Digesto Econômico

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ÍNDICE 3

PREFÁCIO

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INTRODUÇÃO FORO SÃO PAULO

8 11 14 18 21 25 29

Obviedades temíveis Lula, réu confesso A prova cabal da mentira Traição anunciada Por trás da subversão A fraude do populismo continental A nova era das ditaduras

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br Presidente Guilherme Afif Domingos

A TOMADA DO PODER 33 36 40 44 48

Marxismo já! Honra ao mérito O sucesso do fracasso Da fantasia deprimente à realidade temível Enquanto a Zé-Lite dorme

O PT E A CORRUPÇÃO 52 55 59 62 65

Geração maldita A arte da acusação invertida Museu de iniqüidades Sem novidades, exceto as piores O parteiro do mal

A ESQUERDA E O SOCIALISMO 69 73 75 79 82 84 86

Mais sábios que Deus A esquerda americanizada O paradoxo esquerdista Em plena guerra assimétrica Raça de víboras. Ou: o Marquês de Sader na prisão Mais um advogado do Marquês Experimento sociológico

ONDE ESTÃO OS LIBERAIS? 90 93 96 99 102 106

O dever que nos espera A direita autocastrada Automacumba semântica Puro teatro, nada mais Dormindo profundamente Da ignorância à mentira

MUNDO REAL 110 114 116 119 123 126 128 132 136 138 141

O avesso do avesso Doença moral hedionda A china no WalMart A guerra contra as religiões A chacota geral do mundo Absurdo monumental O grande rombo A miséria do mundo Dia do saci A vitória ambígua dos democratas A CIA que ninguém conhece

APÊNDICE 143

O Foro de São Paulo, versão anestésica

ESPECIAL Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira Editores Domingos Zamagna e Carlos Ossamu Editor de Fotografia Masao Goto Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico Evana Clicia Lisbôa Sutilo Diagramação Djinani S. de Lima e Evana Clicia Lisbôa Sutilo Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122 Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br) Impressão Laborgraf REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046 www.dcomercio.com.br


Informar e estimular o debate

A

decisão de publicar a separata do Diário do Comércio com os principais artigos escritos por Olavo de Carvalho neste jornal visa permitir que as idéias, opiniões, informações e conclusões desse filósofo, jornalista, conferencista, escritor e, sobretudo, polemista, possam alcançar um número maior de brasileiros, que não tem acesso ao veículo de divulgação mantido pela Associação Comercial de São Paulo. Os textos apresentados revelam a vasta cultura do autor, sua imensa capacidade de se informar e, principalmente de analisar as informações, seu raciocínio lógico e argumentação racional e, muitas vezes, sua contundência na defesa de suas posições. Ao publicar os artigos de Olavo de Carvalho, o Diário do Comércio oferece a seus leitores a oportunidade de se informarem sobre temas pouco discutidos na mídia em geral, com análises profundas realizadas a partir de uma visão liberal e do ponto de vista da tradição judaico-cristã que embasa o autor. Como liberais, acreditamos no confronto das idéias, mas, infelizmente, o que se assiste no Brasil, é a predominância quase esmagadora, tanto na mídia, como nos ambientes universitários, de uma única corrente de pensamento, que, por ser muitas vezes diferenciada por nuances, leva a maioria dos observadores a acreditar que existe um debate verdadeiro entre as diversas posições e opiniões divulgadas com freqüência. Para permitir esse confronto é importante divulgar os textos de Olavo de Carvalho que, apesar de seu estilo muitas vezes provocador, não se limita a emitir opiniões, mas apresenta sempre fontes de informações, ou autores no geral pouco acessíveis à maioria dos leitores, para embasar suas posições. O convite que fazemos a todos os que tiverem acesso a esta separata, e desejarem contestar as opiniões de Olavo de Carvalho é para que o façam com base em argumentos e não meras contestações retóricas que procuram desqualificar o autor dos textos, ao invés de refutarem suas posições. O Diário do Comércio está aberto para abrigar as opiniões divergentes, desde que apresentadas no plano das idéias, ou mesmo ideologias, pois estamos certos de que esse confronto beneficiará o Brasil, que anda carente de um debate intelectual de alto nível, que reflita o pluralismo existente na sociedade e não apenas as posições de um determinado grupo. Estamos certos de que Olavo de Carvalho, que sempre tem combatido " o bom combate", não se furtará ao debate.

Guilherme Afif Domingos

Presidente da Associação Comercial de São Paulo

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Introdução

E

Olavo de Carvalho jornalista, escritor e professor de Filosofia, mora hoje nos EUA

stou muito feliz com a publicação desta coletânea e agradeço à Associação Comercial de São Paulo, principalmente nas pessoas de Guilherme Afif Domingos, Marcel Solimeo e Moisés Rabinovici, o reconhecimento público da utilidade do esforço que venho desenvolvendo na coluna Mundo Real do Diário do Comércio. Num país onde tantos vêm me bajular em privado para depois sair negando que me conhecem, essa homenagem supõe uma quota nada desprezível de bravura e honradez. O que mais me agrada nela é que seus benefícios se estendem para muito além da pessoa do homenageado, contribuindo decisivamente para ampliar e consolidar os efeitos que ele vem buscando alcançar com o seu trabalho. Esses efeitos são três:

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Conscientizar os brasileiros quanto ao fenômeno da existência, atuação e periculosidade do Foro de São Paulo, evidenciando o caráter intrinsecamente criminoso de uma entidade em que políticos, terroristas e narcotraficantes, a salvo dos olhos do público, fazem planos em comum para a conquista do poder total no continente.

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Alertar os leitores quanto à fraude jornalística geral e persistente que por dezesseis anos ocultou esse fenômeno e, uma vez furada a cortina de silêncio, se dedica agora a tentar minimizá-lo ex post facto para atenuar o escândalo da sua própria cumplicidade com o crime.

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Colocar à disposição dos leitores novos conceitos de filosofia política apropriados à compreensão desses dois fenômenos no quadro do poder mundial em formação. Passo a analisar brevemente esses três pontos. 1. O governo secreto Reunindo os partidos legais de esquerda com organizações terroristas e quadrilhas de narcotraficantes de todos os países da América Latina, o Foro

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de São Paulo é a organização política mais poderosa que já existiu no continente. Ao longo da história latino-americana, nenhuma outra entidade jamais congregou tantos líderes, chefes de Estado, capomafiosi e comandantes guerrilheiros num esforço comum de tomada do poder em escala continental. Só uma das entidades envolvidas - as Farc, Fuerzas Armadas Latino-Americanas de Colombia - chegou a ter recursos econômicos e bélicos superiores a todas as forças armadas da região. Em termos de lógica e bom senso, qualquer tentativa de negar ou questionar a importância essencial dessa entidade para a decisão dos rumos da história continental é loucura completa ou mentira interesseira. Não creio que seja admissível qualquer discussão quanto a esse ponto. Também não vejo como negar, por meios racionais, o caráter intrinsecamente criminoso do empreendimento. O caso das Farc ilustra-o com eloqüência gritante. Enquanto vinham à tona as provas de que a narcoguerrilha colombiana abastecia o mercado nacional com duzentas toneladas anuais de cocaína, o então candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva se reunia discretamente com os chefes dessa quadrilha para tratar de interesses estratégicos comuns e ainda assinava manifestos em favor dos delinqüentes. Empossado na presidência, ele continuou a participar dos encontros através de seu assessor Gilberto Carvalho, trocando gentilezas e favores com os megadelinqüentes, montando com eles um esquema de poder de dimensões continentais, ao mesmo tempo que a polícia brasileira denunciava a presença de agentes das Farc nas quadrilhas de criminosos que espalhavam o terror nas ruas de São Paulo e do Rio. 2. A fabricação do segredo Em qualquer país normal, os políticos envolvidos nesse conluio macabro seriam denunciados, expostos à execração pública, presos, julgados e condenados. O problema foi que esses políticos eram muitos - e precisamente aqueles nos quais a mídia havia apostado a sorte do país como portadores ungidos da redenção nacional. Se os fatos fossem divulgados, se os crimes fossem julgados segundo a sua gravidade objetiva, a decepção nacional com os partidos de esquerda seria muito mais do que o foi ante a simples revelação de casos de corrupção vulgar, ainda que em escala mastodôntica. Seria o fim da esquerda brasileira. Mas


àquela altura já não havia nenhuma direita organizada capaz de ocupar o lugar dela, e os poucos direitistas isolados que ainda sobreviviam no cenário nacional eram os célebres "filhotes da ditadura", que a mídia em peso odiava mais que à peste. Ante a perspectiva abominável de um "retorno da direita", os gerentes autonomeados da opinião pública concluíram que era melhor fazer de conta que não tinham visto nada e desviar o foco de todas as discussões para assuntos laterais e secundários. Foi nesse momento que o Brasil abdicou, definitivamente, de ser um país normal. Optou pela negação psicótica da realidade, mergulhando de cabeça na alienação e na desconversa. Por caridade, nem pensem em me sugerir que essa formidável articulação de silêncios foi coincidência, mera coincidência. Não é humanamente concebível que tantos diretores de jornais, revistas e canais de TV, tantos chefes de redação, tantos repórteres ávidos de escândalos, tantos comentaristas políticos iluminados tenham cochilado em uníssono ao longo de dezesseis anos, com inocência de bebês recém-nascidos, malgrado todos os avisos e provas que eu ia espalhando na mídia, malgrado tantos alertas e furiosas mensagens de protesto que lhes enviei durante esse tempo. Essa monumental gafe coletiva, essa formidável conjunção de distrações teria constituído a mais vasta epidemia de inépcia já observada na história do jornalismo universal. Por si, ela bastaria para desmoralizar totalmente a classe jornalística brasileira, para eliminar qualquer vestígio de credibilidade que lhe restasse, para suprimir qualquer pretexto, por mais mínimo, que o público ainda tivesse para acreditar na mídia nacional. Mas não foi isso o que aconteceu. A mídia brasileira não pecou por uma dose cavalar de incompetência, mas por uma quota ainda maior de mendacidade e cinismo. Busquem na História, e não encontrarão caso similar de amputação política do noticiário em tão vastas proporções e por período tão longo em nenhum país democrático do mundo. Encontrarão alguns, é claro, nos regimes totalitários da URSS, da China e da Alemanha nazista. Imitá-los em regime democrático, um feito quase impossível, é uma glória que ninguém pode negar ao jornalismo brasileiro. 3. Compreendendo a situação Fenômenos tão monstruosamente anormais não sucedem apenas por suceder, apenas porque sim. Refletem correntes profundas do acontecer histórico, que neles se manifestam de maneira parcial e fragmentária, sem que o público, pela pura visão das novidades de superfície, consiga atinar com a unidade do processo subjacente. A dificuldade aí é dupla. De um lado, podem faltar as informações essenciais. Sob uma enxurrada de no-

tícias vistosas, os fatos verdadeiramente importantes escapam à visão da mídia diária, que é a principal fonte de informações mesmo para as camadas cultas da população. De outro lado, faltam os conceitos articuladores que possam colocar essas informações numa perspectiva inteligível. Faltam porque as chaves explicativas mais usuais em circulação no debate nacional estão todas viciadas: umas foram concebidas para situações anteriores e mais esquemáticas, outras são estereótipos sem o menor alcance cognitivo, outras, ainda, são meros slogans de propaganda eleitoral. Nunca a situação do país foi mais complexa, e nunca os instrumentos intelectuais usados para discuti-la foram mais simplórios. O desnível entre a inteligência nacional e os novos problemas colocados pelas transformações histórico-culturais, políticas e econômicas do mundo nos últimos trinta anos foi ainda ampliado pelo fato de que, justamente nesse período, a conquista da hegemonia cultural e jornalística pela esquerda em ascensão reduziu as instituições de cultura a centros de formação de militantes, destruindo toda possibilidade de vida intelectual. Não é preciso dizer que até mesmo os conservadores e liberais foram afetados por esse processo, na medida em que, disputando num terreno previamente demarcado pelo adversário, consentiram em limitar o debate nacional à esfera dos assuntos econômicos imediatos que lhes eram designados pela própria esquerda. O prejuízo que tiveram com isso foi duplo: de um lado, entregaram à esquerda o monopólio do temário cultural e moral de maior interesse público; de outro, limitaram dramaticamente o seu próprio horizonte intelectual, bloqueando o acesso a uma compreensão das transformações maiores no cenário do mundo. Era, enfim, toda uma cultura - pré-moldada pela hegemonia esquerdista - que se opunha ao trabalho da inteligência para alcançar uma visão adequada do presente estado de coisas no país e dos fatores internacionais que o determinavam. Elevar os homens acima das limitações da cultura ambiente é a tarefa por excelência da filosofia. Não tem nada a ver com "crítica cultural", uma frescura inventada pela escola de Frankfurt. A crítica cultural consiste em solapar as bases de uma cultura, mas proclamando ao mesmo tempo que o ser humano não pode se libertar dela nunca, só restando portanto estimular tudo quanto nela exista de negativo, de maldoso, de criminoso, para transformá-la numa cultura de ódio a si mesma, numa contracultura. É a idéia hegeliana do "trabalho do negativo" transformada em ativismo cultural. Um dos seus procedimentos mais característicos é depreciar a cultura vigente por meio de comparações pejorativas com outras culturas, concedendo a estas últimas o benefício do relativismo e espremendo aquela entre as exigências drásticas do moralismo absoluto. A crítica cultural inventou e dis-

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seminou a "guerra assimétrica". A análise filosófica, ao contrário, acredita que qualquer indivíduo pode transcender as limitações da sua cultura, pois se não fosse assim toda comparação entre culturas seria impossível. O teatro grego, antepassado imediato da filosofia, já escolhia de vez em quando um estrangeiro como herói do enredo trágico, para ensinar à platéia que a compaixão era universal, não limitada por fronteiras nacionais ou culturais. A negação fácil da possibilidade de conhecer verdades universais, a sujeição completa do homem ao condicionamento cultural, já é um crime contra a inteligência. A crítica cultural agrava esse crime, ao jogar a cultura contra si mesma e aprisionar os homens num emaranhado insuportável de conflitos do qual buscarão alívio em explosões revolucionárias perfeitamente vãs. Uma vez, uma cretiníssima apresentadora de televisão, querendo me fazer ciúme, disse que o melhor crítico cultural brasileiro era o Sérgio Augusto. Concordei. Não sou nem jamais serei um crítico cultural. Para isso serve qualquer Sérgio Augusto. Meu negócio não é transformar a cultura numa ratoeira. É fazer com que os homens enxerguem para além da sua cultura, mostrar-lhes que a ratoeira não existe exceto como ilusão hipnótica. Para despertá-los do sono hipnótico da cultura brasileira recente, era preciso reconstruir de alto a baixo uma visão da história infectada de cacoetes marxistas inconscientes. O trabalho teórico que desenvolvi para isso está registrado em gravações e apostilas de cursos e conferências proferidos no Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro na década de 90 e sobretudo na PUC do Paraná entre 2001 e 2005. Os artigos que publiquei no Diário do Comércio, e que constituem o miolo desta edição do Digesto Econômico, são a ilustração prática dos conceitos e métodos ali expostos. É claro que podem ser lidos e compreendidos sem essa retaguarda teórica. Se estou avisando que ela existe, é para fazer notar que nada naqueles artigos é opinião solta, efusão momentânea de impressões pessoais. Tudo, neles - exceto, evidentemente, algum lapso devido à pressa da redação jornalística ou a desatenções do autor -, tem razões de ser, nem sempre declaradas, que recuam até os fundamentos últimos do problema abordado, o que quer dizer que, em princípio, para cada afirmação ali vertida há toda uma retaguarda de provas lógicas e documentais que não são apresentadas por extenso no corpo do texto, mas que, na maior parte dos casos, já foram desenvolvidas oralmente em cursos, debates e conferências e podem sê-lo novamente em caso de necessidade. No que diz respeito aos fundamentos teóricos, os de maior importância prática para as breves análises expostas nesses artigos são o atomismo histórico-sociológico, a teoria do sujeito da História, a teoria das castas e a teoria dos quatro discursos.

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O primeiro é um preceito metodológico segundo o qual toda generalização histórico-sociológica que não possa ser decomposta analiticamente até os mínimos atos e personagens individuais cuja somatória a compõe não passa de uma figura de linguagem, enganadora no mais das vezes. Se, por exemplo, acompanhando o consenso historiográfico vigente (criado pelos marxistas), dizemos que na Revolução Francesa de 1789 "a burguesia tomou o poder", essa sentença só faz sentido se pudermos apontar, entre os líderes desse movimento, um número significativo de empreendedores capitalistas. O fato é que não havia ali praticamente nenhum. A Revolução Francesa foi um movimento anticapitalista e antiburguês, determinando a longo prazo o rumo acentuadamente estatizante e socializante tomado pela economia francesa e provocando inevitavelmente com isso a decadência do país que era o mais rico e poderoso do mundo. O mito da "revolução burguesa" é talvez o fantasma mais assombroso que já se apossou da mente dos sociólogos e historiadores brasileiros, infundindo nela uma infinidade de erros letais na interpretação do nosso passado e presente. A teoria do sujeito da História diz que nenhum grupo, comunidade ou entidade de qualquer natureza pode ser o agente da transformação histórica se não atende a três condições: (1) tem de possuir uma unidade real e não apenas simbólica e analógica; (2) essa unidade tem de ser forte o bastante para determinar por si os valores, preferências e escolhas dos indivíduos que as compõem; (3) tem de continuar existindo por tempo suficiente para garantir uma continuidade de ação para além do prazo de vida desses indivíduos. Essas condições, embora escapem quase sempre à visão dos intérpretes sociológicos da História, são óbvias tão logo enunciadas. Na verdade elas são o único conteúdo identificável do conceito mesmo de ação histórica. Basta um exame superficial para evidenciar que, dentre os usuais "sujeitos da história" - as classes, as nações, os Estados, as raças, as culturas - não atendem de maneira alguma às três juntas, isto é, não são verdadeiros sujeitos da história, mas sombras projetadas pelos verdadeiros agentes. Sujeitos da História, em sentido estrito, são somente os seguintes: (a) as igrejas e seitas religiosas; (b) as sociedades místicas, iniciáticas e esotéricas; (c) as dinastias aristocráticas e oligárquicas; (d) os movimentos políticos organizados como seitas religiosas ou sociedades esotéricas. Não existe um quinto agente histórico (o estudo dos fatores históricos extra-humanos, naturais ou sobrenaturais, é um tema em separado, que seria longo explicar aqui). As nações, classes, Estados etc., são cenários, locais ou objetos da ação, nunca agentes. A História contada com esses falsos agentes como focos produz continuidades e encadeamentos causais simbólicos e ilusórios, como o das figuras de animais formadas pelas nuvens em movimento. Por trás desses nexos aparentes, sem-


pre se encontrará, escavando um pouco, a mão dos verdadeiros agentes. Muitas das análises que apresentei no Diário do Comércio não são senão exemplos de aplicação desse método. A teoria das castas, que adaptei da tradição hindu, visa a descobrir a verdade por trás da falsa identidade histórica das classes sociais e sobretudo por trás do mito da "ideologia de classe". Todas as supostas "ideologias de classe" foram inventadas por uma só classe: os intelectuais. E destinam-se tão-somente a encobrir a manipulação política das demais classes pelos intelectuais. Mas estes não são, em nenhum sentido socio-econômico identificável, uma classe. São uma casta. As castas são tipos psicológicos (em geral distribuídos pelas várias classes) e por isso são determinantes diretos da conduta humana. Não são propriamente agentes da história, mas são o molde estrutural onde esses agentes nascem e se definem. Por isso, toda e qualquer ação histórica leva uma marca de casta. As quatro castas têm existência permanente, independentemente das variações da estrutura socio-econômica. Perceber a identidade de casta dos agentes históricos é essencial para compreender a lógica de suas ações. A teoria dos quatro discursos - a única, das aqui mencionadas, que circula em formato de livro (Aristóteles em Nova Perspectiva, Rio, Topbook, 1998, reed. São Paulo, É-Realizações, 2006) -- é um estudo dos meios essenciais de persuasão, portanto dos meios de influência do homem sobre o homem. Ela ajuda a realizar a distinção entre o discurso dos agentes do processo e o discurso explicativo do observador analítico - distinção que, segundo Aristóteles, é o começo da ciência política. Essa distinção desemboca numa outra, de alto valor prático imediato. Todo discurso de agente contém, de maneira compactada e indistinta, dois elementos: os dados verdadeiros ou falsos que ele possui sobre a situação e as ações que pretende desencadear com o seu discurso. A força da sua influência sobre os ouvintes depende, muitas vezes, de que esses dois elementos permaneçam mesclados. Por isso mesmo há em toda ação histórica um componente de mistificação, que pode chegar à completa automistificação. A análise decompõe esses fatores, tornando inteligível o processo na mesma medida em que fornece os meios de neutralizar, se preciso, a força agente. Muitos dos artigos que publiquei no Diário do Comércio não são senão aplicações dessa distinção, cuja importância vai muito além do puro interesse científico. Meus alunos - e os poucos leitores de meus livros e apostilas - percebem claramente que esses artigos, como quaisquer outros publicados por mim, são apenas portas de entrada para toda uma rede de conexões subterrâneas. Para os demais leitores, essa rede permanece invisível, mas basta um pouquinho de imaginação para suspeitar que ela existe, e basta um pouquinho de sanidade intelectual para despertar o desejo de

buscá-la, ou pelo menos de abster-se de opinar até a posse de maiores conhecimentos. Como imaginação e sanidade intelectual faltam quase por completo aos formadores de opinião midiática e universitária, praticamente tudo o que esses senhores escreveram ou disseram sobre o meu pensamento político (para nada dizer das opiniões abalizadíssimas de estudantes semi-analfabetos que superlotam as listas de discussão na internet) é pura fantasia construída em cima de fragmentos isolados. Nunca esperei deles outra coisa. Numa vida anormalmente agitada de jornalista, conferencista itinerante, editor de textos alheios, micro-empresário, ongueiro virtual e agora correspondente no Exterior, não tive tempo de organizar para publicação as gravações e transcrições de minhas aulas, que no mais modesto dos cálculos sobem a vinte mil páginas de texto. Nem mesmo artigos de jornal pude coligir e publicar em livro desde o segundo volume de O Imbecil Coletivo (Topbooks, 2000). Vocês podem portanto imaginar a minha alegria quando a Associação Comercial de São Paulo sugeriu a publicação desta coletânea. Ela é o primeiro passo para que, aos poucos, a unidade do meu pensamento político - e da elaboração filosófica por baixo dele - comece a se tornar visível fora do meu círculo de alunos. Quanto ao título, creio que não preciso explicá-lo muito. Fisicamente, o Brasil parece continuar ancorado no solo, mas, psicologicamente, está vagando em algum lugar da estratosfera. Sem a menor idéia do que se passa no mundo, tem opiniões sobre tudo e as emite com uma paixão, com um furor, que já prova serem frutos da autopersuasão imaginária, sempre mais emocionante do que a mera observação dos fatos. Daí a necessidade destas cartas de um terráqueo, modestas tentativas de trazer de volta ao nosso velho planeta uma nação perdida no espaço.

OLAVO DE CARVALHO Richmond, Virginia, 17 de janeiro de 2007.

