Drama 5

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abril 2014

drama Entrevistas Gideon Raff Bruno Nogueira, Gonçalo Waddington e Tiago Guedes Pedro Lopes Eduardo Cintra Torres

Séries de Televisão A nova Era de Ouro da escrita de argumento está na televisão Panorâmicas Uma visão histórica, o paradigma da telenovela e a escrita para reality shows.

Análises Battlestar Galactica, Berlim Alexanderplatz,Curb your Enthusiasm, Decálogo, Family Ties, Modern Family, Morangos com Açúcar, The Simpsons

TOP 5+1 As melhores séries de televisão na opinião dos argumentistas portugueses.

Para além do tema Crítica, Livros e Consultório Jurídico Work in progress





drama -revista de cinema e teatro -

APAD



editorial Até à viragem do século, a série de televisão era considerada o parente pobre da narrativa audiovisual. A ficção televisiva residia sobretudo em séries de género, em programas formatados de humor, ou em raras obras de cineastas para o pequeno ecrã. Acima de tudo, a série de televisão era olhada como um objeto de entretenimento, mais subsidiária de produtos como o folhetim, a rádio-novela ou o cinema comercial do que de artes ditas nobres como o teatro, a literatura ou o cinema de autor. Depois surgiu Os Sopranos. A série traçava um retrato da tradicional família americana e tinha como protagonista um chefe da máfia com dúvidas existenciais e questões freudianas por resolver. De um modo inusitado, apresentava personagens ambivalentes, enredos em aberto, e interpretações de fazer inveja aos mais oscarizados. A primeira temporada foi desde logo um êxito e abriu espaço a uma mudança de paradigma. Ao mesmo tempo, transformações nas formas de produção – com canais por cabo como a HBO, a Showtime e a AMC a investirem em conteúdos originais para “primetime”, e nos meios de recepção – com o crescimento da qualidade e dimensão dos ecrãs de tv, da distribuição de DVDs de séries, e do visionamento através do digital e da internet – permitiram sustentar esta mudança. Assim, a pouco e pouco, a ficção para televisão abandonou as fórmulas do passado, saiu do conforto do estúdio e da filosofia “catch-all” e começou a explorar novos territórios temáticos e dramatúrgicos. Deste modo, se observarmos a ficção televisiva deste século e estabelecermos um paralelo com a generalidade das séries do passado é forçoso reconhecer um salto qualitativo quer no desempenho dos atores, quer nos aspetos técnicos, quer nos valores de produção. Porém, foi sobretudo ao nível do argumento – na densidade dos enredos, na composição das personagens e na subtileza dos diálogos – que as séries contemporâneas mais se destacaram e revelaram a sua singularidade. É por isso sintomático que nestas novas ficções, o criador – a figura demiúrgica de toda a obra – seja, invariavelmente, um argumentista. Dir-se-ia que num período em que o cinema de Hollywood se tornou refém das pipocas e dos efeitos especiais, em que o cinema europeu surgiu por vezes vezes hermético e conceptual, e em que o cinema de outras paragens – como a Ásia ou a América do Sul – teve ainda dificuldades de distribuição, foi a ficção televisiva que melhor refletiu o nosso tempo e colmatou essa perpétua necessidade humana de histórias. Neste contexto, decidimos dedicar o novo número da revista à ficção para televisão. Recolhemos depoimentos, textos panorâmicos e análises críticas a algumas das séries mais relevantes. Entrevistámos Eduardo Cintra Torres e os criadores de Odisseia (Bruno Nogueira, Gonçalo Waddington e Tiago Guedes), de Pai à Força (Pedro Lopes) e da versão original de Homeland (Gideon Raff). Finalmente, realizámos um inquérito a 28 argumentistas portugueses que resultou num top das melhores séries nacionais e internacionais de sempre. Por tudo isto – e pelas rubricas fora-do-tema – acreditamos que vale a pena ler este número da Drama.


TOP5+1 As melhores séries de televisão na opinião dos argumentistas portugueses. 12

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Entrevistas Gideon Raff 14 Bruno Nogueira, Gonçalo Waddington e Tiago Guedes 16 Pedro Lopes 18 Eduardo Cintra Torres 22

Panorâmica Séries de Televisão: 4 Décadas de Memórias 26 José Vieira Mendes

Ficção, géneros e formatos: um remix audiovisual 30 Catarina Duff Burnay e Pedro Lopes

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Análises Dez Imagens para Kieslowsk 36 Testemunho Perseguindo o Anão Chinês 64 Jorge Vaz Nande

Humberto Hokama

The Simpsons – Crítica e humor da sociedade contemporânea 40 Paulo Alexandre e Castro

Uma Aparência, Diferentes Seres: Performance e Identidade Pessoal em Battlestar Galactica 42 Sérgio Dias Branco

Berlim AlexanderPlatz 46 Pedro Flores

Curb Your Enthusiasm – A Reinvenção do Sitcom 50 Denise Duarte

Uma Família Muito Moderna 54 Daniel Ribas

Da televisão ao cinema de atrações, com açúcar 58 Paulo Cunha

1, 2, 3... partida! 60 Mónica Santos


Work in Progress Começar a andar 68 Marta Reis Jurídico Escrita de argumento 70 Alexandra Fonseca

Livros O futuro da ficção 72 Jorge Palinhos

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Crítica Afterschool Rostos e Violência 74 Ana Barroso

Dans La Maison 76 Jorge Palinhos

Entre A Gaiola Dourada e Ganhar a Vida 80 Daniel Ribas

para além do tema



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Six Feet Under

TOP 5+1 — Há uns meses atrás, a Writers Guild of America (a principal associação de argumentistas do mundo) anunciou a sua lista de 101 Best Written TV Series. Em primeiro lugar estava Os Sopranos. Tendo em conta o tema deste número da DRAMA (Séries de Televisão), decidimos promover – juntamente com a APAD – um inquérito alargado aos argumentistas portugueses sobre as suas séries preferidas. Não colocamos nenhum limite: deveriam ser, para eles, as suas séries favoritas, e não necessariamente as mais bem escritas ou as com melhor desenvolvimento dramático. Não é de estranhar, no entanto, os resultados obtidos: as séries escolhidas são aquelas que marcam os últimos quinze anos, sobretudo se olharmos para as quatro primeiras. Também não há dúvida que Os Sopranos representa uma nova era da escrita para televisão: a série venceu destacada o primeiro lugar. Para além disso, o top ainda apresenta outras séries de produção muito recente, como Mad Men ou Breaking Bad. Comprova-se assim a declarada “nova era” da escrita televisiva. Das séries clássicas – e houve muitas menções a séries de outras décadas – há um destaque para três clássicos da televisão: o suspense e o mistério de Twin Peaks e Quinta Dimensão ou o humor dos Monty Python. Aliás, no género da comédia, estão no top duas séries essenciais da última década: The Office (versão original) e Seinfeld. Ambas romperam com as estruturas tradicionais da sitcom. No top português, o método foi diferente. Optámos por perguntar, apenas, qual era a melhor série portuguesa. Talvez por isso a opinião seja quase unânime, com uma liderança destacada de O Tal Canal, série mítica de Herman José. Em segundo lugar, outro clássico: Duarte & C.ª, mais uma série que dirá alguma coisa aos mais velhos e muito pouco aos mais novos. Só Conta-me Como Foi, no terceiro lugar, permite a uma série recente entrar neste top. Mas é claro, como também se pode ver pelas outras menções, que muitas séries recentes marcaram a televisão portuguesa. A discussão está aberta!

Top 10

— Método de cálculo: foi pedido a cada participante que colocasse cinco séries de televisão por ordem de preferência. À série colocada em primeiro lugar, atribuímos 5 pontos, e assim progressivamente até à colocada em último, com 1 ponto.

1. Os Sopranos / The Sopranos (63) 1999-2007, David Chase 2. Sete Palmos de Terra / Six Feet Under (42) 2001-2005, Alan Ball 3. A Escuta / The Wire (38) 2002-2008, David Simon 4. Ruptura Total / Breaking Bad (31) 2008-2013, Vince Gilligan 5. Os Malucos do Circo / Monty Python’s Flying Circus (30) 1969-1974, Graham Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle, Terry Jones, Michael Palin e Douglas Adams. 6. A Empresa / The Office (versão inglesa) (23) 2001-2003, Ricky Gervais e Stephen Merchant 7. Twin Peaks (23) 1990-1991, David Lynch e Mark Frost 8. Mad Men (20) 2007-, Matthew Weiner 9. Seinfeld (17) 1989-1998, Larry David e Jerry Seinfeld 10. Quinta Dimensão / Twilight Zone (12) 1959-1964, Rod Serling


Top 5+1

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The Office

Top 10 de menções — Método de cálculo: quantas vezes foram mencionadas as séries, não tendo em conta a sua posição no top.

1. Os Sopranos (18) 2. Sete Palmos de Terra (12) 3. The Wire (10) 4. The Office (9) 5. Monty Python’s Flying Circus (8) 6. Twin Peaks (8) 7. Breaking Bad (8) 8. Seinfeld (7) 9. Mad Men (6) 10. Simpsons (4) Outras séries nomeadas: Os Homens do Presidente / Decálogo / Downton Abbey / Battlestar Galactica (2004-2009) / Reviver o Passado em Brideshead / Nip/Tuck / A Guerra dos Tronos / Balada de Hill Street / Segurança Nacional / House / Uma Família às Direitas / The Singing Detective / Derek / A Feira da Magia / O Caminho das Estrelas / No Fim do Mundo / South Park / Louie / The Killing / Fawlty Towers / Black Mirror / Cenas da Vida Conjugal / Quem Sai aos Seus / O Reino / Eu, Cláudio / Perdidos / Conan / Through the Wormhole / Berlin Alexanderplatz / 24 / Tem Calma, Larry / Borgen / Planet Earth / Sherlock / Columbo / Sem Escrúpulos

Top 5 Séries Portuguesas

Monty Python’s Flying Circus

1. O Tal Canal (10) 1983-1984, Herman José 2. Duarte & C.ª (5) 1985-1989, João Miguel Paulino 3. Conta-me Como Foi (3) 2007-2011, Helena Amaral, Isabel Frausto e Fernando Heitor 4. Zé Gato (2) 1979-1980, João Miguel Paulino, Dinis Machado e Pedro Franco Outras séries nomeadas (1) Claxon / A Raia dos Medos / Equador / Liberdade 21 Odisseia / Herman Enciclopédia / Os Homens da Segurança.

The Sopranos

Argumentistas que participaram no inquérito: Rita Benis, Luís Filipe Borges, Bernardo Camisão, Patrícia Castanheira , Maria João Cruz, Nuno Duarte, Vítor Elias, Pedro Flores, Filipe Homem Fonseca, Inês Gomes, Marta Gomes, Pedro Lopes, Nuno Markl, Rui Cardoso Martins, Jorge Vaz Nande, João Nunes, Ricardo Oliveira, Jorge Palinhos, Rui Neto Pereira, José de Pina, Daniel Ribas, Tiago Rodrigues, Susana Romana, Nuno Costa Santos, Tiago R. Santos, Nuno Artur Silva, Eduardo Cintra Torres, Rui Vilhena.


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Gideon Raff

— Gideon Raff é um guionista e realizador israelita, autor de Hatufim (2010-), a mais bem sucedida série de televisão daquele país, cujo guião foi comprado para produzir a série norte-americana Homeland, conhecida em Portugal como Segurança Nacional (2011-), recentemente premiada nos últimos Emmy para melhor série dramática e melhor guião.


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Hatufim é a mais famosa série de televisão israelita produzida até hoje. O que tornou a série tão popular? Penso que lida com um assunto que diz muito aos israelitas, mas que ainda ninguém se tinha atrevido a abordar em ficção televisiva. O tema era tabu em Israel e fico muito feliz que a série me tenha permitido lançar o debate sobre o preço que os prisioneiros de guerra pagam, e o preço que o país inteiro paga. Espero que tenha sido também uma boa série de televisão e que isso tenha levado as pessoas a gostar tanto dela. O Gideon conseguiu vender os direitos do guião do Hatufim para os Estados Unidos, com base no qual foi produzida a aclamada série Segurança Nacional. O que havia no guião que despertou o interesse dos produtores americanos? Acredito que Hatufim tem temas muito universais que interessaram os norte-americanos. Primeiro de tudo é um thriller sobre homens que voltam para casa depois de anos de cativeiro, que estão doentes, e que acabamos por descobrir que guardam segredos. Aquilo que eles dizem não faz sentido. Eu acredito que isto é universal. Além disso, o mundo do pós-11 de setembro tinha bastante interesse para os produtores americanos, e, mais uma vez, espero que eles também tenham apreciado a qualidade da série original. Qual foi o papel do Gideon na escrita e produção do Segurança Nacional? Escrevi o episódio-piloto com Alex Gansa e Howard Gordon e sou produtor executivo da série. Confrontando ambas as séries detetam-se diferenças significativas, nomeadamente que Hatufim parece mais preocupado com o lado humano da história, e o impacto da prisão nos prisioneiros, nas suas famílias e na sociedade em geral, ao passo que Segurança Nacional parece mais interessado no enredo e na investigação. Qual a razão para os produtores americanos terem sentido a necessidade de mudar a história? As diferenças derivam daquilo que separa as duas sociedades no que diz respeito aos prisioneiros de guerra. Em Israel isso é um tema muito importante, algo que é falado quase todos os dias nas notícias. Nem me consigo lembrar de alguma altura em que não existissem histórias de prisioneiros de guerra ou soldados desaparecidos em combate que tenham gerado um interesse geral por parte dos israelitas. É frequente que estes protestem na rua a pedir o regresso dos seus familiares, e o público pode acompanhar as suas famílias e dificuldades, a quem apoiamos e por vezes julgamos. Nos Estados Unidos, a questão dos prisioneiros de guerra não tem impacto nacional. Agora mesmo há um prisioneiro de guerra (Bear Bergdah) que há anos que está detido pelos Taliban e o americano médio nunca ouviu falar dele! Por isso era óbvio que o Segurança Nacional tinha de se centrar na parte do suspense e menos na reintegração na sociedade e nos traumas destes soldados.

Outra diferença clara está nas próprias personagens. Enquanto as personagens americanas parecem mais seguras e independentes, as personagens israelitas parecem mais frágeis e desorientadas. Isto foi uma decisão deliberada, foi a interpretação dos atores ou há outro motivo? Estudei a fundo a questão dos prisioneiros de guerra. Existem cerca de 1500 antigos prisioneiros de guerra a viver hoje em Israel e eu encontrei-me com muitos deles, conhecia as suas famílias, os seus psicólogos e os seus médicos. Estes soldados voltaram do cativeiro como homens destruídos. Sombras do que costumavam ser. Era, por isso, muito importante para mim que os atores israelitas conseguissem passar isso. Os atores foram obrigados a emagrecer bastante e o sofrimento físico ajudou ao seu desempenho. Já o Brody, de Segurança Nacional, precisava de ser um “poster boy da guerra” para que a ameaça e o dilema da sua lealdade pudessem ser importantes, e é por isso que ele volta em muito melhor estado. Qual foi a formação de guionismo que o Gideon Raff teve? Licenciei-me em Cinema na Universidade de Tel Aviv e fiz mestrado em realização na AFI de Los Angeles. Fora isso, escrevi toda a minha vida. Quais foram as principais diferenças que sentiu entre escrever para cinema e escrever para televisão? São formatos muito diferentes e na televisão, especialmente nas série de televisão que eu crio, há um arco de personagem que dura uma temporada inteira, e por vezes uma série inteira, ao passo que no filme o arco é de uma hora e meia. Mas ambos os suportes implicam estar ao serviço das personagens e da história. Como é que planeia uma série de televisão? Há alguma estrutura que siga? Como é que cria as personagens para essas séries? Varia muito! Não consigo explicar. Julgo que quando tenho uma ideia fixa, começo a pesquisar em torno dela e começo a escrever cenas que acabam por se desenvolver em arcos de temporada e outlines. Mas como guionistas sou bastante caótico. Escrevo sequências de cenas que me apaixonam e depois tento dispô-las em diferentes episódios com base naquilo que julgo serem os arcos de temporada. No final acabo por ter um guião muito estruturado, apesar de o início ser muito confuso. Como organiza o trabalho para uma série de televisão? De quantos guionistas precisa a trabalhar consigo? Escrevi sozinho todos os episódios de Hatufim. Em Los Angeles trabalho numa sala com outros guionistas. Não gosto de nenhuma das duas soluções. (Risos.) Há muitos guionistas que estão a trocar o cinema pela televisão porque julgam que neste meio o seu trabalho tem maior reconhecimento. O que pensa sobre isso? Acredito que a televisão por cabo é onde muitas das ideias mais criativas estão a gerar frutos. É uma boa altura para trabalhar em televisão e acredito que os guionistas gostam de trabalhar em formatos em série mais longos. Há muitos programas que são interessantes, divertidos e profundos. É isso que atrai muitas pessoas para a televisão.


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entrevistas

ODISSEIA — Bruno Nogueira é humorista e apresentador. Gonçalo Waddington é ator de teatro, cinema e televisão. Tiago Guedes é realizador de ficção e publicidade. Os três juntaram-se para criar uma das séries mais revolucionárias da televisão portuguesa: Odisseia.


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Como decorreu o processo de escrita da série? Por que etapas passou desde a ideia inicial até ao argumento final? Correu muito bem. Foi um processo de escrita coletiva. Falámos muito, reunimos muitas vezes, definimos tons, caminhos, histórias, arcos dramáticos, começámos por definir todos os eventos dos oito episódios e só depois partimos para a escrita das cenas e respetivos diálogos. Como se organizou a escrita coletiva da série? Quantas pessoas intervieram no processo e com que papel? Só nós os três. E todos aqueles a quem “roubámos” material. Fomos tendo reuniões os três e depois cada um escrevia em casa, voltávamos a reunir e escrevíamos em cima do que estava escrito. Foi bastante democrático. O facto de sermos número ímpar permitiu desempatar sempre. Odisseia estabelece duas narrativas paralelas: a viagem de Bruno e Gonçalo numa autocaravana, e a produção televisiva por trás dessa viagem. Como procuraram conjugar as duas narrativas? Aconteceu tudo de uma forma natural durante o processo. A verdade é que quando partimos para a escrita não existia ainda o conceito de explorar a equipa e a produção da série. A ideia era essencialmente a viagem de autocaravana e a conceção do Bruno e do Gonçalo como personagens. Durante o processo rapidamente percebemos que a força estaria no cruzamento das duas (até três) camadas ficcionais – a história base, a produção dessa história, e depois a conceção de tudo isso, a sala de escrita com os criadores. Enquanto alguns autores são extremamente rigorosos com o texto, outros preferem estabelecer apenas a linha dramática de uma cena, permitindo assim espaço para a improvisação. Como foi o processo de trabalho dos diálogos? Foi tudo escrito. Todos os diálogos de todos os personagens foi escrito. Obviamente no caso das falas do Bruno e do Gonçalo (e do Nuno Lopes também) houve espaço para se alterar, adaptar e ajustar muita coisa. Quando assistimos a esta série, temos a impressão de que os seus autores gozaram de uma enorme liberdade de criação. Tiveram algum tipo de restrições? Que limites se autoimpuseram? Tivemos de facto uma enorme liberdade. Não nos foi imposta nenhuma restrição, sentimos uma enorme confiança da parte da RTP. Os limites que nos autoimpusemos foram determinados apenas pelo nosso gosto (bom ou mau ficará ao critério de quem avaliar), e por uma ou outra restrição orçamental. Em Odisseia parodiam-se alguns clássicos do cinema como O Caçador, Apocalipse Now ou Paris, Texas. Qual é o papel destas homenagens dentro do enredo? Quais foram as vossas referências para criação da série? A ideia de homenagem a vários filmes esteve sempre lá. A razão mais honesta talvez seja mesmo porque nos apeteceu. Em relação a referências nem sabemos por onde começar. Foram tantas que será injusto enunciar. A verdade é que nós os três somos ávidos consumidores de filmes e séries, e basicamente somos influenciados por todas elas. De todos os géneros.

Nesta ficção, Bruno Nogueira interpreta Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington interpreta Gonçalo Waddington. Até que ponto as personagens Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington se distanciam da realidade? Ou até que ponto se aproximam? A verdadeira resposta a essa pergunta não é muito interessante. O que nos interessou sempre foi partir de ideia pré-concebidas sobre eles. A forma como as pessoas percepcionam o Bruno e o Gonçalo, por um lado tentar questionar essas ideias e por outro lado brincar com elas. Em Odisseia, aparte a personagem do Oráculo, a representação e a narrativa pauta-se por um registo realista. Porém, algumas cenas estabelecem um universo surreal ou onírico. Como conseguiram equilibrar estes dois registos? Queremos acreditar que esse equilíbrio nasce da forma como fizemos toda a série, que foi partir para todas as cenas com enorme verdade – se estamos a fazer drama estamos a fazer a sério, se estamos a fazer comédia estamos a fazer a sério. No caso do registo mais surreal e onírico, foi também tratado com a mesma busca de verdade. Quando falo de verdade não estou a falar de realidade ou realismo, trata-se mais da verdade que a cena pede – que no fundo define o tom de tudo. A série estabelece um diálogo contínuo entre o drama e a comédia. Porquê esta opção por um tom ambivalente? O que pretendiam criar com esta série? O tom ambivalente entre os dois géneros esteve presente desde a génese da ideia da série. Daí a nossa dificuldade em classificar ou rotular a Odisseia. A vontade foi sempre “procurar” algo novo nas nossas vidas enquanto criadores. Quando nos juntámos os três, a razão tinha que ser partirmos numa aventura para descobrir alguma coisa nova. Nesse aspeto sinto que somos parecidos. A repetição chateia-nos. A única coisa que pretendíamos à partida era criar um “objeto” que nos orgulhasse e que todos apreciássemos enquanto potencial espectador. Muito do humor da série parecia jogar com o reconhecimento de outras referências audiovisuais. O humor audiovisual de hoje constrói-se num processo de reconhecimento e paródia desse mesmo audiovisual? Por acaso aqui não concordamos. Achamos que sim, que a série tem imensas referências de outros filmes e/ou séries, mas achamos que a maior parte do humor da série nasce de outras coisas, principalmente da metalinguagem assumida com equipa e criadores. Curiosamente sentimos que as referências cinematográficas até são dos momentos mais “sérios” de Odisseia. Com as devidas exceções obviamente. Mas dizer que o humor desta série advém de paródia a referências audiovisuais parece-me bastante redutor. Porque decidiram chamar à série Odisseia? Porque era o nome que nos fazia mais sentido e porque não encontrámos nenhuma alternativa à altura. Odisseia foi o primeiro titulo de trabalho, que julgámos sempre que seria alterado. Mas à medida que a escrita foi desenvolvendo e surgiram os “criadores” e o narrador omnipresente, o nome foi fazendo cada vez mais sentido. Agora com a devida distância pensamos mesmo que o nome influenciou em muito várias decisões criativas e direcionou o processo para o que acabou por ser esta Odisseia.


