A Caixa do Andarilho

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Era outono ainda quando tudo aquilo aconteceu. Os

pinheiros estavam desfolhados como a boca de uma velha sem dente, e as folhas do único pé de ipê exibiam uma cor opaca entre um verde sem vida e um amarelo caganeira. No centro da praça, um quarteirão humilde de espaço, jazia o bronze com as feições de um político local, observando a solidão silenciosa da praça onde dois ou três casais enamoravam-se pela dúzia de bancos de concreto, espalhados pelo lugar. Até então era apenas mais um dia na cidade bucólica onde no máximo a novidade do dia seria o nome do novo fujão que de malas cheias partira a noitinha para outro lugar buscando trabalho e movimento. No entanto naquela tarde comprovou-se que até o mais ermo dos lugares pode produzir fatos insólitos que quando narrados deixam aquele que escuta duvidoso entre a verdade e a mentira. Afinal, a linha que divide tais coisas não passa de um barbante frágil que com o mínimo esticar parte-se e ninguém mais sabe o que é uma, e o que é outra. O andarilho, um cara de idade incerta, pois quem consegue adivinhar a verdade escondida por trás de tanta necessidade, foi o culpado, e há quem diga o vilão, e também a vítima das coisas tenebrosas que se precipitaram naquela nefasta noite. O homem de vestes esfarrapadas, rosto cheio de vincos, e aqueles seus cabelos longos e sebosos chegara à cidade provavelmente depois de uma longa jornada. Há quem afirme que o homem chegou vindo do norte caminhando passadas ligeiras no acostamento da rodovia federal. Mas há também os que juram que viram-no vindo do sul. No entanto, a grande parcela da cidade passou a dizer depois, que o homem viera mesmo do inferno. Quanto a mim, sei lá, viesse de onde ele tivesse vindo isso não importa mais, a não ser o que fizeram com aquela pobre alma. Vocês sabem como são os andarilhos. Gente estranha mesmo, portanto não liguei muito para aquela figura. Tampouco para seu cheiro repugnante, ou para aquela maldita caixa.


A caixa, essa sim não tenho dúvidas, veio do inferno. Não que eu tenha visto, ou feito como os outros. Estive entre os poucos da cidade a não questionar o homem sobre a caixa. Confesso que não o fiz por falta de curiosidade, mas é que quando o andarilho se abancou num banco da praça, eu estava mais preocupado onde deslizava minhas mãos afoitas de guri novo que se entorpece com o cheiro que emana do meio das pernas de uma guria. Ainda assim podia ouvir a voz rouca e nada empolgante do estranho a cada nova pergunta. Á tarde já tinha escorrido pelo tempo quando finalmente, minimamente prestei reparo na tal caixa, o objeto das perguntas dos meus conterrâneos. Não era uma caixa espalhafatosa, não mais que um baú médio, de madeira envelhecida com alguns entalhes artísticos. O andarilho tão logo sua chegada a pusera ali, sob os pés do busto de bronze. Sentado num banco próximo o dono apenas vigiava sua caixa. De certa forma, obviamente sem inocentar os verdadeiros culpados, o andarilho também colaborou para o suspense. Havia fome em seu olhar para caixa. Seus olhos tinham força ao observar aquele objeto de madeira como se ali estivesse algo muito importante. Por isso não condeno quem acabou pensando que naquela caixa tivesse algum segredo que precisava descobrir acima de tudo. Talvez um tesouro? Ou então os segredos da vida? Não são os andarilhos profetas? Mas o que aconteceu ao final, isto sim foi desnecessário. Mas antes de falar o que ninguém pode mais falar, aquilo que a cidade fez questão de apagar de seus registros, talvez sirva de atenuante que não apenas um, mas muitos dos que estavam entre os “animais” daquela noite trágica perguntaram educadamente ao andarilho o que havia dentro da caixa. Sua resposta nunca alterou uma única vírgula. E olha que naquele dia ele a disse algumas centenas de vezes. “É melhor nem saber”. Era sempre a mesma resposta. O mesmo tom de voz, que a mim soava quase como uma ameaça. E aquele tom de voz e a forma com que ele pronunciava tais palavras me convenceram a não querer saber o que havia dentro daquela caixa. Infelizmente eu era minoria. Depois de uma tarde de negativas, talvez seguro por imaginar que havia convencido as pessoas que não tinham de querer saber o que havia dentro de sua caixa, o andarilho parecia despreocupado. Quando a noite chegou, eu avistava já sem meu par, os burburinhos