O autor sentado na estátua de Lênin, atrás do Palácio Brancovan, na Romênia

Arquivo pessoal

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Obviedades temíveis

A

esta altura já se tornou óbvio que mesmo alguns dos mais ferrenhos acusadores da corrupção governamental estão antes interessados em salvar a imagem do PT do que em descobrir a verdade. Já disse dezenas de vezes e repito: a esquerda organizada - não o PT sozinho, mas a articulação dos partidos pertencentes ao Foro de São Paulo - é mais poderosa que o Parlamento, mais poderosa que o empresariado, mais poderosa que a Justiça, mais poderosa que a Igreja, mais poderosa que a mídia, mais poderosa que as Forças Armadas. Ninguém tem meios de puni-la, faça ela o que fizer. O Estado brasileiro, para ela, é apenas matéria dúctil da qual ela se servirá a seu belprazer, moldando-a e remoldando-a à sua imagem e semelhança, no instante em que quiser, no estilo em que quiser, sem suscitar senão reclamações isoladas, débeis e impotentes. O simples fato de que seus opositores se limitem a imputações de detalhe, sem coragem ou capacidade para denunciar o esquema ideológico e estratégico por trás de tudo, já é a prova mais contundente de que eles estão derrotados, submissos, agarrando-se a subterfúgios fúteis para não ter de enxergar a extensão da tragédia em que uma persistente covardia os mergulhou. Disputam no varejo porque sabem que, no atacado, já perderam. E não falo só do Brasil: o continente latino-americano, com exceção da Colômbia, do Chile e dos pequenos países da América Central, já está sob o domínio comunista e não sairá ileso dessa brincadeira, como nenhum povo submetido a experiência similar jamais saiu. Desde que os setores mais vitalmente interessados na sobrevivência da democracia capitalista caíram no engodo do "fim do comunismo" e reprimiram em si próprios toda veleidade de anticomunismo, estavam virtualmente mortos e enterrados. A começar pelos grão-senhores da mídia, coelhinhos assustados, trêmulos ante os chefetes comunistas que eles próprios nomearam e ante os bancos oficiais que prestam socorro a suas empresas periclitantes. A sorte do continente latino-americano está decidida: o futuro chama-se União das Repúblicas Socialistas da América Latina. A profecia de Fidel Castro, lançada na IV Assembléia do Foro de São Paulo, está em vias de se realizar plenamente: o movimento comunis-

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Luiz Guedes


ta internacional já está reconquistando na América Latina tudo o que perdeu no Leste Europeu. Com uma diferença: no Leste Europeu ele avançou sobre cadáveres de heróis e mártires; na América Latina vai deslizar suavemente sobre a pasta amorfa da pusilanimidade, da omissão e do colaboracionismo. E não se iludam com uma intervenção salvadora dos EUA. A ascensão do comunismo na América Latina é do mais alto interesse da esquerda chique americana que aqui representa a nata do poder econômico e, na escala mundial, a vanguarda intelectual e financeira do globalismo. É verdade que aqui essa gente enfrenta uma resistência feroz dos conservadores e nacionalistas, mas estes começaram a lutar muito tarde, só na década de 70, ao passo que a esquerda já dominava os círculos de elite, as universidades, as diversões públicas e a grande mídia desde os anos 30. Hoje os esquerdistas são os donos das verbas oficiais de ajuda ao Terceiro Mundo, que, junto com o dinheiro das fundações multibilionárias, fluem para os movimentos revolucionários e são negados a tudo o que seja ou pareça "de direita". Experimentem. Tirem a prova. Façam um projeto inspirado em valores judaico-cristãos, na defesa dos direitos individuais e da economia de mercado, e tentem obter ajuda de alguma instituição governamental ou megafundação americana. Na melhor das hipóteses, receberão evasivas educadas. Depois inventem alguma tolice alegando "combate às desigualdades", abortismo, feminismo, direitos gays, etc.: os cofres se abrirão generosamente. É claro que aqui existe muita gente contra isso, é claro que os conservadores têm hoje o apoio da maioria da população, é claro que uma redescoberta dos valores americanos tradicionais tem criado dificuldades excepcionais para a elite esquerdista, mas ainda há pela frente uma luta de muitas décadas antes que isso possa se refletir numa mudança efetiva da política internacional americana. Mesmo no Oriente Médio, onde o plano Bush de espalhar a democracia entre os povos islâmicos vem alcançando sucessos espetaculares - reconhecidos até no Brasil por um esquerdista doente como Caio Blinder -, o apoio interno ao presidente é continuamente boicotado por meio de campanhas de propaganda, mentirosas até à alucinação, que arriscam abortar a ação americana e devolver o Iraque à quadrilha de Saddam Hussein. Como, nessas condições, poderiam os EUA intervir na América Latina? Se a própria esquerda alardeia como realidade iminente o que é de fato uma impossibilidade fla-

grante, é porque sabe utilizar o duplo efeito, estimulante e tranqüilizante, da propaganda enganosa: inocular medo e ódio nos corações de nacionalistas sonsos (militares especialmente), anestesiar empresários idiotas infundindo-lhes uma esperança insensata. Mas talvez a insensatez maior dos antipetistas seja a confiança que têm no PSDB. Esse partido pertence à Internacional Socialista, foi responsável durante o governo Fernando Henrique pela transformação do MST no mais poderoso movimento de massas do continente e pela introdução maciça da propaganda comunista nas escolas. Aceitá-lo como encarnação da "direita" é cair na armadinha verbal do petismo, que demarcou a esquerda moderada como forma extrema de direitismo permitido, criminalizando tudo o mais para assegurar a si próprio o domínio do espectro político inteiro, bloqueando o surgimento de uma autêntica oposição capitalista-democrática. O próprio Fernando Henrique, sob as palmas entusiásticas do petista Christovam Buarque, já declarou que seu partido não tem divergências ideológicas ou estratégicas com o PT, que entre eles não há senão miúdas disputas de poder (inevitáveis mesmo dentro de um regime de tipo soviético) e que os objetivos finais de um e de outro são exatamente os mesmos. A malícia pueril brasileira pode enxergar nessa declaração nada mais que uma concessão da boca para fora, um golpe de astúcia caipira. Mas Fernando Henrique não é estúpido o bastante para querer enganar um adversário tarimbado por meio da lisonja barata. Estúpido é o ouvinte que não percebe que o ex-presidente disse apenas uma verdade factual, material, auto-evidente para todos os petistas e tucanos informados. Petismo e tucanismo correspondem, no microcosmo nacional, ao comunismo e ao socialismo fabiano na escala internacional. O socialismo fabiano é a ideologia orientadora da Comunidade Européia e, em larga medida, da ONU (leiam The European Union Collective, de Christopher Story, Londres, Edward Harle, 2002). Sua idéia básica é instaurar a ditadura socialista - o pleno domínio do Estado sobre todas as iniciativas humanas - não através da revolução, mas de mudanças progressivas na legislação. O símbolo do socialismo fabiano é a tartaruga, designando a lentidão persistente em contraste com a precipitação comunista (durante todas as reuniões de fundação da Comunidade Européia, a mesa diretora ostentou uma tartaruga de louça, trazida pelo ex-presidente francês Valéry Giscard d'Estaing). Hoje sabe-se que os criadores do socialismo fabiano

A esquerda organizada é mais poderosa que o parlamento, mais poderosa que o empresariado, mais poderosa que a Justiça.

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Les Stone/Corbis

A América Latina está quase toda sob domínio comunista e não sairá ilesa dessa brincadeira

Diário do Comércio 01/08/2005

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- Sidney e Beatrice Webb - agiam sob orientação direta do governo soviético, apresentando como alternativa ao comunismo aquilo que era apenas o comunismo agindo por meios mais anestésicos. Passados oito décadas, a divisão de trabalho não mudou. Também não mudaram em nada as briguinhas internas que jogam areia nos olhos da platéia. Quando Fernando Henrique declara que, nas investigações sobre o escândalo do Mensalão, é importante "não destruir o PT", ele sabe o que está dizendo. Trata-se de garantir para o PSDB um lugar melhorzinho no esquema de poder socialista, não de eliminar o esquema enquanto tal. O tremendo respaldo internacional que esse esquema tem nos círculos globalistas da Europa e dos EUA pode ser medido pela paparicação de Lula por parte da grande mídia americana (arraigadamente anti-Bush), de vários governos europeus e do próprio Fundo Monetário Internacional, que aí no Brasil ninguém parece saber que é um órgão da burocracia globalista, não um baluarte da liberdade econômica como o apresentam os esquerdistas para camuflar a ajuda que recebem dele. Se há algo que me desgosta e me irrita é ter de abandonar o plano das análises e diagnósticos, onde me movo à vontade, pelo das sugestões práticas que não cabem ao estudioso e sim aos políticos. Odeio dar conselhos. Mas há um que não posso reprimir. É de uma burrice insana tentar combater com acusações pontuais um esquema estratégico abrangente, que inclui desde o envenenamento ideológico das crianças pequenas até vastas redes internacionais de apoio econômico, político, publicitário e mili-

tar. Se vocês querem fazer algo de efetivo contra a hegemonia esquerdista, parem de se iludir com a eficácia utópica das meias-medidas, parem de confiar em comissões de inquérito presididas pelos próprios investigados, parem de querer furar com alfinetes uma couraça de elefante. Admitam que, contra uma estratégia comunista de envergadura continental, só uma estratégia anticomunista de idênticas proporções pode alguma coisa. Admitam que só o que os pode salvar é aquilo que vocês mais temem: o enfrentamento ideológico sistemático, abrangente, completo. Assumam a defesa dos valores judaico-cristãos, do modelo ocidental de democracia, das liberdades individuais e declarem em voz alta o nome do inimigo: comunismo. Se vocês têm medo até mesmo de nomear o bicho, como poderão vencê-lo? Sei que é tarde, é demasiado tarde, para começar uma briga dessas proporções. Mas há algumas coisas que podem ser feitas com meios modestos e de grande eficácia. Uma delas é, admitindo francamente que já não existe no Brasil autoridade superior à esquerda organizada, reconhecer que está na hora de apelar ao julgamento internacional, usando as armas do próprio globalismo contra os seus protegidos locais. Não custa nada algum grupo interessado encaminhar à Organização dos Estados Americanos uma petição requerendo uma comissão investigativa internacional, independente, para averiguar os crimes do PT. Duvido que alguém aí tenha coragem para isso, mas, quando todas as portas se fecham, é preciso lembrar que ainda existem janelas. Direi mais sobre isso nos próximos artigos.


Luis Acosta/AFP

o s s e f n o c u é r , Lula

E

u deveria estar grato ao sr. presidente da República. Quando praticamente a mídia nacional inteira se empenha em camuflar as atividades ou até em negar a existência do Foro de São Paulo, tachando de louco ou fanático aquele que as denuncia, vem o fundador mesmo da entidade e dá todo o serviço, comprovando de boca própria as suspeitas mais deprimentes e algumas ainda piores que elas. O discurso presidencial de 2 de julho de 2005, pronunciado na celebração dos quinze anos de existência do Foro e reproduzido no site oficial do governo, http://www.info.planalto.gov.br/download/discursos/pr812a.doc, é a confissão explícita de uma conspiração contra a soberania nacional, crime infinitamente mais grave do que todos os delitos de corrupção praticados e acobertados pelo atual governo; crime que, por si, justificaria não só o impeachment como também a prisão do seu autor. À distância em que estou, só agora tomei ciência integral desse documento singular, mas os chefes de redação dos grandes jornais e de todos os noticiários de rádio e TV do Brasil es-

tiveram aí o tempo todo. Tendo sabido do discurso desde a data em que foi pronunciado, ainda assim continuaram em silêncio, provando que sua persistente ocultação dos fatos não foi fruto da distração ou da pura incompetência: foi cumplicidade consciente, maquiavélica, com um crime do qual esperavam obter não se sabe qual proveito. O sentido destes parágrafos, uma vez desenterrado do lixo verbal que lhe serve de embalagem, é de uma nitidez contundente: "Em função da existência do Foro de São Paulo, o companheiro Marco Aurélio tem exercido uma função extraordinária nesse trabalho de consolidação daquilo que começamos em 1990... Foi assim que nós, em janeiro de 2003, propusemos ao nosso companheiro, presidente Chávez, a criação do Grupo de Amigos para encontrar uma solução tranqüila que, graças a Deus, aconteceu na Venezuela. E só foi possível graças a uma ação política de companheiros. Não era uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente. Quem está lembrado, o Chávez participou de um dos foros que fizemos em Havana. E graças a essa relação foi possível construirmos, com muitas divergências políticas, a consolidação do que aconteceu na Venezuela, com o referendo que consagrou o Chávez como presidente da Venezuela.

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"Foi assim que nós pudemos atuar junto a outros países com os nossos companheiros do movimento social, dos partidos daqueles países, do movimento sindical, sempre utilizando a relação construída no Foro de São Paulo para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política." O que o sr. presidente admite nesses trechos é que: 1º. O Foro de São Paulo é uma entidade secreta ou pelo menos camuflada ("construída... para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política"). 2º. Essa entidade se imiscui ativamente na política interna de várias nações latino-americanas, tomando decisões e determinando o rumo dos acontecimentos, à margem de toda fiscalização de governos, parlamentos, justiça e opinião pública. 3º. O chamado "Grupo de Amigos da Venezuela" não foi senão um braço, agência ou fachada do Foro de São Paulo (" em função da existência do Foro... foi que propusemos ao companheiro presidente Chavez..."). 4º. Depois de eleito em 2002, ele, Luís Inácio Lula da Silva, ao mesmo tempo que pró forma abandonava seu cargo de presidente do Foro de São Paulo, dando a impressão de que estava livre para governar o Brasil sem compromissos com alianças estrangeiras mal explicadas, continuou trabalhando clandestinamente para o Foro, ajudando, por exemplo, a produzir os resultados do plebiscito venezuelano de 15 de agosto de 2004 (" graças a essa relação foi possível construirmos a consolidação do que aconteceu na Venezuela "), sem dar a menor satisfação disso a seus eleitores. 5º. A orientação quanto a pontos vitais da política externa brasileira foi decidida pelo sr. Lula não como presidente da República em reunião com seu ministério, mas como participante e orientador de reuniões clandestinas com agentes políticos estrangeiros ("foi uma ação política de companheiros, não uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente"). Acima de seus deveres de presidente ele colocou sua lealdade aos "companheiros". O sr. presidente confessa, em suma, que submeteu o país a decisões tomadas por estrangeiros, reunidos em assembléias de uma entidade cujas ações o povo brasileiro não devia conhecer nem muito menos entender. Não poderia ser mais patente a humilhação ativa da soberania nacional, principal-

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Fala de Lula de 2 de julho é a confissão explícita de uma conspiração contra a soberania nacional

mente quando se sabe que entre as entidades participantes dessas reuniões decisórias constam organizações como o MIR chileno, seqüestrador de brasileiros, e as Farc, narcoguerrilha colombiana, responsável, segundo seu parceiro Fernandinho Beira-Mar, pela injeção de duzentas toneladas anuais de cocaína no mercado nacional. Nunca um presidente eleito de qualquer país civilizado mostrou um desprezo tão completo à Constituição, às leis, às instituições e ao eleitorado inteiro, ao mesmo tempo que concedia toda a confiança, toda a autoridade, a uma assembléia clandestina repleta de criminosos, para que decidisse, longe dos olhos do povo, os destinos da nação e suas relações com os vizinhos. Nunca houve, no Brasil, um traidor tão descarado, tão completo e tão cínico quanto Luís Inácio Lula da Silva. A maior prova de que ele ludibriou conscientemente a opinião pública, mantendo-a na ignorância das operações do Foro de São Paulo, é que, às vésperas da eleição, amedrontado pelas minhas constantes denúncias a respeito dessa entidade, mandou seu "assessor para assuntos internacionais", Giancarlo Summa, acalmar os jornais por meio de uma nota oficial do PT, segundo a qual o Foro era apenas um inocente clube de debates, sem nenhuma atuação política (v. http://www.olavodecarvalho.org /semana/10192002globo.htm). E agora ele vem se gabar da "ação política de companheiros", praticada com recursos do governo brasileiro às escondidas do Parlamento, da justiça e da opinião pública. Comparado a delito tão imenso, que importância têm o Mensalão e fenômenos similares, senão enquanto meios usados para subsidiar operações parciais no conjunto da grande estratégia de transferência da soberania nacional para a autoridade secreta de estrangeiros? Pode haver desproporção maior do que entre vulgares episódios de corrupção e esse crime supremo ao qual serviram de instrumentos? A resposta é óbvia. Mas então por que tantos se prontificam a denunciar os meios enquanto consentem em continuar acobertando os fins? Aqui a resposta é menos óbvia. Requer uma distinção preliminar. Os denunciantes dividem-se em dois tipos: (A) indivíduos e grupos comprometidos com o esquema do Foro de São Paulo, mas não diretamente envovidos no uso desses meios ilícitos em especial; (B) indivíduos e grupos alheios a uma coisa e à outra. O raciocínio dos primeiros é simples: vão-se os anéis mas fiquem os dedos. Já que se tornou impossível continuar ocultando o uso dos ins-


trumentos ilícitos, consentem em entregar às feras os seus operadores mais notórios, de modo a poder continuar praticando o mesmo crime por outros meios e outros agentes. O conteúdo e até o estilo das acusações subscritas por essas pessoas revelam sua natureza de puras artimanhas diversionistas. Quando atribuem a corrupção do PT, que vem desde 1990, a acordos com o FMI firmados a partir de 2003, mostram que sua ânsia de mentir não se inibe nem diante da impossibilidade material pura e simples. Quando lançam as culpas sobre "um grupo", escamoteando o fato de que as ramificações da estrutura criminosa se estendiam da Presidência da República até a prefeituras do interior, abrangendo praticamente o partido inteiro, provam que têm tanto a esconder quanto os acusados do momento. Mais complexas são as motivações do grupo B. Em parte, ele compõe-se de personagens sem fibra, física e moralmente covardes, que preferem ater-se ao detalhe menor por medo de enxergar as dimensões continentais do crime total. Há também o subgrupo dos intelectualmente frouxos, que apostaram na balela da "morte do comunismo" e agora se sentem obrigados, para não se desmentir, a reduzir a maior trama golpista da história da América Latina às dimensões mais manejáveis de um esquema de corrupção banal, despolitizando o sentido dos fatos e fingindo que Lula é nada mais que um Fernando Collor sem jet ski. Há os que, por oportunismo ou burrice, colaboraram demais com a ascensão do partido criminoso e agora se sentem divididos entre o impulso de se limpar do ranço das más companhias e o de minimizar o crime para não sentir o peso da ajuda cúmplice que lhe prestaram. Há os pseudo-espertos, que dão refrigério ao inimigo embalando-se na ilusão louca de que é mais viável derrotá-lo roendo-o pelas beiradas do que acertando-lhe um golpe mortal no coração. Há por fim os que realmente não estão entendendo nada e, com o tradicional automatismo simiesco da fala brasileira, saem apenas repetindo o que ouvem, na esperança de fazer bonito. Peço encarecidamente a todos os inflamados acusadores anticorruptos das últimas semanas - políticos, donos de meios de comunicação, empresários, jornalistas, intelectuais, magistrados, militares - que examinem cuidadosamente suas respectivas consciências, se é que alguma lhes resta, para saber em qual desses subgrupos se encaixam. Pois, excetuando aqueles poucos brasileiros de valor que subscreveram em tempo as denúncias contra o Foro de São Paulo, todos os demais fatalmente se encaixam em algum.

O chamado "Grupo de Amigos da Venezuela" não foi senão um braço ou fachada do Foro de São Paulo

Os intelectualmente frouxos fingem que Lula é nada mais do que um Fernando Collor sem jetski

Diário do Comércio 26/09/2005

Seria absurdo imputar tão somente a Lula e ao Foro de São Paulo a culpa do apodrecimento moral brasileiro, esquecendo a contribuição que receberam desses moralistas de ocasião, tão afoitos em denunciar as partes quanto solícitos em ocultar o todo. Nada poderia ter fomentado mais o auto-engano nacional do que essa prodigiosa rede de cumplicidades e omissões nascidas de motivos diversos mas convergentes na direção do mesmo resultado: criar uma falsa impressão de investigações transparentes, uma fachada de normalidade e legalidade no instante mesmo em que, roída invisivelmente por dentro, a ordem inteira se esboroa. A destruição da ordem e sua substituição por " um novo padrão de relação entre o Estado e a sociedade ", decidido em reuniões secretas com estrangeiros, tal foi o objetivo confesso do sr. Lula. Esse objetivo, disse ele em outra passagem do mesmo discurso, deveria ser alcançado e consolidado " de tal forma que isso possa ser duradouro, independente de quem seja o governo do país ". O que se depreende da atitude daqueles seus críticos e acusadores é que, nesse objetivo geral, o sr. Lula já saiu vitorioso, independentemente do sucesso ou fracasso que venha a obter no restante do seu mandato. A nova ordem cujo nome é proibido declarar já está implantada, e sua autoridade é tanta que nem mesmo os inimigos mais ferozes do presidente ousam contestá-la. Todos, de um modo ou de outro, já se conformaram ao menos implicitamente em colocar o Foro de São Paulo acima da Constituição, das leis e das instituições brasileiras. Se reclamam de roubalheiras, de desvios de verbas, de mensalões e propinas, é precisamente para não ter de reclamar da transferência da soberania nacional para a assembléia continental dos "companheiros", como Hugo Chávez, Fidel Castro, os narcoguerrilheiros colombianos e os seqüestradores chilenos. É como a mulher estuprada protestar contra o estrago no seu penteado, esquecendo-se de dizer alguma coisinha, mesmo timidamente, contra o estupro enquanto tal. Talvez os feitos do sr. Lula e do seu maldito Foro não tenham trazido ao Brasil um dano tão vasto quanto essa inversão total das proporções, essa destruição completa do juízo moral, essa corrupção integral da consciência pública. Nunca se viu um acordo tão profundo entre acusado e acusadores para permitir que o crime, denunciado com tanto alarde nos detalhes, fosse tão bem sucedido nos objetivos de conjunto " sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem ".

