


Imaginando algo de concretamente certo
“O processo gustativo pode ser comparado com uma canção em que o gosto é o canto e o olfato o acompanhamento de piano.” (1962:307. SEGUNDP VOLUME)
Imaginando algo de concretamente certo
27 de setembro de 1864
Antes tarde do que nunca.
O folhetim demorou-se um dia porque, à hora em que devia preparar-se e enfeitar-se, para conversar com os leitores, corria pelo caminho de ferro em busca das águas do Paraíba.
Nenhum homem de gosto, que tenha em apreço as maravilhas da natureza e os prodígios do braço humano, pode deixar de ir ver, ao menos uma vez na vida, os trabalhos arrojados e os panoramas esplêndidos que lhe oferece uma viagem pela estrada de ferro de D. Pedro II.
Direi mesmo que ali a natureza cede o passo ao homem, tão pasmosas são as dificuldades que a perseverança e a ciência conseguiram vencer.
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O futuro das estradas de ferro no Brasil está garantido e seguro. Quem venceu até hoje, vencerá o que falta. Um anel unia em consórcio o doge e o Adriático; o vagão consorciou já a civilização e o Paraíba. Esta união não pode deixar de ser fecunda. E a prole que vier deve ter como brasão e como senha o nome do cidadão eminente que preside ao desenvolvimento de uma obra tão colossal.
O folhetim aplaude os progressos sérios; mas ri dos progressos e dos melhoramentos ridículos. Há-os assim. Uma hipótese:
O leitor foi aluno do conservatório de música; lá estêve muito tempo e de lá saiu como entrou; nunca pôde entender o abecedário musical; a semifusa era uma esfinge que o leitor não pôde desencantar, como Édipo, mas que também não o devorou, por felicidade nossa; em resumo, o leitor perdeu alguns anos de
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vida, e achou-se um dia condenado a lançar mão de outra profissão qualquer.
Mas como? O leitor é fanático por música; freqüenta o teatro lírico, e não perde uma récita que seja; é o primeiro que entra e o último que sai; assiste à afinação dos instrumentos, acompanha de cabeça todos os andantes e alegros. Quando sai do teatro está desvairado. Atira-se ao piano inútil que tem em casa, a ver se pode, mesmo sem o auxílio das regras, reproduzir as harmonias que sente em si. Mas nada consegue, faz um ruído infernal, atordoa os vizinhos, perde uma noite de sono, e é obrigado a passar o dia seguinte de cama. Desengana-se por fim: é para a música um ente nulo. Mas quem pode deixar facilmente a primeira ilusão que acalentou no peito?
O leitor hesita, estremece, consulta o céu, arranca um punhado de cabelos, até que um dia de manhã, segunda-feira passada, vai ter-lhe às mãos o JornaldoComércio, e o leitor vê aí a seguinte notícia:
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“Músicaavapor . — Segundo o “Jornal dos Debates “, devia haver na rua Neuve Bossuet, em Paris, uma sessão pública e gratuita, dada pelos Srs. Carlos Hermann e Rahn, para se poder apreciar toda a importância de um novo ensino musical, em que o professor Rahn pensa há muito tempo e que vem a ser a resolução do seguinte problema: habilitar qualquerindivíduoa compor um trecho de música, a improvisar em um piano com tanta presteza como se escreve uma carta e se improvisa uma conversação”.
Deixo em claro o monólogo de satisfação que o leitor naturalmente há de produzir depois de ter lido as linhas que aí ficam transcritas. Graças aos Srs. Rahn e Carlos Hermann, o leitor, até então completamente leigo na arte de Euterpe, pode vir a ser um músico notável e preencher a missão de que se supõe investido.
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Antes não poderia fazê-lo; a música era então um monopólio dos gênios e dos talentos que Deus criava e o estudo instruía. Hoje, a música democratize-se; não só Mozart pode ser músico, como pode sê-lo qualquer indivíduo, o leitor ou eu, sem precisar nem de talento nem de estudo. Mais. O estudo e o talento tirariam ao sistema dos Srs. Rahn e Carlos Hermann o maior mérito que eu lhes vejo, que é a supressão daquelas duas condições.
Tínhamos até aqui as máquinas de moer música, na expressão de um escritor ilustre; agora temos máquinas para fazer música, o que é — em que pese aos fósseis — o supremo progresso do mundo e a suprema consolação das vocações negativas. Daqui em diante todas as famílias serão obrigadas a ter em casa uma máquina de fazer café e uma máquina de fazer música — para digerir o jantar.