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PEDRO LOPES — Pedro Lopes é um dos mais produtivos guionistas nacionais, estando ligado à SP Televisão. Já assinou várias telenovelas, algumas das quais premiadas internacionalmente, mas também séries como Liberdade 21, Cidade Despida, Velhos Amigos, Voo Directo, A Família Mata, Maternidade, Pai à Força, entre outras. Colocámos-lhe algumas perguntas para tentar compreender como funciona a escrita da ficção televisiva nacional.


Pedro Lopes Daniel Ribas

É neste trabalho mais técnico, de como prender o espectador, que se fazem os sucessos.

Como nasce a ideia para fazer uma série de televisão em Portugal? Eu estive sempre associado a produtoras, por isso posso dizer como acontece quando se funciona dentro de uma estrutura desta natureza. A ideia pode nascer na cabeça do argumentista a partir de uma experiência pessoal, de uma história que ouviu de um familiar ou amigo, ou ainda de uma notícia de jornal, mas para que tenha luz verde para ser desenvolvida é preciso ter em conta a realidade do nosso mercado. A outra forma, também bastante frequente, é ser uma encomenda de uma estação de televisão, muitas vezes tendo como base as tendências do mercado audiovisual.

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Qual é o processo de desenvolvimento dessa série? Tudo começa com a apresentação de um dossier com o conceito, a sinopse, as fichas de personagens e, por vezes, já com o primeiro episódio. A partir daqui a estação tem uma base de análise para discussão posterior. Muitas vezes são pedidas alterações. É um processo em permanente construção até ao momento de gravar. O trabalho de guionismo em televisão passa por equipas de argumentistas. O Pedro é, muitas vezes, o criador e coordenador. Pode explicar-nos o funcionamento desta escrita partilhada? Quando cheguei à SP Televisão era o único argumentista na empresa. Nesses primeiros meses criei a série Pai à Força (2009-) e Liberdade 21 (2008-2012). No caso da primeira escrevi sozinho o primeiro episódio e da série de advogados os dois primeiros. Como tivemos a felicidade de vender as duas séries ao mesmo tempo tive de formar equipas de escrita. Em Portugal uma série de televisão tem um ritmo de escrita bastante intenso, pelo que é complicado escrever sozinho. Para o Pai à Força criei uma equipa de argumentistas que trabalhou directamente comigo enquanto na Liberdade 21, testámos uma outra forma de trabalhar e foi entregue a uma equipa das Produções Fictícias com quem debatia por e-mail os episódios. Mas, como eu gosto de trabalhar com a equipa à minha frente, acabámos por adoptar nas séries posteriores o modelo de trabalho do Pai à Força, com os argumentistas a trabalharem todos no mesmo edifício.

Qual é a importância do guião para a qualidade final da série? A ficção televisiva depende fundamentalmente do guião. Os constrangimentos orçamentais que temos não permitem que se atire dinheiro para o ecrã escondendo as debilidades da história - coisa que vemos frequentemente das produções televisivas e cinematográficas americanas mais comerciais. Quais são os ingredientes necessários para fazer uma boa série de televisão? Eu perco sempre muito tempo com os personagens. Cada vez mais as séries são estendidas por várias temporadas, e se não construímos de raiz personagens que sejam complexos dificilmente conseguimos manter o interesse dos espectadores. Um outro ingrediente fundamental em televisão é a qualidade dos diálogos.

Em termos mais práticos: como se organiza a estrutura de uma série de televisão? Faz desenhos ou diagramas? Fichas de personagem? Faço tudo segundo as regras. Fichas de personagens, definição do arco dos personagens, pontos de viragem. Mas isso é a macroestrutura. Depois é importante trabalhar as unidades, que são os capítulos. É neste trabalho mais técnico, de como prender o espectador, que se fazem os sucessos. Falemos de um caso prático: a série Liberdade 21. Como nasceu o projeto? Como se preparou para a escrever? Foi necessário pesquisa? Eu sou fã do Perry Mason, lembro-me de ver as primeiras temporadas ainda a preto e branco, na RTP, num programa chamado Agora Escolha. E quando comecei a escrever tive sempre o desejo de fazer uma coisa nesse universo dos tribunais e da investigação policial. Mas ao pesquisar o nosso sistema judicial percebi que é muito diferente. A investigação é da responsabilidade do ministério público, assim como a teatralidade de um tribunal americano, com os advogados a falarem para os jurados, não tem correspondência em Portugal. Mas ao ser confrontado com essa realidade ainda me deu mais vontade de escrever porque seria uma novidade para o público. Mas, obviamente, para que isso fosse possível tivemos consultores jurídicos.



Pedro Lopes Daniel Ribas

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Série Liberdade 21

Quais são as suas principais referências externas em relação à qualidade de uma série de televisão? Qual é a série que gostava de ter escrito? A HBO tem sido fundamental para estabelecer um padrão de qualidade elevado na ficção televisiva. E quando temos acesso ao que de melhor se faz no mundo, não queremos escrever nada que fique abaixo disso, não é? Por exemplo, Os Homens do Presidente/The West Wing é daquelas séries que eu adorava ter escrito, e espero que um dia ainda tenha oportunidade de escrever sobre o universo da política. Qual é o projeto que está na gaveta que mais gostava de desenvolver? Na gaveta só tenho um que gostava de desenvolver, mas na cabeça tenho vários. Não posso é falar sobre eles porque é arriscado… Quais são, para si, as grandes diferenças entre uma telenovela e uma série de televisão? Qual delas dá mais prazer escrever? Eu gosto de escrever, umas histórias funcionam melhor numa telenovela e outras em formatos com menos personagens e menos episódios, mas é difícil dizer o que prefiro fazer. Basicamente o que não quero é ficar agarrado a um formato ou a um género para o resto da minha vida. No entanto sei que a telenovela é fundamental na estratégia das estações e por isso será sempre produzida em maior quantidade. E eu gosto muito de escrever telenovela, dificilmente outro tipo de narrativa chegará a tanta gente, e terá um impacto tão grande nas suas vidas - estamos a falar de 1 milhão e 500 mil espectadores todas as noites! Quanto aos processos de construção de uma telenovela e de uma série são diferentes. Sobre as séries já falámos e há muita obra publicada sobre isso. As telenovelas são um caso bastante particular. Telenovela não é soap-opera. Eu estudei bastante a origem da telenovela. É um formato predominantemente da palavra, e daí muito ligado à rádio, na forma. Mas também ainda muito ligado a um determinado tipo de literatura folhetinesca, ao nível do conteúdo. Eu gosto de trabalhar dentro desse registo clássico, modernizando a abordagem, mas mantendo-me fiel aos princípios que fizeram o sucesso da telenovela. Por ser um formato mais barato vejo como sendo um parente mais próximo do teatro do que do cinema e tenho sempre isso em consideração quando escrevo.

O Pedro é também guionista de longas-metragens? Qual é a principal diferença em relação à escrita de séries? Quando escrevo para cinema, seja em longas-metragens ou em curtas, dou muito mais espaço aos actores e ao realizador. É normalmente um processo que procuro que seja de contrariar vícios que vou ganhando com o tempo. Quando escrevi O dia mais feliz da tua vida (2012) para o Adriano Luz quis que fosse um filme quase despojado de diálogos, investi sobretudo em situações, em quadros que contassem mais pelo olhar dos personagens do que pelas palavras que lhes saiam da boca. Na longa-metragem Assim, Assim (2012), que foi realizada pelo Sérgio Graciano, como não tínhamos dinheiro, para mim o exercício foi o de criar um filme que parecesse dinâmico para o espectador mas sem grande movimento para que pudesse ser gravado rapidamente e sem grandes problemas de produção, e para isso trabalhei sobretudo ao nível da estrutura interna dos diálogos.


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entrevistas

EDUARDO CINTRA TORRES

— O académico Eduardo Cintra Torres é um dos mais marcantes críticos de televisão portugueses. Teve uma crónica semanal no jornal Público durante quinze anos e agora comenta a realidade televisiva portuguesa no Correio da Manhã. Tem publicado sobre televisão, publicidade e a sua relação com o comportamento das massas. É doutorado em Sociologia no ICS/ UL e tem cerca de uma dezena de livros publicados. É professor da Universidade Católica Portuguesa.


Eduardo Cintra Torres Daniel Ribas

Pode falar-se em anos de ouro, durante a última década, para a ficção televisiva? Se sim, quais foram as razões desta explosão de séries de qualidade? Há já identificadas duas eras douradas da ficção televisiva (anglo-americana): uma no início dos anos 80, a outra com começo no final do século. As razões, objectivas e subjectivas, poderão ser as seguintes: - desenvolvimento de uma linguagem própria da televisão, independente do teatro, do cinema e até da literatura, a que correspondem novos géneros televisivos, em que podemos incluir as séries. Estas já existiam desde quase o arranque da televisão, mas só ganharam “distinção” décadas mais tarde. - afirmação da indústria televisiva segmentada (cabo), com audiências suficientes para permitir a produção de programação não dirigida a uma difusa audiência total, de “massas”. - a chegada à indústria televisiva de inúmeros criadores e técnicos do cinema e também do campo literário. - uma certa decadência do cinema e, em termos sociais, da “ida ao cinema”, substituída pela assistência em casa, individualmente ou com familiares e mesmo com grupos de amigos. - a promoção das séries “de qualidade” pelas franjas intelectuais que finalmente se identificaram com alguma programação que lhes agradava, ratificando-a com a “distinção”. - os meios de comunicação interactivos e as redes sociais permitem a vivência em simultâneo das séries, através de grupos de discussão e de fãs, aumentando a sua capacidade de afição. Quais são, para si, as diferenças mais significativas entre a ficção televisiva e a ficção cinematográfica? A ficção televisiva tem uma característica que está vedada ao cinema: a serialização, semanal ou diária. Todas as tentativas de serialização no cinema nas últimas décadas não aparecem como tal, caso de 007 ou Guerra das Estrelas. Tendo terminado o folhetim nos jornais e substituindo o folhetim na rádio, as serializações na TV ocupam uma função, talvez uma necessidade humana contemporânea: estórias inventadas que acompanham a vida durante algum tempo, com as suas personagens, intrigas, suspenses, questões. O cinema não pode fazer isso. A série permite uma vivência mais cheia e duradoura do que o filme, mais passageiro. A serialização permite mais enredos cruzados, desenvolvimentos na psicologia das personagens e a sua inserção em situações consecutivas, mas diferentes. Permite tratar de vários problemas com que os espectadores se confrontam nas suas vidas com uma proximidade maior do que a do cinema. A complexificação em continuidade dos enredos das séries é uma das principais razões do seu sucesso. Foi inventada na primeira “era dourada” das séries, com Balada de Hill Street. Deste modo, o modelo narrativo do cinema parece ter “envelhecido”, mas pode ser apenas um fenómeno de zeitgeist. Convém aqui distinguir séries de seriados. As séries têm protagonistas fixos em episódios estanques. Cada um conta uma narrativa e poucas narrativas transbordam para os seguintes. Aliás, quando isso acontece, a série perde carácter, como no caso de Dr. House. Os seriados são folhetins, ora diários, como as telenovelas, ora semanais como as grandes séries das duas “eras douradas”, por exemplo, Os Sopranos, The Wire, Segurança Nacional. Nestas, as narrativas cruzam-se, morrem em qualquer altura, desaparecendo, ou continuam, por várias ou todas as semanas. É um dos aspectos mais atraentes do género, impossível ao cinema.

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A omnipresença da televisão no quotidiano justificaria que a ficção televisiva tivesse grande impacto ao nível do imaginário do grande público. No entanto, esse papel parece ter cabido em grande medida ao cinema. O que é que falta à ficção televisiva para se tornar marcante? Não sei se isso ainda é tão verdadeiro assim. Só com inquéritos a espectadores o poderíamos comprovar. As “cápsulas” narrativas do cinema, altamente concentradas e estilizadas, correspondem à novela ou ao romance na literatura: são insubstituíveis. Podem ter maior apuro artístico do que a série de televisão (enfim, o apuro artístico canónico). A série, precisamente por se aproximar do quotidiano (mesmo o de agentes secretos em aventuras doidas), fica parecido com... o quotidiano, que não é por norma um cânone de beleza e de sublimação. O cinema consegue sublimar o quotidiano, porque o trata de forma concisa e estilizada. Na norma canónica, a arte é concisa e estilizada. Por isso, torna-se difícil conceber Os Sopranos ou The Wire, como arte. Para mim são, pois penso que é preciso adequar os cânones às práticas de cada momento. Respondendo directamente à pergunta, a ficção televisiva é marcante em vários domínios: nos próprios géneros, sempre a evoluir; na inovação das formas narrativas e no dispositivo audiovisual que adoptam; no êxito em todo o mundo, correspondendo, portanto, a uma necessidade. Que evolução se nota ao nível do guionismo da ficção televisiva em anos recentes? Enorme. Os guiões são cada vez mais ousados nos temas abordados. São também cada vez mais apurados, mais “inteligentes”, ou mais literários, no sentido em que se abandonam estereótipos e frases feitas. Enlaçam-se melhor com a dimensão visual. Aumentou muito a diversidade das personagens e a riqueza individual de muitas delas, nomeadamente a sua humanidade – fraquezas, hesitações, mudanças, emoções, atitudes. A complexificação da narrativa, devolvendo-nos a invenção dos folhetinistas como Camilo, é outro dos grandes conseguimentos do guionismo televisivo. Pode nomear uma ou duas séries que considere mais marcantes em anos recentes e destacar as suas características mais relevantes? Duas já referidas estão entre as minhas preferidas: Os Sopranos e The Wire. A primeira é quase um romance/epopeia/folhetim, tudo junto. Atingiu, a meu ver de forma inigualável, o maior apuro na caracterização e densidade psicológica das personagens e na escrita dos diálogos. The Wire tem algumas dessas características, mas apreciei especialmente que cada temporada tivesse um pano de fundo diferente: a droga, a politica, a escola... Julgo que, neste caso, estamos próximos do que poderíamos chamar o naturalismo literário em audiovisual. Actualmente, o naturalismo como género e estilo “de qualidade” parece ter-se tornado impossível em literatura, mas aí está a televisão a praticá-lo sem que ele seja sequer identificado.


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“ Duas [das séries] já referidas estão entre as minhas preferidas: Os Sopranos e The Wire. A primeira (...) [a]tingiu, a meu ver de forma inigualável, o maior apuro na caracterização e densidade psicológica das personagens e na escrita dos diálogos.”

Há outras séries marcantes. Achei Perdidos insuportável, pela manipulação de narrativas absurdas, mas soube fazê-lo com uma utilização espectacular dos recursos da “era dourada”: estórias cruzadas, suspense, muitas personagens, etc. O final absurdo mostrou que toda a construção se baseava nessa manipulação das narrativas apenas para o efeito suspense. Há ainda muitas outras séries de grande qualidade, em vários géneros, incluindo a comédia, a intriga política, etc. Destaco The Office, na versão original inglesa, pela utilização brilhante do pseudo-documentário. Devo ainda assinalar que a televisão dá mais protagonismo à mulher que o cinema. Várias séries são protagonizadas por mulheres (médicas, advogadas, juízes, policias, politicas, etc.). O Sexo e a Cidade é um exemplo significativo, apesar de não corresponder ao meu gosto pessoal. O que é que caracteriza a ficção televisiva nacional? Que relação poderá ter, em Portugal, com o género dominante da telenovela? A ficção televisiva nacional caracteriza-se por estar concentrada na telenovela, o único género/produto que parece ser lucrativo, dado que os custos por minuto são os mais baixos e dado que tem as maiores audiências entre os produtos ficcionais. Há que ter em conta um contexto fulcral: a televisão nacional está para o espectador em permanente confronto com as estrangeiras. Desse modo, o termo de comparação da ficção nacional é com o que de melhor elas mesma passa de produções estrangeiras. As telenovelas da TVI estão em permanente comparação, quer no discurso da indústria, dos criados e actores, quer segura-


Edurado Cintra Torres Daniel Ribas

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mente no discurso das audiências, com as da Globo, que são, no conjunto, as melhores do mundo. E as séries portuguesas estão em permanente comparação com as outras que podemos ver e que são quase em exclusivo americanas e britânicas. A meu ver, as telenovelas portuguesas, apesar dos prémios, ainda não se comparam com as da Globo. E, quanto às séries, seria um exercício doloroso compará-las com as americanas e britânicas. Porquê invocar aqui as séries estrangeiras? Porque a ficção portuguesa recorre àqueles modelos. O chamado cinema “de autor” português é, entre outras coisas, a fuga a modelos hegemónicos de linguagem cinematográfica, os modelos norte-americanos que venceram após a 1ª Guerra Mundial. Parece-me muito difícil, para não dizer impossível, competir com a prática desses modelos, pois implicam valores de produção inatingíveis nos pequenos países. E como o cinema e a televisão têm uma inescapável dimensão industrial, só noutros modelos de linguagem os pequenos países podem dar cartas, como no cinema de Manoel de Oliveira, João Canijo ou Pedro Costa. No caso da televisão, temos, em geral, versões pobrezinhas dos modelos hegemónicos da linguagem do media, resultando do êxito mundial da TV americana. Não é por acaso que desapareceram da TV generalista portuguesa séries espanholas, francesas ou alemãs. A razão é a mesma. Quais são as virtudes e defeitos da ficção televisiva nacional? Poucas virtudes: tratar de temas nacionais, ser falada em português (embora tantas vezes com má captação do som...), dar trabalho aos actores e técnicos... Bastantes defeitos: em geral, má construção dos argumentos; diálogos fracos e mesmo indigentes; péssimos cenários e iluminação; pouca atenção ao presente, nomeadamente à politica, à vida militar, corrupção, emigrantes, imigrantes, crise, etc.; muitas personagens estereotipadas; arrastamento das situações, para poupar na variedade de cenários e no tempo de gravação. A nível nacional, quais as séries que foram mais marcantes? Nos últimos anos, dentro do registo hegemónico, gostei de algumas mini-séries (telefilmes divididos em dois ou três episódios) no centenário da República; houve algumas telenovelas que tiveram um ou dois primeiros episódios promissores, entrando depois no rame-rame; Francisco Moita Flores assinou séries de qualidade, como A Ferreirinha (2004), Conde Abranhos (2000), O Processo dos Távoras (2001), Ballet Rose (1997) e principalmente Raia dos Medos (1999). Julgo que se destacou pela intuição de escolher boas estórias e por saber desenvolver os argumentos e por não “fechar” as personagens em estúdios de vão de escada iluminados por “luzes de cozinha”. Sinceramente, não me lembro agora de outras que se destaquem no registo hegemónico. No registo alternativo, destaco a série Mundo Catita (2008), O Último a Sair (2011) e os presentes O Humorista (2013) e Odisseia (2013).

Em algumas das suas crónicas abordou a fusão da realidade e da ficção na televisão, em que programas de informação ganham características de entretenimento e programas de ficção tentam uma aproximação a um maior realismo. Quais as razões desta fusão de géneros? A fusão da realidade e da ficção é um tema que me fascina e que ainda não domino por completo. Numa visão ampla, o facto de vivermos num tempo em que a realidade do mundo exterior é-nos em grande parte transmitida pelas suas representações mediáticas leva à mistura dos dois planos – ficção e realidade – pois o veículo coincide: os media e as suas linguagens. A realidade fez sempre parte da ficção, desde a dramaturgia grega. E como poderia ser de outro modo? Só nos relacionamos com o que lide com o mundo conhecido, mesmo quando transpõe a fronteira do onírico. A intrusão do real na ficção dá-lhe uma outra força quando já conhecemos os “truques” estafados da ficção. Há cinquenta anos que procuro adivinhar o desenvolvimento e o fim das ficções televisivas e raramente me engano: quando me engano é porque a ficção foge dos estereótipos. Algum cinema, mas principalmente a televisão, que tem muitos géneros de realidade, como a informação, a entrevista, o debate e a reportagem, usam não só a realidade como tema, mas as técnicas e o dispositivo audiovisual dos programas de realidade, para acelerar e intensificar a relação do espectador com as criações ficcionais e também, para inovar, fugindo dos modelos habituais. Isso pode ser muito bom nos programas de raiz ficcional, mas é muito mau nos programas de informação, os quais deveriam manter-se absolutamente no registo da realidade. Numa crónica, comparou a ficção televisiva ao teatro, dizendo: «Mas a própria TV tem aspectos visuais e cénicos próximos do teatro. A maioria dos programas decorre num estúdio-palco, quase sem movimento. Muitos cenários de telenovelas recordam melodramas em teatros amadores. A Casa do Segredos decorre num único cenário durante quatro meses e os jogadores-actores têm de comportar-se como personagens à procura de um papel.» Como é que a televisão pode ultrapassar estes constrangimentos? A televisão apropriou-se de dispositivos teatrais, fê-los seus. O modelo teatral como que faz parte da vida: nós assistindo a alguma coisa num palco à nossa frente. Apesar de o adoptar, por ser um modelo “natural” e o mais barato, a televisão muitas vezes rompe com ele, como no modelo circense, quando, em programas de entretenimento e de informação, a câmara circula a 360º. Também usa com frequência o dispositivo de rua, mesmo que por vezes misturado com o de palco do modelo teatral. A boa ficção procura disfarçar o modelo teatral. Nas séries americanas, as casas, sendo estúdios, parecem casas; em muitas das nossas séries as casas são flagrantemente um palco, porque não houve dinheiro para mais, ou não se quis gastar mais em cenários realistas nos estúdios. Voltamos à questão industrial – valores de produção – mas também de criatividade limitada.