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A prova cabal da mentira

S

Claudia Daut/Reuters

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ob o título "Paranóia", encontro no site oficial da campanha lulista ( h t t p : / / w w w . l u l a p r e s i d e nte.org.br/boletim.php?codigo=21) uma declaração sobre o Foro de São Paulo que deve ser analisada com a maior atenção e rigor, porque fornece a prova cabal de que o PT é um partido de sociopatas cínicos, amorais, sem escrúpulos, mentirosos até à alucinação. Publicado sem assinatura de autor, portanto endossado pelos chefes mesmos da campanha presidencial de Lula, o documento começa anunciando que "alguns artigos na imprensa e muitas mensagens na internet divulgam uma 'denúncia' seríssima: a de que o PT seria integrante de uma perigosa organização internacional chamada Foro de São Paulo." As aspas na palavra "denúncia" dão a entender que ela não é uma denúncia de maneira alguma, não é a revelação de ações graves e malignas, mas sim apenas uma tentativa artificiosa de fazer onda em torno de fatos já amplamente conhecidos ou inócuos. Veremos adiante se esses fatos são realmente assim. "Pois bem: a tal organização existe, chamase mesmo Foro de São Paulo mas só oferece perigo para os partidos neoliberais." Como não faz nenhum sentido reconhecer publicamente a existência de algo que já é publicamente reconhecido como existente, este parágrafo é uma confissão de que o Foro de São Paulo, a mais vasta e poderosa organização política da América Latina, fundada por duas celebridades mundiais (Lula e Fidel Castro) e composta por todos os líderes da esquerda continental, continua desconhecido do público geral após dezesseis anos de atividade. Mas será normal, inócuo e indigno de denúncia o fato de que tantos chefes de Estado, tantos líderes de partidos, tantos comandantes de guerrilhas tenham reuniões periódicas para discutir assuntos políticos durante mais de uma década e meia sem que ninguém fora do círculo dos eleitos fique sabendo de nada? Ou, ao contrário, a denúncia não tem nada de artificioso, é a revelação jornalística obrigatória de um fato importante e colocá-la entre aspas é que é uma tentativa pueril de esconder um elefante por baixo de um pires? Raciocinem um pouco. Mesmo que aqueles


indivíduos se reunissem sem qualquer intuito político, mesmo que fossem ali apenas para beber cerveja e jogar futebol-de-botão, o número e a magnitude deles já faria do acontecimento um alvo necessário e indispensável de atenção jornalística. O silêncio total da mídia a respeito assinalaria, no mínimo, uma falha profissional imperdoável, mesmo que o encontro se realizasse uma única vez. A persistência da omissão por dezesseis anos seguidos, mesmo se não levarmos em conta suas implicações políticas e a considerarmos apenas do ponto de vista técnico-jornalístico, já seria por si um fenômeno alarmante no mais alto grau. Ainda supondo-se que não houvesse nisso nenhum esforço de ocultação, apenas um lapso de atenção profissional, é evidente que uma gigantesca falha de cobertura, repetida uniformemente por todos os jornais, canais de TV e noticiários de rádio ao longo de tanto tempo, comprovaria uma epidemia geral de inépcia jornalística como nunca se viu na história mundial da mídia. Dizer que isso não constitui motivo de denúncia ultrapassa a margem do que se pode conceder à hipótese da estupidez. É cinismo puro e simples. É mentira consciente, produzida no intuito de ludibriar os votantes às vésperas de uma eleição. Mas quem, em sã consciência, pode acreditar numa tão vasta, geral e duradoura conjunção de inépcias jornalísticas acumuladas em todas as redações, em todas as cabeças de jornalistas do país ao longo de dezesseis anos por mero acaso, por pura coincidência? Se essa coincidência tivesse realmente acontecido, sua improbabilidade matemática seria tão gigantesca que, por si, o fenômeno mereceria estudo científico. Querer que acreditemos nisso é esperar que abdiquemos totalmente da inteligência racional e do senso das proporções, para apostar na palavra sacrossanta de um redator de aluguel a serviço de um partido de ladrões. Para qualquer observador com QI superior a 12, é claro que houve ocultação deliberada do Foro de São Paulo e, uma vez vazado o segredo, um esforço proposital de abafar o escândalo por meio de evasivas, desconversas e novas ocultações. Essas duas etapas da fraude se evidenciaram, respectivamente, no sumiço completo do site do Foro de São Paulo logo após eu começar a divulgar trechos das atas de suas assembléias, e na nota oficial do PT, assinada por seu assessor de imprensa Giancarlo Summa, que afirmava ser o Foro apenas um inofensivo centro de debates, sem intuito decisório, afirmativa que desmenti, com provas cabais, em

artigo publicado em O Globo em 19 de outubro de 2002 (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/10192002globo.htm). Não sei como o acordo de sumir com a notícia veio a ser obedecido tão fielmente por todos os órgãos de mídia (se bem que no Brasil eles não sejam tantos que não se possa suborná-los, ou intimidá-los, ou simplesmente seduzi-los por atacado). Mas sei de onde partiu a ordem de sumiço: partiu do próprio Foro de São Paulo, na pessoa do seu fundador e dirigente máxi-

mo, Luís Inácio Lula da Silva. Quem me contou isso? Foi ele mesmo, ora bolas! No seu discurso de 26 de setembro de 2005, comemorativo dos quinze anos de fundação do Foro, ele declarou que essa entidade era um sistema de relações construído entre ele e outros líderes esquerdistas "para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política". Pergunto ao autor do documento: Você não sabe ler, desgraçado? Não entende o que o seu próprio chefe admite com clareza máxima? Entende

Epitácio Pessoa/AE

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sim, e porque entende, esconde. No caso, esconder se torna ainda mais fácil porque o discurso com a confissão explícita da ocultação proposital também foi ocultado por sua vez: publicado no site oficial do governo (ht tp:// www.i nfo.p lanalt o.gov.br/d ownload/discursos/pr812a.doc), não foi citado por nenhum jornal, revista, canal de TV ou estação de rádio deste país, mesmo depois que o denunciei nas minhas colunas, aqui, no Jornal do Brasil e no Mídia Sem Máscara. Vai me dizer, moleque idiota, que isso também foi coincidência, mera coincidência? A segunda frase do parágrafo admite que o Foro é perigoso, "mas só para os partidos neoliberais". Não interessa, no momento, discutir o sentido objetivo do termo "neoliberal", que já investiguei em artigo anterior (http: //www.olavod ecarvalho.org/semana/050725dc.htm). Interessa que, para os esquerdistas em geral, incluindo o autor do documento, o termo designa pessoas e entidades que eles parecem não ter a menor dificuldade de identificar, tal o sentimento de certeza com que o aplicam a esses alvos. As duas perguntas que a afirmação suscita são, portanto: (a) Que tipo de perigo, concretamente falando, o Foro apresenta para os partidos que tenham a infelicidade de enquadrar-se na classificação de "neoliberais"?; (b) É realmente só esse o grupo ameaçado, ou os perigos aludidos se estendem também a outros grupos não mencionados? Com relação ao item "a", o autor nada esclarece. Como o documento se constitui de palavras escritas em defesa das ações do Foro, devemos portanto recorrer a estas para esclarecer o sentido daquelas. O que o Foro tem feito contra os neoliberais mostrará a quais novos perigos o autor do documento promete agora submetê-los. Por outro lado, o Foro não age dire t a m e n t e , m a s a t r a v é s d a s e n t i d a d e s que cumprem suas resoluções. Ora, as ações que essas entidades têm empreendido contra os chamados "neoliberais" constituem-se, em grande parte, de guerra cultural e combate político. O objetivo com que as empreendem foi declarado explicitamente pelo próprio inventor e mentor do Foro de São Paulo, Fidel Castro: "Erradicar o neoliberalismo" ( h t t p : / / w w w. p t . o rg . b r / s i t e / s e c re t arias_def/secretarias_int.asp?cod =2255&cod_sis=9&cat=7). Não se trata, portanto, de concorrer com o neoliberalismo nas eleições, alternando-se com ele no poder, democraticamente: trata-se de eliminá-lo, de varrê-lo do círculo das possibilidades social-

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Declaração sobre o Foro de São Paulo em site lulista fornece a prova de que o PT é um partido de sociopatas cínicos, amorais, sem escrúpulos, mentirosos até à alucinação.

É claro que houve ocultação deliberada do Foro de São Paulo e, uma vez vazado o segredo, um esforço proposital de abafar o escândalo com evasivas e desconversas (...)

mente admissíveis. O primeiro perigo que o Foro promete para os partidos inimigos é este: torná-los inviáveis como força política e cultural. A promessa é clara, e exclui in limine a possibilidade do rozídio no poder por via eleitoral, que supõe a existência política e cultural do adversário como força organizada. Pode-se concorrer com esse adversário, é claro, mas só como meio temporário destinado, em última instância, a "erradicá-lo". Nenhum partido ou organização rotulada como "neoliberal" jamais ambicionou "erradicar a esquerda". Limitam-se a tentar vencê-la nas eleições, quando podem, e em seguida aceitá-la como oposição democrática sem perspectiva de extinção. A assimetria é evidente. Se, porém, "ser erradicado" política e culturalmente já é temível o bastante, expondo milhões de pessoas ao perigo de ficar sem representação política ou meios de autodefesa coletiva, as entidades filiadas ao Foro não se contentam com perigo tão modesto. Entre elas constam organizações armadas como as Farc, o MIR chileno, os Tupamaros, que já enviaram para o beleléu, fisicamente, uma quantidade considerável de "neoliberais". O número exato é de cálculo difícil, mas já passou de algumas dezenas de milhares. O "perigo" anunciado é portanto bem claro: Neoliberais (seja isto lá o que for), nós vamos matar vocês. Os que sobrarem, nós vamos excluir da política e da vida social decente. O autor do documento é pérfido o bastante para deixar essa ameaça no ar com a certeza quase infalível de que fala em código, só para os do círculo interno, já que os de fora tomarão automaticamente a palavra "perigo" como mera hipérbole vazia, sem que lhes ocorra interpretar as palavras pelas ações e descobrir a presença explosiva da ameaça velada. Quanto à pergunta "b", isto é, se o perigo se circunscreve aos grupos neoliberais, não creio que seja possível enquadrar nessa classificação os milhares de jovens e crianças que morrem anualmente de drogas distribuídas pelas Farc no Brasil, na Colômbia, na Venezuela e nos EUA. Também não creio que haja algum neoliberalismo na mente de todas as vítimas de seqüestros realizados pelo MIR chileno, como por exemplo o publicitário Washington Olivetto, que não esconde suas simpatias esquerdistas. Mais rebuscado ainda seria chamar de neoliberais todas as vítimas assassinadas, em fuzilarias a esmo ou em disputas de quadrilhas, por bandidos que a Farc instruiu e treinou em técnicas de guerrilha urbana. Cá entre nós, que o autor do documento não nos


ouça, a afirmativa de que o Foro de São Paulo " só oferece perigo para os partidos neoliberais" é um eufemismo pérfido e mentiroso. O Foro de São Paulo oferece perigo para qualquer um que atravesse o seu caminho, não só no sentido de oposição política, mas até no de ficar plantado, por acaso, na direção de onde venha uma bala perdida disparada por qualquer discípulo local das Farc. O Foro de São Paulo oferece perigo para toda a população. Prossegue o documento: "O Foro de São Paulo, como diz o nome, é um 'foro' ou 'fórum', que faz reuniões anuais de que participam não apenas partidos latino-americanos, mas também partidos socialistas e progressistas da Europa, África e Ásia." Agora o fulano quer nos fazer engolir que as Farc são um partido político, não a quadrilha armada que vende cocaína no Brasil através de seu sócio Fernandinho Beira-Mar, atira nos soldados do nosso Exército e treina assassinos para que aterrorizem a população. O MIR chileno é um partido político, não uma quadrilha de seqüestradores armados? Para quem esse sujeito pensa que está escrevendo? Para crianças de sete anos? Para bobocas ludibriáveis ad infinitum? Se essa óbvia fraude publicitária não é crime eleitoral, eu sou o Lula em pessoa. A explicação acaciana de que o foro é um foro, "ou fórum", é uma papagaiada incumbida de revender, abreviadamente, a mentira boba inventada pelo sr. Giancarlo Summa, de que a entidade "é um foro de debates, e não uma estrutura de coordenação política internacional", à qual não preciso responder porque já respondi em 2002: "Porca miséria, quem já viu um mero foro de debates emitir 'resoluções' ao fim das assembléias? Resolução é decisão, é diretriz prática, é norma de ação. Uma assembléia que emite resoluções, subscritas unanimemente por organizações de vários países, não pode estar fazendo outra coisa senão coordená-las politicamente. É, aliás, o que afirma a resolução final do I Foro (São Paulo, 4 de julho de 1990), ao expressar seu intuito de ' avanzar propuestas de unidad de acción consensuales'. O esforço comum para formular uma 'unidade de ação' não pode ser puro debate, sobretudo quando se cristaliza em 'resoluções': ele é, no mais pleno sentido do termo, coordenação política." Mas o mais bonito do documento vem no anúncio do XIII encontro do Foro (San Salvador, janeiro de 2007), quando será discutido, entre outros temas, o "combate ao crime organizado, ao narcotráfico e à militarização".

Chega a ser maravilhoso. Que é que os mentores do Mensalão, os maiores narcotraficantes do continente e o único governante latinoamericano empenhado em militarizar seu país para a "guerra del pueblo entero" (nos termos dele mesmo) podem sugerir para combate aos três males que eles próprios personificam eminentemente? Não sei, mas sugiro aos interessados: prendam todos os participantes do XIII encontro do Foro de São Paulo, e verão o crime organizado, o narcotráfico e a militarização diminuírem consideravelmente na América Latina. Eles é que não vão trancafiarse a si próprios, como o Dr. Simão Bacamarte. O psiquiatra de Itaguaí era louco, mas teve a honestidade científica de reconhecer que o era. Libertou a população que ele próprio internara e foi para o hospício em lugar dela. Mutatis mutandis, os homens do Foro são bandidos, mas jamais hão de reconhecer que o são. Vão combater o crime metendo na cadeia quem não é seu cúmplice, reprimir o narcotráfico ampliando a clientela das Farc e eliminar o militarismo alistando todo mundo no exército de Hugo Chávez. A declaração do PT foi publicada um dia depois de sair no Jornal do Brasil o artigo em que eu sugeria ao candidato Alckmin cobrar do oponente explicações sobre suas atividades no Foro de São Paulo. Ela é um arremedo grotesco de antídoto, preparado às pressas por puro temor de um vexame politicamente catastrófico, a revelação, em pleno debate eleitoral, das ações clandestinas do sr. Luís Inácio Lula da Silva como parceiro e protetor dos maiores criminosos do continente. Em matéria de confronto polêmico, a denúncia do Foro de São Paulo é um autêntico roto-rooter capaz de trazer à tona crimes e perfídias em comparação com os quais tudo o que se denunciou do PT até hoje é agradinho. Não sei se o sr. Alckmin terá a coragem de usar o equipamento. Mas sei que a extrusão total da sujeira petista enterrada é inevitável, seja nesta eleição ou depois dela. Entendo o desespero da campanha petista. Mesmo que seja vencedor nesta eleição, Lula um dia sairá do poder pelo esgoto. O PT se acha esperto ao ponto de ser o "Partido Príncipe" sugerido por Antonio Gramsci. Mas terá sido o primeiro Príncipe, na História, que foi presunçoso e tolo o bastante para tentar enganar todo mundo indefinidamente. No fim, como diz a Bíblia, sua loucura será exposta aos olhos de todos. No outro mundo, Maquiavel está chorando e Abraham Lincoln está rindo, porque já conhecem o final da novela.

O primeiro perigo que o Foro de São Paulo promete para os partidos inimigos é este: torná-los inviáveis como força política e cultural. (...)

a extrusão total da sujeira petista enterrada é inevitável, seja nesta eleição ou depois. Mesmo que seja vencedor nesta eleição, Lula um dia sairá do poder pelo esgoto.

Diário do Comércio 16/10/2006

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Enrique Marcarian/Reuters

Traição anunciada Os presidentes Lula e Morales, em Puerto Iguazu, na Argentina: "povo sofrido" tem de romper contratos e assaltar seus parceiros de negócios.

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ela primeira vez na História humana, animal, vegetal ou mineral, um presidente, vendo as propriedades nacionais no exterior invadidas e confiscadas manu militari pelo governo local, se abstém por completo de defender os interesses e a honra da nação e, bem ao contrário, sai elogiando os autores da brutalidade. E o detalhe mais extravagante no caso é que o homem tenta dar a impressão de que, ao fazer isso, age como um cristão exemplar, voltando humildemente a outra face em vez de revidar o insulto. Seria assim, de fato, se não houvesse alguma diferença entre oferecer a própria face e a face dos outros - a face de um povo inteiro. A resposta do sr. Luís Ignácio Lula da Silva à agressão boliviana não é nenhuma efusão de bons sentimentos. É o ato de entreguismo mais explícito, mais descarado, mais cínico e mais subserviente que já se viu neste país ou em qualquer outro. Se causas faltassem para um impeachment, só essa conduta, isolada, já bastaria para justificá-lo com sobra de fundamento e razão. Nunca a traição foi tão clara, nunca tão patente a redução do patrimônio comum dos brasileiros a instrumento dócil de objetivos transnacionais sobre os quais os eleitores não foram consultados, aliás nem informados. Não seria certo, porém, dizer que foi acontecimento despro-

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vido de conseqüências pedagógicas úteis. Numa só alocução, com breves palavras, o sr. presidente rasgou de uma vez a fachada de "nacionalismo" com que a esquerda brasileira vinha enganando aqueles que não conhecem a sua história ou que não conseguem lembrá-la no momento apropriado. Espero que agora pelo menos alguns dos militares com que andei discutindo aqui semanas atrás, tão propensos a acreditar nas afeições patrióticas de quem quer que as proclame do alto de um palanque, entendam onde foi que se meteram ao buscar uma aproximação com a esquerda com base na confusão entre patriotismo e anti-americanismo. Também seria injusto dizer, no entanto, que foi ato inesperado, de improviso, surgido do nada. Num texto publicado em 2003, bem lembrado pelo articulista Cristiano Romero no jornal Valor, o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, expunha o que tem sido a diretriz básica da política externa do governo Lula. Diz Romero: "'Generosidade' nas relações com os vizinhos sul-americanos é um conceito caro a Samuel Pinheiro Guimarães. Num texto intitulado 'O Gato e a Onça: ameaças e estratégia', ele defende, como 'objetivo fundamental' da política externa, a construção do que chama de espaço econômico e político sul-americano. Diz que o Brasil deve fazer isso sem


qualquer pretensão hegemônica e com base na generosidade 'decorrente das extraordinárias assimetrias entre o Brasil e cada um de seus vizinhos'. 'É necessário praticar o princípio do tratamento especial e diferenciado quase que na proporção das assimetrias reais'." Isso já era, antecipadamente, o nosso presidente defendendo o direito que "um povo sofrido" tem de romper contratos e assaltar seus parceiros de negócios. Vendo a teoria de Guimarães ser levada à prática de maneira tão literal, o embaixador Rubens Barbosa, lembrando uma frase do ex-secretário de Estado americano John Foster Dulles, declarou que "essa é uma visão ingênua, porque países não têm amigos; têm interesses". Mas o que é ingenuidade à luz dos interesses nacionais manifestos pode ser esperteza desde o ponto de vista de interesses supranacionais ocultos. Quem leu o meu artigo no Diário do Comércio de 26 de setembro de 2005 (http://www.olavodecarvalho.org/semana/050926dc.htm) já sabia, desde então, que o sr. presidente, eleito em nome da "transparência", tomava decisões de governo em reuniões secretas com ditadores e criminosos estrangeiros, longe dos olhos do povo, do parlamento, da mídia e da justiça. Ele próprio, de porre ou sóbrio, tinha confessado isso no seu discurso de 2 de julho de 2005, pronunciado na celebração dos quinze anos de existência do Foro de São Paulo. Nesse documento fundamental, cujo significado a grande mídia nacional em peso fez questão de amortecer ou omitir completamente, Lula admitia que o Foro de São Paulo, fundado por ele e Fidel Castro, era uma entidade secreta ou pelo menos camuflada ("construída... para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política"), criada para imiscuir-se ativamente na política interna de várias nações latino-americanas, tomando decisões e determinando o rumo dos acontecimentos, à margem de toda fiscalização de governos, parlamentos, justiça e opinião pública. Ele admitia também haver decidido pontos fundamentais da política externa brasileira não enquanto presidente da República em reunião com seu ministério, mas enquanto participante e orientador de reuniões clandestinas com agentes políticos estrangeiros ("foi uma ação política de companheiros, não uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente"). Não seria possível uma con-

A resposta do sr. Luiz Ignácio Lula da Silva à agressão boliviana é o ato de entreguismo mais explícito, mais descarado, mais cínico e mais subserviente que já se viu

Se causas faltassem para um impeachment, só essa conduta, isolada, já bastaria para justificá-lo com sobra de fundamento e razão

fissão mais explícita de que, para esse homem, os interesses nacionais que nominalmente ele estava incumbido de representar deviam submeter-se a considerações mais altas, isto é, à estratégia de dominação continental comunista delineada pelo Foro de São Paulo. O compromisso dele não era para com seus eleitores brasileiros: era para com seus "companheiros" da Venezuela e de Cuba. Meses depois, em 12 de dezembro de 2005, mais explicitamente ainda, o Plano de Trabalho da Secretaria de Relações Internacionais do PT informava a "linha justa" a ser seguida pelo Partido: "Aprofundar a prática internacionalista do Partido, nos vários sentidos desta palavra: a solidariedade, as relações com organizações comprometidas com o socialismo e com outra ordem internacional, a mobilização interna e externa em torno de temas de nosso interesse, a ação parlamentar e de governos no plano internacional." Para que não pairassem dúvidas quanto ao tipo de ligações aí aludidas, o documento esclarecia: "Este é o motivo principal pelo qual o PT seguirá investindo suas energias na existência e consolidação do Foro de São Paulo, organização criada em 1990." Sabendo-se que desde os tempos da sua campanha eleitoral o próprio sr. Evo Imorales anunciava seu propósito de estatizar todos os campos de petróleo da Bolívia, as fontes nacionais já forneciam material mais que suficiente para que, delas, qualquer pessoa medianamente acordada concluísse qual seria a reação do nosso governo quando o presidente boliviano transformasse suas palavras em ações: afagar-lhe o ego paternalmente, como há décadas o partido dominante vem fazendo com todos os delinqüentes e transgressores, desculpando-os como vítimas da "desigualdade" e da "exclusão social". O princípio que se aplica aos indivíduos serve, com muito mais razão, a povos inteiros: a "generosidade" do sr. Samuel Pinheiro Guimarães não é senão a "política de direitos humanos" do governo, transposta à escala internacional. A evolução da caridade petista, nesse sentido, é notavelmente coerente: começou defendendo o direito de os trombadinhas da praça da Sé meterem as mãos nos bolsos dos transeuntes, depois foi gradativamente ensinando à nação estupefata que os invasores de terras eram vítimas em vez de agressores, que os únicos grupos criminosos merecedores de punição eram os policiais, os empresários e os políticos ditos conservadores, que o Estado deve indenizar os seqüestradores em vez dos seqüestrados, que os traficantes de cocaína são heróis da liberdade e que o combate ao narcotráfico é terrorismo de Estado. Que mais faltava, senão oferecer as garantias da alta moralidade ao assalto entre nações? Deixemo-nos, portanto, de nhem-nhem-nhem, como diria FHC. Ninguém foi surpreendido pelo imprevisível. Todo mundo sabia o que ia acontecer e como o sr. Lula ia reagir. O único aspecto surpreendente no episódio foi a falta completa do elemento surpresa. Mas, se foi assim, por que ninguém alertou para o perigo nem fez algo para evitá-lo? E, uma vez consumado o delito, por que tantos ainda hesitam em condená-lo como tal, por que se sentem ainda entorpecidos por dúvidas insanáveis, por que relutam em admitir a evidência da escalada criminosa, prote-