que cresciam ao redor da praça. Algo bem incomum, diga-se de passagem. Percebi então que muitos dos que haviam perguntado pela caixa durante a tarde retornavam para a praça. Sempre fui muito sensitivo, algo que provavelmente o andarilho não era, pois ao contrário ele teria recolhido sua caixa e partido. Vivo. Entre ir para casa e fugir para não presenciar algo terrível que se anunciava naqueles olhares conspiratórios, resolvi permanecer em meu banco, observando o desenrolar dos acontecimentos daquele dia atípico. Eu jamais deveria ter ficado lá é bem verdade, mas graças a isso posso revelar-lhes algo que a cidade por muitos anos escondeu. O andarilho demorou a compreender o que queriam aquelas pessoas que retornaram para a praça a noitinha. Algumas sequer haviam saído de lá. Mas eu já sabia. Tentei fazer-lhe sinal com gestos para que partisse. Porém o andarilho não partiu. Percebi o círculo humano inconscientemente coletivo formar-se cercando o homem e sua caixa. Não me parecia nada coordenado, já que assim como o andarilho, cada homem e cada mulher, olhavam tão somente para a caixa. O círculo se fechando cada vez mais. Senti uma angústia inenarrável, como vontade de sair dali, mas a vontade e a quase certeza que estava para testemunhar algo que jamais verei novamente me fez continuar sentado como observador. Todos ali queriam a mesma coisa. Eu via isso em cada sobrancelha arqueada. Em cada pausa para respirar. Mas demorou até que alguém finalmente tomasse uma decisão. E os minutos entre o cerco e a tomada de decisão se mostraram como a cena mais tensa que pude observar em minha vida. Era como se os anos de tensão da Guerra Fria acontecessem naqueles poucos minutos. Naquele pequeno pedaço de mundo que era a praça central da cidade. Tudo congelou. Estagnou. Apenas o rufar de corações excitados pela probabilidade da ação se fazia ouvir no ambiente. E quando a Senhora Torres, uma professora não muito nova do ensino médio decidiu partir para cima da caixa, tudo ocorreu tragicamente num piscar de olhos. A Senhora Torres tomando a frente do grupo, dobrou seus joelhos e se abaixou. Estava prestes a abrir a caixa quando o andarilho urrou sonoramente “NÃOOOOO! “


Juro que senti o gelo cobriu cada osso de meu corpo. O urro do andarilho não me pareceu humano, e á medida que ele começou a gritar, outras pessoas se atiraram contra a caixa. E contra as pessoas se atirou o andarilho, talvez em defesa de seu único bem. Não sei o por quê, mas há dentre aquelas centenas de pessoas havia as que levaram facas, e até mesmo um ou dois revólveres para aquela situação. Talvez imaginassem convencer o andarilho. Não foi o que aconteceu. Em poucos segundos os gritos de dor por ver sua caixa ameaçada, foram se misturando aos gritos de dor por causa das lâminas que os trespassavam o corpo esquálido e fedorento. Havia uma raiva incontida naquelas pessoas cuja maioria eu conhecia. Tão pacatas. Tão dóceis. Mas naquela noite tão demoníacas. O andarilho somente silenciou depois que muitas facas, muitos paus e algumas pedras transformaram sua carne numa massa indistinta empapada de sangue e vísceras que era praticamente impossível dizer que aquilo um dia fora uma pessoa. Lembro-me do torpor e do arfar de cada tórax que participou daquela chacina. Levou algum tempo até que como se estivessem sob o efeito de drogas, cada um dos assassinos recobrasse a lucidez que eu imaginava que eles sempre tiveram, e perceber a crueldade que haviam praticado. Ainda anestesiados com todos os acontecimentos, e sem o andarilho para protestar, a Senhora Torres, bastante avariada pela confusão, finalmente conseguiu abrir a misteriosa caixa do andarilho. Para a surpresa da Senhora Torres, e de todos os outros, não havia nada dentro da caixa.


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