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Panorâmicas

Séries de televisão — As mais de quatro décadas de produção regular de séries de televisão têm funcionado como uma poderosa alternativa cultural aos filmes e ao cinema. Séries essas que vêm demonstrando que a caixa que mudou o mundo guarda igualmente um excelente cartaz de estreias e uma complexa diversidade de personagens concebidas para o pequeno ecrã. Começam agora a saltar da televisão para o DVD e, actualmente, para as novas plataformas de difusão de conteúdos audiovisuais. Há, de facto, grande potencial (artístico e de mercado) nestes produtos audiovisuais, considerados menores pela intelectualidade, já que há muito público e espectadores cultos que gostam de se rever neles, consumir o passado e o presente do pequeno ecrã, com ou sem interrupções, esperando ou não uma semana para ver o próximo episódio, da sua série favorita.

quatro décadas de memória por José Vieira Mendes


Séries de Televisão José Vieira Mendes

Antes as séries televisivas nasciam, viviam e morriam na televisão, respeitando os seus contratos, formatos e a longevidade dos seus personagens: ecrã quadrado, um certo número de episódios, e a obrigação de manter semanalmente o espectador agarrado ao televisor a determinada hora de emissão. Tal como a televisão, e sendo um produto concebido com um objectivo preciso, as séries de televisão começaram por ser consideradas pela crítica mais intelectual como produtos populares e de consumo de massas: só comparáveis aos livros de ficção científica, policiais ou banda desenhada, que hoje têm outros contornos e respeitabilidade na alta cultura. Foram curiosamente estes géneros, e não é por acaso, os primeiros a serem adaptados aos formatos de série televisiva por episódios. Hoje, primeiro por causa da televisão por cabo, e depois graças ao formato digital, as séries de televisão tornaram-se um apetecível produto de consumo dos espectadores e apreciadores do “cinema em casa”, que pouco a pouco, e embora os seus preços sejam mais elevados — tratam-se geralmente de compactos de vários discos, por episódios —, têm ganho uma razoável fatia no mercado de DVD. Memórias Televisivas Se pelas mais diversas razões a maioria das pessoas, incluindo os mais jovens, hoje vêem menos televisão, houve pelo menos uma fase das nossas vidas em que a televisão fazia parte da nossa rotina diária. Nas nossas memórias as ficções televisivas ocupam ainda hoje um lugar importante no imaginário coletivo de pelo menos quatro gerações, quer sob a forma de imagens fluídas e lembranças vagas de ouvir falar, outras vezes bastante precisas e concretas que chega ao colecionismo. Quantos não se lembram da melancolia apaixonada de um primeiro amor e de um fim de férias no campo com Os Pequenos Vagabundos, Tanguy e Laverdure (Os Cavaleiros do Céu), ou Os 4 de Blindados e o seu Cão, O Capitão Kloss (séries polacas ou se ouvia o Dak)? Do charme elegante de O Santo com Roger Moore? Do riso explosivo e inteligente de Monthy Python’s Flying Circus ou de Mr. Bean? Das viagens no tempo em Espaço 1999 ou Star Trek? Do engenho de MacGyver? Ou dos mistérios de Laura Palmer em Twin Peaks, mistérios esses que nos ajudaram a descobrir o incrível génio e capacidade manipuladora do cineasta David Lynch. Nascimento de um género O termo série designa toda a ficção televisiva em episódios, que determina em si um género e uma duração da história ao longo de várias semanas e, que se opõe aos teledramáticos ou telefilmes, que são concebidos para ser emitidos na mesma noite. Uma série é uma narrativa seguida, onde os seus segmentos — mesmo que eles possam ser vistos independentemente uns dos outros — tenham um ponto comum: um autor (Alfred Hitchcock Apresenta ou A Quinta Dimensão), uma personagem principal (Columbo) ou um simples facto (uma morte circunstancial como em Sete Palmos de Terra). As variantes são numerosas (minisséries, folhetins, antologias, telenovelas), mas o conceito é sempre mais ou menos o mesmo. A ficção por episódios não é definitivamente uma invenção da televisão. Pelo contrário é fruto de uma longa tradição narrativa que remonta à Bíblia e aos versos homéricos (Ilíada e Odisseia) e que deu origem, por exemplo, aos romances-folhetins (O Mistério da Estrada de Sintra, As Farpas, de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão), às tiras dos jornais, aos folhetins radiofónicos às telenovelas, e, recentemente, até mesmo às sequelas cinematográficas. Naturalmente a televisão consagrou esta forma narrativa, perfeitamente adaptada às suas necessidades de programação, horários e públicos. E isto da mesma forma que os romances do Eça, as tiras do Calvin & Hobbes, as bandas desenhadas do Tintin e as telenovelas procuravam sempre um objectivo comum: fidelizar leitores. A difusão de uma série era uma espécie de encontro (geralmente) semanal, que visava prender os espectadores a um canal. Por isso, tal como as outras formas de expressão escrita, visual ou audiovisual, as séries televisivas são hoje consideradas obras de arte, tal como o cinema, e por isso é natural que estejam sujeitas à vertiginosa conversão ao formato digital e à difusão em multiplataforma.

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Diversidade de géneros Tal como o cinema e a literatura, as séries criaram os seus géneros (o drama policial, a crónica realista, a saga de ficção científica, o folhetim histórico, a sitcom, a animação), e quase sempre de grande qualidade. Qualquer que seja a sua origem, as obras de grande qualidade acabam sempre por interessar às audiências, e em particular aos espectadores mais inteligentes e exigentes. A grande receita das séries foi de facto obra dos seus criadores: souberam recorrer a formas narrativas audaciosas, esquecendo preconceitos em relação ao suporte televisão, e, suscitando questões interessantes na maioria dos casos sem resposta imediata. Isto ao longo dos vários episódios, despertando interesse e curiosidade nos espectadores. Por isso as séries televisivas, mesmo nas suas mais diversas variantes, podem dar aos espectadores tanto prazer quanto um livro ou um filme: personagens originais e distintas, tramas e narrativas excitantes, interrogações sobre o mundo e naturalmente emoções fortes, herdadas do cinema-espetáculo. Uma série geralmente não se contenta em divertir ou emocionar, mas antes acompanhar os espectadores (às vezes durante meses ou anos), que, juntamente com as suas personagens, vai crescendo, amadurecendo e envelhecendo. É quase uma espécie de vida paralela, como no filme Quiz Show, com Jim Carrey. As séries como que absorvem o mundo em redor, compondo uma imagem complexa e diversa da sociedade contemporânea. Por todas estas razões, e contrariamente a algumas opiniões, as séries não são objetos de prazer imediato, de consumir e deitar fora, como há alguns anos eram entendidas. Pelo contrário são cada vez mais fontes de reflexão permanente sobre a lei, a política, a justiça, os comportamentos humanos, a família e a vida em geral, e que passam muitas vezes lado a lado com os telejornais e as grandes reportagens.


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Séries de Televisão José Vieira Mendes

A produção mundial A quase totalidade das séries de televisão difundidas nos nossos canais ou editadas em DVD são produzidas nos EUA, França, Grã-Bretanha, Austrália e Canadá. Mas a maioria que chega até nós vem principalmente de países com uma tradição de produção de qualidade e quantidade, como a Grã-Bretanha e os EUA. Da França, talvez em menos quantidade, mas importa procurar nas nossas memórias séries famosas e produções incontornáveis como Arsène Lupin, produzida pela ORTF e criada a partir da personagem de Maurice Leblanc, e, mais tarde, Maigret, produzida pela France 2. Na Grã-Bretanha, o aparecimento dos canais independentes, na década de 50, obrigou a acomodada estação oficial, BBC, a ter que rivalizar com as televisões privadas (ITV, a Granada Television) na produção de ficções para a televisão. Esta liberdade de mercado permitiu a produção ao longo de várias décadas de séries inesquecíveis como: Poirot, As Aventuras de Sherlock Holmes, O Santo, Os Vingadores, Thunderbirds, O Homem Invisível, Reviver o Passado em Brideshead, Monty Python’s Flying Circus, Sim, Senhor Ministro, Allô! Allô!, Dampsey & Makepeace, Mr. Bean, entre outras. Entretanto também as majors norte-americanas de Hollywood tiveram de alguma forma, e depois da II Guerra Mundial, de adaptar-se ao desenvolvimento da televisão, e por isso diversificar as suas atividades, participando na criação de ficções de televisão. A sua experiência no negócio da ficção, que já tinha resultado nas salas de cinema, foi adaptado ao pequeno ecrã, com mais ou menos sucesso, no que se refere às audiências, e aos contratos de exploração das obras, agora num formato substancialmente diferente. Durante muito tempo o panorama televisivo norte americano foi dominado pelas três grandes cadeias de televisão – ABC, CBS e, NBC – mas entretanto mudou muito nos últimos trinta anos com o aparecimento dos diversos suportes: vídeo e mais tarde o DVD, os satélites e depois a televisão por cabo, e, claro, com a criação de novas cadeias nacionais e televisões privadas, e produtores de séries como a HBO. Fazendo um pouco de história, em 1981 a cadeia NBC comprava à MTM, uma pequena empresa de produção de televisão, uma nova e aparentemente arriscada (quer em relação ao produto, quer aos atores) ficção policial: A Balada de Hill Street, uma série que se tornou, durante cerca de sete anos, a mais premiada da história da televisão americana. Hill Street Blues, no original, tornou-se uma série memorável, que não só revolucionava o género policial, mas também todo o panorama das séries de televisão, reintroduzindo as histórias em continuação, multiplicando as personagens, misturando o drama com a comédia, que na tradição da crítica social e da riqueza psicológica do cinema abordava frontalmente elementos da realidade pura e dura. A Balada de Hill Street tornou-se como que uma referência para muitas séries posteriores, como Serviço de Urgência, Nas Teias da Lei, Balada de Nova Iorque, Turnos de Risco e, de alguma forma, também 24. É assim que nos EUA, paralelamente aos Oscar, existem os Emmy Awards, atribuídos pela Academia Americana de Artes e Técnicas de Televisão, que se destinam a galardoar as melhores séries, os seus intérpretes e criadores. À parte destes existem também alguns prémios independentes, como os Peabody Awards e os Viewers for Quality Television, atribuídos por uma associação de telespectadores e, claro, os Globos de Ouro em paralelo com o cinema.

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Grandes autores Todas as séries têm obviamente, por detrás, grandes criadores e autores. São, na sua maioria, argumentistas, realizadores ou produtores, e na prática são eles que escrevem, supervisionam, ou coordenam os argumentos, as histórias e os episódios, ao mesmo tempo que escolhem os atores, e impõem as suas opções estéticas no contexto da linguagem de televisão. Nomes como Dennis Potter (Detective Cantor), Rowan Atkinson (Mr. Bean) da Grã-Bretanha, ou autores norte-americanos como Rod Serling (A Quinta Dimensão), Steven Bochco (Balada de Hill Street), David E. Kelley (Ally Macbeal), Dave Chase (Os Sopranos) Alan Ball (Sete Palmos de Terra), Chris Carter (Ficheiros Secretos), Matt Groening (Os Simpsons), Bob Cochran e Joel Surnow (24) entraram definitivamente no nosso universo cultural e ao nível dos escritores ou dos realizadores de cinema. Espectadores exigentes Quer queiramos ou não, foi-se perdendo um certo preconceito em relação à televisão. E assistir a uma série já não é de forma nenhuma um ato passivo. O sucesso que tem feito entre os espectadores este novo conceito das séries interventivas (com grandes atores de cinema como protagonistas) vem demonstrar o contrário e mostrar um entusiasmo e um espírito crítico tão grande como no cinema. O consumidor das séries de televisão é tão exigente como um cinéfilo. O investimento dos produtores no formato digital e na difusão de conteúdos nas novas plataformas só vieram ajudar a aumentar esta escolha e a sua exigência.


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Panorâmicas

FICÇÃO, GÉNEROS E Formatos por Catarina Duff Burnay e Pedro Lopes

Um Remix Audiovisual


Ficção, géneros e formatos Catarina Duff Burnay e Pedro Lopes

Géneros e formatos: dois conceitos diferentes ou simplesmente designações com um mesmo significado? A denominação género chegou à televisão, e antes disso ao cinema, por via da literatura. Mas, ao passar para este novo meio de difusão, sofreu alguns ajustes que se prenderam sobretudo com o modelo de produção. A industrialização do processo veio trazer condicionantes que fixaram as características de cada género televisivo. Para além destas questões de produção, onde predominam factores financeiros – tempo é dinheiro! –, juntou-se um outro relacionado com a difusão e a forma como são pensadas as grelhas de programas, introduzindo novas regras na estruturação das narrativas: a duração e a periodicidade dos programas. Os géneros vivem da repetição e da diferenciação, sendo que a repetição pode ser ao nível do tema ou personagem tipificado. Os géneros têm vindo a mudar, seguem modas, reajustam-se, mas algo mantém-se: textos com características similares geram leituras similares. O termo formato utiliza-se em ficção neste sentido, ou seja, para catalogar um programa quanto à sua duração, frequência e eventualmente estrutura narrativa, e não em relação ao conteúdo. Já na não-ficção, como são o caso dos concursos, realities e talk-shows, o seu significado tem mais alcance porque diz respeito a um sistema rígido de produção que pretende determinar princípios unificadores que tornam o embrulho igual em qualquer parte do mundo. Logo, e neste caso específico, quando falamos em formato, referimo-nos a normas rígidas de produzir um programa, que vão da cenografia, passando pela iluminação, sonoplastia e até mesmo pelos movimentos de câmara. A classificação da ficção deriva do processo de categorização da biologia (taxonomia), o que sugere a existência de um método científico análogo à classificação das espécies animais e vegetais. A identificação de determinado produto como pertencendo a um género ou a um formato específicos não é um processo linear, dado que estes estão em constante reinvenção. A título de exemplo, podemos citar a acção dos grandes estúdios de Hollywood. Especializados, na primeira metade do século XX, em filmes de género, acabariam por se entregar, sobretudo a partir da década de 60, a uma série de experiências narrativas que colocavam muitos dos filmes produzidos fora das classificações de género até aí existentes, ou pertencendo a mais do que um género simultaneamente. A televisão, no entanto, foi resistindo a esta hibridização, porque a necessidade de programar em função dos horários, e dos públicos, levou a que se mantivessem por mais tempo as fronteiras que definem os diferentes géneros. Apesar do esforço do mercado em perceber e reclassificar as características de género, a Academia tem reflectido num sentido contrário, dispensando mais tempo a apagar as fronteiras que separam os diferentes géneros do que em mapeá-los. A teoria recente que se foi construindo avança que cada produto é único e inclassificável, transformando esta discussão num terreno estéril para quem programa. Quanto ao espectador, habituou--se a rotular os géneros com base em regras (quase) simplistas: comédia tem de fazer rir, o melodrama tem de comover; e o terror tem de assustar.

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No que respeita aos formatos – embrulhos com tamanhos e formas determinadas – observa-se, igualmente, uma tendência para a hibridação ou, do nosso ponto de vista, uma tendência para a utilização “anárquica” de rótulos assente quer nas necessidades do canal, quer na inexistência de uma nomenclatura própria para o mercado. Esta realidade tem ganho maior espessura nos últimos cinco anos, fruto do desenvolvimento dos canais pagos e da internet em paralelo com o boom da ficção norte-americana de consumo massificado, em especial junto do segmento jovem. Dado que no mercado televisivo português em sinal aberto estes programas não são considerados âncora, a forma de concorrer ou contornar a situação foi a de produzir internamente ficção que se afastasse da telenovela, mas que recorre aos mesmos modelos de produção. Temas como os vampiros passaram a ocupar os nossos ecrãs, semeando a confusão entre quem fala sobre televisão: se não são telenovelas, o que são? A este propósito, passou a ser prática ouvir e ler designações diferentes para o mesmo título – telenovelas juvenis ou séries adolescentes de longa duração. Na realidade, cada canal opta por uma designação, independentemente de vir a alterá-la por motivos estratégicos, quebrando o contrato estabelecido com o telespectador (Charandeau, 1997). A própria Entidade Reguladora para a Comunicação (ERC) vem baralhar ainda mais esta discussão lançando uma obscura definição de género televisivo. No Relatório de Regulação 2007, pode ler-se: O conceito de género televisivo remete para os diferentes tipos de programas que se apresentam como unidades autónomas no alinhamento global de programação de um canal de televisão, nos quais é possível reconhecer formatos de construção que ao longo dos tempos foram ganhando uma determinada padronização e que estruturam presentemente a composição de um dado serviço de programas (...); A operacionalização da noção de género televisivo é, no entanto, problemática, desde logo por se tratar de um conceito que convoca sempre várias dimensões sob as quais os programas televisivos podem ser observados (...) (ERC, 2007: 504-505). Esta descrição parece-nos pouco esclarecedora, verificando-se a assumpção do “formato” como conceito operacional (dado que se mantém sob a designação de género) e oferecendo-se uma sistematização básica e pouco esclarecedora de “géneros” (que deveriam ser “formatos”): filme/telefilme; série; telenovela; ficção de humor.


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titulo artigo Autor

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Ficção, géneros e formatos Catarina Duff Burnay e Pedro Lopes

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A telenovela: o híbrido de sucesso Agora que sumariamente fizemos a distinção entre géneros e formatos, isto é, conteúdo e forma, e tendo em conta que são muitas vezes utilizados de forma indistinta e sem critério, iremos avaliar o comportamento destes dois conceitos na televisão portuguesa. Para melhor compreendermos o fenómeno, escolhemos a telenovela como paradigma. Estreado em 1977, este formato ocupa o principal horário do dia, desde então, ocupando as rotinas diárias dos telespectadores. Em termos de estrutura, consideramos que funciona como uma espécie de “contentor de géneros”, que coabitam dentro de um mesmo produto através dos diferentes núcleos de personagens. Há quem veja os programas pois simpatiza com o par romântico; há quem siga apenas as maldades do vilão e há ainda aqueles que apenas gostam de acompanhar as peripécias das personagens cómicas. Neste sentido, e num só programa, pode-se encontrar o género dramático, o suspense e o cómico, o que o transforma num conteúdo abrangente em termos de audiência, vindo a confirmar-se, ao longo dos tempos, como um factor crítico de sucesso. Em Porugal, a telenovela tem sido designada como género ficcional e não como formato, situação que se deve aos particularismos da nossa televisão. Ao contrário do Brasil, e da Rede Globo, que é a produtora e estação emissora de referência quando se fala em telenovelas, nunca foram criados horários que predefinissem ou condicionassem as histórias e as personagens. No entanto, e ao analisarmos a composição da audiência ao longo do dia, deparamo-nos com diferentes públicos por horário, com o programa das seis da tarde a ter um público da faixa etária mais jovem e mais envelhecida (estudantes e reformados), o programa das sete já tem um número de espectadores que vai em crescendo em idade activa, e o das 9 alcança a audiência mais heterogénea. A Rede Globo, constatando esta realidade, definiu três novelas diferentes quanto ao género, uma para um público mais adolescente, outra bem humorada no acesso ao prime-time e o folhetim clássico para a noite. Em Portugal, os programadores nunca estipularam estas regras, podendo mesmo uma telenovela mudar de horário durante a sua exibição, dependendo do seu impacto junto do público, o que leva a que telenovelas juvenis, como, por exemplo, Morangos com Açúcar (TVI) e Floribella (SIC), que estrearam à tarde, passassem para o prime-time, e outras que foram lançadas no horário principal da estação, a seguir ao noticiário da noite, fossem remetidas para o late night, como foi o caso de Resistirei (SIC) ou Olhos nos Olhos (TVI). Esta indefinição de horários, e consequentemente de targets, levou as emissoras a procurar soluções híbridas que servissem todos os horários, e todos os públicos, dos oito aos oitenta anos, transformando, do nosso ponto de vista, o formato telenovela em género telenovela.

Nesta linha de pensamento, pensamos que os processos de remediação constantes a que os produtos de ficção, e os seus géneros e formatos, estão sujeitos (Bolter and Grusin, 2000) contribuem para o estabelecimento de um paradigma de codificação e descodificação “remixado” (Lessig, 2009). Esta crescente hibridização, que consideramos inevitável em face da crescente oferta e procura de alternativas ao mainstream e ao desenvolvimento das tecnologias de produção, difusão/circulação e consumo, pode, no entanto, promover, a médio/longo prazo, o estabelecimento de ligações disléxicas, logo, não articuladas, entre produtores e consumidores das narrativas de ficção (Rose, 2011). Em face do exposto, consideramos que seria interessante a criação de rótulos genéricos. Embora pudessem não ser completamente fechados, a sua existência orientaria os diferentes players deste mercado, evitando a tendência natural para a rejeição, por parte dos telespectadores, de produtos que não se enquadrem nos mapas de referência próprios e potenciaria o desenvolvimento de novas abordagens, técnicas e estéticas, ao storytelling televisivo.

Bibliografia

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Anรกlises

Dez imagens para KIESLOWSKI por Humberto Hokama


Dez Imagens para Kieslowski Humberto Hokama

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Há tempos o limiar entre cinema e televisão foi reduzido mais aos seus meios de exibição do que à sua forma de narrar – neste caso, pensamos especificamente na ficção. Todavia, mover o complexo circo do broadcasting exige, à sua produção, rapidez e lucro, conotando, sobre suas narrativas, as mesmas exigências de um ritmo mais cerrado na sua feitura. Resulta desse processo, muitas vezes, o enfraquecimento de uma depuração linguística em prol de um público alvo mais abrangente. De tal maneira que é perturbador e instigante constatar a poética alcançada pelo diretor polonês Krzysztof Kieslowski no seu Decálogo: minissérie outsider, se a podemos assim classificar, produzida entre os anos de 1987 e 1988 para a TV polonesa Telewizja Polska (TVP), com duração média de 55 minutos por cada episódio, e inspirada nos dez mandamentos bíblicos. Todos os dez episódios acontecem na órbita de um condomínio de classe média na cidade metropolitana de Varsóvia e, como observa Paul Coates, podem bem representar a presença de um Estado distante do cidadão; refletindo certo cinismo e apatia da instituição diante dos acontecimentos poloneses1. Decálogo é experiência imagética, comprovação de um honesto vínculo artístico de Kieslowski para com a sua arte; afinal, só um tolo ou visionário teria a pretensão de ir contra o senso comum e se arriscar com uma obra fílmica tão estrangeira à linguagem diária das séries televisivas. Krzysztof Zanussi, amigo de Kieslowski e produtor executivo da série, relata: Como produtor, tentei vender as duas primeiras partes editadas para que pudéssemos comprar mais película e terminar o projeto. Fui a diferentes países e em todos os lugares disseram não. As grandes redes de TV o acharam ruim, sem propósito. Grandes produtores fizeram isso, pessoas famosas2. O resultado deste trabalho é o afloramento de um processo criativo no qual Kieslowski vinha gestando à medida em que se afastava do documentário e cada vez mais depurava um olhar próprio, característico dos diretores que deixam legados aos amantes do cinema. People ask me all the time why we decided to go ahead with it (Decalogue)(…). I simply don’t know and neither does he (Krzysztof Piesiewicz, scriptwriter). (…) everything in Poland was in a colossal mess. We thought maybe it was worthwhile going back to the simplest, most basic, most elementary principles of how to lead one’s life3.

1 COATES, Paul (ed.). Lucid Dreams – The Films of Krzysztof Kieslowski. England: Flicks Books, 1999, p.94. 2 DECÁLOGO – Dekalog , Krzysztof Kieslowski, Polónia, 1989. ZANUSSI, Krzysztof. Depoimento para o documentário Ainda Vivo: um filme sobre Kieslowski. São Paulo: Versátil Home Vídeo, 2009. DVD. 3 CAVENDISH, Phil. Kieslowski’s Decalogue. In: Sight & Sound. Volume 59, número 3, p. 163.