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Jorge Araújo/Folha Imagem

nácio Lula da Silva em reuniões que não precisavam nem mesmo ser secretas (já que ninguém queria divulgá-las), poderia ter chegado ao ponto a que chegou. Agora, é tarde para revertê-lo. Imaginar que resistências pontuais, que protestos avulsos contra abusos isolados possam deter a marcha do monstro ou aplacar sua voracidade é apegar-se a uma ilusão pateticamente impotente. Uma estratégia abrangente só pode ser combatida por outra estratégia abrangente, e a idéia mesma de conceber uma é coisa que ainda Agressão: tropas bolivianas ocupam a refinaria da Petrobras nem passa pela cabeça da maioria dos liberais e conservadores, persistentemente ocupados, depois de tudo o que aconteceu, em ater-se a lando por meio de tergiversações sem fim a conclusão de um elegantes declarações doutrinais genéricas e em evitar cuidasilogismo incontornável? dosamente o rótulo de "anticomunistas". A resposta é simples: para apreender o sentido de uma suDurante uma década e meia tentei fazer com que essa gente cessão de acontecimentos, não basta conhecer os fatos. É acordasse. Agora começo a achar que despertá-la seria uma preciso ter os conceitos, os termos gerais capazes de ilumicrueldade, tão feio é o panorama que se abriria ante seus olhos nar o desenho exato dos detalhes e permitir unificá-los num quando isso acontecesse. O melhor mesmo é deixar que durquadro coerente. No caso, o termo geral era "estratégia rema. O que a aguarda, em qualquer das hipóteses, é o sono etervolucionária continental", ou, mais sinteticamente, "Foro no. Seu fim está decretado e é quase tão irreversível quanto o de São Paulo". Só vista nessa perspectiva a multidão dos degiro da Terra em torno do Sol. Uns vinte anos atrás, Roberto talhes soltos adquiria uma forma, uma direção, um sentido. Campos, perguntado sobre qual seria o destino do Brasil no caOra, esse elemento articulador foi sistematicamente supriso de Lula ser eleito presidente, disse que haveria duas saídas: mido dos debates nacionais ao longo de dezesseis anos por Galeão e Cumbica. Não sei se a vida imita a arte. Mas no Brasil um decreto unânime dos donos da opinião pública. Quem ela imita cada vez mais o humorismo. Já começo a me abster de quer que ousasse falar disso, nos jornais, na TV ou no Parouvir piadas, por medo de que lamento, tornava-se primeiro alvo de chacota, depois era rose tornem realidade. Não me tulado de louco, depois abertamente difamado, depois boiacusem, porém, de derrotiscotado profissionalmente, por fim calado por meio da intimo, de matar as esperanças midação direta, como o sr. Lula fez no ar com o âncora da TV dos brasileiros. Ao contrário: o Record, Boris Casoy, ou da demissão pura e simples, como que tem matado os brasileiros veio a acontecer comigo e com o próprio Boris. é a esperança. Recusar-se a adNunca, na história universal da manipulação de notícias, se mitir uma situação desesperaviu um esforço tão vasto, tão geral, tão uniforme de ocultar o dora é recusar-se às ações deessencial, de desviar as atenções, de paralisar a inteligência da sesperadas que poderiam, vítima para que não sentisse de onde vinha o ataque. contra toda a esperança, reverTodos os chefes de redação e donos de empresas jornalísticas ter o quadro da tragédia. O deste país, com raríssimas e louváveis exceções que no conjunto Brasil não precisa de esperanacabaram não fazendo diferença prática, acumpliciaram-se atiça. Precisa é de coragem inflevamente, persistentemente ao projeto petista de anestesiar e esxível e lucidez heróica. Não me tupidificar a opinião pública, preparando-a para aceitar com apachamem de derrotista por retetada e ignóbil passividade o confisco progressivo dos seus dicusar-me a afagar cabeças moreitos, da sua liberdade e do seu patrimônio. Diário do Comércio ralmente covardes e intelecSem o silêncio cúmplice da mídia, jamais o projeto continen08/05/2006 tualmente indolentes. tal de poder, urdido por Fidel Castro, Hugo Chávez e Luís Ig-

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Por trás da subversão

Raul Reyes, em posto avançado na selva colombiana: visita de ilustres norteamericanos João Wainer/Folha Imagem/20/08/2003

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o começo de 2001, o Council on Foreign Relations (CFR), bilionário think tank de onde já emergiram tantos presidentes e secretários de Estado que há quem o considere uma espécie de metagoverno dos EUA, criou uma "força-tarefa", transbordante de Ph.-Ds, presidida pelo historiador Kenneth Maxwell e encarregada de sugerir modificações na política de Washington para com o Brasil. A primeira lista de sábios conselhos, publicada logo em 12 de fevereiro, enfatizava "a urgência de trabalhar com o Brasil no combate à praga das drogas e à sua influência corruptora sobre os governos". COMBATE APOLÍTICO - Naquele momento, destruídos os antigos cartéis, emergiam como dominadoras do mercado de drogas na América Latina as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, deliberadamente poupadas pelo Plano Colômbia do governo Clinton sob o pretexto de que o combate ao narcotráfico deveria ser apolítico. As Farc, uma organização comunista, haviam entrado no mercado das drogas para financiar suas operações terroristas e a tomada do poder. Desde 1990 faziam parte do Foro de São Paulo, onde articulavam suas ações com a estratégia geral da esquerda latino-americana, garantindo apoios políticos que as tornavam virtualmente imunes a perseguições em vários países onde operavam. No Brasil, por exemplo, a despeito das centenas de toneladas de cocaína que por meio do seu sócio Fernandinho Beira-Mar elas despejavam anualmente no mercado, e apesar dos tiros que de vez em quando trocavam com o Exército na floresta amazônica, as Farc eram bem tratadas: seus líderes circulavam livremente pelas ruas sob a proteção das autoridades federais e eram recebidos como hóspedes oficiais pelo governo petista do Estado do Rio Grande. Nunca, portanto, as relações entre narcotráfico e política tinham sido mais íntimas. Arriscavam tornar-se ainda mais intensas porque Luís Inácio Lula da Silva, fundador do Foro e portanto orquestrador maior da estratégia comum entre partidos legais de esquerda e organizações criminosas, parecia destinado a ser o próximo presidente do Brasil. A integração crescente de narcotráfico e política tornava portanto urgente combater "a praga das drogas e sua influência sobre os governos". E a única maneira de fazer isso era, evidentemente, desmantelar o Foro de São Paulo. Vista nessa perspectiva, a sugestão da "força-tarefa" parecia mesmo oportuna. Mas

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LaRouche (acima) e o pastor Pat Robertson: conspiração

só a interpreta assim quem não entende as sutilezas do metagoverno. O sentido literal da frase expressava, de fato, o oposto simétrico do que o CFR pretendia. ENTIDADE SEMI-SECRETA - Desde logo, o Foro de São Paulo, para continuar se imiscuindo impunemente na política interna de várias nações latino-americanas, necessitava manter sua condição de entidade discreta ou semi-secreta, e o próprio chefe da força-tarefa o ajudava nisso. Em artigo publicado na New York Review of Books - e, é claro, reproduzido na Folha --, Maxwell declarava que o Foro simplesmente não existia, porque "nem os mais bem informados especialistas com quem conversei no Brasil jamais ouviram falar dele". Para um historiador profissional, confiar-se à opinião de terceiros em vez de averiguar as fontes primárias, então fartamente disponíveis no próprio site do Foro, era uma escandalosa prova de inépcia. Na época, o sr. Maxwell pertencia (pertence ainda) ao círculo de iluminados que costumava (costuma ainda) ser ouvido com o máximo respeito pela mídia brasileira, especialmente pela Folha de S. Paulo. Isso parecia dar uma prova incontestável de que ele era de fato um jumento, tendo agido de maneira tão extravagante em pura obediência à sua natureza animal. Mas agora noto que isso não explicava tudo. Logo depois, outro intelectual de grande reputação nos círculos asininos, Luiz Felipe de Alencastro, professor de História do Brasil na Sorbonne e colunista da Veja, brilhava num debate do CFR emprestando à tese da inexistência do Foro de São Paulo o aval da sua formidável autoridade e ainda acrescentava ter sido eu o criador da lendária organização... Dar sumiço na coordenação continental do movimento comunista latinoamericano parecia ter-se tornado um hábito consagrado no CFR. BOLSA DE NY - Isso poderia ser apenas um inocente acúmulo de erros de interpretação se a entidade não tivesse cultivado simultaneamente um outro hábito: o das boas relações com as Farc. Em 1999, o presidente da Bolsa de Valores de Nova York, Richard Grasso, membro do CFR, fez uma visita de cortesia ao comandante das Farc, Raul Reyes, e saiu dali festejando a comunidade de interesses entre a quadrilha colombiana e a elite financeira "progressista" dos EUA. Logo em seguida, outros dois membros do CFR, James Kimsey, presidente emérito da America Online, e Joseph Robert, chefe do conglomerado imobiliário J. E. Robert, tinham um animado encontro com o próprio fundador das Farc, o ve-


lho Manuel Marulanda, e em seguida iam ao presidente colombiano Pastrana para tentar convencê-lo, com sucesso, a ficar de bem com a narcoguerrilha. FORO DE SÃO PAULO - A divisão de trabalho era nítida: os potentados do CFR negociavam com a pricipal força de sustentação militar e financeira do Foro de São Paulo, enquanto seus office-boys intelectuais cuidavam de despistar a operação proclamando que o Foro nem sequer existia. O CFR alardeava a intenção de eliminar a influência do narcotráfico nos governos ao mesmo tempo que contribuía ativamente para que essa influência se tornasse mais vasta e fecunda do que nunca. Ao CFR pertencia também o presidente Clinton, cujo famigerado Plano Colômbia tinha tido por principal resultado eliminar os concorrentes e entregar às Farc o quase monopólio do mercado de drogas na América Latina. Em 2002, a política latino-americana dos grão-senhores globalistas sofria um upgrade: ao esforço de embelezar as Farc somava-se agora o empenho de fazer do presidente do Foro de São Paulo o presidente do Brasil. Poucos dias antes da eleição de 2002, a embaixadora americana Donna Hrinak, que não sei se pertence pessoalmente ao CFR mas está entre os fundadores de uma entidade estreitamente associada a ele, o Diálogo Interamericano, fazia propaganda descarada do candidato petista, proclamando-o "uma encarnação do sonho americano". Embora fosse uma interferência ilegal e indecente de autoridade estrangeira numa eleição nacional - só não causando escândalo porque até a prepotência imperialista se torna amável quando trabalha para o lado politicamente correto -, e embora a fórmula verbal escolhida para realizá-la fosse uma absurdidade sem par (pois não consta que muitos americanos tivessem como suprema ambição parar de trabalhar aos 24 anos para fazer carreira num partido comunista), a expressão fez tanto sucesso que, logo em seguida, foi repetida ipsis litteris, sem citação de fonte, num artigo da New York Review of Books que celebrava entusiasticamente a vitória de Lula. Adivinhem quem assinava o artigo? O indefectível Kenneth Maxwell. ESQUERDISMO - Diante desses fatos, alguém ainda hesitará em perceber que as ligações entre o esquerdismo pó-de-arroz do CFR e o esquerdismo sangue-e-fezes dos Marulandas e Reyes são mais íntimas do que caberia na imagem estereotipada de uma hostilidade essencial e irredutível entre capitalistas reacio-

As Farc, uma organização comunista, haviam entrado no mercado das drogas para financiar suas operações terroristas e a tomada do poder

O famigerado Plano Colômbia de Clinton tinha por principal resultado eliminar os concorrentes e entregar às Farc o quase monopólio do mercado de drogas na América Latina

nários e comunistas revolucionários? O sentido dos acontecimentos é transparente demais, mas o cérebro das nossas elites ainda é capaz de projetar sobre eles a sua própria obscuridade para esquivar-se de tirar as conclusões que eles impõem. TEORIA DA CONSPIRAÇÃO - É claro que não endosso a idéia de que o CFR, como instituição, seja uma central conspiratória pró-comunista. Muitos de seus membros são patriotas americanos que jamais endossariam conscientemente uma política prejudicial ao seu país. Mas não dá para esconder que, ali dentro, um grupo de bilionários reformadores do mundo, incalculavelmente poderosos, tem induzido a entidade a influenciar o governo de Washington, quase sempre com sucesso, no sentido mais esquerdista e anti-americano que se pode imaginar. Nos EUA isso é um fato de conhecimento geral. Ninguém o coloca em dúvida. Só o que se discute é a "teoria da conspiração" usada para explicá-lo. Essa teoria tem entre seus defensores alguns intelectuais de primeira ordem como Carroll Quigley, professor de História em Harvard e mentor de Bill Clinton, ou o economista Anthony Sutton, autor do clássico Western Technology and Soviet Economic Development (4 vols.). Contribui ainda mais para a credibilidade da tese o fato de que o primeiro é um adepto entusiasta e o segundo um crítico devastador da elite globalista. E o que a torna ainda mais atraente é o fato de que o CFR, reconhecendo a existência dela ao ponto de lhe oferecer um desmentido explícito no seu site oficial, se esquive de debater com esses dois pesos-pesados e com dezenas de outros estudiosos sérios que escreveram a respeito, e prefira em vez disso ostentar uma vitória fácil e postiça num confronto com as versões popularescas e caricaturais da tese conspirativa, inventadas por tipos como Lyndon LaRouche e o pastor Pat Robertson. Este é um bom sujeito que jamais mentiria de caso pensado, mas é um boquirroto, campeão continental de gafes eclesiásticas. Discutir com ele é a coisa mais fácil, porque ele sempre vai acabar dizendo alguma inconveniência e pondo sua opinião a perder, mesmo quando está com a razão. LaRouche, que chegou a ser pré-candidato presidencial pelo Partido Democrata, é ele próprio um conspirador que só enxerga as conspirações dos outros pelo prisma deformante dos seus objetivos e interesses próprios. Tomar esses dois como porta-vozes representativos das acusações de conspiração

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Diário do Comércio 05/06/2006

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contra o CFR é o mesmo que derrubar o dr. Emir Sader e sair cantando vitória sobre Karl Marx. Que o CFR use desse expediente esquivo para se safar das denúncias é um sério indício de que elas têm pelo menos algum fundo de verdade. LA ROUC HE - Para vocês avaliarem o quanto a nossa elite econômica, política e militar está alienada e por fora do mundo, basta notar que sua principal fonte de informação sobre o CFR, o Diálogo Interamericano e outros organismos globalistas tem sido justamente o sr. Lyndon LaRouche, cuja Executive Intelligence Review é lida pelos luminares da Escola Superior de Guerra como se fosse o exemplar mais puro de inside information (ele está tão bem informado que chegou a me classificar - logo a mim, porca miséria - como apóstolo do globalismo, pelo fato de eu escrever então num jornal chamado O Globo). As outras fontes conhecidas no país são todas de esquerda, e o que elas têm em comum com o boletim do sr. LaRouche é que distorcem monstruosamente os fatos ao apresentar os círculos globalistas como representantes do bom e velho "imperialismo americano" em luta desigual contra as soberanias nacionais dos países pobrezinhos. Não sei se rio ou se choro ao ver quantos brasileiros, que de esquerdistas não têm nada, levam essa versão a sério e baseiam nela suas análises estratégicas e propostas de governo. É ridículo e trágico ao mesmo tempo. Com tantas fontes primárias e diagnósticos de alto nível à disposição, por que comer lixo e arrotar o cardápio do Tour d'Argent? Do lamaçal cultural subdesenvolvido só brotam flores de ignorância e auto-engano. O site www.vermelho.org, por exemplo, apresenta o Diálogo Interamericano como repleto de "personalidades da direita mais conservadora", e estas como "representantes do Establishment americano". Nos EUA, até crianças de escola sabem que Establishment quer dizer "esquerda chique", que não há nem pode haver ali dentro "personalidades da direita mais conservadora", e que, se alguma soberania nacional é posta em risco pelo Establishment, é a dos EUA em primeiríssimo lugar. A longa e feroz polêmica movida pelos conservadores e nacionalistas contra o CFR, o Diálogo Interamericano e os círculos globalistas em geral é completamente desconhecida pelos tagarelas da ESG e pelo "bando de generais" que acredita nas fontes esquerdistas e no sr. LaRouche. Nessa multidão de caipiras crédulos há inúmeros patriotas sinceros. Mas a destruição de um país começa quando seus

patriotas se idiotizam, deixando aos traidores, conspiradores e revolucionários o monopólio da esperteza. A história da manipulação dos patriotas brasileiros por espertalhões de esquerda é em si mesma uma tragicomédia. Desde há décadas, a liderança esquerdista vem submetendo essa gente a um tratamento pavloviano, na base de um-choque-um-queijo, que se demonstrou eficaz ao ponto de muitos oficiais de alta patente, ideologicamente anticomunistas, acharem hoje que é uma lindeza sumamente honrosa transformar os nossos soldados em cavouqueiros e tratoristas a serviço do MST. Como é que se leva um cérebro humano a mergulhar nesse abismo de estupidez? É simples: basta criar uma equipe selecionada entre esquerdistas bem falantes e dividi-la em duas alas, encarregadas de tarefas opostas -- uma infiltrada na mídia, incumbida de espalhar mentiras escabrosas, fomentando o ódio anti-militar; outra, bem colocada nos próprios círculos militares e na ESG, encarregada de afagar o ego das Forças Armadas e induzi-las à conciliação e à colaboração com a estratégia comunista continental por força do seu próprio patriotismo, facilmente convertido em anti-americanismo por meio de um fluxo habilmente planejado de informações falsas (entre as quais é claro, as fornecidas pelo sr. LaRouche). Na primeira equipe, destacamse Caco Barcelos, Cecília Coimbra e Luiz Eduardo Greenhalgh. Na segunda, Márcio Moreira Alves, Mário Augusto Jacobskind e Cesar Benjamin. A duplicidade de tratamento deixa a vítima desnorteada e acaba por subjugá-la. Entre tapas e beijos, boa parte da nossa oficialidade se deixou facilmente cair no engodo, mostrando ter mesmo QI de ratinho de laboratório. A recente palestra do comandante do Exército em Porto Alegre mostra até que ponto uma instituição caluniada, marginalizada e espezinhada sente alívio e reconforto ante a oferta humilhante de um lugarzinho no banquete de seus tradicionais detratores. Ardis semelhantes foram aplicados entre empresários e políticos, com igual eficácia. É por isso que se tornou tão difícil explicar aos brasileiros aquilo que, entre os conservadores americanos, até os mais lerdos de inteligência entendem perfeitamente bem: que a elite globalista é o inimigo número um da soberania nacional americana e, por tabela, mas somente por tabela, de todas as demais soberanias.


A fraude do populismo continental

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o número de agosto da revista cultural britânica Prospect, Jorge Castañeda retoma e elabora sua tese das "duas esquerdas" latino-americanas, apresentada na edição maio-junho de Foreign Affairs, publicação oficial do CFR. A tese foi impugnada pelo historiador Kenneth Maxwell, guru do CFR para assuntos brasileiros, mediante o argumento de que não pode haver uma esquerda malvada e outra boazinha porque tudo o que é esquerdista é bom. Castañeda está realmente enganado, mas, é claro, não por esse motivo. Como Maxwell é aquele sujeito segundo o qual o Foro de São Paulo não existe e Lula é um típico self-made man americano, é vantajoso para a saúde do cérebro humano ignorar o que quer que ele diga, sobre esse assunto ou qualquer outro. A tese das "duas esquerdas" é interessante porque do fundo do seu erro transparece, em filigrana, a verdade sobre a situação política do continente. Castañeda começa dizendo que desde o início da década de 90 previa a ascensão da esquerda na América Latina, baseado em duas razões: (1) Com a queda do regime soviético, os EUA não podiam mais acusar os partidos esquerdistas latino-americanos de ser pausmandados de Moscou. Livre desse estigma, a esquerda podia se apresentar em público com nova cara. (2) A América Latina permanecia uma das regiões mais afetadas pela desigualdade social, "e a combinação de desigualdade e democracia tende a causar uma guinada para a esquerda". Em seguida ele confessa ter imaginado, erroneamente, que a esquerda cujo sucesso vislumbrava seria toda democrática, modernizada, consciente das lições adquiridas com o fracasso dos regimes comunistas no Leste europeu, aberta aos benefícios da economia de mercado e disposta, em última instância, a abdicar de seu velho ódio aos EUA. Se isso não aconteceu, se por toda parte emergiram ambições ditatoriais e as relações da América Latina com os EUA se tornaram piores do que nunca, foi porque a esquerdização geral levou ao poder não uma, mas duas esquerdas. "Uma é moderna, de mente aberta, reformista e internacionalista... A outra é nacionalista, barulhenta e de mente fechada." Castañeda completa esse diagnóstico expondo aquilo que, no seu entender, constitui a origem histórica dessas duas esquerdas e a razão das suas diferenças. A ala esclarecida, diz ele, "nasceu da Revolução bolchevique e seguiu um caminho similar ao da esquerda no

No início da década de 90, a esquerda tratava de se unificar, de se organizar em escala continental, de se articular com quadrilhas de narcotraficantes (...)