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Além da vantagem de vulgarizar a arte, o novo sistema é útil pela economia de tempo. O tempo é dinheiro. Achar um sistema que habilite a gente a compor uma sinfonia enquanto fuma um cigarro de Sorocaba, é realmente descobrir a pedra filosofal.
Que vales tu agora, velha Inspiração? Os tempos te enrugaram as faces, e te amorteceram os olhos. Tens os cabelos brancos, vê-se que a tua realeza chega ao termo; é preciso abdicar. Sôfregos de viver e de produzir, queremos em teu lugar um rei ativo, sôfrego, pimpão, um rei capaz de nos satisfazer, como o não fazes tu que já andas trôpega de velhice. Tudo isto que acabo de dizer, diria naturalmente o leitor, se acaso estivesse na hipótese que figurei.
Estas conversas semanais, como o título indica, produzem-se à medida que a memória vai despertando os sucessos e as reflexões
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vão caindo ao acaso dos bicos da pena.
Assim é que, sem procurar um elo que ligue dois assuntos, passo de um a outro quando o primeiro se esgota e o segundo vem procurar o seu lugar no papel.
Já tive ocasião de falar no Sr. Ataliba Gomensoro, jovem estudante de medicina, que não há muitos meses fez a sua estréia literária com uma comédia num ato, Comunismo, representada no Ginásio.
O mesmo teatro representa agora uma nova comédia do Sr. Ataliba Gomensoro, denominada OcasalPitanga . É um ato. OcasalPitangaé um progresso sobre o Comunismo . No casal
Pitangaa intriga é mais bem ligada e o movimento mais natural, posto que estas duas condições não estejam ainda aí cabalmente preenchidas. O diálogo e o estilo estão muito acima do diálogo e do estilo do Comunismo, vê-se que a mão do autor, apesar de
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ainda incerta e inexperiente, procura assentar-se melhor e busca corrigir nos trabalhos do dia seguinte os defeitos escapados nos trabalhos da véspera.
O Sr. A. Gomensoro é um moço inteligente, e possui aquilo que tanto realça a inteligência: — é modesto. É à sombra dessa modéstia que eu me animo a falar-lhe com franqueza. Aplaudo a discrição com que se vai ensaiando no gênero difícil da comédia, não querendo desde o primeiro dia expor-se a uma tentativa grande, mas infeliz.
Presumo que o Sr. A. Gomensoro não quererá ficar no campo da comédia de intriga; outro campo imensamente vasto se abre aos que procuram alistar-se nas bandeiras de Plauto e Molière. Esse exige muito estudo e muita observação; os aplausos que o público lhe deu convidam o Sr. A. Gomensoro a não perder de vista aquelas duas condições. E ouvindo, como acredito, as palavras da crítica simpática, não se arriscará nunca a tristes derrotas.
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No desempenho da comédia OcasalPitangadistinguiram-se o Sr. Graça e a Sra. Elisa, que faziam os papéis dos dois Pitangas.
Na noite em que se representou pela primeira vez a comédia do Sr. A. Gomensoro, representou-se igualmente um dialogo cômico em que o Sr. Simões desempenhou o papel de um inglês. Esse desempenho foi excelente, e o Sr. Simões mostrou-se artista na acepção elevada da palavra.
O Ginásio é agora uma das mais belas salas de teatro, depois que se acha pintado e adornado.
Os leitores já sabem que no dia 15 de outubro se efetuará o casamento de S. A. Imperial com o Sr. conde d’Eu.
A imprensa já comemorou a escolha do noivo e escreveu palavras de cordial respeito e firme esperança no consórcio que se vai efetuar.
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A ambição dos povos livres, neste caso, é que nos seus tronos se assentem príncipes honestos e ilustrados, capazes de compreender toda a vantagem que se pode tirar da aliança da realeza com o povo.
Assim, o país recebe alegremente a notícia deste acontecimento.
Segundo se diz, preparam-se para o dia 15 de outubro manifestações de regozijo. Não me faltará então matéria para o folhetim. Entre as festas que nesse dia se devem realizar figurará uma ascensão aerostática, feita pelo Sr. Wells, ultimamente chegado a esta corte.