Os dez capítulos do Decálogo não devem ser interpretados como uma extensão direta dos dez mandamentos bíblicos, em especial aqueles organizados pela Igreja Católica. Existe sim uma correlação entre os mandamentos e as digressões proposta nos dez capítulos, porém nem todos obedecem cegamente suas respectivas leis. Véronique Campan, em Dix breves histoires d’image, trata de como Kieslowski tem a capacidade de nos apresentar as dez leis de Deus como algo inalcançável à humanidade, na medida em que a diegese de suas ficções nos demonstram que os “erros” que estamos aptos a cometer, e frequentemente cometemos, nada mais são do que “faltas”, necessidades inerentes à sobrevivência em um mundo onde a presença de Deus se dá através de leis distantes da vida mundana à qual estamos sujeitos. Por esse motivo, segundo Campan, o diretor prefere “a arte do narrador ao invés da autoridade das leis, e a multiplicidade estética ao dilema ético”4. Encontra-se, nesta série, características estilísticas que irão marcar os próximos trabalhos do diretor em suas co-produções francesas. O jogo entre a casualidade e causalidade nos acontecimentos ou ações dos personagens faz-nos questionar entre a real funcionalidade do livre arbítrio em contrapartida com um determinismo. Decálogo 1 (“Amarás a Deus sobre todas as coisas”), inicialmente apresenta a figura do anjo observando um lago congelado. É uma personagem mística e que irá planar entre quase todos os dez episódios, interpretado sempre de forma realista como sendo um homem loiro um tanto deslocado das histórias – mas constantemente a olhar para e pelos protagonistas. É este lago com a água congelada que contrariará o prognóstico de um cientista ao inutilizar seu cálculo sobre a resistência do gelo. Apesar de a sua equação matemática demonstrar solidez diante do peso que seria imposto pelos patins do seu filho e amigos, o gelo se rompe, tirando a vida das crianças que patinavam e impondo ao cientista uma revisão da sua crença na ciência e técnica. Decálogo 3 joga a todo instante com o devir. Uma mulher de meia-idade encontra-se extremamente solitária numa noite de Natal. Para suportar sua angústia, trama retirar seu antigo amante da ceia de Natal familiar, e passar a noite até ao amanhecer em sua companhia. O ex-amante, a contragosto, acompanha-a, porém sem saber que se ele a deixar antes do amanhecer, ela cometerá suicídio. Em movimento semelhante, o acaso faz com que a jovem de 20 anos em Decálogo 4, encontre uma misteriosa carta deixada por sua mãe antes de morrer, e que deveria ser aberta somente após a morte do seu pai. O episódio passa a discutir as possibilidades de destinos se ela abrir ou não a carta. Decálogo 5, capítulo que viria a ser transformado em longa-metragem, traz à tona um questionamento direto sobre o tema da casualidade. O jovem assassino, Jacek, extremamente angustiado porque aguar4 CAMPAN, Véronique. Dix Breves histoires d’image. France: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1993, p.35.


Jan Tesarz enfrenta Miroslaw Baka no Decรกlogo 5.

Grazyna Szapolowska interpreta Magda, em Decรกlogo 6.


Dez Imagens para Kieslowski Humberto Hokama 39

Decálogo é experiência imagética, comprovação de um honesto vínculo artístico de Kieslowski para com a sua arte

da seu enforcamento, reflete com seu advogado de defesa sobre um momento passado, que agora ele percebe ter sido crucial em sua vida. Jacek tinha uma irmã caçula à qual era muito apegado. Certo dia ele e um amigo se embriagaram e, numa brincadeira, o amigo que dirigia o trator da fazenda atropelou e matou a irmã de Jacek. Ele acredita que se sua irmã não tivesse sido morta poderia continuar vivendo junto ao seu vilarejo e não estaria, naquele momento, prestes a ser executado. A presença do espelho e seus reflexos insinuam-se no decorrer dos conflitos encenados, compondo o que Campan descreve como “a sobreposição do anverso e reverso, e que tira a transparência da tela”5. Trata-se da “imagem cristal” cunhada por Deleuze6, e lembrada por Campan. O reflexo das personagens demonstra a investigação do diretor na busca por seus duplos, funcionando como uma artimanha para inserção de desvios dentro de um destino possivelmente traçado. É sob esse enquadramento filosófico que Romek e Hanka, o casal do nono mandamento (“não desejar a mulher do próximo”), encontra um desvio – uma opção – diante do problema de saúde de Romek, que se torna impotente, e da traição de Hanka.

Há seis mil anos, esses mandamentos têm sido inquestionavelmente corretos. Porém, nós os desobedecemos todos os dias. As pessoas sentem que a vida tem algo de errado (...). Elas querem contemplar as questões básicas da vida e, provavelmente, é essa a verdadeira razão para contar essas histórias7. As relações tão complexas e diversas que surgem no fluxo do convívio social reforçam a permanência da ficção como mecanismo de valoração da vida. Os entraves, desencontros, injustiças e tantos erros que nossa existência e a civilização acumulam não teriam um sentido lógico senão por meio do nascimento de formas interpretativas que compartilhem desses desafios, podendo algumas vezes nortear um caminho mais saudável ao convívio social. As histórias do Decálogo encontradas na Bíblia indicam essa direção, as histórias do Decálogo de Kieslowski refletem sobre as palavras bíblicas, assim trazendo maior lucidez às suas interpretações e reavivando o sentido poético na aventura pela consciência do ser.

5 CAMPAN, Véronique. Dix Breves histoires d’image. France: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1993, p.101. 6 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.93, 94. 7 DECÁLOGO – Dekalog , Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1989. KIESLOWSKI, Krzysztof. Depoimento na contracapa do DVD. São Paulo: Versátil Home Vídeo, 2009. DVD.

Referências DELEUZE, Gilles, A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005. CAMPAN, Véronique. Dix Breves histoires d’image. France: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1993. CAVENDISH, Phil. Kieslowski’s Decalogue. In: Sight & Sound. Volume 59, número 3, p.162-165. COATES, Paul (ed.). Lucid Dreams – The Films of Krzysztof Kieslowski. England: Flicks Books, 1999. MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. Porto Alegre: Artes e Ofício, 2003. PEREIRA, Sidênia Freire. Kieslowski e a dramaturgia do Cotidiano. Site mnemocine/memória e audiovisual, São Paulo, 12 dez. 2002. www. mnemocine.com.br MIRANDA, Suzana Reck. A música no cinema e a música de Krzysztof Kieslowski. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 1998. SALLES, Cecilia Almeida. Gesto inacabado: Processo de criação artística. São Paulo: FAPESP/ Annablume, 1998.


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Análises

t h e simpsons por Paulo Alexandre e Castro

Crítica e humor da sociedade contemporânea


The Simpsons Paulo Alexandre e Castro

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Os Simpsons são a sitcom de maior longevidade em televisão e com a maior presença de estrelas televisivas (tendo mesmo o nome inscrito no Guinness Book World of Records).1 Na sua vigésima quarta temporada, um tal número está ainda assim longe da quantidade de prémios recebidos, como se pode constatar no site criado pela Fox com o mesmo nome, que anuncia mais de setenta prémios.2 A que se deve um tal sucesso, a que fórmula acedeu o criador Matt Groening (o mesmo criador de Futurama) e o produtor James L. Brooks? O que leva a que uma série televisiva tenha uma estrela no passeio da fama de Hollywood? Ou cuja transmissão tenha sido proibida na televisão, por exemplo, pelo governo de Chávez em 2008? Ou na Argentina em 2010, por conter referências a uma ditadura militar? O segredo, pensamos, consiste na capacidade de tomar a realidade e transformá-la numa ficção (de agrado) geral, através de uma ironia desconcertante e de um humor subversivo3. A criação de cada episódio é um exercício de inteligência. Tal exercício mergulha na realidade, e torna o episódio tão mais cómico quanto a seriedade do tema envolvido, e por isso tão mais conseguido quanto a comicidade atingida. Bergson referia por isso que o humor «tem qualquer coisa de mais científico», uma vez que «descendo cada vez mais ao interior do mal real, [se faz] notar as suas particularidades com uma mais fria indiferença».4 Certamente o americano comum não se revê (de imediato) nestas personagens, nas suas tramas ou nos seus costumes, mas parece inegável que elas são um espelho muito fiel da sociedade americana. A ser verdade o que muitos críticos referem acerca de uma certa forma de globalização, então a sitcom poderá reflectir, de facto, a sociedade contemporânea. Aliás, como explicar que a famosa expressão de irritação de Homer figure como palavra oficial do Oxford English Dictionary? Os Simpsons centram-se no dia-a-dia da típica família suburbana americana, que vive na cidade de ‘Springfield’ (nome muito comum em diversos estados). Uma característica marcante desta série é a sequência de abertura: o ‘genérico’ nunca é igual e, por isso mesmo, prende imediatamente o espectador ao ecrã (as melodias de Lisa no saxofone, os escritos no quadro da escola de Bart, a chegada de Homer a casa, o momento em que a família se senta no sofá para ver televisão, até mesmo uma sequência evolutiva do aparecimento dos Simpsons na Terra). As principais personagens (cujos nomes Matt Groening foi buscar em grande parte à sua própria família) são Homer, um funcionário da Central Nuclear completamente irresponsável; Marge, a esposa dedicada e estereotipada (a fazer lembrar as donas de casa americanas dos anos 50/60); Bart, o filho de dez anos, um rebelde sem grandes referências; Lisa, a filha prodígio que toca saxofone, é vegetariana e ecologista, e Maggie, a bebé 1 O site: www.thesimpsons.com. O elenco conta com diversas estrelas que dão vozes às personagens, de que se destacam, Dan Castellaneta para Homer, Julie Kavner para Marge, Nancy Cartwright para Bart, Lisa Yeardley Smith para Lisa, entre outros. 2 Permitimo-nos citar: um Peabody Award; vinte e sete Emmy Awards; vinte e nove Annie Awards; cinco Genesis Awards; nove International Monitor Awards; sete Environment Media Awards. 3 O exercício do humor exige o advento do juízo crítico, e recordemo-nos por exemplo da crítica que Luís Sepúlveda traça em torno da televisão moderna, fazendo uso de um programa argentino da década de 70 protagonizado por Les Luthiers «Quem pensa…perde!» (quão premonitório isso foi da sociedade actual); Ora, Homer encarna precisamente este espírito, sobretudo na idolatração à cerveja e ao dolce far niente. Cf. SEPÚLVEDA, Luís, «Quem Pensa…perde!» in O Poder dos Sonhos. Tradução de Henrique Tavares e Castro. Porto: Edições ASA. 2006, pp- 57-61. 4 BERGSON, Henri, O Riso – Ensaio sobre o significado do Cómico. Tradução de Guilherme de Castilho. Lisboa: Guimarães Editores, 1993, 92.

mistério (e que alguns críticos consideram o personagem mais inteligente). Existem muitas outras personagens secundárias que ajudam a recriar toda a atmosfera em torno da família Simpson e da cidade, como familiares, vizinhos, celebridades locais, polícias, professores, jornalistas, comerciantes, etc. O universo (cidade de Springfield) da família Simpson permitiu aos criadores explorar todos os problemas da sociedade contemporânea e não há temas tabus, nem mesmo as piadas sobre a própria Fox (enquanto canal televisivo). De facto, quer o tema seja ecologia, ambiente, educação, economia, segurança, política, religião, entre outros, os temas são sempre abordados com imensa mestria e sem qualquer preocupação; repare-se, por exemplo, como o reverendo Lovejoy é completamente indiferente aos fiéis e à própria igreja, ou como a polícia local, liderada pelo Chefe Wiggum, se mostra tão incompetente, assim como o Diretor escolar Skinner, ou como os políticos são apresentados como corruptos. Este é, aliás, um dos pontos mais sensíveis à crítica: alguns comentadores referem a natureza política da série, pois que as instituições estatais e corporações se manifestam insensíveis face ao trabalhador comum. Uma tal visão parece associada aos liberais, uma esquerda norte-americana defensora dos direitos dos trabalhadores e do estado social. No entanto, há episódios em que estes são também ironizados pela sua inoperância, revelando os ideais (utópicos) de uma sociedade (mais) igualitária e justa. Parece-nos mesmo que o humor na sua máxima expressão é posto em causa pelos criadores, quando ilustram o riso de diversas personagens a propósito de tudo e nada, fazendo lembrar aquilo que René Girard designava como a práxis moderna do riso na sociedade actual.5 Este humor da série já não parece ter uma função terapêutica/higiénica como em Espinosa ou Voltaire, mas surge como o retrato de uma sociedade acomodada e alienada. Um humor que alerta para essa espécie de catarse fictícia, que as indústrias de lazer insistem em vender e que o jornalista Kent Brockman tão bem ridiculariza, não só no papel dos media e da indústria do entretenimento, como dos próprios jornalistas (por exemplo, como as parangonas de um canal televisivo instituem a verdade). Recordamo-nos de Guy Debord quando alertava para essa verdade: quanto mais se ‘contempla’ menos se vive, e no caso que Homer personifica, quanto mais se reconhece no outro (ridicularizado), menos se compreende a sua própria existência. Donuts e cerveja prefiguram o sentido da sua existência, salvaguardando-se contudo (ou apenas para sua salvação espiritual) o sentido da família. Seja do agrado geral ou não, a série é de facto o maior sucesso televisivo de sempre e o seu humor produziu frutos de que muitos se poderão rir: de centenas de livros a DVDs, de videojogos a parques temáticos, ao filme de 2007 (que tinha rendido até ao final desse ano mais de 500 milhões de dólares). Os Simpsons são ainda um verdadeiro exercício de crítica e humor, espelho ficcional de uma sociedade real, que podendo não ser levados a sério, brincam com as coisas mais sérias do mundo e da vida humana.

5 «O homem moderno ri constantemente quando não há razão para isso. O riso é a única forma socialmente aceite de catarse. Por conseguinte, todas as espécies de riso que não têm nada a ver com o riso são confundidas com ele: o riso de cortesia, o riso sofisticado, o riso mundano». GIRARD, René - A Voz desconhecida do Real – Uma teoria dos Mitos Arcaicos e Modernos. Tradução de Filipe Duarte. Lisboa: Edição do Instituto Piaget, 2007, p. 203.


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Análises

UMA APARÊNCIA, DIFERENTES SERES por Sérgio Dias Branco

Performance e Identidade Pessoal em Battlestar Galactica


Uma Aparência, Diferentes Seres Sérgio Dias Branco

Battlestar Galactica/Galactica: Batalha no Espaço (2004-9), a nova versão da série de ficção científica de 1978, tem uma particularidade estética: o trabalho de alguns actores que encarnam personagens diferentes com um corpo idêntico. Os actores que interpretam as entidades cibernéticas denominadas cylons e James Callis, que faz de Gaius Baltar e os seus diversos eus, assumem várias personagens sem mudanças físicas enfáticas. Porque é que as vemos como diferentes se elas podem ser facilmente confundidas? Porque elas são psicologicamente diferentes. Sabemos que os cylons humanóides são versões de modelos específicos. Estes modelos podem ser pensados como moldes, determinando a forma de cada versão, mas não aquilo que os torna únicos. As diferenças entre personagens só podem ser transmitidas através da performance, dos detalhes significativos do guarda-roupa, das vozes, das posturas, e dos gestos. Há versões de cylons humanóides que a série não diferencia. Partilham mais semelhanças do que diferenças e, por vezes, é difícil ter a certeza se estamos a ver a mesma cópia ou não. Por exemplo, o modelo Número Cinco mais conhecido é Aaron Doral (Matthew Bennett) e as suas cópias são distinguidas pelo vestuário. No entanto, o bombista suicida vira-se para o comandante Adama (Edward James Olmos) quando ouve: “Doral.” Outra cópia aparece depois a supervisionar a relação entre Boomer (Grace Park) e Helo (Tahmoh Penikett) em Caprica, envergando o mesmo fato da primeira versão e assim pode ser visto como a mesma personagem. É de notar que isto não anula o interesse das personagens — por exemplo, a religiosidade de Leoben (Callum Keith Rennie), um Número Dois, empresta-lhe uma tranquilidade e paciência sustentadas mesmo quando é agredido ou depois de ser morto repetidas vezes por Starbuck (Katee Sackhoff). Muitas vezes não sabemos se estamos perante a mesma cópia de um modelo e esta incerteza é inseparável do desinteresse da série em declarar estas diferenças. Sem esquecer estes casos, este pequeno estudo foca-se apenas nos casos em que o mesmo actor retrata diferentes personagens de uma forma clara. Battlestar Galactica distingue a natureza e personalidade das várias cópias do Número Seis (Tricia Helfer), por exemplo. Uma análise cuidadosa destas distinções demonstra como a série chama a atenção para um conceito de ser que tem ligações com a filosofia de John Locke, em particular com a sua definição de identidade pessoal como consciência e memória contínuas em Ensaio Sobre o Entendimento Humano. Há três actos performativos distintos que contribuem para a diferenciação de personagens com um aspecto semelhante: fingir, imaginar, e sentir. 1. Fingir Cylons humanóides como D’Anna (Lucy Lawless) ou Simon (Rick Worthy) fingem para enganar ou passar despercebidos. Há, claro, uma personagem que engana e mente repetidamente: Gaius Baltar. No entanto, no seu caso, a diferença entre o engano e a verdade não coloca em questão o nosso olhar sobre ele — embora, como veremos, isto aconteça com o acto de imaginar. Outro exemplo é a revelação de quatro cylons infiltrados na tripulação do Galactica, no final da terceira temporada que apenas forneceu informação adicional e inesperada sobre estas personagens. Nenhuma delas estava consciente de que era um cylon, o que exclui a possibilidade de fingimento. Em contraste, em “Lay Down Your Burdens, Parte 1” (2.19), o Irmão Cavil (Dean Stockwell) faz-se passar por conselheiro espiritual, mas é ateu. Este transmite convicção através do movimento da sua mão esquerda, pontuando as frases e sublinhando-as como directivas (fig. 1). Finaliza a conversa rufando na mesa com as mãos, celebrando a sua maestria num sinal de vaidade.

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Fig. 01

Na segunda parte do episódio (2.20), o Irmão Cavil encontra outro Cavil. Em termos narrativos, estes são fundamentalmente a mesma personagem, mas a sua co-existência na mesma cena impele-nos a reconhecer a sua diferença. Depois de falarem os dois, entendemos que têm funções diferentes: o Cavil de Caprica é um mero mensageiro enquanto o Irmão Cavil se infiltrou na estrutura social da tripulação. Eles têm muito em comum — por exemplo, um cinismo que se transforma facilmente em amoralidade. Mas a sua reunião realça algo que cada um, por si só, não consegue fazer passar: a trivialidade do seu discurso é sublinhada quando é repetida e partilhada pela outra versão. É o que acontece quando o Irmão Cavil demonstra como é simples para ele completar o que o outro diz, com a câmara a focar selectivamente quem fala, mudando do primeiro para o segundo plano (fig. 2). Aceitando a distinção de Locke entre consciência e alma (ou substância pensante), podemos afirmar que, embora os dois pensem de modo idêntico, a sua identidade pessoal é tão diferente como a sua consciência. Fingir, fazer um papel, mostra a sua individualidade e as suas respostas particulares ao que os rodeia.


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Fig. 02

Aceitando a distinção de Locke entre consciência e alma (...), podemos afirmar que embora os dois pensem de modo idêntico a sua identidade pessoal é tão diferente como a sua consciência.


Uma Aparência, Diferentes Seres Sérgio Dias Branco

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Fig. 03

2. Imaginar Em alguns momentos da série, as personagens imaginam e habitam um mundo alternativo. Na terceira temporada, Caprica-Seis revela que os cylons são capazes de projectar um ambiente à sua escolha que substitui o mundo físico que habitam. A Seis virtual de Baltar e o Baltar virtual da Seis parecem ser o produto de uma relação nascida depois do ataque devastador às colónias que abre Battlestar Galactica. Caprica-Seis morre pela primeira vez nessa altura, a proteger Baltar quando a casa dele é devastada pelo ataque. Em “The Hand of God” (1.10), Baltar surge na companhia da Seis na sua casa destruída, que aparece intacta. A cena é inserida antes da música festiva da sequência anterior ter cessado, não a marcando como narrativamente distinta. A culpa de Baltar pela função que desempenhou no ataque sobressai e o significado que a religião pode ser forçada a dar são os temas da cena. Não vemos Baltar a sonhar, mas o cenário, a sua casa misteriosamente refeita, diz-nos que tudo é imaginado. Como a Seis e o Baltar virtuais, esta Seis e este Baltar sublinham aspectos dos originais. Ela acaricia gentilmente o cabelo dele, toca-lhe na pele, e saboreia cada palavra que diz, seduzindo-o. Ele adopta uma primeira pose relaxada e despreocupada, deitado numa espreguiçadeira com a perna direita flectida, a fumar um cigarro, em contraste com a seriedade do assunto. Baltar assume uma segunda posição no final, com os braços abertos, mas demasiado próximos do torso, numa postura risível, artificial, acentuada pelo roupão fino e aberto e, principalmente, pelo olhar que deita para cima no último plano picado (fig. 3). A sua postura e gestos expressam o seu narcisismo. Ao longo da série, estas figuras imaginadas mostram aquilo que a Caprica-Seis e o Baltar reais escondem: a insignificante persuasão dela e a ridícula irresponsabilidade dele. A Seis e o Baltar imaginados podem ser interpretados como projecções das pessoas que os imaginaram. Para Locke, uma pessoa é um ser capaz de se ver a si mesmo como a mesma entidade em tempos e lugares diferentes, ao longo de uma vida ou em eventos imaginados. Caprica-Seis, apesar de ser um cylon, também encaixa nesta descrição. 3. Sentir Há personagens que definem a sua individualidade dentro de um grupo através da sua sensibilidade. Os casos das modelos Oito Boomer (ou Sharon Valerii) e Athena (ou Sharon Agathon) e de Caprica-Seis são exemplares. A cena que reúne as três em “Rapture” (3.12) é reveladora. Algo que distingue estes modelos dos outros é o seu carácter emocional. Não é surpreendente, portanto, que se aliem em muitos momentos — por exemplo, para salvar Samuel Anders (Michael Trucco). Elas são também distintas de cylons humanóides como Aaron porque foram mudadas pela sua história pessoal. Locke insiste que a identidade muda constantemente porque o ser emerge de uma consciência auto-reflexiva, auto-cogniscente, ligada às experiências sensíveis

Fig. 04

acumuladas. As mentes dos cylons podem não ser originalmente como a tabula rasa que o filósofo inglês acreditava que as mentes humanas originalmente são, mas são moldadas pela experiência, sensação, e reflexão. A cena em que Athena e Caprica-Seis descobrem o bebé de Athena e Helo, Hera, ao cuidado de Boomer só pode ser entendida a partir da memória do que aconteceu antes. Athena usa uma saia enquanto Boomer tem calças vestidas, ou seja, a segunda não tem a facilidade e leveza de movimento da primeira. Boomer fala contra a coexistência entre humanos e cylons e descarta as preocupações de Athena sobre a saúde de Hera sem convicção, com os braços fechados sobre a barriga. Depois abandona essa rigidez e torna-se nervosa e arisca quando se apercebe da relação inimitável que Athena tem com a sua filha. Boomer é muitas vezes filmada sozinha e a sua solidão é reforçada quando Athena e Caprica-Seis conversam entre si. Finalmente, aquela ameaça partir o pescoço do bebé. Face à ameaça, Athena tenta contrariar a escalada de Boomer. O seu rosto tenso e a sua voz grave expressam uma profunda preocupação, mas em simultâneo ela tenta persuadir Boomer a acalmar-se usando os movimentos sugestivos da sua mão direita (fig. 4). Caprica-Seis é sensível ao afecto de Athena e reage violentamente, matando Boomer. A reacção de Caprica-Seis também pode ter a ver com a culpabilidade que sente pelo facto de ter morto um bebé sem pensar duas vezes — no início da série, em Caprica, pouco antes da destruição das Doze Colónias. 4. Parecer e Ser A performance dos actores em Battlestar Galactica, e as suas propriedades sensórias, formais, e expressivas, é um elemento central na série. As análises anteriores chamam a atenção para detalhes significativos, sublinhando a maneira como as acções de fingir, imaginar, e sentir corporizam a identidade das personagens. A filosofia de Locke estabelece uma ligação entre agência e identidade. Apesar de vermos corpos similares, vemos também personagens diferentes. As diferenças pessoais entre elas são exploradas na série assim como o sentido de continuidade de cada ser. Mesmo quando as personagens são imaginadas ou ressuscitadas, elas partilham a mesma memória. Somos encorajados a tomar cada imagem e cada gesto como elementos que compõem uma identidade estável ainda que em construção. A nossa atenção às diferenças é exigida precisamente porque a identidade pessoal não possa ser transmitida somente pela aparência.