resto do mundo. Os partidos comunistas chileno, uruguaio, brasileiro, salvadorenho e, antes da revolução de Castro, o cubano, obtiveram parcelas significativas do voto popular, participaram de governos de 'unidade nacional' nos anos 30 e 40, estabeleceram uma presença sólida e exerceram uma forte influência nos círculos acadêmicos e intelectuais". A origem da outra esquerda, a burra, é especificamente local: ela não nasceu do comunismo, mas do populismo latino-americano. Suas divindades tutelares não são Marx, Lênin e Che Guevara, mas tipos como o argentino Juan Perón, o peruano Victor Raúl Haya de la Torre, o equatoriano José Velasco Ibarra e o brasileiro Getúlio Vargas. Além de nacionalistas extremados, "os populistas são, com freqüência, virulentamente anticomunistas, sempre autoritários e mais interessados em obter e conservar o poder do que em formular políticas". A culpa de toda a confusão atual na América Latina é desses malditos populistas, que não evoluíram intelectualmente junto com os comunistas. Essa é a teoria de Castañeda. Na verdade não é uma teoria. É a simples projeção mecânica da receita tradicional do CFR para os males do mundo: converter os comunistas ao socialismo reformista, fabiano, e construir com eles a utopia globalista que eliminará do planeta as soberanias nacionais, o capitalismo clássico, a democracia constitucional americana e a cultura judaico-cristã, unificando a espécie humana sob o governo de uma casta de planejadores sociais iluminados. Se a América Latina deu errado, foi porque alguns esquerdistas não aderiram a tão lindo programa, preferindo apegar-se a velhos populismos nacionalistas... e anticomunistas. Mas vamos por partes. No início da década de 90, eu também previ a ascensão da esquerda, mas por motivos bem diversos dos alegados por Castañeda. Equações genéricas, por mais realistas que sejam, nunca dão fundamento a previsões sobre o desenrolar dos fatos. Fatos não são evoluções espontâneas de "tendências dominantes", mas o resultado de ações concretas de seres humanos. Prevê-los com acerto não depende de farejar "tendências" no falatório da moda, mas de observar quem está fazendo o que. No início da década de 90, a esquerda estava tratando de se unificar, de se organizar em escala continental, de se articular localmente com as quadrilhas de narcotraficantes, internacionalmente com as "redes" globais de informação e


com os movimentos radicais islâmicos, de comprar armas e juntar recursos financeiros em escala jamais pensada por qualquer outro movimento político ao longo de toda a história humana, entrando aí o comércio de drogas e a luta pelo domínio quase monopolístico das fontes de subsídios estatais e privados nos EUA e na Europa através de uma infinidade de ONGs. Enquanto isso, a direita continental ocupava-se apenas de (1) desarmar-se ideologicamente, imbuindo-se da crença de que o comunismo morrera e portanto reprimindo em suas fileiras qualquer veleidade anticomunista, acusada de passadista e reacionária; (2) diluir-se politicamente, apostando tudo no sucesso da "esquerda modernizada" e adaptando-se a ela ao ponto de tornar-se mera força auxiliar a serviço dela, como aconteceu nas eleições brasileiras de 1994, 1998 e 2002. Era como se, às vésperas de uma luta pelo título mundial de boxe, um dos contendores estivesse tomando proteínas e se adestrando espartanamente, enquanto o outro varasse as noites em farras com mulheres enviadas pelo adversário, a quem por isso considerasse seu bom amigo, encarando com crescente repugnância a perspectiva de esmurrá-lo. Descritos os fatos, não era preciso ser muito esperto para prever o desenrolar da situação. Os elementos apontados por Castañeda eram, nisso, secundários ou mesmo irrelevantes. O próprio Castañeda é que não era. Sua pessoa e suas idéias forneceram um poderoso anestésico para a direita, que via nelas a prova de que a esquerda se tornara civilizada e inofensiva (ele não dá o menor sinal de perceber o quanto colaborou para que sua previsão não se realizasse por completo). Mas a minha perspectiva ainda diferia da dele num ponto essencial. Que havia na esquerda uma ala modernizada, disposta até a abdicar do marxismo como acontecera com os partidos socialistas europeus, era coisa óbvia. Durante algum tempo os porta-vozes mais tagarelas dessa corrente - Eduardo Mascarenhas, José Arthur Gianotti, Arnaldo Jabor, o próprio Fernando Henrique - brilharam nos jornais e na TV como se fossem a encarnação viva dos novos tempos. Cada novo comunista ou pró-comunista que se tucanizava era motivo de festa entre os direitistas, mas, significativamente, o sentimento com que estes o recebiam não era de triunfo: era de alívio. Não festejavam a derrota do adversário, mas um vago arremedo de empate técnico que, pro forma, os dispensava de lutar. Comemoravam antecipa-

damente a aposentadoria ideológica da qual em breve estariam desfrutando. Numa data que não recordo bem, após a vitória de Fernando Henrique, creio que em 1996, tomei parte de um dos célebres almoços de aniversário do jornalista Aristóteles Drummond, um direitista histórico, veterano da Revolução de 64. Essas reuniões eram, na verdade, encontros políticos, ocasiões para tomar o pulso da direita nacional. Nesse dia, sentado ao lado de Eduardo Mascarenhas, ídolo intelectual da esquerda recémconvertido ao tucanismo, observei que a atmosfera geral era de afetuosa abertura aos esquerdistas presentes, quase tão numerosos quanto seus adversários tradicionais. Todos tomavam cuidado para que uma apologia demasiado ostensiva da economia de mercado não parecesse provocação ou acinte aos convidados, ainda mal refeitos da queda da URSS. O único que cantava vitória era Roberto Campos, mas, acrescentava ele, fazendo troça com sua idade avançada, "vitória póstuma". O gracejo atenuava o contraste e reforçava o sentido geral do encontro: ali não se comemorava uma vitória, mas a paz. Paz unilateral, demissionária, suicida. Enquanto a milhares de quilômetros dali Fidel Castro, Lula e Frei Betto montavam a maior articulação política da história continental, juntando partidos legais e bandos de criminosos armados para o assalto ao poder, a direita cansada de guerra erguia um brinde ao seu direito de voltar para casa e viver de lembranças. Voltei do encontro dizendo para os meus botões: "Hoje a direita nacional festejou seu próprio sepultamento." Com a abdicação geral da direita, o cenário passava a dividir-se entre as duas esquerdas, separadas, como observou o próprio Fernando Henrique, apenas por diferenças políticas de ocasião, mas unidas pelo mesmo fundo ideológico, pelas mesmas referências culturais e pelo sentimento de solidariedade mútua alicerçado numa longa história de lutas contra o inimigo comum que, justamente, acabava de abandonar o campo. Num lapso de tempo brevíssimo, as idéias conservadoras desapareceram do cenário e a uniformidade ideológica total espalhou-se pelo país, formando o panorama que descrevi em O Imbecil Coletivo e cuja expressão eleitoral perfeita se viu em 2002, com uma eleição disputada entre quatro candidatos esquerdistas que, na falta de divergências efetivas, travaram um campeonato de pureza ideológica, cada um tratando de provar que os outros

A analogia entre Cháves e os velhos 'país dos pobres' é puramente estética, não política ou ideológica. Seu estilo bufão foi copiado menos de Perón que de Fidel

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Diário do Comércio 31/07/2006

eram menos fiéis às suas origens (situação análoga à que viria a ocorrer no Peru entre Ollanta Humala e Alan García). Como o unanimismo reinante era indecente demais para ser proclamado oficialmente, a solução espontânea foi nomear a esquerda moderada como "direita" ad hoc e remover os poucos remancentes da direita genuína para a "extrema direita", situada em algum lugar incerto entre o passado abominável, o crime hediondo e o nada absoluto. Fazendo entre as duas esquerdas a mesma comparação de ações respectivas que havia feito entre a direita e a esquerda no começo da década, notei que a ala radical tratava de expandir formidavelmente sua militância, consolidar sua hegemonia cultural, preparar-se para grandes ações de massa e fortalecer suas alianças continentais no Foro de São Paulo, enquanto a moderada, tucana, se contentava com política eleitoral local e manobras de gabinete. Mais ainda, a esquerda tucana, no poder, fortalecia sua adversária, alimentando o MST com verbas federais, espalhando a propaganda esquerdista nas escolas e atraindo contra si o ódio das Forças Armadas por meio de cortes orçamentários e de prêmios em dinheiro público oferecidos a terroristas aposentados. Era impossível, diante disso, não perceber qual das duas acabaria vencendo. Que a esquerda radical seja populista em vez de comunista ou pró-comunista, como pretende Castañeda, é uma idéia tão boba que nem mereceria atenção, se o CFR não a usasse como instrumento para induzir a direita norte-americana a se desarmar ideologicamente a exemplo do que fez a latinoamericana. O sr. Castañeda foi útil num caso como está sendo no outro. A palavra "populismo" espalhou-se, como um mantra, pelos círculos do Partido Republicano, ali exercendo um considerável efeito entorpecente. Ninguém jamais viu um cartaz de Getúlio Vargas ou Velasco Ibarra, em vez de Che Guevara e Fidel, brandido pelos jovens enragés do Fórum Social Mundial. Ninguém leu jamais uma única sentença anticomunista muito menos "virulentamente anticomunista" -- nas atas do Foro de São Paulo, nas cartilhas do MST, nos anais de congressos do PT ou dos movimentos chavistas. A analogia entre Chávez e os velhos "pais dos pobres" é puramente estética, não política ou ideológica. Seu estilo bufão aliás foi copiado menos de Perón ou Batista que do próprio Fidel Castro. A unidade ideológica e estratégica do Foro de São Paulo é uma realidade poderosa, a

única realidade política que tem peso no continente. Chamar o neocomunismo de "populismo" só é útil a ele próprio, ajudando-o a crescer mais um pouco sob a camuflagem protetora e a adquirir até algum encanto suplementar aos olhos de alguns militares molengas que, não tendo fibra para suportar com honra as cusparadas da mídia e o desprezo do ambiente impregnado de esquerdismo, já se sentem coitadinhos ao ponto de suspirar, como vagabunda esbofeteada, por um olhar de simpatia do agressor. Cá entre nós, duvido muito que o próprio Castañeda não saiba de tudo isso. Há idéias que, precisamente por não valer nada como descrições da realidade, valem muito como instrumentos de manipulação. Não são idéias, são ações políticas. Castañeda sabe quem perde e quem ganha por acreditar na sua versão dos fatos. Ela não tem nada a ver com a realidade, mas serve para aproximar mais ainda o CFR e os comunistas latino-americanos. Afinal, ele só critica neles o nacionalismo, um resíduo direitista. Mas todos sabemos e ele também sabe que esse nacionalismo é só uma fachada para ludibriar militares e induzi-los a colaborar com a absorção das soberanias nacionais no quadro da grande América Latina socialista. A abertura de todas as fronteiras continentais às Farc e aos seqüestradores do MIR chileno, a extensão da jurisdição cubana ao território da Venezuela, as intervenções crescentes e unanimemente aplaudidas do sr. Hugo Chávez na política dos países em torno e a confissão do sr. Lula de que governa o Brasil em parceria secreta com estrangeiros, são provas cabais de que ninguém no Foro de São Paulo liga a mínima para nações e nacionalismo, exceto como instrumentos ocasionais de um anti-americanismo que não contraria em nada os objetivos do CFR. E quando Hugo Chávez adotou como divisa o "bolivarianismo", ele conhecia o sentido simbólico profundo dessa bandeira, ignorado pela massa que o segue e até pelos "formadores de opinião" da grande mídia nacional e internacional, todos eles, como é notório, cultíssimos e sapientíssimos. Simón Bolívar escreveu em 1832: "As nações que fundei serão eclipsadas após uma demorada e amarga agonia, depois reemergirão como Estados de uma grande república, a América." É esse o programa do Foro de São Paulo, como aliás é o do CFR. Os Castañedas e similares só fazem onda contra o "populismo nacionalista" porque sabem que ele não existe, mas que, se a direita americana acreditar que ele existe, ela nada fará contra aquilo que realmente existe.


A nova era das ditaduras Todd Davidson/Corbis

H

á quem acredite que, com a morte de Augusto Pinochet e o próximo desaparecimento de Fidel Castro, a era dos ditadores estará extinta na América Latina. É esperança louca. O que está em vias de acabar é a era dos ditadores nacionais, prenunciando o advento da ditadura continental. Não estamos vendo o fim, mas um upgrade da tirania latino-americana. Começo com uma distinção óbvia. Excluindo as tiranias dinásticas, oligárquicas e populistas, que realmente pertencem a uma fase histórica extinta, há ditaduras reacionárias e revolucionárias. As primeiras são temporárias por natureza, pois têm ambições limitadas, visam à restauração de um estado anterior e se diluem tão logo alcancem seus objetivos. As ditaduras revolucionárias arrancam as raízes do passado e criam do nada um mundo novo. Não raro, pretendem modificar não só a estrutura da sociedade, mas a própria natureza humana. Promovem transformações tão profundas - e tão perversas -, que, quando se extinguem, já não é possível nem restaurar o que existia nem criar um novo padrão de normalidade. Muitas ditaduras reacionárias, findo o pesadelo, deixaram saldos positivos. O Chile, a Espanha e Portugal, quando se desvencilharam de Pinochet, Franco e Salazar, eram países livres e prósperos. As ditaduras revolucionárias não deixam outra coisa senão um rastro macabro de devastação e morte que só pode resultar em novas ditaduras ou numa decadência longa e irreversível. A França do Antigo Regime era a nação mais rica e poderosa do mundo. Depois da Revolução, veio de queda em queda até reduzir-se a uma burocracia falida, dependente da ajuda americana, subserviente a ditadores estrangeiros e incapaz de resistir à invasão cultural islâmica. O Vietnã e a Coréia do Norte são cemitérios mal administrados. A China pós-Mao é a festa permanente dos generais em meio à miséria do povo. A Rússia mergulhou no caos e na corrupção. A única esperança de uma nação, após a experiência da ditadura revolucionária, é ser salva desde fora, como o foi a Alemanha. Mas ninguém pode querer isso e depois ter o direito de choramingar que os EUA são a polícia do mundo. As ditaduras em formação na América Latina definem-se por duas características: (1)

O que está em vias de acabar é a era dos ditadores nacionais, prenunciando o advento da ditadura continental. Não estamos vendo o fim, mas um upgrade da tirania latino-americana.

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são todas revolucionárias, prometendo a mutação radical e a militarização integral da sociedade; (2) não são fenômenos isolados, nacionais, mas o resultado de uma articulação continental que começou na década de 60, com a OLAS (Organização de Solidariedade Latino-Americana) e colheu seus primeiros frutos após a criação do Foro de São Paulo em 1990. Desde então o projeto da revolução latinoamericana vem alcançando vitória em cima de vitória, sem encontrar qualquer resistência senão da parte de esquerdistas light que, malgrado seus escrúpulos democráticos ao menos formais, são no fim das contas escravos ideológicos do mito revolucionário e, por isso mesmo, meros colaboracionistas disfarçados. A possibilidade de que o processo venha a ser detido pela emergência de ditaduras reacionárias, mesmo locais e isoladas, é praticamente nula. Os poderes internacionais e a grande mídia européia e americana oscilam entre os protestos fingidos e a cumplicidade explícita. E a máquina democrática em cada país foi tão bem alterada desde dentro, que já não pode servir senão para legitimar a tirania por meio da aprovação popular. A era das ditaduras no continente não acabou. Está apenas começando. Como diria o saudoso Paulo Francis, there's coming a shitstorm. Alexei Bueno, um bobão que no presente estado de coisas é tido nos círculos editoriais como poeta e até como erudito, está fazendo circular pela internet uma comparação entre Augusto Pinochet e Fidel Castro na qual exemplifica às mil maravilhas a capacidade que a esquerda tem de mentir, depois esquecer que mentiu e por fim acreditar apaixonadamente na mentira. "Pinochet - começa ele -- é, antes de tudo, um traidor, essa coisa asquerosa, de um presidente eleito que o colocou, ingenuamente, como Ministro do Exército. Não me consta que Fidel tenha sido jamais ministro de Fulgencio Batista, muito ao contrário foi sempre seu figadal e público opositor." Se Fernando Collor de Melo, diante da iminência do impeachment, se fechasse no palácio com guardas armados, bradando ameaças, que fariam os poderes legislativo e judiciário? Convocariam o Exército para tirá-lo de lá à força. Pinochet fez exatamente isso: cercou o Palácio de La Moneda por ordem do Congresso e da Suprema Corte que já haviam condenado o presidente corrupto, golpista e assassino. Sim, assassino. As centenas de homicídios praticados pelos cubanos da guarda pessoal de Allende são meticulosamente omitidas pela mídia nacional há déca-

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As ditaduras revolucionárias não deixam senão um rastro macabro de devastação e morte que resulta em novas ditaduras ou numa decadência longa e irreversível.

das, assim como o fato hoje bem comprovado de que o presidente chileno era agente pago da KGB. Era obrigação estrita do exército chileno prender esse criminoso e, caso resistisse, matá-lo como a um cachorro louco. Chamar isso de "golpe" já é um abuso semântico intolerável. Na cabeça de Alexei Bueno, porém, foi mais que golpe: foi "traição". Para ser um bom sujeito, Pinochet deveria desprezar a ordem legal e pegar em armas contra o Congresso e a Suprema Corte em troca de ser mantido no cargo ministerial. Com base nesse princípio, Alexei poderia concluir que só quem agiu errado no caso do Mensalão foi o Roberto Jefferson, ao romper o pacto de lealdade mafiosa. Os outros foram exemplos de moralidade superior. "Enquanto o generaleco-agente da CIA armou uma quartelada na qual não pegou pessoalmente num canivete, Fidel comandou o ataque a Moncada, foi preso, exilou-se para não ser morto, realizou o quixotesco desembarque do Granma e a epopéia de Sierra Maestra." Conversa mole. Fidel Castro, enquanto seus companheiros morriam no ataque frustrado ao quartel de Moncada, fugia covardemente. Quanto à "epopéia de Sierra Maestra", foi de cabo a rabo uma criação literária de Herbert L. Mathews, inventivo repórter esquerdista do New York Times já totalmente desmoralizado pela pesquisa histórica. O comandante Huber Matos, que esteve ao lado de Fidel o tempo todo ao longo dos combates, atesta que ele jamais deu um tiro. Che Guevara deu muitos, mas principalmente em prisioneiros amarrados. Aliás a "epopéia" padece de uma deplorável escassez de feitos militares: o total de anticastristas mortos em combate foi de pouco mais de mil pessoas (incluindo o posterior episódio da Baía dos Porcos) e, quando os guerrilheiros desceram para ocupar Havana, já não encontraram resistência nenhuma, pois Batista, derrubado pela pressão norte-americana, já havia fugido com seus cúmplices principais. O grosso do heroísmo castrista foi mesmo praticado contra civis desarmados (veja os números mais adiante). "Quanto a ditaduras sanguinárias, não me consta que em Cuba tenham posto crianças e velhos vivos em fornos, como na Argentina." O que a mim não me consta, em primeiro lugar, é que Pinochet tenha governado a Argentina. Consta, sim, o hábito esquerdista de inculpar por associação de idéias. Pinochet é um milico de direita, os governantes da Argentina eram milicos de direita, logo Pinochet é culpado do que quer que tenha acontecido na Argentina. Quanto aos hediondos fornos crematórios argentinos,


Alexei fica nos devendo alguma indicação documental, por mínima que seja, que comprove a existência deles. Ele também poderia nos explicar por que um detalhe tão pitoresco jamais apareceu na grande mídia antimilica. "Todos os que foram para o célebre 'paredón', muitos deles torturadores e assassinos de Batista, foram julgados e condenados em tribunais revolucionários, mas não 'desapareceram' jogados no mar, ou metidos em buracos cheios de dinamite." Pela primeira vez na vida vejo alguém insinuar que tribunais revolucionários - onde o sujeito entra condenado e em quinze minutos sai morto - são uma forma de justiça superior ao homicídio. Mas, qualquer que seja o caso, essas mimosas instituições só foram criadas numa fase avançada da revolução cubana. No começo, Che Guevara, dispensando esse luxo, assinava sem ler pilhas e pilhas de sentenças de morte e não raro as executava pessoalmente. Ademais, no total de vítimas da revolução cubana, as que passaram por algum julgamento, mesmo simulado, são uma fração ínfima em comparação com a quota de "desaparecidos". O monopólio esquerdista do uso dessa palavra na mídia só tem servido para fazê-los desaparecer uma segunda vez, ocultando o fato de que eles foram em maior número em Cuba do que em qualquer outra ditadura latino-americana. Os números totais do morticínio cubano, reunidos ao longo de vinte anos de pesquisas pelo economista Armando M. Lago, presidente da Câmara Ibero-Americana de Comércio e consultor do Stanford Research Institute, são os seguintes: Fuzilados: 5.621. Assassinados extrajudicialmente: 1.163. Presos políticos mortos no cárcere por maus-tratos, falta de assistência médica ou causas naturais: 1.081. Guerrilheiros anticastristas mortos em combate: 1.258. Soldados cubanos mortos em missões no exterior: 14.160. Mortos ou desaparecidos em tentativas de fuga do país: 77.824. Civis mortos em ataques químicos em Mavinga, Angola: 5.000. Guerrilheiros da Unita mortos em combate contra tropas cubanas: 9.380. Total: 115.127 (não inclui mortes causadas por atividades subversivas no exterior, como por exemplo as vítimas do terrorismo brasileiro subsidiado pelo governo cubano). "Sugiro ao leitor que disse ser a ditadura cubana a mais sanguinária da América Latina ler um pouco de História ou aprender aritmética." Da minha parte não sugiro a Alexei Bueno nem uma coisa nem a outra, pois estão ambas formidavelmente acima não só de sua capacidade, como também de suas intenções. Um

As ditaduras reacionárias são temporárias por natureza, pois têm ambições limitadas, visam à restauração de um estado anterior e se diluem tão logo alcancem seus

objetivos. O Chile, a Espanha e Portugal, quando se desvencilharam de Pinochet, Franco e Salazar, eram países livres e prósperos.

exemplo de sua idoneidade histórico-aritmética ele nos fornece neste seu parágrafo de encerramento: "Podem todos carpir, guaiar e gemer, mas o fato é que Fidel Castro ficará como um dos maiores líderes antiimperialistas do século XX, ao lado de um Mustafá Kemal Atatürk ou de um Ho Chi Min. Todos foram ditadores, prefiro qualquer um deles ao grande democrata George W. Bush, que matou muito mais gente que os três juntos." Descontemos o uso despropositado do verbo "guaiar", que é pura veadagem léxica. Mesmo que aceitássemos os números mais exagerados fornecidos pela propaganda esquerdista quanto à guerra do Iraque - pois não consta que George W. Bush tenha iniciado outras guerras -, a comparação, em matéria de fidelidade histórica e exatidão aritmética, basta para nivelar historicamente Alexei Bueno à precisa soma aritmética da besta quadrada com a besta ao quadrado. Hoje entendo por que o Bruno Tolentino costumava chamá-lo de Dislexei Bueno. O restante do artigo do sr. Dalmo Dallari, cujo início comentei quinta-feira passada (http: //www.olavod ecarvalho.org/semana/061214dce.html), é de uma mendacidade tão despudorada que mais justo seria xingá-lo de tudo quanto é nome em vez de honrá-lo com um comentário. Desde logo, não há atitude que eu mais despreze, num articulista, do que macaquear, com finalidade leviana, expressões verbais que usei para transmitir conteúdo sério. Não estou aqui para alimentar parasitas. Se querem mentir, que pelo menos tenham a bondade de fazêlo com suas próprias palavras, em vez de sugar as minhas para depois vomitá-las como farsa. Quando comecei a falar de "ocultação de notícias", anos atrás, eu me referia a fatos de importância universal, cuja longa e obstinada ausência nos jornais denunciava um intuito consciente de ludibriar os leitores. Fenômenos como a matança de mais de um milhão de cristãos nos países comunistas e islâmicos, ou como as assembléias do Foro de São Paulo, que reuniam anualmente os mais poderosos líderes da esquerda latinoamericana, não eram coisinhas de somenos, que pudessem ser ignoradas unanimemente por articulistas, pauteiros, repórteres e chefes de redação do país inteiro ao longo de mais de uma década, sem que houvesse nisso algo de monstruosamente anormal segundo todos os cânones da profissão jornalística. De uns meses para cá, uma multidão de cabos eleitorais, agentes de influência e mentiro-

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Diário do Comércio 18/12/2006

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sos compulsivos, a serviço do partido governante, se apossaram do tema e passaram a tocálo, com leves variações, a propósito de qualquer noticinha vagabunda, de qualquer zunzum de comadres, de qualquer factóide de interesse do petismo, casualmente omitidos pela grande mídia na correria dos fechamentos. Criaram assim a lenda da mídia direitista, reacionária, empenhada em sufocar, como no tempo dos censores, a voz heróica da esquerda nacional. Tão fantástica inversão da realidade arriscaria expor seus autores ao riso geral, se não tratassem de empacotá-la numa linguagem que, por ter sido usada ao longo de uma década para expressar verdades comprovadas, adquiriu uma espécie de credibilidade automática apta a ser usurpada para dizer precisamente o contrário, com eficácia multiplicada por aquela capacidade tão própria da mente esquerdista, de simular nobreza moral por meio de esgares de dor e revolta desesperadoramente postiços. Se o leitor se recorda do que escrevi aqui sobre os efeitos psico-sociais do desconstrucionismo, compreenderá facilmente que ativistas com longa prática em esvaziar as palavras de todo significado objetivo estão equipadíssimos para mais esse assalto entrópico e obscurecedor à inteligibilidade da linguagem. O sr. Dallari só se distingue dos demais pela dose extra de cara de pau com que comprime, num só artigo, gesticulações indignadas ante três exemplos de "supressão de notícias" dos quais um é materialmente falso e os outros dois são absurdos. O primeiro é o manifesto pró-Sader, que, segundo ele, a mídia omitiu por completo. Como eu mesmo vi esse manifesto transcrito com espalhafato em alguns dos maiores jornais do país, não creio estar errado em concluir que ou o sr. Dallari é um irresponsável que ataca sem nem mesmo buscar provas, ou é um mentiroso contumaz que, com as provas na mão, afirma o contrário do que elas atestam. Nos dois casos a única resposta que ele merece é algum palavrão bem cabeludo, que não registro aqui mas que lhe direi na cara se tiver o desgosto de encontrá-lo um dia. A segunda notícia injustamente suprimida é a mensagem, subscrita por ativistas de "direitos humanos" (entre sólidas aspas), em louvor de policiais mortos e feridos no cumprimento do dever. Isso, de fato, não li em parte alguma, mas que importância objetiva tem esse documento? Segundo Dallari, ele prova que é falsa a noção geral de que os tais ativistas só tratam de boi-

cotar a polícia e ajudar os bandidos, devendo por isso ser publicado. Mas, por favor, comparem: contra a polícia, essa gente fez campanhas milionárias, produziu filmes e programas de TV, publicou centenas de livros e teses universitárias, fez dúzias e dúzias de discursos no parlamento, espalhou milhões de mentiras e, por fim, promulgou leis que detêm a ação dos policiais e os entregam inermes nas mãos dos bandidos. O resultado é uma polícia desarmada, acossada, temerosa de cumprir o dever para não ser desancada na mídia e conformada, enfim, com seu novo papel de fornecedora de alvos para os bandidos equipados de fuzis Kalashnikov e metralhadoras UZI. Depois de consumada essa grande obra, que fazem os seus autores? Assinam um miserável manifestinho, um factóide, uma simulação ridícula de solidariedade que não serve nem para desencargo de consciência, e ainda querem cobertura, repercussão, câmeras, holofotes, reconhecimento público! E, se a mídia não lhes fornece o espaço que desejam, saem choramingando que foram censurados. Ora, que vão para o diabo. Sob qualquer critério jornalístico que se examine, o lugar dessa notícia é o lixo. Por fim, queixa-se o ilustríssimo de que a mídia, fazendo alarde do dossiê ilegal comprado pelo PT para desgraçar seus concorrentes eleitorais, se omitiu, criminosamente, de divulgar o mais importante: o conteúdo do documento, as acusações levantadas nele contra o tucanato. Aí o fingimento hipócrita já se eleva às alturas de um arrebatamento místico. Pois se o dossiê foi forjado justamente para ser divulgado e fazer barulho na mídia, e se a polícia comprovou o caráter criminoso da operação, divulgar seu conteúdo seria simplesmente dar execução cabal ao plano depois de denunciado e condenado, neutralizando a ação policial que o abortou em tempo. Para fazer isso, a mídia, originariamente escolhida pelo PT como instrumento passivo do delito, teria de consentir em praticá-lo, agora, como cúmplice ativa e consciente. O sr. Dallari não tem, em si, a mínima importância. É um puro ninguém de toga e cátedra. Mas, com esse seu artigo, ele se tornou o importante sintoma denunciador de males cuja dimensão mastodôntica talvez escape à sua própria percepção. Quando um sujeito que a sociedade aceita como jurista acusa de crime a recusa de praticar um crime, é porque de há muito já nos evadimos do antigo território denominado "realidade": tornamo-nos personagens da fantasia insana do marquês de Sader, habitantes do "mundo às avessas".