O Sr. Wells é um corajoso americano que acaba de admirar a população de Buenos Aires com as suas ascensões. Toda a imprensa portenha é unânime em tecer ao Sr. Wells os mais pomposos e entusiásticos elogios.
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O público fluminense já assistiu, há alguns anos, a uma ascensão aerostática. Creio, porém, ao que se diz do Sr. Wells, que o novo espetáculo que se lhe vai oferecer é ainda mais imponente.
O Sr. Wells tem concebido e realizado vários projetos de viagem, a todos os respeitos dignos da admiração pública.
A viagem aerostática é uma das mais arrojadas concepções do espírito humano. Filinto Elísio cantou esse grande arrojo na ode OsnovosGamas . Porto Alegre é autor da bela poesia O Voador . Esta última citação traz-me ao espírito muitas considerações já velhas e repetidas sobre a sorte do verdadeiro inventor dos balões aerostáticos, o brasileiro Bartolomeu de Gusmão, filho deste continente que há de substituir a velha Europa na vanguarda da civilização.
O nome de Gusmão não é conhecido na Europa. Raros lhe dão a palma que tão legitimamente lhe pertence. Fora da língua
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portuguesa — e até na própria língua portuguesa — o nome de Montgolfier anda sempre ligado ao célebre invento. É o caso do poeta: Sicvosnonvobis...
Voltando ao Sr. Wells, mencionarei o projeto que este aeronauta afaga há muito tempo: atravessar em um balão o continente sulamericano. É sem duvida um projeto arrojado. A perseverança vence tudo, perseverantiavincitomnia, — tal é a divisa do Sr. Wells.
Não deixarei o assunto sem acrescentar uma reflexão: O homem tem admirado a natureza por todos os lados e de todos os modos. Chega mesmo a penetrar nela, se é poeta ou filósofo. Mas que soma de espetáculos novos e deslumbrantes não lhe oferece a conquista do ar! — Sugeriu-me esta reflexão a leitura do seguinte fragmento de uma carta do Sr. Wells ao
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redator de NaciónArgentina .
“... Quando cortei a última corda da barquinha o sol tinha-se escondido por traz das ilhas, mas logo pareceu que subia de novo, porque o balão subira rapidamente a uma imensa altura sobre as nuvens que estavam como inflamadas pelos últimos raios do astro. A cena era belíssima vista a uma légua de altura. “O Rio parecia reduzido a metade, e os seus limites se perdiam de um lado entre um monte de nuvens, e de outro entre as ilhas. “Era uma coisa singular ver levantar-se o sol do poente; contemplei-o com prazer, e cantando o hino StarSpangled Rauner, empunhei a bandeira da minha pátria, em honra do primeiro panorama desta espécie que via em minha vida”... Veja-se por aqui quantos aspectos novos a face do globo tem ainda para oferecer aos olhos ávidos e ao incansável espírito do homem.
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Aguarde o público a primeira ascensão do corajoso aeronauta. Não por acaso, antes muito de indústria, guardei para o fim do folhetim a notícia da morte de Odorico Mendes.
A imprensa comunicou ao público que o ilustre ancião falecera em Londres a 17 do passado.
Odorico Mendes é uma das figuras mais imponentes de nossa literatura. Tinha o culto da antiguidade, de que era, aos olhos modernos, um intérprete perfeito. Naturalizara Virgílio na língua de Camões; tratava de fazer o mesmo ao divino Homero. De sua própria inspiração deixou formosos versos, conhecidos de todos os que prezam as letras pátrias.
E não foi só como escritor e poeta que deixou um nome; antes de fazer a sua segunda Odisséia, escrita em grego por Homero, teve outra, que foi a das nossas lutas políticas, onde ele representou
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um papel e deixou um exemplo.
Era filho do Maranhão, terra fecunda de tantas glórias pátrias, e tão desventurada a esta hora, que as vê fugir, uma a uma, para a terra da eternidade.
Há poucos meses, Gomes de Souza; agora Odorico Mendes; e, se é exata a dolorosa notícia trazida pelo último paquete, agrava-se de dia para dia a enfermidade do grande poeta, cujos Cantosserão um monumento eterno de poesia nacional. Deus ampare, por glória nossa, os dias do ilustre poeta; mas, se ele vier a sucumbir depois de tantos outros, que lágrimas serão bastante para lamentar a dor da Níobe americana? (Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1955. 2° VOLUME (1865-1867). 158 a 168.)
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