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AnĂĄlises

Poder, PĂŠnis, Palavra

por Pedro Flores

em Berlin Alexanderplatz


Poder, Pénis, Palavra em Berlin Alexanderplatz Pedro Flores

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Berlin Alexanderplatz, baseada no romance homónimo de Alfred Döblin, é uma série realizada e adaptada para televisão por Rainer Werner Fassbinder, em 1980. A obra – que se compõe de treze episódios e um epílogo – acompanha a vida de Franz Biberkopf, um homem da classe operária que, num ataque de ciúmes, assassina a mulher com as próprias mãos. O enredo principia no momento em que Franz é libertado da prisão e procura adaptar-se de novo à vida na cidade. A série estabelece desde cedo um diálogo com o cinema e a dramaturgia de Fassbinder. Como é frequente no autor, estamos na presença de um “filme de estúdio”: a mise-en-scène é mais clássica do que moderna, o cenário mais simbólico do que realista, a luz mais expressiva do que verosímil. Além disso, como também é comum no cineasta, as suas origens teatrais estão ainda bem visíveis: seja na estrutura em cenas longas, na composição do espaço como palco, ou numa direção de atores em que prevalece o corpo e a expressão. Acima de tudo, e ao contrário da obra de outros nomes do novo cinema alemão – como Wenders ou Herzog – esta coloca-nos perante um universo fechado da ficção – em que todos os elementos cinematográficos parecem controlados – como se não existisse real para além do cenário. No entanto, como sucede com outras obras maiores de Fassbinder – como O Casamento de Maria Braun (1979) ou A Saudade de Veronika Voss (1982) – em Berlin Alexanderplatz o tempo histórico (a Alemanha de 1927/28) introduz-se na narrativa a todo o instante. Por esta altura, na capital alemã a economia está de rastos, o desemprego atinge níveis dramáticos e o combate ideológico sobe de tom. Assiste-se ao germinar do nacional-socialismo, através de panfletos que promovem a pureza da raça, acusações ao povo judeu, e personagens de suástica no braço ou “bigode à Hitler”. O momento é histórico e esta série – através da reprodução de jornais de época ou da transmissão de discursos na rádio – é testemunha desse período. Nesse sentido, Franz Biberkoft – enquanto homem em busca do seu lugar no mundo – é também fruto do seu tempo. A premissa dramática é simples: depois de cumprir pena, Frank promete tornar-se um homem honesto. Assim, a pouco e pouco, transforma a sua vida: abandona o vício do álcool, arranja um trabalho como vendedor, dedica-se com lealdade à nova companheira. Mas como sobreviver em tempos de crise sendo uma pessoa honesta? Apesar de procurar o caminho da virtude, Franz sabe-se apenas um homem, de carne fraca e espírito débil, incapaz de resistir às tentações que o diabo lhe apresenta. Como pode então um homem salvar-se no mundo moderno? Através do trabalho? Da religião? Da política? Do álcool? Do amor?

A série estabelece desde cedo um diálogo com o cinema e a dramaturgia de Fassbinder. Em Fassbinder – tal como em Nietzsche – o homem distingue-se essencialmente pela sua vontade de poder: é esse o impulso que domina as suas ações. Nos antípodas do bom selvagem ou do ser à imagem de Deus, o animal humano está aqui em permanente luta pelo predomínio sobre o próximo. (“Maldito o homem que confia no outro.” avisa o narrador). Assim, sob a aparência de modernidade e civilização, esta Berlim parece mais habitada por senhores e escravos, carrascos e vítimas, parasitas e hospedeiros, em permanentes trocas de papéis. Aqui, as relações humanas, mesmo quando íntimas ou cordiais, são caracterizadas por manifestações de controlo, chantagem, violência ou manipulação. Por isso, a cada momento, a questão que reside no subtexto é: quem obedece a quem? Nesse sentido, mais do que um estudo sobre a autoridade do Estado, da Religião ou da Política, Berlin Alexanderplatz é um olhar sobre o exercício de poder nas relações do quotidiano. Esta visão do mundo é particularmente visível no retrato das relações íntimas. Neste universo, a mulher – cujo único recurso parece ser o poder de sedução – está à mercê dos caprichos do marido, patrão ou proxeneta. Nessa medida, é costume um homem trocar de companheira, emprestá-la aos amigos, ou mandá-la prostituir-se para a rua. A mulher é aqui olhada como um bem cuja propriedade pertence a outrem e, nesse contexto, faz sentido que Franz só aceite Sonia como sua companheira depois de lhe atribuir um novo nome, rebatizando-a segundo a sua vontade. Porém, para Fassbinder, a mulher aqui representada como objeto de exploração é a mesma que parece perdida – e sem identidade – na ausência de um homem. Daí que não se estranhe que Mieze, depois de brutalmente espancada por Franz, decida permanecer com ele, e pareça amá-lo ainda mais. (“Pertenço-te”, diz Mieze, para o amarrar). Neste lugar onde o amor se confunde com poder, a dominação é o principal modo de estar na intimidade.



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Em Fassbinder – tal como em Nietzsche – o homem distingue-se essencialmente pela sua vontade de poder: é esse o impulso que domina as suas ações.

Apesar destas manifestações de poder, Franz é uma personagem à mercê das circunstâncias, alguém cujo destino lhe escapou das mãos. Sozinho na metrópole, os encontros com personagens duvidosas sucedem-se e os negócios tornam-se cada vez mais obscuros até que Franz, arremessado de um automóvel, acaba por perder um braço. Este é o momento que dá um novo rumo à narrativa e transforma a visão do mundo do protagonista. Em primeiro lugar, porque a amputação surge aqui como um castigo divino – o braço que matou é agora um braço mutilado – que se adiciona à condenação que já cumpriu, o que provoca em Frank um sentimento de injustiça. Em segundo lugar, porque numa sociedade industrial – em que a força manual é a principal força de produção, de filosofia protestante – em que a virtude assenta na ética de trabalho, um homem sem um braço é olhado como um parasita (“Não deviam dar tostão a esses deficientes”, reclama Reinhold). Assim, a questão que a partir desse momento se coloca é: como pode um aleijado sobreviver numa metrópole como Berlim? Para Fassbinder, a resposta está na sexualidade. Face ao desemprego forçado, perante uma cidade hostil, Franz encontra o seu poder no sexo, a sua força de trabalho no pénis. Por isso, depois de quatro anos encarcerado, Franz apenas se sente livre após consumar uma relação sexual. Por isso, ele aceita conceber um filho a Eva quando esta não consegue realizar o seu desejo com o namorado. Por isso, ele vai encontrar a solução para os seus problemas económicos na exploração sexual de Mieze (“Sou um aleijado, não sirvo para nada. Mas para a cama ainda sirvo.”). Nesse sentido, para Fassbinder a salvação do homem parece residir no sexo – essa força vital, reprodutora e dominadora que atravessa todas as relações – e que cristaliza num único ritual, a vontade de poder. Para além da sexualidade, a principal arma na luta pelo poder é a palavra. Assim, as personagens de Berlin Alexanderplatz, mais do que atuantes, são personagens falantes: seja através do diálogo, do monólogo interior ou do solilóquio, elas manifestam os seus desejos e vontades, os seus sentimentos e emoções, as suas dúvidas e contradições através da palavra. A linguagem verbal é pois o principal campo de batalha da dramaturgia, expondo conflitos, revelando forças antagónicas, e adensando o novelo da trama.

Mas para além de elemento dramatúrgico, a palavra surge nesta obra com expressão poética rara. Deste modo, alguns dispositivos clássicos são aqui utilizados de modo peculiar ou original: um narrador que descreve parábolas bíblicas, artigos científicos ou bulas de medicamentos; monólogos interiores de personagens distintas que se sucedem como um fluxo de consciência; ou intertítulos que interrompem subitamente a ação para a interpretar, comentar ou ironizar. Além disso, na tradição da modernidade, o vínculo entre imagem e palavra é aqui reequacionado a todo o instante, seja através da autonomia ou contraste entre estas duas expressões, seja através de um discurso que desconstrói os seus elementos e revela a sua babilónica intertextualidade. Como se não existissem limites para a linguagem, Fassbinder reafirma nesta obra o poder da palavra em toda a sua força criadora. Por tudo isto, Berlin Alexanderplatz é um objecto – fílmico, televisivo e artístico – único. Hoje, mais de 30 anos volvidos, permanece uma lição de cinema e um exemplo de ousadia criativa, representando o culminar de um percurso que renovou – na forma e na substância – a dramaturgia europeia. Seja pelo realismo com que descreve comportamentos, pela audácia com que aborda a intimidade ou, ainda, pela verdade com que retrata um tempo histórico, poucas séries de televisão foram tão longe na arte de contar histórias. E, no entanto, o que Fassbinder faz é apenas revisitar uma questão tão antiga quanto universal: o que é, afinal, um homem?


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Curb Your Enthusiasm A reinvenção do sitcom por Denise Duarte


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Curb Your Enthusiasm Denise Duarte

Curb Your Enthusiasm é um dos mais brilhantes sitcoms da televisão norte-americana depois de Seinfeld (1989-1998). O criador de ambos, Larry David1 já faz parte da história da televisão dos Estados Unidos e do mundo por inovar a linguagem da narrativa serial. A partir do final da década de 80, Larry renovou o sitcom (ou comédia de situação, um retrato bem humorado do cotidiano) com o premiado seriado Seinfeld, que exibiu nove temporadas. A série recebeu 58 prêmios, entre eles três Globos de Ouro e seis Emmys. Seinfeld foi eleito pela revista norte-americana TV Guide, em 2002, o melhor seriado de televisão de todos os tempos. Dois anos após o último episódio de Seinfeld, Larry David voltaria a surpreender, em 2000, com uma proposta ainda mais autoral e radical de stand-up serial ao lançar Curb Your Enthusiasm. Aliando realismo a improviso, com a nova série Larry recria a estrutura do sitcom contemporâneo. Curb é exibido pelo canal HBO, com grande sucesso de público desde sua estreia, nos Estados Unidos e em vários países. Sua oitava temporada foi ao ar em 2011. Se como afirma Jean-Pierre Esquenazi2, a série é o gênero dominante em televisão, Larry David é o grande nome por trás do sucesso da comédia de situação. Realismo e Improviso em Curb Your Enthusiasm Larry David, ao imaginar a nova série, desejava que ela tivesse uma forte impressão de realidade. Para dirigir essa ousadia estética em termos de sitcoms, convidou o amigo e documentarista Robert B. Weide3, que havia realizado em 1982 o documentário para televisão The Marx Brothers in a Nutshell. Weide dirige grande parte dos episódios de Curb. Adotou-se, então, uma câmera ao estilo documentário do Cinema Verdade francês, resultando em imagens similares às de vídeos caseiros. Não raro vê-se a câmera tremida em Curb Your Enthusiasm seguindo os personagens nas ruas ou em interiores. O estilo recebeu nos Estados Unidos o nome de mockumentary, o que, numa tradução livre, aproximase do termo ‘falso documentário’. Outra medida em prol do realismo diz respeito aos nomes dos personagens serem os mesmos, em sua grande maioria, dos atores que os interpretam. De acordo com os estudos de Esquenazi sobre seriados, o canal HBO valoriza o realismo em seus produtos, principalmente o documentário caseiro, o que já era feito, antes de Curb, nos gêneros dramáticos e policiais. A ênfase no realismo tem por intuito valorizar o aspecto ficcional e dramatúrgico de Curb Your Enthusiasm. A aura de verdade que cerca o seriado é acentuada pelos diálogos improvisados, que permitem maior espontaneidade aos atores. O elenco é informado sobre o que ocorrerá na cena, mas não recebe script. Não há ensaios. A orientação é que os atores não tentem parecer engraçados. O resultado é único. Assim como é único o laço que une realismo e improviso em Curb. 1 Juntamente com Larry David, Jerry Seinfeld é astro e co-criador do seriado Seinfeld. Além de ser o criador de Curb Your Enthusiasm, Larry também escreve os episódios, sozinho ou com alguns colaboradores, e é produtor executivo da série. 2 ESQUENAZI, Jean-Pierre: As séries televisivas, 2011, Lisboa, Texto & Grafia. 3 Em 2012, Weide dirigiu Woody Allen: A Documentary.

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A ênfase no realismo tem por intuito valorizar o aspecto ficcional e dramatúrgico de Curb Your Enthusiasm.


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Curb Your Enthusiasm Denise Duarte

Temática O tema é o nada. Como em Seinfeld, Curb Your Enthusiasm trata de situações corriqueiras. Larry David se reinventa no personagem que interpreta em Curb Your Enthusiasm. No seriado, Larry é famoso, rico, bem sucedido em sua carreira, mora em Los Angeles, é casado com uma adorável e paciente mulher, Cheryl David (interpretada pela atriz Cheryl Hinds), está cercado de fiéis amigos, como seu agente Jeff Greene (o ator Jeff Garlin), sua irritadiça mulher, Susie Greene (a atriz Susie Essman), e Richard Lewis (o próprio), entre muitos outros. Porém, o cotidiano de Larry é cercado de pequenos contratempos que desencadeiam uma sucessão de mal entendidos. O personagem parece ter um peculiar talento para irritar todos a seu redor. Neurótico, maníaco, obsessivo, dramático, porém autêntico ao expressar livremente sua opinião em temas que o bom convívio social condena, Larry tenta ludibriar pequenas convenções, como participar em festas e jantares sociais aos quais não sente vontade de ir. O que gera uma grande confusão. De acordo com as palavras do próprio Larry David, em Curb Your Enthusiasm “nenhuma boa ação fica impune.’’ Além de situações cotidianas, como uma visita ao médico ou a um amigo, o politicamente incorreto, como ocorrera em Seinfeld, ganha uma versão mais abrasiva em Curb. O enredo não poupa cegos, deficientes físicos, negros, judeus. Larry David é judeu e piadas nesse sentido, em Curb Your Enthusiasm, são comuns, desde os cerimoniais, passando pelas reuniões familiares até a exacerbação dos estereótipos que cercam seu grupo étnico-religioso. Em um dos episódios das primeiras temporadas de Curb, uma amiga de Cheryl, Wanda (interpretada pela atriz Wanda Sykes), que é negra, dá a entender a Larry que ela considerava Seinfeld um seriado racista, por praticamente não apresentar situações envolvendo negros. A pista ali deixada no início de Curb será retomada mais adiante quando duas temporadas, a 6ª e a 7ª, têm participação dos Blacks. Tudo começa quando Cheryl, no primeiro episódio da 6ª temporada, decide hospedar uma família desabrigada pelo furacão Edna. A família é negra e tem por sobrenome Black. Larry surpreende-se e interroga: é como se “um judeu tivesse o sobrenome Judeu”? Os Blacks, como passa a ser chamada a família adotada por Larry e sua mulher, mudam-se, então para a casa do casal. Nas duas temporadas, ao referir-se à família pelo nome Blacks, porém, Larry envolve-se em inúmeros mal-entendidos relacionados a racismo e preconceito por parte de quem o ouve, sejam amigos ou desconhecidos.

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Formato e Estrutura Cada temporada de Curb Your Enthusiasm é composta por 10 episódios de cerca de 30 minutos. Há uma cadeia de eventos que ocorrem em consequência de um evento gerador comum ao conjunto dos episódios de uma temporada. O desenlace de uma temporada é o fio condutor da próxima. Como exemplo, temos a separação de Larry e Cheryl, que ocorre ao final da 6ª temporada. O fato desencadeia uma nova família para Larry, que será o mote da 7ª temporada. Ali, surge o debate sobre uma possível volta do seriado Seinfeld, que, por sua vez, será o tema geral da 8ª temporada. Enquanto isso, em cada episódio ocorrem outros eventos. A divisão em atos e a construção narrativa linear e em cadeia em Curb seguem os parâmetros da estrutura clássica de construção de roteiros. Weide1 afirma que em termos formais cada episódio tem um roteiro com sete ou oito páginas contendo 15 cenas. Para Larry David, que passou quase uma década escrevendo os diálogos de Seinfeld, a estrutura de Curb Your Enthusiasm é libertadora para ele, que se envolve em todas as etapas, da pré-produção à edição. De acordo com o roteirista e diretor Alec Berg2, que trabalhou em Seinfeld e em Curb, foi com Larry David que aprendeu o valor da estrutura. Segundo ele, o roteiro deve ser enxuto e fazer a história avançar. Se algo não precisa estar no script, deve ser retirado, de modo a se alcançar o tempo certo da comédia. E como conseguir isso? Para Alec, mais uma vez, o segredo está na atenção à confecção da estrutura. Larry David, não só por sua capacidade inventiva, mas também pelo cuidadoso trabalho de construção do roteiro e montagem de sua estrutura, pode ser considerado o mais importante nome do seriado televisivo de todos os tempos. Curb Your Enthusiasm reinventa a linguagem e a estética do sitcom e serve de modelo inspirador para novas possibilidades para as séries televisivas.

1 Interviews: Robert B. Weide & Curb Your Enthusiasm. Whyaduck Productions, disponível em http://www.duckprods.com/projects/curb/cye-sweetzerinterview.html 2 Interview with “Curb Your Enthusiasm” and “Seinfeld” Writer Alec Berg. Austin Film Festival, disponível em http://www.austinfilmfestival.com/news/interview-with-curb-your-enthusiasm-and-seinfeld-writer-alec-berg/


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Análises

As famílias modernas da televisão por Daniel Ribas

de Family Ties a Modern Family


As Famílias Modernas da Televisão Daniel Ribas

Um dos temas dramatúrgicos principais no desenvolvimento narrativo é a família. Veja-se, por exemplo, que, desde a tragédia grega clássica até à telenovela contemporânea, a família é o centro narrativo nuclear onde se concentram os principais conflitos dramáticos. A televisão, como é óbvio, sempre incorporou a família como centro da sua prática de programação – uma estratégia para falar a todos, o catch all, que permita um desenvolvimento comercial e a venda de publicidade. As séries de televisão, como consequência, assumem, muitas vezes, a família como esse centro. Por exemplo, citemos os caso históricos de All in the Family/Uma Família às Direitas (1971-1978), e os Simpsons (1989-). Mas também outras séries, cujo focos narrativos se passam em ambientes profissionais (séries de médicos ou policiais, etc.), desenvolvem linhas narrativas paralelas ligadas à família. A partir desta ideia do núcleo familiar, pretendemos ver, de seguida, como é que duas séries de televisão, do modelo sitcom, separadas por mais de duas décadas, se desenvolvem à volta da família. É óbvio que não podemos deixar de notar que ambas são produções norte-americanas e, por isso, elas vão espelhar as transformações da sociedade americana, embora muitos dos temas que são abordados tenham um alcance global, até por que fazem parte de um momento abrangente da modernidade tardia e da globalização. Aliás, o sinal mais evidente de que as duas séries falam para além do seu país de produção é o facto de terem sido (ou ainda serem) um sucesso em Portugal. Family Ties/Quem Sai aos Seus (1982-1989, sete temporadas) é uma série central da América dos anos 80. É protagonizada por uma família de classe média que assume as contradições entre os pais – ambos da geração de 60 – e os filhos, que seguem as tendências sociais da América conservadora, partidária de um capitalismo liberal. É interessante, sobretudo, a caracterização de Alex P. Keaton – o filho, protagonizado por Michael J. Fox – um pós-adolescente com um brilhante percurso académico, acérrimo defensor do Partido Republicano e da economia do mercado livre. Ele surge em contradição social com os pais – Steve e Elyse –, cuja vida, desde a juventude, passa pela esquerda libertária. Ambos representam um centro histórico da luta contra a guerra do Vietname, mas que se propaga pelas correntes principais de um movimento amplo: a ecologia, a luta contra a guerra e contra o armamento, a igualdade de género ou os direitos sociais. Mas não é só Alex que contradiz alguns dos valores dos pais: Mallory, a filha do meio, é doida por moda e rapazes, a antítese da preocupação intelectual de Steve e Elyse. Enfim, este modelo de organização familiar aflora em todos os episódios, em que assuntos mais fortes são colocados na narrativa – por exemplo: a primeira vez de Alex; uma saída à noite de Mallory com um rapaz; ou um assalto a casa que os faz ponderar comprar uma arma para “autodefesa”. Até os avós surgem na narrativa, ampliando o contraste daquele casal hippie e a América conservadora dos anos 80. Esse contexto social é determinante para entender a série: recorde-se que Ronald Reagan é o Presidente durante quase toda a década (81-89), promovendo uma dura política liberal, de completa desregulação do mercado. Modern Family/Uma Família Muito Moderna (2009-; inicia em 2013 a quinta temporada) é, no nosso entender, uma série que responde a uma América do século XXI. Estruturada em três núcleos familiares, ela desenvolve-se a partir das novas mentalidades abertas na última década. Dois desses núcleos são, por isso, novas formas de família (ou, podemos dizer, velhas formas de família,

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agora socialmente aceites): (1) o patriarca, Jay Prichett, divorciado, volta a casar com uma mulher muito mais nova que ele, Gloria, colombiana com curvas perfeitas, divorciada e já mãe de um filho, Manny; (2) um dos filhos de Jay é Mitchell, que tem um casamento gay com Cameron com quem adota uma criança vietnamita, Lily. O terceiro núcleo é bastante mais tradicional: Claire – filha de Jay – é casada com Phil e ambos têm três filhos: Haley, Alex e Luke. Em termos narrativos, cada episódio tem estruturas mais complexas, misturando sempre as três famílias, mas sempre trazendo uma história principal para primeiro plano. Não se pode dizer que haja um núcleo central, até porque uma das estratégias da série é utilizar equilibradamente todas estas personagens. Nesse sentido, cada episódio tem um tema que depois é tratado pelas diferentes famílias, revelando a partilha moral dos mesmos valores. Como típicas sitcom, as duas séries baseiam-se numa característica distintiva das famílias: o espaço da casa. Claro que, neste aspeto, devem distinguir-se a estrutura de ambas: Family Ties é a típica sitcom filmada em direto para uma audiência (o modelo do teatro filmado) – o que reduz a margem de manobra na escolha dos locais – enquanto Modern Family utiliza muito mais espaços – desde logo, a casa única de Family Ties é desdobrada em três em Modern Family, uma para cada uma das famílias. Mas o espaço da casa, mantém-se, nas duas séries, como um espaço refúgio, que acolhe as frustrações das personagens e onde se dão os encontros mais sentimentais e regeneradores entre os membros da família. A organização narrativa de ambas é, também ela, muito semelhante: cada episódio estrutura-se à volta de um problema principal dedicado a algum membro das famílias. Essa linha diegética principal deve acolher um tema ou um problema premente das famílias contemporâneas que deve ser resolvido, satisfatoriamente, no final de cada episódio. Esta linha narrativa é auxiliada por linhas narrativas menores – normalmente apenas uma em Family Ties, e duas em Modern Family –, que pretende ser um escape cómico da linha principal. Muitas vezes, são problemas menores do dia-a-dia. O naturalismo quotidiano é uma razão imediata de identificação dos espectadores com as personagens. Parte importante destas estruturas narrativas está no final de cada episódio. Como séries familiares, há uma necessidade de convocar um certa normatividade, um regresso à “razão” de uma das personagens. Esse regresso é feito em cada uma das séries com duas estratégias diferentes: em Family Ties, essa cena final costuma juntar dois membros da família, que dialogam para resolver o problema (que pode ser entre eles; ou entre um deles com um agente externo), numa conversa afetiva e reconfortante; em Modern Family, muitas vezes o episódio é resolvido com uma voz-off de um dos membros da família, que resume a moralidade do episódio e reforça a importância da família como último recurso na defesa contras os problemas externos que a sociedade coloca. Aliás, como já referimos, o final deve reforçar os valores familiares que são comuns a todos estes núcleos. Em todo o caso, é suposto as duas séries terminarem com uma piada, depois de resolvido o problema. Tudo está bem quando acaba bem.


