aqui da maneira que veio, da maneira que é”, afirma. O pro-

prietário ainda conta a sua fórmula para um boteco vingar. “Preço, ambiente e atendimento. Atendimento é muito importante. Sou chamado pelo nome desde quando era garçom.”

Aqui é permitido rir alto, chorar, dançar e beber

Tiago Ribas, cliente do Amor Y Cana

A essência de boteco vai muito além de cerveja gelada e petiscos típicos. “As pessoas conversam e bebem muito mais do que deveriam e vão ficando sem peso na consciência”, diz Juliano Farias, estudante de Economia e cliente do América.

Já Tiago Ribas diz que a essência dos botecos é natural ao ser humano. “Aqui é um refúgio onde é permitido rir alto, chorar, dançar, beber. É a dose de saúde que se precisa nesse mundo agressivo em que vivemos.” Talvez seja esse o motivo da miscelânea de pessoas que se encontram nesses espaços, de toda idade e níveis sociais. Sem necessidade de marketing especializado, o boteco simplesmente passa de geração à outra, supera crises e mantém a autenticidade.

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Os amigos Alexandre Stresser e Juliano Farias contam garrafas no Bar América Patricia dos Martyres Diversão entre amogis no bar Amor y Cana
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Bora botecar?

LANCHONETE AMÉRICA

Av. Col. Francisco Heráclito dos Santos, 902Jd. das Américas.

Aberto de seg. a sex. das 15h às 00h, e sáb. das 10h às 20h.

AMOR Y CANA

BAR E RESTAURANTE

R. Nilo Cairo, 230Centro.

Aberto de ter. a dom. das 19h às 6h.

NATIVIDADE

R. Ten. Ricardo Kirch, 232Jd. das Américas.

Aberto de seg. a sáb. das 12h30 às 22h30.

BAR DO PUDIM

Praça do Redentor, 322São Francisco.

Aberto de seg. a sáb. das 17h às 00h

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O rei da bandeja

Milton Soares, o Miltinho, garçom no Bar do Pudim há mais de 30 anos, é praticamente um patrimônio histórico dos botecos curitibanos

Há uma portinha sempre aberta na Praça do Redentor, no bairro São Francisco, bem em frente à lendária pista de skate da (mais conhecida como) Praça do Gaúcho. A portinha do Bar do Pudim, ativo e operante desde 1968, recebe todos os dias um público bastante eclético: famílias inteiras, homens cinquentões, jornalistas, skatistas, universitários, casais de todas as idades, moradores

do bairro. O interior, de uma estética parecida com as padarias paulistanas, mistos de padaria com boteco, tem até o hoje o mesmo balcão de madeira do fim da década de 60 e o mesmo letreiro de cardápio de lanchonete anunciando deliciosos e únicos lanches e petiscos do Pudim. Os mesmos de sempre. Pão com bolinho, pernil com verde e carne de onça são os três mais pedidos. Quem garante é Milton Soares, o Miltinho.

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Fernanda Maldonado Miltinho é reconhecido pela simpatia e bom atendimento
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Fernanda Maldonado

Garçom há mais de 30 anos só no Bar do Pudim, Miltinho é quase um monumento histórico da cidade.

Os clientes mais assíduos não precisam nem pensar em fazer o pedido ao chegarem ao bar. Dono de uma memória sem igual (cuidado com vexames no recinto, serão lembrados por toda a eternidade por ele), traz a cerveja de gosto do cliente sem pestanejar. Cumprimenta os mais chegados com um “cumprimento de skatista”, que aprendeu com o pessoal do skate da pista do Gaúcho, e, mesmo em dias de movimento intenso, nenhuma mesa fica sem ser atendida. Sempre com um sorriso simpático, mas de quem vai pregar uma peça a qualquer momento.

Entre uma brincadeira e outra de garçom experiente, como servir a cerveja deixando o copo no último ponto de equilíbrio possível antes de se estatelar no chão, o que geralmente faz com os “menos iniciados”, Miltinho cantarola e vem mostrar no celular moderno a foto da última namorada. “Não é linda? ” Concordo. Muito bonita. Com seu 1m65 de pura popularidade no Bar do Pudim, o garçom Milton Soares criou um personagem de si mesmo. Faz parte de uma geração de garçons que, quem sabe, possa ser uma das últimas que vivenciaram as mudanças do século, a entrada de um novo milênio. Tempos em que a seleção brasileira ainda era seleção brasileira, o meio e

o final da ditadura. Mas, principalmente, uma geração que viu os reflexos de todas as transformações espelhados nas mesas do bar. Toneladas de histórias para contar. Incansável, ele continua todos os dias na labuta. Não à toa, o Pudim, ao anunciar um serviço de entrega de seus quitutes, já avisa previamente: só

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não pode levar o Miltinho para casa.
“Garçom há mais de 30 anos só no Bar do Pudim, Miltinho é quase um monumento histórico da cidade.”
Fernanda Maldonado
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O garçom está sempre com um sorriso maroto no rosto

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