N

ormalmente, no Brasil, políticos e intelectuais de esquerda se esquivam de declarar que são comunistas. Vivem dizendo que a direita não assume o próprio nome - o que é no mínimo inadequado, pois uma corrente política que não existe ideologicamente não tem por que assumir nome nenhum -, mas, pelo menos desde a queda do Muro de Berlim, são os esquerdistas os principais usuários de substitutivos eufemísticos. E por certo não é a "direita" quem tenta impor a proibição legal de chamar as coisas pelos seus termos apropriados. É até cômico que os censores politicamente corretos do vocabulário exijam dos outros a linguagem franca que eles próprios buscam abolir por todos os meios.

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Ocultar a condição de comunista sempre foi uma obrigação para os militantes envolvidos na parte clandestina das operações do Partido, mesmo em épocas e países com plena vigência dos direitos democráticos. A universalização da camuflagem como estilo de vida foi uma das grandes contribuições do comunismo à cultura do século XX (v. Double Lives, de Stephen Koch). Mas, desde os anos 90, a obrigação de despistar ligações com o movimento comunista foi reforçada pelo descrédito geral do regime soviético. Como assinalou Jean-François Revel em La Grande Parade, a década foi marcada por uma intensa revisão do discurso esquerdista, um botox ideológico destinado a apagar as marcas do passado nas carinhas bisonhas dos mais subservientes e pertinazes bajuladores de genocidas, para que pudessem apresentar como novidades auspiciosas as mesmas propostas comunistas de sempre. Desde então, proliferaram os eufemismos, alguns antigos, como "democracia popular", "socialismo democrático" etc., outros novos, como "revolução bolivariana" ou o mais lindo de todos: "ampliar a democracia", que significa fechar jornais, proibir críticas ao presidente e dar tiros numa massa de manifestantes para em seguida acusá-la de matar-se a si própria com o intuito maldoso de desmoralizar o governo. O regime atual da Venezuela já é uma democracia ampliada. Ampliada até além-fronteiras: policiais e juízes enviados por Fidel Castro têm jurisdição para entrar no país à vontade e prender cubanos foragidos ou até cidadãos venezuelanos considerados inconvenientes. O fogo das denúncias de corrupção no governo Lula derreteu rapidamente a maquiagem verbal, de baixo da qual emergiu, em toda a sua formosura, o bom e velho discurso da ortodoxia marxista. Com uma desenvoltura e uma petulância que seriam inimagináveis na época da campanha eleitoral, Lênin e Mao assomaram ao microfone do ciclo "O Silêncio dos Intelectuais" e em várias colunas de imprensa, com aquele sincronismo que muitos atribuiriam misticamente a coincidências junguianas e no qual só os paranóicos - sim, só eles, eu incluso - ousariam pressentir o sinal de uma instrução transmitida a toda a massa de "trabalhadores intelectuais", concitando-os a juntar forças para atribuir todos os crimes do PT à política "tucanizada" e oferecer como remédio à debacle do partido a palavra-de-ordem salvadora e unânime: Marxismo já! O sr. Francisco de Oliveira, no resumo publicado da sua conferência no ciclo, é explícito:

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A revisão do discurso da esquerda é 'botox' ideológico para apagar o passado de bajuladores de genocidas

Francisco de Oliveira se queixa: dose de estupefaciente marxista oferecida a universitários é escassa

citando Roberto Schwarz, ele proclama que a conjuntura "é ótima para renovar o pensamento brasileiro pelo marxismo". Provando que o senso das proporções não é o mesmo numa cabeça de comunista e na da humanidade normal, ele se queixa de que a dose de estupefaciente marxista fornecida aos estudantes universitários é escassa, porque "não se sabe com que profundidade Marx foi lido". Uai, até observadores menos atentos podem notar que o pensamento marxista não domina os cursos nacionais de direito, filosofia e ciências humanas por ser muito estudado, mas porque aí não se estuda praticamente nada além dele. Não é preciso conhecer bastante alguma coisa para poder ignorar tudo o mais. O "Dicionário Crítico do Pensamento da Direita", que citei aqui dias atrás, obra de 104 professores universitários esquerdistas e por isso amostragem suficiente da mentalidade da classe, mostra até que ponto vai a ignorância dessa gente a respeito das correntes de idéias alheias ao marxismo. A grande força do marxismo universitário brasileiro é justamente a rarefação da sua substância intelectual, que permite sua distribuição rápida a milhões de idiotas. De passagem, o sr. Oliveira resmunga que, mesmo no auge da moda marxista entre nós, nos anos 70, o pensamento dos frankfurtianos esteve "praticamente ausente" da universidade brasileira, o que, a julgar pelo volume oceânico de citações a Adorno e Benjamin desde então até hoje, só pode ser interpretado no sentido de Stanislaw Ponte Preta: "Sua ausência preencheu uma lacuna". Mas o ponto mais significativo do diagnóstico oliveiriano dos males do marxismo brasileiro é a crítica ao "reformismo" do PCB nos anos 60 e a apologia à "única exceção criadora" da ocasião, o filósofo Caio Prado Júnior. A presente geração de estudantes dificilmente atinará com o sentido dessa alusão, mas, para quem a percebe, a analogia com a situação atual é óbvia. Num momento em que a esquerda, como hoje, lambia as feridas de um fiasco monumental e buscava meios de salvar a honra, o autor de A Revolução Brasileira foi, entre os comunistas históricos, o mais destacado crítico da "aliança com a burguesia nacional" e o propugnador emérito da ruptura violenta que gerou a guerrilha. Quando Marx disse que a história se repete como farsa, estava antecipando a epopéia tragicômica do movimento comunista, toda ela composta de sucessivas reencarnações farsescas de si própria. O vaivém cíclico entre apaziguamento maquiavélico e radicalismo assassino, com periódicas fu-


(...) o PT de Lula é o PCB corrompido e 'reformista' que deu com os burros n'água em 1964

sões dos dois elementos, é um dos lances infalíveis desse enredo criminoso. O sr. Oliveira é em suma o novo Caio Prado Júnior, assim como o PT de Lula é o PCB corrompido e "reformista" que deu com os burros n'água em 1964. A solução é, pela enésima vez, o retorno purificador às fontes do marxismo, seguido de algum tipo de videotape das guerrilhas, provavelmente ampliadas às dimensões das FARC. Esse pessoal não aprende nunca. De maneira ainda mais estereotípica, a sra. Marilena Chauí adverte contra a "crença perigosa" (sic) de que as idéias movem o mundo, restaura a lição da vulgata segundo a qual quem move tudo é a luta de classes, e repete com admirável fidelidade canônica a excomunhão marxista da "separação entre trabalho manual e intelectual no capitalismo" (no socialismo, como se sabe, cada varredor de rua é um novo Leonardo da Vinci). Complementada por uma oportuna entrevista que lança sobre o indefectível "neoliberalismo" as culpas do governo Lula - como se os crimes denunciados não viessem do tempo em que a própria Chauí se tornou a musa inspiradora do marxismo petista -, a alocução da professora da USP no ciclo "O Silêncio dos Intelectuais" traz um enfático reforço à estratégia reencarnacionista do sr. Oliveira. Ao mesmo tempo, na mídia, o apelo por um retorno ao marxismo puro ecoa por toda parte com idêntico vigor. Para dar só um exemplo entre muitos, que comentarei se possível nas próximas semanas, o sr. Fausto Wolff, célebre como relações públicas de Yasser-Arafat, anuncia "uma lição de casa para os petistas" e, com o didatismo de um instrutor do MST, fornece dados biográficos seguidos de um resumo esquemático das doutrinas de Karl Marx. Confesso não estar habilitado a sondar a profundidade dos ensinamentos do sr. Wolff, já que me falta no momento o único instrumento de análise apropriado para isso: o bafômetro. Limito-me a anotar no seu artigo dois pontos interessantes. Primeiro, ele não parece ter do marxismo conhecimentos que vão muito além da lauda e meia ali preenchida, já que procla-

ma ter sido A Essência do Cristianismo, de Ludwig Feuerbach, "o livro que mais influenciou o jovem Marx". Quem quer que tenha estudado o assunto sabe que Marx só engoliu com reservas as especulações feuerbachianas. O verdadeiro guru e introdutor dele e de Engels no comunismo foi Moses Hess, satanista praticante, de cujo livro Die Folgen der Revolution des Proletariats ("Conseqüências da revolução proletária", 1847), trechos inteiros do Manifesto de 1848 são quase uma paráfrase. (Mais tarde Hess se arrependeu e voltou ao judaísmo, mas era tarde: sua prole infernal já estava espalhada pelo mundo.) Segundo: o sr. Wolff proclama que uma das grandes desventuras do Brasil é o abandono da Teologia da Libertação, cujos próceres "perderam a guerra contra o clero vigarista infiltrado em toda a vida nacional". O leitor, como eu, terá alguma dificuldade em enxergar os padres reacionários que superlotam o Senado, a Câmara, os Ministérios, o aparato estatal de cultura, o movimento editorial, os canais de TV, as redações de jornais e as editoras de livros, assim como em constatar a ausência concomitante, nesses locais e até na Presidência da República, de discípulos de Frei Betto e Leonardo Boff. Mas a percepção do sr. Wolff, sobretudo depois das duas da madrugada, penetra em regiões inacessíveis à visão normal humana. Ele vê coisas. Para mim, tudo isso foi uma autêntica Hora da Saudade. Ouvindo a sra. Marilena Chauí, lendo os srs. Francisco Oliveira e Fausto Wolff, entre tantos outros, revivi, proustianamente, a minha juventude de militante, quando varava noites decorando o Manual de Marxismo-Leninismo da Academia de Ciências da URSS e comovendo-me até às lágrimas com a convocação de Caio Prado Júnior à sangueira redentora que nos libertaria da vexaminosa "acomodação burguesa" do PCB. Na época não existiam os termos "neoliberalismo" e "tucanismo". O pecado chamava-se "reformismo" ou 'revisionismo'. Mas, para o automatismo mental comunista, a mera troca de palavras já é uma inovação formidável.

A Sra. Marilena Chauí restaura a lição da vulgata segundo a qual quem move tudo é a luta de classes

Diário do Comércio 29/08/2005

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Honra ao mérito

Francenildo, caseiro que teve o seu sigilo bancário violado e se tornou um herói nacional

Beto Barata/AE/10/3/2006

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eio no site do meu caro Políbio Braga (http://www.polibiobraga.com.br), um dos melhores comentaristas políticos do Rio Grande, o seguinte: " Se você tem conta na Caixa Econômica Federal, muita atenção: a Caixa viola o sigilo bancário dos seus clientes. Saia da Caixa Federal enquanto é tempo e fuja de repartições públicas ocupadas por trotsquistas ou ex- trotsquistas enquistados no PT, porque eles são capazes de tudo e não têm compromisso algum com a chamada 'ordem burguesa'. Ficou comprovado que a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa partiu da própria Caixa Econômica Federal. O formulário de extração de dados da movimentação bancária de Francenildo é exclusivo do sistema interno da estatal, ao qual nem clientes têm acesso. As duas pessoas, em última instância, responsáveis pelo sigilo dos dados dos clientes são gaúchas. São o próprio presidente, Jorge Mattoso, conhecido trotsquista de Porto Alegre, amigo de Luís Favre, o marido de Marta Suplicy, também ele um trotskista histórico, além de Clarice Coppetti, a guardiã da área de segurança da informação da Caixa, que antes de ir para Brasília ocupou uma das Diretorias da Procempa, à época presidida pelo trotsquista Jorge Mazzoni. São todos enfezados militantes do PT. Clarice Copetti é mulher de César Alvarez, do PT gaúcho, homem que despacha ao lado do gabinete do Presidente Lula, no Palácio do Planalto." Não sejamos injustos com a Caixa Econômica Federal. Ela não é uma ilha de espionagem comunista num mar de confiabilidade e decência. Todas as estatais, todos os órgãos da administração federal, estadual e municipal, todos os sindicatos, todos os bancos, todas as grandes empresas privadas, todas as escolas privadas e públicas de qualquer grau, todas as instituições de cultura, todos os jornais, revistas e canais de TV, todos os partidos políticos sem exceção têm hoje um, dois, vinte, trinta agentes infiltrados a serviço da máquina esquerdista de informação e contra-informação. Essa "ocupação de espaços" começou quarenta anos atrás e prosseguiu discretamente, imperturbavelmente, sem encontrar a menor resistência, ao longo de duas gerações de brasileiros. Ela nasceu da mutação estratégica sucedida nos partidos de esquerda a partir da publicação das obras de Antonio Gramsci pela Editora Civilização Brasileira, na década de 60. Vou resumir brevemente essa mutação e em seguida analisar criticamente o seu estado atual. Quem depois disso não entenda o que está acontecendo e ainda se

iluda quanto à possibilidade de reverter o estado de coisas pela via eleitoral normal, sem uma contra-estratégia de conjunto e um combate anticomunista explícito, será um caso de ingenuidade política irreversível e fatal.

1 Não sejamos injustos com a Caixa. Ela não é uma ilha de espionagem comunista num mar de confiabilidade e decência.

No entender de Gramsci, o "poder" não se constitui apenas do aparelho estatal, mas de uma complexa trama de organizações espalhadas pela sociedade civil, por meio das quais a "ideologia" dominante se perpetua através das gerações, criando uma barreira de proteção invisível contra a ação revolucionária.

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Portanto, o principal objetivo do Partido revolucionário não deve ser a tomada do poder político, mas a conquista do controle - "hegemonia" - sobre essa rede informal de organizações que produzem a "cultura", isto é, a ideologia dominante. (O Partido não precisa ser formalmente um só, reconhecido como tal nos registros eleitorais "burgueses", mas pode ser um amálgama de organizações diversas e sem estratégia nominal unificada, algumas até sem existência legal, como acontece com o MST.)

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Todas as estatais [...] têm hoje um, dois, vinte, trinta agentes infiltrados a serviço da máquina esquerdista.

A hegemonia não é apenas um meio de obter suporte social para a conquista do poder político. Isso seria reduzi-la a um apêndice da velha estratégia leninista. Ao contrário, ela é, desde já, a transição revolucionária para o socialismo, operada por meios tão difusos e onipresentes que se torna difícil combatê-los ou mesmo reconhecê-los. Daí o nome "revolução passiva". É a revolução que acontece sem que ninguém possa ser apontado como seu autor e mesmo sem que as vítimas do processo tomem consciência clara do que está acontecendo.

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No esquema leninista, a transição para o regime comunista seria feita por meio de uma etapa intermediária socialista. O Estado, nessa perspectiva, seria fortalecido e ampliado até apropriar-se de todos os meios de ação social existentes. Quando nada mais restasse fora da esfera do Estado, este desapareceria como tal: onde tudo é Estado, nada é Estado. Pelo menos a dialética hegeliana ensina a raciocinar assim. Marx, Lenin e tutti quanti tomavam como dissolução real do poder de Estado essa pura transmutação semântica do tudo em nada. Foi por meio dessa grotesca mágica verbal que o totalitarismo perfeito pôde ser aceito como a perfeita democracia. O esquema de Gramsci é bem diferente. Nada tem de um engodo dialético. É uma transformação material, efetiva, da estrutura de poder. A conquista da hegemonia, conforme ele

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a encarava, já viria a constituir, em si e imediatamente, a dissolução da ordem estatal, substituída pela obediência espontânea das massas aos estímulos acionados pelos comandos culturais espalhados por todo o corpo da sociedade. A burocracia estatal é uma expressão da cultura dominante e nada pode contra ela. Ainda que continuasse formalmente vigente, a ordem estatal, inerme ante a força onipresente e invisível da "cultura", se tornaria um adorno inócuo e se dissolveria por si mesma. Seria o comunismo não declarado, implantado sem a etapa intermediária socialista.

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Nesse processo, a submissão coercitiva à autoridade estatal seria substituída pela obediência inconsciente e irreversível à "cultura", isto é, ao conjunto de estímulos, slogans e cacoetes mentais injetados sutilmente na sociedade pelos "intelectuais", a vanguarda partidária espalhada informalmente nos milhares de organizações da sociedade civil. A profundidade e abrangência dessa penetração pode ser medida pelo fato de que a rede de organizações a ser conquistada abrangia até escolas maternais, igrejas e confessionários, consultórios de psicologia clínica e aconselhamento matrimonial: nada na atividade psíquica da sociedade poderia escapar à influência do Partido, que adquiriria assim, segundo as palavras do próprio Gramsci, "a autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino".

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No esquema gramsciano, a identificação do perfeito controle totalitário com a perfeita liberdade democrática, que em Lênin era apenas um giro semântico demagógico, se torna um processo psicológico real vivenciado pelas multidões, que, não percebendo nenhuma autoridade estatal a coagi-las ou atemorizá-las por meios visíveis, acreditam piamente estar vivendo na mais libertária das democracias, no instante mesmo em que se curvam à completa obediência, incapazes até mesmo de conceber algum tipo de ação que escape à conduta que o Partido espera delas.