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Sim, na verdade, estas duas séries – exibidas em prime-time – não desenvolvem crises dramáticas muito profundas – apesar de utilizaram temas polémicos – e estas famílias parecem estar imunes à desagregação. Se essa possível decomposição é visível no panorama social que as séries também exibem, ela não acontece nestas famílias-modelo. (É curioso, a este propósito, um episódio de Modern Family, em que os três filhos estão aborrecidos porque apanharam os pais a fazer sexo, mas acabam por olhar à sua volta e só encontrar famílias de pais separados, coisa que, percebem eles, não acontece na sua família.) Por isso mesmo, há uma certa estabilidade social destas famílias: elas são de classe média, média-alta, sem quaisquer problemas financeiros e o seu dia-a-dia parece fácil (há uma referência solitária, num dos episódio de Modern Family, à crise financeira do mercado imobiliário, que parece afetar Phil, ele próprio um agente imobiliário). Aliás, é muito raro encontrar referências explícitas ao mundo do trabalho (embora elas sejam sinalizadas várias vezes em ambas as séries). No entanto, e isso é bastante curioso de notar, estas duas séries não evitam mostrar temas potencialmente problemáticos: num dos episódios de Family Ties, Mallory é assediada por um tio, muito mais velho; ou, noutro episódio, Alex tem a sua primeira experiência sexual; em Modern Family, um amigo de Luke, filho mais novo, já com alguma idade, acaba por morrer e o miúdo tem que enfrentar a sua morte. É no aspeto de famílias-modelo que se pode discutir, nestas séries, uma certa ambivalência da “modernidade”. Isto é, ambas parecem retratar uma normalidade da diversidade de formas familiares (pais hippies com filhos conservadores; pais gay que adotam; casamentos com grandes diferenças de idade, etc.). Em certo sentido, é inegável que as duas séries propõem diversos modelos das estruturas familiares. Aliás, se pensarmos num registo cruzado de culturas, é quase revolucionário – tanto no contexto português, como no contexto de certas geografias americanas – ver um casal gay que adota e que tem uma vida de normalidade. Esse facto, por si só, é sintomático da tal “modernidade” de costumes que estas séries evocam. Ainda assim, neste caso, é necessário talvez relativizar essa modernidade em Family Ties, que reforça, a todo o tempo, a estrutura tradicional de família. Em todo o caso, parte do núcleo narrativo da série pretende passar uma ideia de educação pela liberdade de pensamento, algo muito caro à América liberal. O que, por outro lado, reforça um mito americano: a família tem laços muito mais fortes que quaisquer divergências políticas. (Este aspeto pode até ser visto em contraste com uma série como All in the Family, cujas divergências geravam problemas familiares muito mais sérios). Esta normalidade de formas diversas de família é, no entanto, desafiada em certos aspetos. Daí dizermos que estas séries têm uma “modernidade” ambivalente. Isso acontece, sobretudo, através dos estereótipos, quase sempre relacionados com as mulheres: nas duas séries, há sempre a figura da rapariguinha que só liga aos namorados e ao seu aspeto físico (Mallory e Halley; curiosamente, como sinal dos tempos, Halley aparece sempre muito mais “despida” que Mallory; e, outra curiosidade, ambas têm namorados pouco inteligentes que os pais não aprovam). Mas, mais grave, é a posição da

mulher em Modern Family: tanto Gloria como Claire são domésticas, não trabalhando e vivendo à custa do salário do marido. Esta subalternização social reforça ainda um estereótipo de género. Também a relação gay tem alguma ambivalência, sobretudo pelos sinais exteriores de afeto: é mais fácil ver um beijo de Halley ao seu namorado, que ver alguma sinal de carinho entre Mitchell e Cameron. Ainda as referências culturais ao passado de Gloria – numa aldeia colombiana – não parecem conseguir ultrapassar a caricatura. Para além disso, é forçoso falarmos, finalmente, da complexidade narrativa e técnica que separa as duas séries: a linearidade de Family Ties contrasta com a sofisticação narrativa de Modern Family. Se, na primeira, qualquer flashback é necessariamente montado a partir de estratégias clássicas (música em eco, imagens montadas através de dissolve); na segunda, é comum vermos alterações sucessivas do tempo e do espaço narrativo, para além da existência de um dispositivo narrativo que emula o documentário – as personagens falam para a câmara, como se estivessem numa entrevista. Este último pormenor é também interessante e um sinal dos tempos: vinda da tradição dos reality-show e popularizado por séries como The Office, estes dispositivos são aceites com naturalidade e fazem parte de uma nova cultura visual. Permitem o comentário imediato das personagens (algo que já acontecia, por exemplo, no teatro, com a utilização dos apartes). Em certo sentido, Family Ties é tradicional, baseando-se, sobretudo, na utilização das talking heads e dos diálogos abundantes, enquanto Modern Family tem uma estrutura de escrita dramática mais visual e sugerindo, constantemente, ligações narrativas que são disruptivas do tempo e do espaço. Em resumo, tentamos mostrar como as duas séries usam a família para traçar uma certa normatividade do funcionamento da sociedade. Há sempre um reforço do papel das relações familiares enquanto regeneradoras dos problemas que cada uma das personagens enfrenta. Em épocas distintas, as duas séries também são filhas do seu tempo, tentando enfrentar a sua “modernidade” e exibindo novas formas de relação familiar. Ainda assim, por vezes esta modernidade é ambivalente, porque reforça certos papéis de género e esconde certos aspetos potencialmente ofensivos para o espectador médio. Prefere uma certa caricatura à dissensão social. Nesse sentido, tanto Family Ties como Modern Family são séries que refletem as contradições políticas e sociais da sociedade em que estão inseridas, introduzindo essas diferenças no núcleo familiar. Por isso, estas transformações sociais são mitigadas pela harmonia e pela afetividade que rodeia uma família. Essas transformações podem, assim, ser percebidas como mais aceitáveis.


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Análises

DA TELEVISÃO AO CINEMA DE ATRAÇÕES COM AÇúCAR por Paulo Cunha


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Da Televisão ao Cinema de Atrações, com Açúcar Paulo Cunha

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Morangos com Açúcar – O Filme (2012, Hugo de Sousa) é uma espécie de epílogo da série/telenovela infanto-juvenil homónima que foi exibida na TVI entre 2003 e 2012, totalizando 9 temporadas e mais de 2 mil episódios. Para além dos atores mais populares das últimas temporadas, que protagonizam a trama principal, o filme conta com a figuração especial de alguns dos atores que revivem as personagens mais carismáticas das diversas temporadas da série. Na prática, Morangos com Açúcar pode ser classificado de diferentes formas: como um filme musical – em 90 minutos inclui 9 momentos musicais que totalizam cerca de 30 minutos; um filme de adolescentes (teen movie) – a maioria esmagadora do elenco são adolescentes ou jovens adultos que passam por adolescentes e o público-alvo são precisamente os adolescentes; ou um telefilme equipa técnica e atores apenas com experiência em televisão e uso de uma linguagem televisiva. Seja qual for, trata-se de um filme de género, com códigos e normas de leitura muito formatadas, com tudo o que isso significa de virtudes ou de defeitos. Com uma produção low-cost – orçamento de 7.800 Euros, um tempo de rodagem de apenas 2 semanas (19 de Maio a 2 de Junho de 2012) e a mesma equipa e meios da versão televisiva –, o objetivo do filme não parece ser mais do que apenas encerrar o projeto, ainda que se fale numa eventual sequela, e permitir um encaixe financeiro. No primeiro dia de estreia, de acordo com os dados do ICA, o filme foi visto por cerca de 36 mil espectadores, um recorde no cinema português. No total, Morangos com Açúcar – O Filme somou 238 mil espectadores e uma receita bruta de 1.233.020,50 Euros. A estratégia desmesuradamente comercial do filme ditou o tipo de produto final. À partida, o filme foi devidamente apetrechado com todo o tipo de números musicais que remetem para a “memória colectiva” dos fãs da série televisiva e de todos os spin off musicais que ela originou, tendo sido lançado também um CD com a banda sonora do filme. Por outro lado, muitas cenas apenas se justificam por uma lógica comercial do product placement. Estas duas características comprometem demasiado qualquer ideia de narrativa verosímil ou naturalista para o filme. A fugaz presença ou mera figuração de inúmeras personagens das diversas temporadas da série televisiva com algumas das suas marcas características apenas são compreensíveis para quem a viu. O mesmo acontece com as bandas e a maioria das músicas interpretadas durante o filme, que remetem o espectador automaticamente para situações concretas no contexto narrativo da série televisiva. A trama é tão pobre que nem sequer há espaço para a tradicional figura do “vilão”: o mal que aflige os protagonistas não passa de equívocos mal interpretados ou infelizes coincidências.

Narrativamente, o filme vive essencialmente do enredo televisivo. Tudo acontece em poucos dias, num campo de férias no Alentejo onde se realizará um concurso de bandas musicais. Entre os jovens, encontram-se dois casais que atravessam diferentes “crises conjugais”: os mais velhos, já casados, precisam de espaço, e os mais jovens são surpreendidos pelo surgimento involuntário de uma terceira pessoa na relação. Enquanto se preparam para participar no concurso musical, todos os equívocos se resolvem num final apoteótico. Há, de facto, uma subalternização da narrativa aos momentos musicais, com a prioridade da montagem a pender para a lógica do videoclip. Aparte os momentos musicais e os momentos de product placement, o fio narrativo pretende apenas preencher buracos entre os momentos mais aguardados pelos fãs. E é precisamente neste contexto, para compreender esta estrutura, que me parece necessário recorrer à teoria do cinema de atrações. Conceptualizado pelo historiador norte-americano Tom Gunning em 1984, o cinema de atrações é um fenómeno que remonta para a história do cinema dos primórdios, quando o tipo de cinema dominante não era o narrativo. A prioridade da maioria das produções pré-Griffith (realizador de O Nascimento de uma Nação, 1915) não era a de contar histórias, mas sobretudo atrair a atenção do espectador numa experiência muito mais próxima do circo e das artes populares. Ao contrário do cinema narrativo, o cinema de atrações está mais preocupado em mostrar do que em contar, insistindo nos efeitos de espetáculo e na exploração de sensações fortes no espectador. No caso concreto de Morangos com Açúcar – O Filme, as características mais fortes do cinema narrativo – montagem invisível, contiguidade espacial, continuidade temporal, causalidade, construção psicológica das personagens, entre outros – são contrariadas pela necessidade exibicionista que exagera no uso das gruas (sobretudo nos momentos musicais), que tem um espaço cénico minimalista (o campo de férias) mas desconexo (a praia e a piscina parece apenas uma desculpa para mostrar corpos em fatos de banho) e que não apresenta uma lógica temporal consistente (muito condicionada pelas técnicas de iluminação artificial própria da produção televisiva), entre outras coisas. Em suma, Morangos com Açúcar – O Filme adopta esta estratégia de cinema de atrações porque essa é a linguagem dominante na televisão generalista da atualidade e na categoria de filme de género em que se enquadra. Quer seja ficção ou um mero talk show, a de construção audiovisual é a das atrações, que pretende manter o olhar do espectador “ocupado” por uma sucessão de imagens e sons sem qualquer necessidade narrativa.


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Análises

1,2,3… partida! por Mónica Santos


1,2,3...Partida! Mónica Santos

Na contagem crescente do sofá ou outro mobiliário confortável cresce a curiosidade. Os créditos iniciais ou genérico dão o mote para o que nos espera: assassinos em série e o seu jogo afiado de facas, donas de casa enlatadas, ciências desconhecidas e castelos de brincar às guerras. O interesse gerado à volta das séries de televisão fez revigorar também a plasticidade dos genéricos das mesmas. Longe do aspecto informativo que se via nos primórdios da televisão, as séries hoje em dia, por aproximação ao cinema, também dão primazia à criatividade daqueles segundos em antecedem a narrativa. Esses momentos que por vezes nem a um minuto chegam, tanto antecedem o ambiente da série como criam um microcosmos em que define o conceito da mesma. O genérico prepara-nos para o que aí vem, é um ritual de concentração para um mundo novo ou conhecido que queremos entrar através do televisor. Quando uma série dura várias temporadas, como sobreviver ao marasmo da repetição semanal do genérico? Algumas séries conseguiram dar uma nova energia à partida para a série ao verem o genérico como algo criativo e parte integrante da evolução da narrativa. Fringe é um caso paradigmático da força de um genérico. A série é composta de cinco temporadas e liga métodos tradicionais de investigação ao estudo de ciências mais marginais para explicar fenómenos incompreensíveis que decorrem no mundo tal como o conhecemos. No entanto, além deste mundo existem outros mundos, outras linhas de tempo, flashbacks e flashforwards dentro das mesmas. Confusos? O genérico ajuda. Feito por Andrew Kramer, os créditos iniciais mudam não somente de acordo com as diferentes temporadas, mas também dependendo do conteúdo de cada episódio. Assim, a tonalidade azul é utilizada quando os protagonistas estão no universo primário e o uso de um look retro é utilizado quando o episódio se centra na sua totalidade num flashback. Aqui mudam os tipos de letra, maneira de animar, as ciências marginais enumeradas no genérico e mesmo a banda sonora toma roupagens mais electrónicas. O genérico em tom vermelho é utilizado quando a narrativa está no universo paralelo e, consequentemente, quando o genérico tem ambos os tons (azul e vermelho), o episódio vai decorrer entre os dois universos: o primário e o paralelo. O de tom cinza aparece somente em um episódio e centra-se no futuro também ele cinzento e apocalíptico. Além das ciências marginais, este genérico introduz também conceitos como a “esperança” e “água”. O genérico âmbar refere-se à linha de tempo alternativa e, finalmente, o genérico de tons metalizados da quinta e última temporada foge à estética anterior ao colocar indivíduos como que em campos de concentração. Palavras como “livre arbítrio” e “liberdade” são enfatizadas, criando uma ligação para a narrativa em que os humanos são regidos por uma elite despótica chamada de “observadores”.

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Esta ligação entre a narrativa e o genérico faz com que este último seja permeável e mutável, permitindo uma constante curiosidade do espectador ao mesmo tempo que o informa quando os enredos são mais complexos. Além dos genéricos, Fringe utiliza separadores de maneira singular ao colocar como que enigmas visuais de alguns segundos: em fundo preto, um sapo em cuja textura de pele tem a letra “fi” grega, uma mão com seis dedos ou fumo que na verdade mostra a cara de alguém a gritar. Todos estes elementos juntos, acrescentando a tipografia integrada na imagem real, estendem o carácter também misterioso do genérico para dentro da série. Outra série que aposta na mudança é The Simpsons/Os Simpsons de Matt Groening. Esta mítica série cujo genérico é envolto pela música do Danny Elfman, mostra cada um dos elementos da família Simpson até chegar ao sofá de casa. Este percurso tem dois momentos mutáveis de episódio para episódio: a frase que Bart escreve no quadro e o momento final em que todos se sentam no sofá. Além destes dois momentos, The Simpsons também tem episódios temáticos como o Dia das Bruxas em que tanto a música como o genérico desta é construído à volta desta estética própria. Com a mudança para o HD mudaram também algumas características do genérico, mas estas duas continuaram mutavelmente imutáveis. Em Game of Thrones/A Guerra dos Tronos, feito pelo estúdio Elastic, o genérico revela a complexidade de reinos e famílias da narrativa, onde todos se interligam para tomar o trono. Assim, o ponto de partida da série é a geografia do terreno. Através do ângulo em ponto de vista, as lentes ajudam-nos a percorrer a espacialidade de todos os reinos, em que castelos surgem como pequeno brinquedos num jogo de guerras entre famílias. Regada a música épica, estas peças movem-se com um selo artesanal que está também presente na série. A geografia muda consoante o foco do episódio, pelo que o genérico transforma-se para dar espaço a outros reinos. Entre as duas temporadas já exibidas, há também mais modificações: a ordem dos personagens muda com o foco também da narrativa a transitar de uma temporada para outra.


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Algumas séries conseguiram dar uma nova energia à partida para a série ao verem o genérico como algo criativo e parte integrante da evolução da narrativa.

Outra série que apostou na mutabilidade do genérico foi The Wire/A Escuta, cujas cinco temporadas têm tanto um genérico diferente como uma versão diferente da música “Way down in the hole” de Tom Waits. Apesar de alguns planos continuarem entre temporadas, em cada uma delas o genérico converge para os temas presentes da narrativa: a primeira temporada com o tráfico de droga, a segunda com corrupção da estrutura marítima de Baltimore, a terceira enfatiza a política, a quarta o sistema escolar e, a última, os media. Preocupados com o realismo, The Wire oferece bastantes planos pormenor no genérico, apenas recorrendo à edição e não à animação como os exemplos anteriores. Sem dar ênfase aos atores da série, The Wire foca-se nas temáticas, dando o mote para a temporada. Além destes genéricos alteráveis, existem outros que pelo conceito forte que apresentam, tornam-se eles próprios de culto. O genérico de Dexter, do estúdio Digital Kitchen, leva-nos ao ritual de acordar da personagem principal. Quem não sabe que Dexter é um assassino em série contido dentro de um funcionário da polícia, pode adivinhar que algo estranho se passa com esta personagem pelas primeiras imagens que temos dele. Os planos pormenor de Dexter a mostrar o seu leque de facas afiadas para o pequeno-almoço, os cordões bem apertados dos seus sapatos, e a maneira ligeira e profissional como enrola o fio dental à volta dos seus dedos são mostrados bem de perto para não restarem dúvidas. Tudo nesta sequência nos faz ver que Dexter não é um indivíduo normal, mas alguém com uma envolvência negra. Isto é ajudado pela tipografia que mostra o nome da personagem principal cada vez mais envolta em sangue. No final, Dexter sai de casa e vemo-lo a anuir para o espectador, quebrando a quarta parede. Ele sabe que nós desconfiamos, porque vimos o seu ritual de assassino escondido no genérico. Tal como The Wire também a série True Blood/Sangue Fresco opta por não dar ênfase aos atores da série para se centrar na ambiência e temáticas mais abrangentes da narrativa. A panóplia de texturas do Sul norte-americano captada pelo estúdio Digital Kitchen revela o lado animalesco do ser humano, onde a religião está a par da sexualidade. O genérico não chega a revelar que a série tem como pano de fundo a dicotomia vampiros/humanos (a não ser um plano onde se lê “God hates fangs” - “Deus odeia presas/caninos”). Começando com a luz do dia, True Blood brinca com os tempos da edição e com diferentes velocidades para acabar com um baptismo à noite, símbolo de redenção final.

Quer seja pelo aspecto dinâmico quer pelo conceito forte e estático, os genéricos em televisão são prelúdios em que cada um se prepara para entrar em universos singulares. Partimos, assim, de um ponto comum que suscita curiosidade para depois as personagens nos pregarem partidas ao longo da temporada.

Ver também: Desperate Housewives/Donas de Casa Desesperadas, As Taras de Tara/United States of Tara, Carnivàle/A Feira da Magia, Rubicon, Six Feet Under/Sete Palmos de Terra.


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Testemunho

Perseguindo o anĂŁo chinĂŞs por Jorge Vaz Nande


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Perseguindo o Anão Chinês Jorge Vaz Nande

A tarefa, ao início, era assustadora. Como ser original com um formato que é tão conhecido?

Em 2012, a produtora Moonshot, onde trabalho, teve dois projetos a serem escritos, gravados e editados simultaneamente. Um é a série de ficção Sessão de Terapia, versão brasileira de In Treatment, ou, mais precisamente, da série israelita Be’tipul. Outro é o reality show sobre maquilhagem Desafio da Beleza. A ficção tinha 45 episódios. O reality tinha 13. 13. Como as séries da HBO ou da AMC. O Desafio adapta um formato que um produtor francês fizera para a China. Tivemos total liberdade na nossa versão, mas, depois de uma primeira entrega de espelhos, ou outlines, a reação foi pronta: eu e os meus colegas Edson Fukuda e Fabio Farias fôramos demasiado bem educados. Não com os concorrentes, com quem fizemos questão de ser mauzinhos, inventando provas, vantagens e castigos bem ruins, mas com o formato. Este programa, disse então o meu chefe, tem que ter algo inovador em todos os episódios. Isto não foi surpreendente. Na verdade, foi uma bênção. Hoje em dia o termo “reality” define mais um modelo de produção do que propriamente um compromisso absoluto com a realidade. A experiência Big Brother provou que as novelas da vida real têm um grande problema: são da vida real, e a vida real é chata. A longevidade do BBB aqui, no Brasil, afinal, explica-se pela forma como tem integrado com sucesso soluções de programas de variedades (concertos, visitas de celebridades, etc.). Para satisfazer o pedido do meu chefe, tínhamos que recorrer a técnicas de ficção. Séries como ER/Serviço de Urgência, House ou Mad Men acompanham dois universos temáticos diferentes, mas naturalmente próximos: a profissão das personagens e a sua vida pessoal, e a forma como as duas se relacionam. Da mesma forma, um reality de competição integra a participação de concorrentes num concurso, a sua vida pessoal enquanto aquele progride e, claro, a forma como as duas se relacionam. Se pensarmos na vida real como material narrativo, isto é, drama na pureza máxima da definição de David Mamet: “a missão do herói para ultrapassar aquelas coisas que o impedem de alcançar um objetivo específico e premente”. A tarefa, ao início, era assustadora. Como ser original com um formato que é tão conhecido? Mas a solução estava no próprio problema: toda a gente sabe como um reality de competição é e o que nele acontece e segundo quais regras. Então, estas podem ser esticadas e moldadas e, ainda assim, permanecerem compreensíveis para o público. Partimos então para os roteiros de pré, que são a bomba que se atira à água para pegar o que vem à tona e criar a história final. O 1.º episódio era original por si mesmo, porque era um casting enorme do qual sairiam os 12 selecionados. Deixamos o 2.º redondo, só para mostrar que sabemos fazer isto e não somos doidos nenhuns.

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No resto, pirámos. No episódio que decorre num teatro, pusemos as luzes a apagarem-se sobre o eliminado como se fosse um ator cujo espetáculo desiste dele. Incluímos mensagens vídeo secretas dos apresentadores. Acordamos os concorrentes de surpresa, a meio da noite, para maquilharem num fashion shoot ao nascer do sol no Rio de Janeiro. Incluímos uma sequência de sonho. Arquitetamos uma prova dentro de um táxi em split screen. Fizemos um episódio sobre noivas em formato de fábula Altmaniana sobre estas que, POR ACASO, são maquilhadas pelos nossos concorrentes. E assim por diante. Mas nada me deixou tão contente como o 4.º episódio. O brainstorming nesse dia estava já longo e o ar nas nossas cabeças saturara. Chegáramos àquele ponto do cansaço em que não apetece pensar mais. Mas era preciso dar a volta ao episódio. Nele, os maquilhadores tinham de rejuvenescer mulheres com idade mais avançada. Fiquei a matutar nisso. Tempo. Voltar atrás. Tempo. Voltar atrás. E o McKee saltou-me à lembrança. Essa seria a controlling idea do episódio: tempo voltando atrás. Gostaria que tivessem estado lá para verem a cara dos meus colegas quando eu disse “vamos contar esse episódio de trás para a frente”. Claro que não fizemos um simples rewind, mas montámos uma série de flashbacks e flashforwards, começando com o tom geral da avaliação final dos jurados, sem revelar a decisão, para depois partir para o início do dia dos concorrentes, e assim por diante. Sabíamos que o público entenderia: como disse antes, as regras do formato são conhecidas. Mas tivemos sempre um roteiro linear de reserva, e duas versões do episódio chegaram a ser editadas. Um dos editores jurou que, se a versão que idealizáramos passasse, ele correria nu em volta do estádio do Pacaembu. Ele não cumpriu a promessa, mas o episódio passou. No final, até alguns concorrentes chegaram a mandar-nos mensagens de felicitações no Facebook. Ainda assim, houve uma coisa que faltou no Desafio. Enquanto estávamos ainda na fase de soltar m**das para o ar, pensámos num anão chinês que em todos os episódios faria uma aparição. Foi a única ideia louca que não conseguimos encaixar, em grande parte porque não sabíamos onde arranjar um anão chinês em São Paulo. Mas vai haver sempre um outro reality no futuro, não?


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titulo artigo Autor

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para alĂŠm do tema


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Work in Progress

Começar a andar O convite para ser produtora da minissérie de documentários Andar com as Próprias Pernas surge no momento em que é aprovado o projeto de realização, num esforço conjunto entre a Escola das Artes da Universidade Católica – Porto (Portugal) e a Universidade Internacional de Andaluzia (Espanha), tendo também participado no projeto a Fundação Álvares Penteado (Brasil) e a Universidade Privada do Norte (Peru). É o realizador Marco Aurélio Fernández que inicia o desenvolvimento do projeto e cria a parceria entre as duas instituições. É um projeto de investigação, pelo que faz sentido que seja desenvolvido no meio universitário. Esta coprodução tinha em vista a exibição de oito documentários com vinte e cinco minutos cada na televisão pública, mais especificamente na RTP 2, que ocorreu, após um breve circuito de festivais internacionais, no fim do ano 2009 e início de 2010. Cada documentário retrata o esforço de jovens portugueses e estrangeiros no momento em que começam a assumir responsabilidades adultas. É agora o momento de refletir sobre a aplicação prática da teoria da criação da minissérie e frutos colhidos. por Marta Reis


Começar a Andar Marta Reis

Porquê aplicar estruturas literárias à vida real? A iniciativa de adaptar as narrativas literárias a histórias da vida real ocorreu quando confrontados com a proposta de Jordi Bolló e Xavier Pérez (1997). A sua ideia é que há 13 narrativas em que todas as histórias se baseiam, sendo que mudam apenas as personagens: ou seja, os argumentos são universais. Esta minissérie apropria-se dessas estruturas universais de argumentos de ficção para contar as histórias de personagens da vida real. Não são usados elementos fictícios, apenas as estruturas de argumento dessas obras literárias capitais. Ou seja, o modelo narrativo é evocado para atualizar o drama diário, daí a necessidade de incluir a realidade dos países coprodutores. Mas o que é mais interessante é a intemporalidade antropológica, não a realidade em si. Iniciámos a construção de um pré-guião documental para cada documentário com base em argumentos universais, como A Argonáutica, de Apolónio de Rodes; Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare, entre outros. A título demonstrativo vou analisar a estrutura do episódio “Andar a construir ideias: Stitou”. Esta estrutura narrativa baseiase na tragédia grega Prometeu Agrilhoado, atribuída a Ésquilo, datada entre 452 e 459 a.C. aproximadamente. É um mito grego bastante representativo na leitura do passado e do presente histórico, relacionando-se com a condição humana e a criação da cultura. Os créditos de abertura mostram a viagem da equipa de produção desde o Porto até, neste caso, Tânger, em Marrocos, informando-nos não só do título do documentário: “Andar a construir ideias” mas também do nome do protagonista: “Stitou”; e da base argumental: “Prometeu Acorrentado”. Cada protagonista é apresentado na sua casa/trabalho com a sua família, amigos e colegas, abrindo-nos o seu mundo e dando respostas aos seus obstáculos diários e àqueles que derivam do projeto documental em questão. A apresentação de Stitou é feita no seu local de trabalho, a biblioteca da Universidade Abdelmalek Essaâdi, em Tânger, um dos seus locais favoritos por ser calmo e silencioso. Em seguida é-nos apresentado o professor Mohamed, que ensina as crianças na Medina de Tânger. O professor conta-nos a história do profeta Maomé. Metaforicamente, Stitou inicia uma caminhada de ascensão. Na sequência seguinte ficamos a conhecer o programa de rádio de filosofia Sufi, o programa preferido de Stitou. Em seguida, Stitou dá-nos a conhecer a sua filosofia do Silêncio na Gruta de Hércules. No fim do documentário Stitou sobe uma montanha de areia, continuando a sua ascensão em direção ao verdadeiro conhecimento. O modelo de produção cinematográfica documental Um dos motes para o início do nosso trabalho foi o filme Être et avoir (2002), de Nicolas Philibert. Cito o realizador, numa entrevista à revista Visão (BALDAQUE, Leonor. Visão: 22 de Janeiro de 2004. p. 13-15.): “Je ne fais pas des films ‘sur’ mais ‘avec’”. Este método de trabalho chamou a nossa atenção, sendo que a partir daqui definimos a estrutura de cada episódio e o nosso modus operandi com intenção de desenvolver o documentário em conjunto com os protagonistas.

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Outra grande influência para o nosso trabalho foi o realizador brasileiro Eduardo Coutinho. Segundo Coutinho (MATTOS, 2003): - A vida diária pura não é cinematograficamente interessante, pelo que devem ser procurados os momentos especiais desencadeados pela câmara; - O filme documentário esconde o autor naquilo que vem do outro (protagonista); - Quanto menor o espaço de ação mais profunda a investigação; - O filme não é sobre os protagonistas, mas sobre o reencontro de uma equipa audiovisual e um protagonista; - Utilizar uma estética de filmagem que não inclui a imagem/ som do/a realizador/a e a sua equipa intencionalmente, mas, quando esta acontece acidentalmente, mostrando interatividade, denunciando as condições do encontro e o estilo de conversa. Nesta sequência e após a longa análise conjunta de diversos filmes documentais e de ficção chegamos à conclusão que iríamos seguir o modo de produção participativo, com recurso à entrevista e permitindo, quando devidamente justificada, a “participação” do realizador e da sua equipa: “[...] O cineasta despe o manto do comentário em voz-over, afasta-se da meditação poética, desce do lugar onde pousou a mosquinha da parede e torna-se um ator social (quase) como qualquer outro. (Quase como qualquer outro porque o cineasta guarda para si a câmara e, com ela, um certo nível de poder e controle potenciais sobre os acontecimentos)”. (NICHOLS, 2005, p.154). Em suma, o tema central desta minissérie é a juventude das sociedades modernas e os seus pontos de vista sobre as suas vidas privadas. Cada episódio apresenta um protagonista num momento de crise, isto é, um momento dramaticamente forte. A equipa desenvolveu um pré-guião em que, depois de analisar o quotidiano e aspirações do protagonista, o colocamos a desempenhar um papel: a sua vida, naquele momento, em frente da câmara. Considero que retratamos um pequeno grupo de pessoas, mas muito representativo do seu tempo, e espero que tenhamos inspirado outras pessoas a trabalhar com base numa pesquisa mais exaustiva do que o mero registo mecânico. O processo participativo desenvolvido por esta equipa foi o fator essencial para obter a originalidade e estética inovadora da minissérie e a apropriação dos argumentos narrativos universais foi um mote excelente para encontrar a linha condutora da narrativa do momento em que a equipa esteve na vida de cada um dos protagonistas. Este trabalho inspirou-me, tanto a nível pessoal como profissionalmente, para tentar sempre alcançar mais e olhar para todas as respostas possíveis, mesmo quando a resposta certa parece estar em frente aos nossos olhos.


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consultório jurídico A escrita de um argumento tem o mesmo valor, do ponto de vista dos direitos de propriedade intelectual, em qualquer parte do mundo? Uma obra audiovisual, como muitas outras formas de expressão artística, é um fenómeno colaborativo. A par do produtor, que é o empresário da obra, aquele que organiza e assegura os meios necessários para a sua concretização e assume a responsabilidade geral financeira, técnica e administrativa, existe toda uma equipa criativa, liderada pelo realizador, no sentido de que é este, embora em coordenação com o produtor, quem assume a responsabilidade artística global da obra audiovisual. Esta é, assim, o resultado único e singular da conjugação do trabalho de vários autores orientados pela mesma visão criativa. Existe uma infinidade de contribuições criativas na produção de uma obra audiovisual contemporânea. A legislação portuguesa (Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos - adiante, CDADC) refere-se expressamente ao realizador e aos autores do argumento, adaptado ou não, dos diálogos (sendo pessoa diferente) e aos compositores. Mas o espectro das contribuições criativas alarga-se aos maquilhadores, aos figurinistas, aos coreógrafos, aos desenhadores dos storyboards, aos diretores artísticos e de fotografia, aos atores… e a lista continua! Os membros da equipa criativa de uma obra audiovisual são titulares de direitos de propriedade intelectual, pese embora a natureza destes direitos possa variar em função do seu titular e, não menos importante, do país em que se inserem. Mas não só: a forma como se processa a sua entrada no processo criativo, varia também nos diferentes países. Veja-se o exemplo do autor do texto de uma obra audiovisual: nos EUA, no Reino Unido ou na Irlanda (sistema anglosaxónico de “copyright”) a ideia e a iniciativa da obra nasce, na maioria das vezes, do próprio produtor, pelo que o argumentista e até o realizador acabam por ser meros contratados daquele. Em França, Itália e noutros países continentais (sistemas do “droit d’auteur”/”direito de autor”) o mais comum é que seja o realizador a escrever o seu próprio argumento ou a fazê-lo em colaboração com um argumentista, os quais procuram depois um produtor que lhes angarie o financiamento necessário para a produção do filme. Na Índia e até muito recentemente, o argumento não tinha o mesmo estatuto que nos EUA ou na Europa: os atores e a promessa de coreografias espetaculares habilmente dirigidas por artistas experientes eram tidos como bem mais importantes. Os projetos eram ou são frequentemente vendidos pelo realizador a estrelas de cinema, que se concentram essencialmente em mimetizar cada cena, sem que haja muitas vezes sequer um guião escrito.

Argumentistas são, assim, autores. A maioria dos sistemas nacionais de propriedade intelectual, como o português, reconhece o texto como uma obra de autor, por direito próprio. Consequentemente, o contrato que um produtor assine com o autor do texto tem, nestes casos, uma dupla faceta: a de um contrato de prestação de serviços ou de trabalho, consoante o caso, e simultaneamente, a de um contrato de autorização (mera licença, sem alienação da propriedade) ou de transmissão (com alineação da propriedade) de direitos de autor, em contrapartida de uma determinada remuneração. O estatuto legal do contrato assinado com o autor do texto varia, porém, de acordo com o sistema jurídico em que se insere. Nos EUA, a não ser que o texto seja escrito e espontaneamente apresentado por um argumentista (“spec script”), presume-se (salvo acordo em contrário) que o produtor do filme é o titular exclusivo dos direitos de autor sobre o texto por ele encomendado. Nesta perspetiva (doutrina “work-for-hire”), o argumentista funciona como um mero prestador de serviços, ou de trabalho, caso se encontre em contexto de trabalho dependente. Não detém, por isso, quaisquer direitos de propriedade intelectual sobre o seu texto. Apesar disso, é verdade que os argumentistas americanos mais influentes dispõem de maior poder negocial, para, junto dos produtores, conseguirem reservar para si determinados direitos sobre o texto (por exemplo, o direito a editar um livro a partir daquele, o de o adaptar para rádio ou teatro ou até o de o poder readquirir caso o produtor não inicie, dentro de determinado prazo, a produção do filme). No Reino Unido, o autor de qualquer argumento, seja este encomendado ou não, é também o titular dos direitos sobre o mesmo, mas já não sobre a obra audiovisual final. O contrato assinado pelo produtor com o argumentista é, assim e simultaneamente, um contrato de prestação de serviços ou de trabalho, consoante o caso, e um contrato de autorização ou transmissão de direitos de autor, no qual os direitos a licenciar ou a transmitir ao produtor se encontram expressa e devidamente discriminados. Nos países europeus do “droit d’auteur” o autor do argumento, seja ele original ou adaptado, tem não só uma presunção de titularidade dos direitos sobre o texto, em si mesmo, como é igualmente considerado coautor do filme ou da obra audiovisual final. Como já se referiu, é aliás frequente que o realizador seja simultaneamente autor único do texto. O CDADC português, concretamente, estabelece que, em relação a uma obra cinematográfica ou audiovisual, são titulares de direitos de autor, em coautoria, o realizador e os autores do argumento, adaptado ou não, dos diálogos (sendo pessoa dife-


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rente) e da banda musical, presumindo-se de valor igual os respetivos direitos, salvo acordo escrito em contrário assinado entre eles. Para além disso, é a própria lei que reconhece ao autor/ coautores o direito a resolver o contrato assinado com o produtor caso, num prazo de três anos, este não conclua a produção ou não inicie a exploração acordada, não dependendo, assim, ao contrário do que acontece nos EUA, da eventual influência e poder negocial conquistados pelo argumentista. Em países como o nosso, a tradução financeira da autoria (vertente patrimonial do direito de autor) é a de que qualquer pagamento feito pelo produtor aos coautores, antes e durante a produção de uma obra audiovisual, constitua um adiantamento da percentagem que a cada um cabe, em proporção, nos resultados da exploração comercial da obra nos vários meios (cinema, vídeo, festivais, revistas estrangeiras, televisão paga e em canal aberto, pay-per-view TV, vídeo-on-demand, streaming, etc). O reconhecimento ao argumentista da autoria sobre o texto e de coautoria sobre a obra audiovisual final implica ainda reconhecer-lhe a titularidade de um conjunto de direitos morais, os quais lhe possibilitam tanto proteger a integridade e a genuinidade do seu trabalho como fazer valer a sua paternidade. Os primeiros permitem-lhe opor-se legalmente a quaisquer alterações ou modificações introduzidas ao texto sem o seu prévio consentimento escrito, em moldes que possam comprometer a sua estrutura ou sentido, tornando-o irreconhecível, ou desvirtuar o seu espírito. A paternidade refere-se ao direito do mesmo ser creditado como autor ou coautor das obras em causa. É relevante que se considere a aplicabilidade prática dos direitos morais, aquando da negociação com o produtor de um contrato de autorização ou de transmissão de direitos, mas mais uma vez, o espaço de manobra varia em função do país ou do sistema jurídico: nos países do “droit d’auteur” os direitos morais são assimilados a direitos humanos, não podendo ser renunciados ou alienados. São, para além disso, imprescritíveis. O seu titular não poderá, por isso, renunciar a eles em favor do produtor ou de qualquer outra entidade. Os EUA perfilham uma orientação filosófica contrária: sempre que a lei os reconheça, é possível renunciar aos direitos morais, mediante declaração escrita do autor em que ele se obriga a não impedir, por qualquer forma, a exploração comercial da obra/texto por parte do produtor que tenha adquirido os correspondentes direitos de propriedade intelectual. O Reino Unido e a Irlanda apenas reconheceram a existência de direitos morais, nas respetivas legislações, no final dos anos 90, alinhando-se assim com as restantes legislações europeias de raiz continental. Estes dois países preveem, porém, a possibilidade de renúncia aos direitos morais, por parte do seu autor, o que constitui uma ferramenta essencial para os produtores – e seus financiadores - evitarem um sentimento de insegurança relativamente à possibilidade dos autores virem a colocar objeções, alegando violação de diretos morais, em situações de adaptação televisiva das obras (e subsequentes reedições). Não é que se possa, contudo, afirmar que a abordagem das legislações do

“droit d’auteur” sobre os direitos morais compromete o necessário clima de segurança, já que contratualmente será sempre possível circunscrever tais infrações aos casos em que a integridade e/ou genuinidade tenham sido manifestamente afetadas ou em que o nome dos autores ou coautores não constam sequer dos créditos finais do obra. A concluir todo o exposto e em sistemas jurídicos como o português, salienta-se a obrigatoriedade legal de contratualizar por escrito a relação que se estabelece entre produtores e autores de obras audiovisuais, estando excluída a possibilidade de “cedências” genéricas de direitos, para todo o lugar e todo o sempre. A validade de um contrato depende da previsão especificada das formas autorizadas ou transmitidas de divulgação, publicação e utilização das obras, bem como da discriminação das respetivas condições de tempo, lugar e preço. BIBLIOGRAFIA: WIPO – WIPO Publication No. 869(E) Rights, Camera, Act ion! – IP Rights and the Film-Making Process (www.wipo.int)

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livros de António-Pedro Vasconcelos Publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos

O FUTURO DA FICÇÃO por Jorge Palinhos


O Futuro da Ficção Jorge Palinhos

A mais recorrente dúvida ao ler o breve volume de António-Pedro Vasconcelos (APV) intitulada O Futuro da Ficção, é: o que é que o autor entende por “ficção”? Em nenhuma parte do livro é dada uma definição clara do que se entende como ficção, embora o autor escreva «O meu mundo é o da ficção. Sem as histórias, como as que contava Homero aos seus ouvintes e Sherazade ao rei Xariar, ou as que nos deixaram as peças de Shakespeare, as óperas de Mozart, os romances de Dickens ou os filmes de John Ford, sem a ilusão de que o mundo pode ser perfeito, de que há seres que vivem por nós um destino a que uma espécie de justiça imanente (…) o mundo não era suportável e a vida não fazia sentido.» (p. 7). Significa isto que a ficção são todos os enredos – sejam de teatro, literatura, música ou cinema – com um final positivo? E na passagem: «Foi sempre a ficção que moldou as civilizações e lhes garantiu prestígio e eternidade, como foi a sua ausência ou o seu declínio que as deixou no esquecimento ou as condenou à decadência; foi a capacidade de imaginação que os criadores tiveram para representar a realidade sob a forma de palavras, de sons ou de imagens.» (p. 8) Todavia, esta não é a definição de arte, e não de ficção? Confronte-se, por exemplo, com a definição que Aristóteles dá no capítulo IX da sua Poética: «O historiador e o poeta (…) diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular.» Por outras palavras, a ficção, para Aristóteles, é uma história imaginada que de alguma forma nos aproxima das verdades universais. Todavia, apesar de não esclarecer o que é a ficção, APV insiste na sua importância como sinal de uma sociedade pujante e com futuro. Para o comprovar, o livro embarca numa breve história da ficção no Ocidente que, afirma APV, «começa com a Bíblia» (p. 12). Mas será que a Bíblia pode ser entendida como ficção, no sentido de invenção imaginativa? Além de que, a Bíblia, como a entendemos hoje, foi fixada no século XVI, no concílio de Trento, data tardia para um início da história da ficção. Mesmo que o entendimento de APV da Bíblia se refira aos seus livros mais antigos – como o Pentateuco – tal remete-nos para o séc. VII a.C., o que é muito posterior ao épico sumério de Gilgamesh, que remonta ao século XIII a.C., ou mesmo ao texto original da Ilíada, do séc. VIII a.C. É evidente que a brevidade do livro não permite uma história demasiado pormenorizada da totalidade da história da ficção ocidental, mas não deixa de causar estranheza que APV ignore obras como o Satíricon, de Petrónio, – considerada a primeira obra literária deliberadamente ficcional e não-mitológica – e inclua, como autores de ficção, São Paulo, Santo Agostinho, Montaigne, Diego Velázquez, Donatello, Masaccio, entre muitos outros. Na realidade, ao longo de todo o livro, perpassa a ideia de que APV não distingue ficção de arte, e se restringe à arte canónica ocidental, ignorando formas de ficção como a narração oral, a literatura de cordel, a Banda Desenhada, etc. Do mesmo modo, APV, ao afirmar que a época medieval «foram séculos intermináveis em que se apagou a possibilidade de criar imagens e histórias divergentes» escolhe ignorar a arte narrativa dos vitrais, as farsas de teatro, as novelas cavaleirescas do ciclo arturiano e bretão, ou mesmo os fabliaux em verso, repletos de maridos enganados, mulheres adúlteras e frades borrachões. APV defende a inclusão da pintura como ficção, afirmando que «a pintura sempre foi, desde Masaccio ao apogeu do Renascimento, mais tarde com Goya e Delacroix e mesmo com os impressionis-

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tas, uma arte narrativa.» (p. 34-35). No entanto, é discutível se a narrativa é diferente de ficção – afinal, um documentário pode ser narrativo, mas não necessariamente ficcional –, e ambos os conceitos são diferentes de arte figurativa. E não ajuda que o exemplo que APV dá de pintura narrativa, A Jangada da Medusa, de Géricault, seja a narrativa de um naufrágio real e não de uma ficção. Apesar das fragilidades factuais e argumentativas do texto, APV apresenta uma série de postulados sobre o futuro da ficção ocidental que merecem reflexão. Segundo o autor, as últimas inovações da ficção ocidental foram o crescente protagonismo do Mal, a partir da época de Shakespeare, em que a crescente laicização da Europa tornou o conceito de Mal mais abstrato e difuso, e mais próximo da experiência humana, um maior assumir da sexualidade, a partir do século XIX, nomeadamente dos autores do naturalismo, embora seja de salientar que sempre houve histórias de cariz sexual – o que acontece nesta altura é que o sexo passa a fazer parte de narrativas sérias, e não apenas licenciosas. Em terceiro lugar, a descoberta do subconsciente, que veio alimentar a busca do irracional na ficção, e a abertura ao absurdo, ao inexplicável, ao experimental. E, por fim, a morte de Deus, o fim de um sentido teleológico para a vida e de uma grande narrativa unificadora das sociedades. Todavia, apesar de reconhecer estas mudanças, APV insiste num regresso ao passado, à necessidade de imitar as narrativas anteriores, o realismo na arte e a ficção como manifestação e motor de uma sociedade viva e dinâmica, contra aquilo que entende ser uma época de decadência social e ficcional: «se a Europa, por milagre, conseguir evitar o caos e se reencontrar com a sua cultura e os seus valores, por que forma se irão manifestar os novos ficcionistas? (…) Que meio, velho ou novo, irá permitir o aparecimento de novas ficções federadoras que nos sirvam de espelho e de exemplo, de reflexo e de reflexão, que nos ofereçam modelos de acção e se tornem referências no nosso imaginário...» (p. 56). Tal posição talvez explique o próprio percurso de cineasta de APV que, do entusiasmo pelo cinema da Nouvelle Vague tem vindo cada vez mais a virar-se para o cinema clássico português do Estado Novo. Mas perante esta aspiração de APV erguem-se vários obstáculos: a sociedade inclusiva em que vivemos lida mal com narrativas de luta do heroísmo e de bem contra o mal, que são claramente exclusivas do outro, além de que nas últimas décadas a arte passou a valorizar a expressividade individual em detrimento da mimésis. Mesmo a ideia de que a ficção é um motor de uma sociedade pujante, por mais sedutora que seja para os seus autores, tem demasiados exemplos contrários: Eurípides escreveu no declínio de Atenas e a sua obra genial, errática e inconformada reflete essa mesma crise, sem a conseguir resolver. Séneca e Petrónio viveram sob o reinado enlouquecido de Nero, no início da decadência do império romano; Velázques, Cervantes e Calderón de la Barca marcaram o declínio do império espanhol, tal como Camões assistiu à extinção do Portugal dos Descobrimentos. A incerteza e angústia de uma sociedade podem alimentar o imaginário artístico tanto quanto o auge do seu poder, e não é indiferente que o pós-Guerra do Vietname, que APV associa ao início da decadência americana, tenha visto aparecer cineastas como Martin Scorsese ou Francis Ford Coppola. Com o seu livro APV parece querer resolver o problema de uma sociedade em crise recuperando formas mais arcaicas de narrativa, mas talvez as novas formas de narrativa – mesmo que sejam caóticas, hesitantes, falhadas ou estéreis – são o reflexo da sociedade que as produz, e não podem mudar sem que essa sociedade mude primeiro. E, quem sabe, essas experiências sejam já a semente da sociedade vindoura.