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A subversão ativa por meio dos mecanismos tradicionais de ação comunista - greves, invasões de terras, protestos de toda ordem - não seria abandonada, mas articulada à conquista da hegemonia pela elite "intelectual", formando o "bloco histórico", isto é, a perfeita convergência da "pressão de cima" com a "pressão de baixo". Operando sobre um fundo psicológico preparado pela hegemonia, a subversão já não encontraria resistência e nem mesmo seria nominalmente

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reconhecida como tal, pois corresponderia à simples realização de expectativas "normais" já prefiguradas e legitimadas na "cultura". Nenhum ser humano com QI superior a 12 pode deixar de perceber que a transformação revolucionária gramsciana não é um risco que se abre diante de nós, mas a situação em que o país já vive desde há muitos anos, um processo tão geral, profundo e avassalador que ninguém mais pensa em lhe oferecer resistência de conjunto: mesmo os descontentes com o estado de coisas só reagem a pontos de detalhe. Suas ações se dissolvem espontaneamente no oceano da hegemonia cultural e com a maior facilidade são reaproveitadas para o fortalecimento do contole partidário monopolístico. Alguns exemplos especialmente deprimentes: Aqueles que se revoltam contra a prepotência do MST já não têm sequer a força interior de lutar contra os objetivos do movimento e se limitam a protestar contra uma ou outra ação isolada. Contra a subversão agrária, o máximo que conseguem propor é a "reforma agrária dentro da lei", isto é, a reforma agrária conduzida pelos agentes do mesmo movimento que só se diferenciam dos invasores de terras porque ocupam cargos na burocracia estatal. O ponto que ainda resta em disputa é apenas uma diferença quanto aos meios de fortalecer o MST: deixando-o invadir e queimar fazendas ou entregando-lhe oficialmente tudo o que ele exige e mais alguma coisa. É mais que evidente que os organismos policiais e de inteligência não foram deixados de lado na conquista da hegemonia. Eles estão hoje sob o controle completo da organização partidária que, ao mesmo tempo, fomenta o banditismo através de legislações propositadamente liberalizantes e sobretudo da intensa colaboração entre as quadrilhas de traficantes e as organizações subversivas estrangeiras associadas ao partido governante através do Foro de São Paulo. É a perfeita articulação da "pressão de baixo" com a "pressão de cima". Espremida entre esses pólos, a sociedade não tem alternativa: ou se conforma com a violência criminosa descontrolada, ou fortalece o partido governante confiando-se à sua proteção, sem ousar confessar a si mesmo que assim está se entregando oficialmente aos próprios bandidos. Durante anos, a elite partidária articulou violentas campanhas de combate à corrupção com a construção discreta e abrangente de uma máquina de corrupção incomparavelmente maior e mais destrutiva do que todas aquelas que ia desmantelando pelo caminho. Pressão de ci-

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ma e pressão de baixo. Durante esse período, os feitos mais espetaculares do moralismo acusador deviam-se exclusivamente ao progressivo controle que os partidos de esquerda iam adquirindo sobre os meios de informação e contra-informação através de uma infinidade de "arapongas" infiltrados em toda parte. Na época, a sociedade já estava tão estupidificada e submissa que fechava os olhos a essa monstruosa destruição da ordem legal desde dentro e só se enfezava contra os corruptos avulsos que a máquina de subversão esquerdista apontava à execração popular. A situação descrita por Políbio Braga no parágrafo citado acima não é nova. O esquema esquerdista tem toda a máquina de informações na mão, podendo usá-la à vontade tanto para enriquecer ilicitamente como para intimidar, assassinar moralmente ou mesmo mandar para a cadeia quem quer que ouse denunciar o que ele está fazendo. A esta altura, qualquer político anti-esquerdista que ache possível vencer esse esquema por meio de acusações isoladas de corrupção, apegandose a esse ponto para fugir a um confronto com a estratégia geral gramsciana, é evidentemente um bocó inofensivo que só merece, de seus inimigos esquerdistas, um riso de desprezo. No Brasil atual, a autodemolição do Estado e sua substituição pela onipotência do Partido já são fatos consumados e, nesse sentido, a profecia gramsciana se revelou perfeitamente veraz. O problema com Gramsci não é a falta de realismo. Gramsci nunca foi vitima de utopismo revolucionário. Ele sempre foi atento aos fatos e sensível à hierarquia das forças objetivas que movem a sociedade. O problema com ele não está nos fatos, mas nos valores. Tal como seu guru Maquiavel, ele tinha uma consciência moral doente, disforme, incapaz de sentir o mal mesmo nas suas expressões mais óbvias e escandalosas. Por exemplo, ele via a dissolução do Estado como o advento de uma era de liberdade jamais sonhada. Mas o Estado é uma ordem explícita sobre a qual sempre se pode exercer um controle crítico. Já a rede de operadores da hegemonia é oculta, inacessível ao público. É uma elite onipotente como uma casta de deuses, controlando o processo desde alturas inatingíveis. Só uma mente perversa pode conceber isso como um reino da liberdade. Ao mesmo tempo, é óbvio que a elite esquerdista pode dissolver o Estado por meio do fomento ao banditismo, mas com isso entrega a população à sanha de traficantes e assassinos, sem lhe deixar esperança de refúgio exceto por meio de um retorno ao Estado forte, dominado, é claro, pela mesma elite que criou, protegeu e alimentou o império do crime. Gramsci sabia como funcionava a estrutura

de poder. Só não sabia diferenciar o bem do mal. Era um gênio da engenharia social com a consciência moral de um rato de esgoto. Se o Brasil é hoje a nação recordista mundial de homicídios no mundo e ao mesmo tempo o único país em que a estratégia gramsciana foi aplicada de maneira integral e bem sucedida, só tipos patéticos nos quais a impotência e a cretinice tenham chegado à síntese perfeita da estupidez superior podem achar que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ora, praticamente toda a política "de oposição", no momento, consiste precisamente em agir como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra. Quando observo esse estado de coisas e me lembro de que, ao longo das décadas, todas as minhas tentativas de denunciar o processo antes que ele chegasse às suas últimas conseqüências foram recebidas com bocejos de indiferença ou com aquela franca hostilidade que os preguiçosos e comodistas reservam para os portadores de notícias desagradáveis, não posso escapar à conclusão de que as vítimas da opressão esquerdista receberam exatamente aquilo que fizeram por merecer. No fundo do caos, da violência, do cinismo triunfante e da mais formidável degradação moral que qualquer nação do mundo já vivenciou, reina, no fim das contas, uma certa justiça. Todos estão sendo recompensados pelos méritos da sua covardia moral e da sua indolência intelectual. Parabéns. Nota - Naanálisedosfatos,Gramscisófalhou num ponto decisivo. Ele não entendia absolutamente nada de economia, e por isso imaginou que a aplicação bem sucedida da sua estratégia produziria automaticamente a transfiguração mágica do sistema econômico. Ao contrário, a evolução posterior dos acontecimentos mostrou que a implantação de um sistema de poder comunista gramsciano é inteiramente compatível com a subsistência do capitalismo monopolístico. Na verdade, ela até exige isso, porque, a economia comunista sendo inviável em si (a demonstração cabal disto já foi feita desde 1928 por Ludwig von Mises), o esquema gramsciano precisa de uma certa quota de capitalismo para manter-se de pé, exatamente como acontece na economia nazista ou fascista. Daí a parceria infernal do partido governante com os bancos. Mantendo satisfeita uma parcela da burguesia, esse esquema pode durar indefinidamente. E, se alguém acha ruim, o protesto mesmo pode ser canalizado em favor da propaganda esquerdista, lançando-se as culpas do mal sobre o "sistema", como se o sistema não fosse o próprio gramscismo realizado.

Aqueles que se revoltam contra a prepotência do MST já não têm a força interior de lutar contra os objetivos do movimento.

Diário do Comércio 27/03/2006

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Vinícius Torre Freire/Folha Imagem/1/12/1995

O sucesso do fracasso

Jacques Derrida, sacerdote supremo do desconstrucionismo

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odos os "movimentos sociais" atuantes no Brasil, sem exceção, bem como as entidades que os representam e as leis baseadas nas suas reivindicações, nasceram da seguinte maneira: 1 Com dez, vinte, trinta anos de antecedência, os intelectuais esquerdistas de maior peso discutem e elaboram os conceitos e a linguagem das novas idéias destinadas a revigorar e ampliar o movimento revolucionário mundial. 2 Em seguida essas propostas passam à alçada das grandes fundações bilionárias e organismos internacionais, onde o segundo escalão intelectual - técnicos, planejadores sociais, publicitários, ativistas - lhes dá o formato operacional para transmutá-las em propostas concretas. 3 Essas propostas são então espalhadas pelo mundo por meio de uma infinidade de livros, artigos, conferências, filmes, espetáculos de teatro, sempre subsidiados pelas mesmas fontes, mas apresentados como iniciativas independentes, de modo a dar a impressão de que a mudança planejada provém de uma fatalidade histórica impessoal e não de uma ação organizada. Ao mesmo tempo, desencadeia-se um conjunto de operações preventivas destinadas a neutralizar, reprimir e, se

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necessário, criminalizar toda resistência. 4 Só então as propostas chegam aos países do Terceiro Mundo, por meio de ONGs e agentes pagos que as inoculam nos círculos de intelectuais mais ativos, os quais as retransmitem aos estudantes e à mídia, não raro apresentando-as como suas criações pessoais e originalíssimas, de modo que a multidão dos aderentes não tenha a mais mínima idéia da existência de um empreendimento internacional organizado por trás dos efeitos políticos que se seguem inexoravelmente. 5 A última etapa é a produção desses efeitos, por meio dos agentes políticos - militância organizada, agentes de influência, legisladores - que transformam as propostas em leis e instituições. Na última etapa, as origens intelectuais das propostas e a sua base internacional de sustentação financeira e organizacional já se tornaram praticamente invisíveis para a população em geral, de modo que toda a discussão a respeito, destinada a fazer com que a adoção das novas medidas pareça surgir do fluxo normal e espontâneo da vida democrática, se atenha às definições nominais e aos aspectos mais periféricos das questões respectivas, sem possibilidade de examinar seja o esquema de poder que articulou a seu belprazer a situação de debate,


seja as implicações históricas de longo prazo que advirão das transformações pretendidas. Quando essas conseqüências se revelam catastróficas, a culpa pelo erro que as produziu já está tão disseminada pela sociedade que toda tentativa de rastrear e responsabilizar os autores das propostas iniciais, caso ainda ocorra a alguém a tentação de empreendê-la, começa a parecer rebuscada e artificiosa "teoria da conspiração". A primeira condição para a existência de um movimento conservador ou liberal é a formação de equipes de estudiosos qualificados para fazer esse rastreamento e expor aos olhos da multidão o processo inteiro da "transformação social", para que ela perca seu prestígio místico de fatalidade histórica ou vontade divina e possa ser discutida às claras como qualquer outro projeto de poder. Infelizmente, as forças econômico-sociais cuja sobrevivência a longo prazo depende do sucesso de um movimento liberal-conservador - principalmente a classe empresarial que é a concorrente número um dos planejadores e burocratas iluminados - têm um horizonte de visão histórica muito restrito e dificilmente compreendem a necessidade de uma estratégia de longo prazo. Concentram-se na defesa dos seus interesses imediatos reais ou imaginários e, sem perceber, acabam colaborando com os planos mais vastos e gerais da esquerda, seja por meio de concessões conscientes que lhes parecem muito espertas na hora, seja por meio de resistências pontuais arbitrárias e inconexas que sempre podem ser absorvidas e neutralizadas no quadro maior da estratégia esquerdista, seja por meio da adaptação passiva, lenta e quase imperceptível à linguagem e à cosmovisão de seus inimigos. O domínio do tempo histórico das transformações políticosociais tornou-se monopólio da elite esquerdista internacional. O mero fracasso econômico das propostas socialistas não diminui em nada o poder hipnótico que exercem sobre a multidão nem o controle hegemônico da esquerda sobre o processo histórico, porque esse fracasso é apenas um fato, e os fatos não se transformam por si em elementos de persuasão quando não integrados como símbolos num universo imaginário, isto é, quando não trabalhados dentro de um plano cultural abrangente e de longo prazo, precisamente o que falta por completo às forças liberal-conservadoras. O próprio preconceito economicista que se apossou dessas forças, induzindo-as a esperar que a fraqueza econômica do socialismo se transmute automaticamente em fracasso político-cultural do movimento esquerdista, já mostra o quanto o imaginário liberal-conservador foi infectado e moldado pela cosmovisão esquerdista, hoje "onipresente e invisível" como a desejava Antonio Gramsci. Desse preconceito, em simbiose com o imediatismo político, nasce o profundo desinteresse que os liberais e conservadores têm pelo debate interno de idéias na esquerda. Como o conteú-

O domínio do tempo histórico das transformações político-sociais tornouse monopólio da elite esquerdista internacional.

(...) os esquerdistas, a salvo de qualquer fiscalização crítica da parte de seus adversários, inventam as mentiras e alucinações com que dominarão a consciência das multidões.

do desse debate lhes parece falso e alucinatório e por isso supremamente tedioso, não percebem que por trás dessa falsidade e alucinação há um método e uma estratégia. Nem muito menos que a falsidade louca de uma idéia jamais foi obstáculo ao seu sucesso político. Enquanto os liberais e conservadores discutem economia, criando esquemas saudáveis e racionais que jamais serão levados à prática, os esquerdistas, a salvo de qualquer fiscalização crítica da parte de seus adversários, inventam as mentiras e alucinações com que dominarão a consciência das multidões e conduzirão o processo histórico para onde bem entendam, com a facilidade com que um menino-pastor puxa um búfalo de uma tonelada pela argola do nariz. Vou dar aqui um único exemplo de doutrina alucinatória que jamais vi despertar o interesse dos liberais e conservadores brasileiros e que por isso mesmo consegue praticamente dominar o ambiente universitário, cultural e midiático nacional, influenciando o curso dos acontecimentos e impondo derrotas humilhantes à racionalidade econômica liberal-conservadora. Refiro-me à escola "desconstrucionista" de Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Paul de Man, Gianni Vattimo e outros, que torna inviável toda idéia de veracidade objetiva e instaura em seu lugar o primado da ficção militante. Como em artigos vindouros pretendo abordar aqui vários fenômenos da política brasileira que jamais teriam podido produzir-se exceto num ambiente intelectual dominado por essa escola, a utilidade essencial de conhecê-la se tornará mais evidente nas próximas semanas. Usei o termo "escola", mas os próprios desconstrucionistas o rejeitam. Também não aceitam que o desconstrucionismo seja definido como uma filosofia, um método de interpretação, um projeto acadêmico ou qualquer outra coisa. Não aceitam definição nenhuma, o que já coloca o recém-chegado na obrigação de escolher entre embarcar às cegas na aventura sem nome ou, ficando de fora, não poder criticá-la sem ser acusado de incompreensão leiga. À entrada do templo desconstrucionista, portanto, um cartaz em letras de fogo já anuncia: "Ame-o ou deixeo." Mas deixá-lo significa excluir-se a si próprio da comunidade acadêmica e ser considerado um ignorante ou reacionário, um escravo do universo lingüístico pré-desconstrucionista e, portanto, um virtual objeto de desconstrução. Não há terceira alternativa entre desconstruir e ser desconstruído - e esta última hipótese não significa apenas ser objeto de análise corrosiva, mas de destruição social e profissional. A desconstrução parte da premissa lingüística de Ferdinand de Saussure de que a língua é um sistema no qual o sentido de cada palavra é a diferença entre ela e todas as outras. O sacerdote supremo do desconstrucionismo, Jacques Derrida, joga essa premissa contra as pretensões científicas da própria lingüística,

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(...) a escola 'desconstrucionista' de Jacques Derrida (...) e outros torna inviável toda idéia de veracidade objetiva e instaura em seu lugar o primado da ficção militante.

ao concluir daí que, se a língua é um sistema de diferenças entre signos, ela não tem qualquer referência a um "significado" externo. Tudo o que o ser humano diz, escreve ou pensa é apenas a exploração das possibilidades internas do sistema. Não tem nada a ver com "realidade", "fatos" etc. O universo inteiro ao alcance do pensamento humano é constituído de "textos" ou "discursos", mas, como não há nenhuma realidade externa pela qual esses discursos possam ser aferidos, não tem sentido falar de discursos "verdadeiros" ou "falsos". Não existe representação da realidade. Todo discurso é livre invenção de significados. Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido nietzscheano, afirmando que, se o dircurso não é representação da realidade, é expressão da "vontade de poder". Mas isso não quer dizer que por trás do discurso exista um "eu" manifestando sua vontade de poder. A idéia de um eu estável e autoconsciente é ela própria uma representação da realidade. Como nenhuma representação da realidade pode funcionar, o eu também não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada "eu". Se a língua estava totalmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o desconstrucionista vai agora separá-la do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera "différence" a "différance", com "a", termo criado por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como autor do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto assunto do discurso. Em português ele não precisaria inventar esse trocadilho medonho, pois aí existe a palavra "diferição", sinônima de "adiamento", que, por aquela mistura de pedantismo e ignorância, típica do meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a usar, preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de uma nuance sutilíssima. Qualquer que seja o caso, Derrida está falando simplesmente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a si mesmo. Separado do objeto pela circularidade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela diferição, ou, se preferem, "différance" (como diria Dirty Harry: Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o que pensar, será sempre uma ausência falando de outra ausência. Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe, só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada "eu" e outra ficção chamada "objeto". O motivo que produz a necessidade de criar essa ficção é o desejo de escapar da morte, da aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a "realidade". Portanto a função de todos os discursos é negar a realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste o poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João, VIII:32) dizia que a liberdade nasce do conhecimento da verdade. Para Derrida e os descons-

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trucionistas em geral, a liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com isso, o próprio poder. No início alguns marxistas ficaram alarmados com a nova filosofia, que, ao negar a realidade, punha em xeque toda pretensão de conhecer as leis objetivas do processo histórico. Mas Derrida logo conseguiu acalmá-los, mostrando que, se o desconstrucionismo era ruim para a teoria marxista, era bom para o movimento revolucionário, dando-lhe não só os meios de corroer toda a cultura ocidental por meio da negação do significado em geral, mas também de afirmar o seu próprio poder ilimitadamente: livre das coerções da realidade objetiva, imune portanto a qualquer cobrança na esfera dos argumentos racionais, ele poderia impor sua vontade por todos os meios ficcionais possíveis, enquanto seus adversários, travados por escrúpulos de realidade e lógica, observariam inermes a sua ascensão irresistível. Todo o empreendimento desconstrucionista é, de fato, uma resposta prática ao apelo formulado pelo marxista húngaro Georg Lukacs, ao perceber que o grande obstáculo ao comunismo não era o poder econômico da burguesia, mas dois milênios de civilização judaico-cristã. "Quem nos livrará da civilização ocidental?", perguntava angustiado Lukacs. Quem logo se apresentou como primeirão da fila foi o nazista Martin Heidegger. Destruição - Destruktion - é a palavra-chave de tudo o que ele fez na vida: desde escrever e depois desescrever Ser e Tempo até

AFP/1/1/1960

Martin Heidegger foi o primeiro herói da guerra contra o "logocentrismo"


Expressão da revolta gnóstica contra a estrutura da realidade, projeto 'desconstrucionista' está destinado ao fracasso, mas o fracasso cognitivo pode ser um sucesso político-social.

aplaudir a ascensão do Führer e recusar-se a esclarecer o assunto depois da II Guerra, deixando seus fãs numa dúvida perturbadora que dava à sua filosofia ainda mais sex appeal. A essência da filosofia de Martin Heidegger consiste em abolir o Logos, o verbo divino que faz a ponte entre o pensamento humano e a realidade externa, e colocar em seu lugar a "vontade de poder" do Führer. Heidegger foi o primeiro herói da guerra contra o "logocentrismo". A convergência entre seus esforços filosóficos e os objetivos de Georg Lukacs foi o pacto Ribbentropp-Molotov da filosofia. Mas Heidegger, afinal, não criou como substitutivo para a civilização judaico-cristã nada além da filosofia de Martin Heidegger, que só serve para quem a entende. Derrida et caterva transmutaram essa filosofia num projeto acadêmico indefinidamente subsidiável e num movimento político do qual milhões podem participar sem entender coisa nenhuma do que estão fazendo. Tinha de ser mesmo um sucesso triunfal. Ainda mais triunfal foi essa ascensão no Brasil, onde o temor reverencial à moda acadêmica francesa, o prestígio sacral do discurso incompreensível e a síntese de pedantismo e ignorância que constitui a forma mentis inconfundível da nossa classe universitária erigiram o desconstrucionismo num culto fanático que não apenas repele contestações mas nem mesmo admite a existência delas. Um traço peculiar do desconstrucionismo, que no Brasil foi acentuado até suas últimas conseqüências, é que, ao negar a existência da verdade, ele não abdica de atacar a "mentira". Quando ele o faz perante um público que desconhece a nuance específica que o termo tem para um desconstrucionista, a platéia acredita que ele está defendendo a "verdade". Mas, no círculo interno, sabe-se que não existe verdade. "Mentira", pois, é apenas aquilo que se opõe à ficção preferida do grupo desconstrucionista, à sua "vontade de poder". Inversa e complementarmente, o termo "verdade", ao ser usado pelo desconstrucionista perante os leigos, significará para estes uma representação adequada da realidade comprovável, mas, entre os iniciados, sabe-se que isto não existe e que o emprego do termo se destina apenas a explorar as ilusões do público para induzi-lo a submeter-se às ilusões e desejos do grupo ativista. Nesse sentido, pode-se e deve-se estigmatizar como "mentira" os fatos mais amplamente comprovados e impor como "verdade" qualquer mentirinha boba conscientemente inventada para vitaminar a "vontade de poder" do movimento. Objetivamente falando, o valor inteiro do projeto desconstrucionista depende da premissa saussuriana de que o sentido de uma palavra é apenas a diferença entre ela e todas as outras. Essa premissa é falsa. Suponham a frase: "Jacques Derrida morreu." A diferença entre Jacques Derrida e todos os outros seres dota-

dos de nomes humanos é a mesma quer ele esteja vivo ou morto. A diferença entre morrer e estar vivo, por sua vez, é a mesma quer você esteja vivo ou morto. Mas, se Jacques Derrida morreu, a diferença entre ele e todos os outros continua intacta, enquanto ele, o indivíduo Jacques Derrida, não será mais visto por aí dando palestras e encantando milhões de idiotas. Ou a expressão "Jacques Derrida" significa algo mais do que a diferença entre ela e todas as outras, ou tanto faz Jacques Derrida estar morto ou vivo. Do mesmo modo, uma frase como "Não há mais comida" é a mesma - e suas diferenças em relação a todas as outras são as mesmas - quer você a diga como puro exemplo verbal ou como expressão de um estado de fato. A diferença neste último caso está na presença ou ausência física de comida, que não é a mesma coisa que a "ausência do objeto" na mera formulação saussuriana do significado como diferença entre uma frase e todas as demais. Esta diferença é a mesma com comida ou sem comida. A falta de comida não é bem isso. Reparando em detalhes como esse, o próprio Jacques Derrida foi obrigado a moderar as pretensões do seu método, reconhecendo a existência de "indesconstruíveis" e, no fim, admitindo que entre eles estava - que raiva, pô! - o próprio Logos. Desconstrua você o que desconstruir, estará sempre, pelo simples fato de pensar e falar, dentro de um quadro de referências balizado pelo Verbo Divino ou por seus reflexos na tradição metafísica. No fim das contas, a Destruktion, como o projeto nazista, pode destruir muitas coisas em torno, mas se destrói a si mesma - e àqueles que embarcaram na sua proposta - em escala infinitamente maior. Proclamando que a liberdade consiste em negar a verdade, o desconstrucionista só exerce sua liberdade de viver da ficção e sentir um gostinho de poder até o momento em que a morte substitui todas as ficções por uma verdade "indesconstruível" e a vontade de poder pela impotência definitiva dos cadáveres. Expressão modernizada da revolta gnóstica contra a estrutura da realidade, o projeto desconstrucionista está destinado ao fracasso, mas o fracasso cognitivo pode ser um sucesso político-social, na medida em que arraste na sua voragem milhões de idiotas hipnotizados pela atração do abismo.