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crítica

Rostos e Violência por Ana Barroso

“ To kill, like to die, is to seek an escape from being, to go where freedom and negation operate. Emmanuel Levinas Existence and Existents


Rostos e Violência Ana Barroso

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Afterschool, de António Campos, é, acima de tudo, um ensaio sobre a imagem na contemporaneidade. No mundo fechado da adolescência, a proliferação das imagens digitais (vídeo/computador/telemóvel) é inevitável e virtualiza as suas existências mundanas. As imagens das câmaras de vigilância na sua captação da ambiguidade imanente ao real (Bazin), introduzem uma polarização de sentidos e as imagens passam a revelar tanto quanto escondem. A vocação ontológica da imagem na reprodução do real é introduzida por uma frase da mãe das raparigas quando, a pretexto da realização de um vídeo de homenagem, diz a Robert: “I’m sorry you had to see that.” No final, o volte-face surpresa, o escondido a engolir o visível e o investimento do espectador confrontado com a imagem e a sua referencialidade imediata. É este paradoxo irresolúvel que teoriza a representação da violência no filme: ela está lá, não se mostra, não é dramatúrgica, mas, no fim, materializa-se, como se não fosse possível escapar-lhe. Na interrogação da imagem enquanto veículo da verdade, Campos serve-se das tecnologias disponíveis para expor os diferentes modos de ver. A morte violenta e inesperada das raparigas mais populares da escola, conhecidas também pela sua rebeldia e abuso de drogas, choca a comunidade escolar, até porque é filmada ao vivo pela câmara de vigilância, por uma câmara de telemóvel e pela câmara de vídeo do próprio Robert, nesse momento a captar imagens para um projeto que estava a realizar para a escola. Se o espectador ouve os gemidos e percebe as contorções das raparigas, apenas vê as costas de Robert que, perante o desespero delas, ajoelha-se e segura a cabeça no seu colo. A opção de filmar as costas de Robert (em vez da sua reação) alerta o espectador para uma leitura não-literal da imagem: não é o que se mostra que é relevante, mas o que não se mostra. Portanto, retomemos a questão do olhar: Afterschool é, na sua questionação da imagem pré-concebida, um filme sobre a ausência (do Rosto). O rosto visível e expressivo desfigura-se no desconhecido, no impenetrável. Este é, afinal, um rosto intocável (Levinas). E a questão adensa-se: podemos vislumbrar o profundo se pararmos o olhar na superfície? Na contemporaneidade que se faz cada vez mais através de imagens manipuladas e manipuladoras, frequentemente indistintas ao olho humano, há que descobrir a possibilidade de um mundo (Godard), mas um mundo humano, ou seja, para além da aparência. O filme de Campos entra despudoradamente no mundo escondido dos adolescentes para, ironicamente, mostrar que as múltiplas câmaras, planos e sequências não pretendem ser resoluções narrativas para as motivações obscuras das personagens, os seus comportamentos erráticos ou atos violentos. Quem é Robert? Apesar de ser a personagem principal, o filme nunca se concentra na sua subjetividade, até porque o seu rosto e corpo quase sempre inexpressivos, o discurso rarefeito, os gestos e movimentos distantes e insensíveis nunca permitem ao espectador perscrutar o interior da personagem. O que sabe, então, o espectador deste rapaz? Muito pouco, para além de ser um aficionado das imagens: como consumidor compulsivo e como criador. No início do filme assistimos a uma montagem de fragmentos de vídeos retirados do Youtube, tão disparatados quanto violentos: um bebé feliz a rir-se, um gato a tocar piano, a execução de Saddam Hussein, imagens de guerra, etc. Depois um clique para um site pornográfico, que mistura sexo e violência, com o homem a ameaçar as raparigas de morte através do estrangulamento, numa clara alusão aos “snuff movies”, libertando o filme do enredo para ensaiar um visionamento ético da imagem. A sua verdade ambí-

gua - mesmo quando as imagens são captadas diretamente pelas câmaras de vigilância e em tempo real e que Campos, juntamente com as filmagens feitas via internet, pela câmara de vídeo e de telemóvel, incorpora no filme com uma composição estética minimal1 e quase documental2) - cria um distanciamento entre o sujeito e o mundo, já que a relação entre o sujeito e o mundo faz-se sempre através da imagem (Cavell). Robert inscreve-se no clube de vídeo da escola para fugir à obrigatoriedade das atividades desportivas. Será durante as filmagens para um projeto em que trabalha que, por acaso, filma a morte das irmãs. Perante este acontecimento, o diretor da escola incumbe Robert da tarefa de realizar um vídeo de homenagem às irmãs falecidas. Desafiando as convenções dos vídeos de homenagem, Robert resolve incluir as imagens chocantes das mortes das raparigas e abdica de uma banda sonora, quebrando os clichés associados à proliferação das imagens manipuladas que cerceia o espírito crítico do espectador e apelam a um sentimentalismo dormente, num registo melodramático, retórico e pouco documental. O vídeo é cru, distante, capaz de confrontar o espectador. O diretor reage furioso: “That’s the worst thing I’ve ever seen. You didn’t have music!” Adulto, preso aos clichés, alinha-se com todos os outros adultos do filme: a mãe de Robert, os pais das raparigas gémeas, a enfermeira... incapazes de compreender o mundo dos adolescentes, preferem tentar abafar o problema com uma explicação imediata, uma relação direta de causa-efeito, capaz de aplacar os espectadores que não querem ser incriminados pelas imagens que os confrontam. Como no cinema de Larry Clark, Campos acentua a ausência dos adultos, mas sem querer impor uma moralidade (imagem-moral que age como um mecanismo padronizado) ou censura social, mas apenas abrir o filme para uma escolha ética na sua relação com a vida (Rodwick). A partir daqui estão, portanto, abertos dois modos de existência: a ausência de uma escolha pela necessidade de acreditar numa necessidade moral (o diretor exige uma outra montagem do vídeo) ou a possibilidade de escolher, mesmo se no final se decide não escolher (Deleuze). Regressemos à cena da morte das irmãs gémeas: a câmara fixa de Robert a filmar o corredor vazio, as irmãs intoxicadas a entrar cambaleantes no enquadramento, e o rapaz a aproximar-se de uma delas, a sentar-se no chão e a segurar-lhe a cabeça. Robert está virado de costas para a câmara: o que o espectador vê não é o que está a acontecer: Robert não assiste passivamente à morte da rapariga, Robert asfixia-a. O desejo de violência concretiza-se. A impassibilidade inexpugnável de Robert não resiste à revelação da verdade no cinema, como o prova a cena final do filme: se Robert manipula as imagens no seu computador, alguém filma Robert com uma câmara de telemóvel. A mesma câmara que filmou Robert a matar a rapariga. Este jogo narrativo de perspetivas convoca o espectador para a multiplicidade de dispositivos e para a complexidade da imagem na definição de uma moralidade cinemática: a violência do consumo das imagens e o constante confronto com o que elas nos mostram. 1 Inspirada em Gus Van Sant 2 O realizador fala da influência de Frederick Wiseman no seu trabalho e — talvez, não por acaso -— existe uma personagem que se chama Mr. Wiseman (o professor responsável pelo clube de vídeo)


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crítica

Dentro da ficção Uma leitura de Dentro de Casa, de François Ozon por Jorge Palinhos


Dentro da Ficção Jorge Palinhos

Dentro de Casa é uma adaptação para o cinema, de François Ozon, da peça de teatro O Rapaz da Última Fila, do dramaturgo espanhol Juan Mayorga, já encenada e publicada em Portugal pelos Artistas Unidos. Juan Mayorga é um dos mais conceituados autores de teatro a nível europeu, conhecido pelas suas peças de estrutura aristotélica e temática filosófica, ao passo que Ozon é um realizador francês já com um currículo considerável, que pratica um cinema muitas vezes metarreferencial da própria história do cinema e com uma componente lúdica. Esta obra anuncia-se como «adaptação livre» da peça de Mayorga, embora, confrontando texto e filme, seja evidente que grande parte das personagens, diálogos e situações são transpostos de forma muito próxima. Em relação ao enredo original, Ozon acaba por explorar mais a vida da escola e uma potencial relação homoerótica, ambas sem consequências para o cerne do enredo. E este é simples: Germain, um professor de literatura e escritor de pouco sucesso, começa a receber e a incentivar uma série de composições de um aluno, Claude, vendo nele um potencial talento literário e talvez uma realização, por interposta pessoa, do sucesso nas letras que lhe escapou. Todavia há uma dificuldade: as composições que Claude escreve não são ficção, mas a intimidade real da família de um colega, Rapha, de quem se fez amigo com o único intuito de entrar na sua casa e observar de perto a vida de uma família típica da classe média. Algo que o próprio Claude não tem, filho de mãe ausente e pai inválido. O conflito vai construir-se neste triângulo entre a família de Rapha, que desconhece estar a ser alvo do olhar literário de Claude, e o apoio de Germain, que parece tão enamorado com o talento narrativo do aluno que ignora todas as implicações morais dos seus atos, e até está disposto a cometer ilegalidades para que Claude possa continuar a vasculhar – e manipular – a família dos Rapha. É entre estas duas arestas do triângulo que Claude joga um jogo cada vez mais perverso e inquietante. Ozon conduz o filme com desenvoltura e leveza como se de um thriller noir se tratasse, servido por um leque imaculado de atores, e nem resiste a algumas citações – como o plano final que evoca a Janela Indiscreta de Hitchcock. O voyeurismo hitchcockiano é incontornável neste enredo – ao ponto de a mãe da família, Esther, ser também uma loira enigmática –, mas a história de Mayorga é antes de mais a desconstrução pós-moderna do discurso e da representação, inquirindo sobre o que é verdadeiro e construído na realidade e na ficção. Ao longo do filme observamos Claude e Germain a tentarem construir o discurso que irá representar a família Rapha e percebemos que esse discurso obedece muito mais a regras literárias e de representação do que a uma ideia de aproximação da realidade. Aliás, Germain passa grande parte do tempo a doutrinar o seu pupilo sobre as formas corretas ou incorretas

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de descrever a intimidade dos Rapha – doutrinação assente em lugares comuns dos cursos de escrita criativa. Mas os próprios Rapha se representam a si próprios na sua realidade: Rapha pai torce por uma equipa de basquetebol americano e inventa para si um lugar mítico – a China – de que conta histórias dúbias, ao passo que a mãe Esther redecora obsessivamente a casa para se continuar a imaginar arquiteta e útil à família. E quando Claude tenta moldar os Rapha à sua ficção, às regras da ficção que Germain fornece, inclusivamente dando a Esther um poema para a seduzir – tentando assim usar as palavras para transformar a realidade –, são os Rapha que se subtraem a essa construção, preferindo mudar-se para a China, para a sua própria ficção. A questão da representação é ainda explorada no subenredo em que a esposa de Germain, interpretada por Kristin Scott Thomas, tenta fazer resultar uma galeria de arte contemporânea, repleta de obras de arte pós-modernas, não representacionais. Quando não o consegue, vê-se forçada a começar a vender bibelots feitos na China, sem ter a consciência de que a falta de representação – de referência a um sentido superior que não aquele que lhe é atribuído subjetivamente pelo recetor – é o que no fundo torna os seus bibelots indistinguíveis da arte contemporânea que não conseguiu vender. O final do filme mostra Germain sozinho, vítima do seu voyeurismo e da ingenuidade que não lhe permitiu entender que o perigoso jogo de Claude se poderia virar também contra si, e sem outra companhia ou referência senão a ficção interminável que Claude lhe promete: o mundo de simulacros de prazer anunciado por Jean Baudrillard e que isolam Germain – e o espectador – de toda a crença na verdade e no sentido da sua própria vida enquanto realidade, e não como mera construção.


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crĂ­tica

Entre A Gaiola Dourada e Ganhar a Vida por Daniel Ribas


Entre a Gaiola Dourada e Ganhar a Vida Daniel Ribas

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O cinema serve, muitas vezes, como um ótimo recurso para fazer um retrato sociológico. No entanto, também por isso, ele presta-se a equívocos, que têm menos a ver com o grau de fidelidade com a realidade, mas mais com o discurso cultural que se promove. Vem isto a propósito de A Gaiola Dourada, um filme sobre a comunidade portuguesa em Paris, realizado pelo luso-descendente Ruben Alves e protagonizado por dois dos mais importantes atores portugueses: Rita Blanco e Joaquim de Almeida. Tem sido um assinalável sucesso de público, tanto em Portugal como em França. O filme teve, em Portugal, uma receção crítica bastante favorável. Por um lado, o olhar português estava desconfiado pelo potencial de clichê que um filme destes encerra. Por outro, recebeu o filme com surpresa, sobretudo pelo seu feel good que, de certa forma, desdramatiza a condição de emigrante, normalmente associada a outro tipos de imagens (condições precárias de vida, isolamento, etc.). Talvez seja interessante fazer uma leitura do filme à luz de uma comparação com outra obra que se dedica à mesma comunidade e na mesma zona geográfica: Ganhar a Vida, o filme de João Canijo, realizado em 2001. São, na verdade, filmes radicalmente distintos e os seus olhares talvez nos revelem os discursos de cada realizador. Talvez a grande diferença entre os filmes esteja no seu tom: em A Gaiola Dourada tudo reluz – cinematografia, personagens, estrutura narrativa; em Ganhar a Vida, há uma procura por detalhar a vida sofrida das personagens e o tom é escuro, incluindo uma constante claustrofobia. Como dissemos, não se trata de procurar o retrato certo, mas sim de encontrar um discurso cultural que, precisamente, discuta a presença dos emigrantes portugueses em França no seu contexto geográfico e social. Achamos que A Gaiola Dourada contribui pouco para essa discussão. O seu imaginário não ultrapassa os mais elementares clichês, embora a estrutura dramática tente desafiá-los. Como é que isto acontece? É precisamente a estrutura narrativa que nos pode detalhar mais um pouco a forma como os dois filmes se afastam. Em A Gaiola Dourada, a família portuguesa vive uma vida pacata e correta. Todos gostam deles (em linguagem sociológica: estão bem integrados) e até os filhos estão bem. No entanto – de forma dramaticamente aceitável, mas algo surpreendente – recebem uma herança que os obriga a voltar a Portugal (o irmão desavindo do pai acaba de morrer). Como todos precisam deles (os patrões, franceses; mas também os amigos, portugueses), decidem enganá-los para os forçar a ficar. É aí que se introduz o dilema narrativo: deve a família regressar a Portugal, quebrando os laços de trabalho (aqui até proposto como escravidão) com os franceses? (Eles são mesmo obrigado a voltar, caso queiram aceitar a herança). A resposta não é muito clara, já que o final é bastante ambíguo, porque, na verdade, parece que o dilema deixa de o ser: aceitam a herança e continuam o seu trabalho de emigrantes. No nosso entender, o filme reintroduz o statu quo social dos emigrantes: eles têm uma quinta à beira-rio e um jipe bastante caro, mas continuam fiéis àquilo que fizeram a vida inteira: trabalhar para os outros. Se o filme não pressupõe transformação social, essa ausência é trocada pela bonomia do seu tom: está tudo bem, quando acaba bem. Talvez o mais interessante seja a questão identitária que A Gaiola Dourada ensaia: eles são verdadeiramente emigrantes assimilados e construíram o seu imaginário a partir disso. Como assinala Luís Miguel Oliveira, na sua crítica no Público, “A Gaiola Dourada escolhe o afecto, puro e simples, um grande abraço caloroso, sem ensaiar qual-

quer espécie de complexidade ou ferocidade neste seu olhar sobre os portugueses de França, definidos em caricatura e estereótipos plenos de bonomia (três bês: Benfica, bacalhau e bejecas)”. O que é curioso é que apesar de haver alguma reação dos protagonistas – eles, de facto, reagem contra a sua situação em parte da narrativa antes do final ambíguo –, o filme parece optar por constantemente sinalizar a portugalidade turística: bacalhau, futebol, fado, etc. E fazer dela o seu modo simpático de ver o mundo. Por um lado, há um constante desafiar desses clichês, é certo: a sogra francesa da família não acerta sequer no nome de Salazar, e, em vez de bacalhau, a mãe faz uma comida sofisticada no jantar que têm em comum. Contudo, parece-nos que essa abertura é usada para reforçar uma certa portugalidade. Por exemplo, a transformação da personagem da filha está intimamente ligada a este pormenor: ela é levada pelo namorado francês a um bar onde se canta o fado e emociona-se com esse momento caricatural – pelo menos naquele contexto – da identidade portuguesa (ela emociona-se com o exótico, se assim quisermos dizer). Ganhar a Vida, precisamente, ensaia o caminho contrário. A sua estrutura narrativa é marcada por um acontecimento grave: a morte de um filho no interior de uma família portuguesa. Aliás, a situação inicial – demonstrada pela cinematografia escura, pela música ou pela mise-en-scène – já é sintomática de uma situação social de guetização. Por isso mesmo, a morte inaugural (curiosamente, ambos os filmes se transformam com uma morte, embora com caminhos diferentes) é o mote para abalar toda a comunidade portuguesa: a mãe, Cidália, não aceita passivamente o acontecimento e inicia uma contestação social que a vai isolando progressivamente – primeiro da comunidade, depois da família. Não há salvação possível, porque precisamente a relação entre comunidades sempre foi a da nãocomunicação (aliás, até dentro da própria comunidade). Embora, a segunda geração, de identidades cruzadas, já seja outra conversa. Também Ganhar a Vida tem o seu momento musical, e também um fado, mas o momento é totalmente diverso: ele não reforça os laços identitários – como acontece em A Gaiola Dourada – mas acentua a separação entre Cidália e a restante comunidade. Estas diferenças narrativas estão também espelhadas na geografia dos filmes: em A Gaiola Dourada estamos quase num postal turístico de Paris – o apartamento dos Ribeiro é quase um museu dos prédios caros da cidade – muitas vezes em planos de conjunto; em Ganhar a Vida, somos colocados no subúrbio, sob prédios altos, numa eminente sensação de claustrofobia – a casa é minúscula, os planos são colocados junto ao corpo, não permitindo quase a respiração das personagens. O mesmo acontece entre os dois cafés que são geridos por portugueses. Entre os dois filmes pressente-se uma diferença crucial de abordagem. Os dois optam por diferentes realidades sociológicas (o que é curioso, porque a verdade é que a emigração portuguesa não é uma amálgama uniforme de realidade social). Mas joga-se aqui uma diferença de discurso: apesar de imaginários próximos, os tons diferem totalmente. Não é a função do cinema provocar, discutir? Em A Gaiola Dourada parece que o cinema ficou preso à vontade de homenagear, sentir-se bem com o mundo que nos rodeia. Diríamos que, em termos sociológicos, o filme ficou-se por wishful thinking.


DRAMA revista de cinema e teatro N.º 5 | Abril 2014 ISSN: 2183-0894 Editores Pedro Flores, Jorge Palinhos e Daniel Ribas Colaboram neste número José Vieira Mendes, Catarina Duff Burnay, Pedro Lopes, Humberto Hokama, Paulo Alexandre e Castro, Sérgio Dias Branco, Denise Duarte, Paulo Cunha, Mónica Santos, Jorge Vaz Nande, Marta Reis, Alexandra Fonseca, Ana Barroso. Grafismo atelier d’alves Paginação Rui Silva e Rúben Cardoso Tipografia Market Street Neon e Crimson Online www.drama.argumentistas.org Contactos drama@argumentistas.org APAD Travessa da Rua dos Pentes, 27 - r/c 1250-105 Lisboa, Portugal A Drama é uma revista publicada pela APAD - Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos.

Os artigos seguem a ortografia preferida pelos respetivos autores.




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