Diário do Comércio 27/11/2006

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... a promoção de sambistas estrip-teasers ao estatuto de intelectuais resultou nesse descalabro da promoção do sr. Gil (foto) a ministro da Cultura

Tasso Marcelo/Agência Estado

sentença de Hugo von Hofmannsthal já citada nesta coluna - "Nada está na realidade política de um país se não estiver primeiro na sua literatura" - é tão verdadeira e profunda, que pode ser aplicada à análise das situações políticas desde vários ângulos diferentes, sempre rendendo algum conhecimento. Vejam, por exemplo, o que aconteceu na Rússia entre a metade do século XIX e a queda da URSS. Nessa época, a cultura russa, até então raquítica em comparação com as da Europa ocidental, começava a tomar impulso para lançar-se a grandes realizações. A inspiração que a movia era sobretudo a confiança mística no destino da nação como portadora de uma importante mensagem espiritual a um Velho Mundo debilitado pelo materialismo cientificista. Preservada da corrosão revolucionária por um regime político fortemente teocrático em que as crenças oficiais da côrte e a religiosidade popular se confirmavam e se reforçavam mutuamente, a Rússia contrastava de maneira dramática com as nações ocidentais onde a elite e as massas viviam num divórcio ideológico permanente e que por isso só se modernizavam à custa de reprimir e marginalizar os sentimentos religiosos da população. O regime tzarista, não obstante o peso da sua burocracia emperrada, havia conseguido encontrar o caminho para reformas que não iam contra os ensinamentos da igreja ortodoxa, mas, bem ao contrário, nasciam deles. O futuro da Rússia parecia emergir diretamente do messianismo cristão das duas figuras máximas da intelectualidade russa, o romancista F. M. Dostoiévski e o filósofo Vladimir Soloviev. Em comparação com a grande cultura nacional do período, a contribuição do movimento comunista russo consistiu sumariamente em rebaixar tudo ao nível de um automatismo dialético miserável, quando não da pura literatura de propaganda. A redução da cultura superior a instrumento de formação da militância neutralizou os efeitos benéficos das reformas universitárias empreendidas pelo governo e transformou grande parte da juventude letrada russa naquela multidão de tagarelas alucinados que povoam os romances de Dostoiévski, especialmente Crime e Castigo e Os Demônios. Experimentem ler qualquer página de Vladimir Soloviev ou do próprio Dostoiévski, depois comparem com as platitudes revolucionárias de George Plekhanov - tido na ocasião como o mais capacitado intelectual comunista russo - ou


DA FANTASIA DEPRIMENTE À REALIDADE TEMÍVEL

com as filosofices grotescas de V. I. Lênin em Materialismo e Empiriocriticismo, e saberão do que estou falando. Os comunistas começaram por destruir a inteligência superior de uma grande nação antes de criar o regime político mais estúpido e animalesco de que se tivera notícia na História. Quem, na época, quisesse prever o futuro da economia russa sob os comunistas poderia fazê-lo facilmente por meio da simples avaliação da literatura que eles produziam. Mesmo o mais talentoso ficcionista nas hostes revolucionárias, Maxim Gorki, estava formidavelmente abaixo da geração anterior. Hoje em dia já não se pode lê-lo senão como documento histórico. Nem é preciso dizer que o mesmo se aplica à literatura produzida sob os governos de Lênin, Stálin, Kruschev e tutti quanti. Até os melhores romances do período - os de Sholokhov - se tornaram ilegíveis por excesso de babaquice revolucionária. Nem falo dos filósofos e ensaístas, uma multidão subsidiada que o tempo de encarregou de jogar na lata de lixo. O pensamento russo só sobreviveu no exterior, integrado na cultura européia ou americana, com Berdiaev, Chestov, Sorokin. A imaginação literária só veio a se recuperar a partir anos 50, mas no subterrâneo, longe da cultura oficial, com Soljenítsin, Bukovski, Zinoviev. E não é preciso dizer que a inspiração para isso veio principalmente do antigo messianismo de Dostoiévski e Soloviev. O que sucedeu na cultura literária e filosófica reproduziu-se, com exatidão milimétrica, na economia. Aqueles que se acostumaram a imaginar o tzarismo sob o aspecto estereotipado da "repressão", do "atraso" e da "decadência" ignoram solenemente os fatos principais do período: a progressiva abertura da burocracia para elementos vindos de fora da camada aristocrática (inclusive judeus) e a industrialização acelerada. Nos cinqüenta anos que antecederam a revolução comunista, a economia russa foi a que mais cresceu na Europa, deixando longe a Inglaterra e a Alemanha que então pareciam ser as encarnações mesmas do progresso e das luzes, e só encontrando rival do outro lado do oceano, nos Estados Unidos da América. Se o regime tzarista não tivesse sido destruído pela I Guerra Mundial e pela subseqüente ascensão dos comunistas, o simples crescimento vegetativo da economia teria acabado por dar aos russos, por volta de 1940, um padrão de vida comparável ao dos americanos. Em contraste com isso, na União Soviética dos anos 80 o cidadão médio consumia menos carne do que um súdito pobre do tzar um sé-

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culo antes e tinha menos acesso a automóveis, assistência médica e serviços públicos em geral do que os negros sul-africanos vivendo sob o regime humilhante do apartheid. Nada está na realidade política de um país que não esteja primeiro na sua literatura. O exemplo russo é só um entre muitos. O utopismo da Revolução Francesa, que num choque de realidade acabou levando a resultados tão paradoxais quanto o terror, a ditadura napoleônica e a resColeção de pôsteres do site www.flickr.com tauração monárquica, foi antecedido de pelo menos meio século de linguagem abstratista, forçada, artificial e artificiosa, que sufocava a experiência direta sob toneladas de construções idealísticas sem pé nem cabeça. O processo foi descrito e analisado com muita acuidade por Hyppolite Taine em Les Origines de la France Contemporaine (6 vols, 18881894), uma das obras históricas mais notáveis de todos os tempos. Na Alemanha e na Áustria, a longa degradação da linguagem pública, contra a qual em vão reagiram Karl Kraus e Stefan George, é hoje reconhecida como um dos fatores que tornaram possível a ascensão do irracionalismo nazista. De modo geral, a explosão de cacofonias na literatura modernista anunciou e preparou o caPôster da editora minho para a invasão dos do Comissariado totalitarismos: já não há codo Povo, Ministério mo negar isso depois desse majestoso tour da Agricultura da de f o rc e h istori ográfi co que é Ri te s of União Soviética. Spring. The Great War and the Birth of the Modern Age, de Modris Eksteins (Boston, Houghton Mifflin, 1989). Não, Hofmannsthal não deu um palpite a esmo: se nada está na política que não esteja antes na literatura, é pela simples razão de que a imaginação vem antes da ação. Se há uma "lei histórica" que funcione, é essa. Digo-o entre aspas porque não é uma lei histórica, é um dado estrutural da ação humana que nenhuma mutação histórica pode alterar. Se o leitor compreendeu isso, com muita facilidade perceberá a loucura suicida que foi

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confiar os destinos do Brasil a uma corrente político-ideológica que, dos anos 70 até hoje, se empenhou sistematicamente em destruir a cultura superior do país e de modo especial a sua literatura, mediante a submissão de tudo às exigências estratégicas e táticas da "revolução cultural" de Antonio Gramsci. O entorpecente gramsciano penetrou no cérebro nacional a partir da publicação das obras do ideólogo italiano pelo editor comunista Ênio Silveira logo depois do golpe de 1964. Na confusão geral que se apossou das esquerdas ante o fracasso de suas esperanças de cubanização rápida e indolor da sociedade brasileira, uma ala mergulhou na leitura das idiotices de Régis Débray e Che Guevara, torrando suas energias na "revolução impossível" das guerrilhas. Outra, mais esperta, recuou e apostou na estratégia de longo prazo que propunha ir conquistando o universo inteiro das artes, do ensino, da cultura, do jornalismo - discretamente, como quem não quer nada - antes de arriscar a sorte na luta direta contra o inimigo político. O governo militar, obsediado pelo empenho de reprimir as guerrilhas, não ligou a mínima para esses emprendimentos pacíficos, aparentemente inofensivos. Fez vista grossa e até os apoiou como derivativo e alternativa aceitável à oposição violenta. A idéia gramsciana foi tão bem sucedida que, já em plena ditadura militar, a esquerda mandava nas redações, marginalizando os direitistas mais salientes - Gustavo Corção, Lenildo Tabosa Pessoa - até excluí-los totalmente das colunas de jornais. O esquerdismo controlava tão eficazmente o sistema de ensino, que a própria disciplina de Educação Moral e Cívica, timidamente instituída por um governo que se abstinha de estender ao campo cultural a autoridade de que desfrutava na área policial-militar, acabou fornecendo uma tribuna para a disseminação das concepções "politicamente corretas" que vieram a forjar a mentalidade das gerações seguintes. No tea-


tro, no cinema e na TV, a autoridade da esquerda pode ser medida pelo poder inconteste de veto ideológico exercido, na seleção das novelas da Globo - o mais vasto aparato de formação do imaginário popular - pelo casal de militantes comunistas Dias Gomes e Janete Clair. Idêntica filtragem aconteceu no movimento editorial. Aos poucos, todos os autores não aprovados pelo Partido Comunista desapareceram das livrarias, das bibliotecas escolares, dos programas universitários, e isto ainda na vigência de um regime cuja fama de anticomunista intolerante era apregoada aos quatro ventos pelos próprios comunistas que se beneficiavam de sua sonsa tolerância e omissão ideológica. Em toda a esfera cultural, artística, escolar e jornalística, a única diferença que se viu, com o fim da ditadura, foi a passagem da hegemonia tácita da esquerda ao domínio explícito e, agora sim, intolerante. A confortável hospitalidade com que, no tempo dos militares, esquerdistas notórios eram aceitos nos mais altos postos do jornalismo, do ensino e do show business contrasta de tal modo com a exclusão radical dos direitistas hoje em dia, que a aplicação do termo "ditadura" à primeira dessas épocas e "democracia" à segunda acaba soando singularmente irônica. Na época havia, é claro, o jornalismo "nanico", soi disant alternativo à grande mídia. Mas esta última também estava quase que inteiramente nas mãos de esquerdistas como Cláudio Abramo, Luiz Alberto Bahia, Alberto Dines, Luiz Garcia e outros tantos, de modo que a diferença com os nanicos era antes de estilo que de conteúdo. Hoje, os jornalistas "de direita" estão todos na mídia nanica. Os poucos que ainda aparecem nas páginas dos grandes jornais são apenas colaboradores contratados. Nem entram nas redações. O total domínio da cultura por uma corrente política, qualquer que seja, constitui já um mal em si. Mas o que aconteceu no Brasil foi muito mais grave:

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Aquele domínio implicava, desde logo, o rebaixamento proposital do nível de exigência, em vista da ampliação semântica do termo "intelectual", que no contexto gramsciano abrange a totalidade dos indivíduos, com qualquer nível de instrução ou QI, que possam atuar na propaganda ideológica. Daí derivou a promoção de sambistas, roqueiros, publicitários e strip-teasers ao estatuto de "intelectuais", que resultou em última análise nesse descalabro da promoção do sr. Gilberto Gil ao cargo de ministro "da cultura".

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O próprio termo "cultura" perdeu toda acepção qualitativa e pedagógica, reduzindo-se ao seu uso antropológico como denominação neutra e geral das "formas de expressão" populares. Nesse sentido, o sambade-roda do Recôncavo Baiano deve ser incluído, segundo aquele ministro, entre os grandes tesouros culturais da humanidade, junto com a filosofia de Aristóteles, a Catedral de Chartres e a mecânica quântica. Todo es igual, nada es mejor.

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De maneira mais genérica, toda diferenciação do melhor e do pior, do mais alto e do mais baixo acabou sendo condenada como discriminatória e até racista. Milhares de livros e teses universitárias foram produzidos para consagrar como fundamento da cultura brasileira a proibição de distinguir (que não obstante continuou sendo usada contra "a direita").

A esquerda brasileira é um bando de patifes ambiciosos, amorais, mentirosos (...) e absolutamente incapazes de responder por seus atos

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Para legitimar o estado de total confusão mental daí decorrente, introduziram-se os princípios do relativismo e do desconstrucionismo, que, a pretexto de promover um pensamento supralógico, destroem nos estudantes até mesmo a capacidade de raciocínio lógico elementar, substituída por uma verborréia presunçosa que lhes dá uma ilusão de superioridade justamente no momento em que mergulham no mais fundo da estupidez.

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Uma vez amortecida a capacidade de distinção, foi fácil disseminar por toda a sociedade os contravalores que deram forma ao Estatuto da Criança e a outros instrumentos legais que protegem os criminosos contra a sociedade, criando propositadamente o estado de violência, terror e anomia em que hoje vivemos, e do qual a própria esquerda se aproveita como atmosfera propícia para o comércio de novas propostas salvadoras. Uma corrente política capaz de rebaixar a esse ponto a inteligência e a força de discernimento de um povo não hesitará em destruir o país inteiro para conquistar mais poder e realizar os planos concebidos em encontros semisecretos com movimentos revolucionários e organizações criminosas do exterior. A esquerda brasileira - toda ela - é um bando de patifes ambiciosos, amorais, maquiavélicos, mentirosos e absolutamente incapazes de responder por seus atos ante o tribunal de uma consciência que não têm. Está na hora de o país retirar de uma vez o voto de confiança que deu a essa gente num momento de fraqueza fabricado por ela própria.

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O general Golbery foi o pai da ascensão petista, restando apenas saber se o foi por pura presunção e ignorância ou se houve da sua parte um pouco de cegueira voluntária.

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Enquanto a Zé-Lite dorme (...) no calor da luta contra as guerrilhas, a imagem de uma futura esquerda 'pacífica' e 'legalista' pareceu à elite militar uma alternativa roseamente desejável.

e tenho insistido no tema do desconstrucionismo, é para mostrar que toda tentativa de discussão democrática com intelectuais ou líderes esquerdistas, hoje em dia, é tempo perdido. Eles criaram instrumentos verbais altamente sofisticados para escapar de toda cobrança racional e impor seus desejos e caprichos sem ter de dar satisfações senão à sua vontade de poder. Mais ainda: inventaram um sistema de pretextos infalíveis para sentir que, ao fazer isso, são as melhores pessoas do universo, contra as quais só monstros de egoísmo e crueldade poderiam objetar alguma coisa. Pior: transmitiram essas atitudes e sentimentos a duas gerações de estudantes universitários, que hoje ocupam os espaços fundamentais na educação, na mídia, na administração pública, na justiça e, é claro, numa infinidade de ONGs e "movimentos sociais". Hegel dizia que aquele que nas discussões públicas se abstém de razões e apela à autoridade secreta da sua "voz interior" é um inimigo da espécie humana. Extinta a possibilidade de aferição objetiva, suprimidos os instrumentos de prova, reduzido o debate a um confronto de vontades, a única autoridade que resta é a pura habilidade de impressionar, de assombrar, de seduzir, de hipnotizar. E para isso vale tudo: desde o sex appeal até a intimidação prepotente, passando pela ostentação de títulos e cargos, a forma mais tosca e besta do argumento de autoridade, característica do bacharelismo provinciano que volta à moda meio século depois de parecer definitivamente superado. Uma vez conquistada a adesão estudantil pelo fascínio vulgar de charlatães bem-falantes, a autoridade se transfere a gerações inteiras de jovens enragés que saem da faculdade imbuídos do dever de "transformar o

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Empresários, políticos pragmáticos e analistas econômicos têm uma dificuldade quase intransponível de compreender o alcance político de modas culturais.

mundo" por meio da mentira e do engodo. Por toda parte, esses "agentes de transformação social" se empenham em fazer com que as engrenagens da sociedade funcionem ao contrário das suas finalidades nominais, criando o caos em lugar da ordem, a revolta e o ódio em lugar da paz, a malícia em lugar da confiança. Em suma, caro leitor, você está rodeado de ativistas cínicos, capazes de mentir e trapacear ilimitadamente no interesse do seu grupo político. Se você abre um jornal, não pode ter a certeza de ler fatos em vez de balelas interesseiras. Se tem uma demanda na justiça, não pode estar seguro de que não cairá nas mãos de um comissário do povo, decidido a julgar não segundo as razões do processo, mas segundo a classe social das partes. Se envia a esposa nervosa a um consultório de psicoterapia, não sabe se ela será tratada dos seus males ou envenenada de ódio ao marido. Se envia os filhos à escola, sabe que eles voltarão de lá tatuados e viciados, admirando bandidos e abominando as leis, falando alto, dando ordens ao pai e à mãe, indignados com a proibição das drogas, cheios de revolta sacrossanta contra a instituição familiar que os sustenta e protege. E ainda há quem, no meio disso, acredite poder confiar nas leis e instituições, no funcionamento normal da sociedade, na sanidade do processo democrático. A classe empresarial, os políticos pragmáticos e os analistas econômicos têm uma dificuldade quase intransponível de compreender o alcance político de modas culturais que, de início, parecem limitadas a um círculo de professores excêntricos e estudantes amalucados. Quase um século depois de Lukács, Gramsci, a Escola de Frankfurt e o próprio Stálin haverem descoberto que a cultura, e não a economia, é a força que move o


Folha Imagem/1/03/1979

General Golbery do Couto e Silva

processo revolucionário, esses observadores vesgos ainda acreditam que existe um abismo entre o mundo "prático" e a esfera dos interesses "abstratos", "estratosféricos", da intelectualidade acadêmica e artística. Estratosféricos são eles, habitantes do mundo da Lua. Quando o general Golbery do Couto e Silva inventou a teoria da "panela de pressão", pontificando que a atividade repressiva do Estado deveria limitar-se à oposição armada, deixando as universidades e as instituições de cultura livres como válvula para o escoamento das pressões subversivas, mal

sabia ele que, àquela altura, os esquerdistas mais avisados já haviam abandonado o projeto guerrilheiro e depositado todas as suas esperanças na "revolução cultural" gramsciana: a única arma de que precisavam era, precisamente, uma válvula. Ao optar implicitamente por não resistir ao comunismo em geral, mas só ao comunismo "violento", o governo lhes forneceu essa arma. Um pouco de estudo teria bastado para mostrar ao sapientíssimo general que a "via pacífica" para o comunismo era nada mais que o adiamento da violência crua para depois da tomada do

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poder por meios anestésicos. Mas, no calor da luta contra as guerrilhas, a imagem de uma futura esquerda "pacífica" e "legalista" pareceu à elite militar uma alternativa roseamente desejável. Em poucos anos, essa esquerda, nascida das conversações gramscianas na USP, estava montada e em pleno funcionamento. Não houve, na "direita", quem não celebrasse o seu advento como um formidável progresso da democracia. O general Golbery foi o pai da ascensão petista, restando apenas saber se o foi por pura presunção e ignorância ou se houve da sua parte um pouco Fotos: Reprodução de cegueira voluntária, alimentada por ambições nasseristas de absorver a esquerda continental num esquema militar nacionalista e anti-americano. Hoje sabemos que o esquema militar é que foi absorvido, subjugado e posto a serviço dos planos do Foro de São Paulo. Isso era perfeitaHegel mente previsível, mas não a quem alimentasse, como o general, a ilusão de poder manipular e "civilizar" o movimento comunista. A "queda" da URSS e a embriaguez triunfal dos liberais no início dos anos 90 levaram essa ilusão às últimas conseqüências, fazendo com que as "elites" (ou a Zé-Lite) celebrassem o sucesso do PT como uma promessa de melhores dias para a democracia capitalista. Frases como "o comunismo acabou" e "Lula mudou" adquiriram então o prestígio de dogmas inabaláveis, e quem sugerisse que as coisas não eram bem assim se tornava objeto de chacota da parte de banqueiros, empresários, políticos "de direita", capitães da mídia e altos oficiais militares - a pura nata da Zé-Lite. Hoje, quando esses senhores, de rabo entre as pernas, já entrevêem no colaboracionismo servil e trêmulo a sua única chance de sobrevivência, sinto-me até um tanto constrangido de lhes explicar, de novo, que os estrategistas da revolução comunista, por mais que lhes pareçam meros intelectuais avoados, de paletó sebento e barba por fazer, são um pouco mais espertos que eles. Um "homem prático" vive de olho nas cotações da bolsa e ri da sugestão de que algo tão abstrato e academicamente rebuscado como uma teoria literária possa ter alguma periculosidade política. O intelectual comunista aproveita-se dessa falsa sensação de segurança para fazer da teoria literária um instrumento de ação capaz de virar o mundo do avesso. Vou contar, em linhas gerais, como isso aconteceu. Na década de 30, Stálin estava persuadido de que a única função da arte e da literatura era a propaganda revolucionária. Parida às pressas pela Academia Soviética, a teoria estética do "realismo socialista" impregnou massas de escritores e artistas

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em todo o mundo comunista. Só não chegou a tornar-se um dogma universal porque, no Ocidente, Stálin reservava às celebridades das letras e artes uma função mais sutil. Queria usálas como instrumentos de camuflagem: deviam abster-se da filiação explícita ao Partido Comunista (e portanto também às suas opções estéticas) e, conservando uma fachada de neutralidade, colocar o seu prestígio a serviço de causas específicas de interesse do Partido nos momentos decisivos. Isso deu aos escritores esquerdistas da Europa e das Américas a margem de liberdade que lhes permitiu escapar do realismo socialista e continuar fazendo literatura em sentido estrito. Por toda parte, poetas, romancistas e críticos - a começar pelo príncipe da crítica marxista, Georg Lukács em pessoa e seu fiel escudeiro Lucien Goldmann - desprezavam a estética oficial soviética e faziam a apologia dos cânones literários que construíram a grandeza de Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac e Dostoiévsky. Lukács escreveu páginas notáveis em defesa do "grande realismo burguês", alegando que a representação fiel da realidade histórica era uma força revolucionária em si, sem necessidade de concessões à propaganda. Até em congressos do Partido a hostilidade ao realismo socialista acabava se mostrando, às vezes de maneira explosiva. Referindo-se ao chefe da escola, o nosso Graciliano Ramos exclamava: "Esse Jdanov é um cavalo." Assim a literatura foi salva do embrutecimento ideológico. Os anos 30-50 acabaram sendo uma época de criatividade literária incomum. No Brasil, então, nem se fala. Nunca tivemos tantos escritores bons ao mesmo tempo. Mas foi uma salvação provisória. Aqui e ali, discretamente, intelectuais iluminados se davam conta de que a preservação dos cânones do realismo e, de modo geral, a concepção da literatura como conhecimento, eram incompatíveis com a meta Georg Lukács escolhida pelo próprio Lukács: a destruição da civilização ocidental. Puseram-se então a trabalhar na idéia de que a literatura não podia conhecer a realidade, já que - segundo entendiam - a própria realidade era uma invenção literária. Para dar a essa idéia um arremedo de consistência, apelaram a um formidável arsenal de recursos extraídos da língüística, da antropologia, da lógica formal, da "teoria crítica" frankfurtiana e das filosofias de Nietzsche e Heidegger. Em menos de uma década a proposta havia evoluído para a formulação radical do desconstrucionismo: não existe realidade nem conhecimento, nenhum discurso tem significado, o significado é livremente inventado por "comunidades interpretativas" que aí projetam como bem entendem seus desejos e interesses, portanto tudo o


Reprodução que há para fazer é reunir a comunas próximas semanas. Vou aqui nidade e ensinar-lhe os meios de dar um único exemplo, que depois usurpar o sentido dos textos em explicarei melhor. benefício próprio. Um dos setores onde a influência De súbito, a doutrina de Stálin-Jdadesconstrucionista penetrou mais nov era restaurada em todo o esfundo é o Direito. Aí se evidencia plendor da sua brutalidade, mas como uma teoria literária pode ter agora resgatada da sua pobreza teóconseqüências devastadoras sorica originária e paramentada com bre toda a ordem social. Juízes, todos os falsos adornos da sofisticapromotores e advogados são hoje ção acadêmica. O desprezo pela verformados sob a crença dominante dade, a legitimação da mentira pode que as leis, como qualquer ouliticamente útil, o cinismo das intertro texto, não têm nenhum signifipretações forçadas, enfim a prosticado originário objetivamente vátuição total das atividades lido. Toda significação que elas intelectuais superiores aos interespossam ter é mera projeção de foses de grupos de pressão tornaramra, vinda dos setores politicamense não só legítimos e recomendáveis, te interessados. Só o que resta pormas intelectualmente elegantes e tanto é organizar uma "comunidamoralmente obrigatórios. Na mesde interpretativa" e impor a sua ma onda, as distinções entre o verleitura dos textos legais por meio dadeiro e o falso, entre cultura e inda gritaria, da chantagem, da inticultura, entre o esteticamente supemidação. De um só golpe, a Justiça rior e inferior, foram condenadas cointeira se transforma em instruStalin mo instrumentos de opressão e mento de subversão revolucionásubstituídas pelo culto de qualquer ria. Para virar de cabeça para baixo bobagem politicamente oportuna a ordem pública, não é preciso muque se apresentasse. Toni Morrison foi igualada a Shakespeare, as dar as leis: basta inverter-lhes o sentido. novelas de Gilberto Braga celebradas como portadoras da "uniNos EUA, o alucinógeno desconstrucionista chegou até à Supreversalidade de um Balzac" por ser bem aceitas em todos os merma Corte, transformando-a numa frente de combate contra a recados. Considerar Bach superior a Gilberto Gil tornou-se algo asligião, os valores americanos tradicionais e a própria Constituisim como um crime de racismo. ção. Amparado em teóricos acadêmicos da reputação de Ronald Não é preciso dizer que o primeiro resultado foi a pura e simDworkin e Stanley Fish, o juiz William Brennan, ex-presidente da ples desaparição da grande literatura. A segunda metade do Suprema Corte, proclama abertamente que tentar ater-se ao sigséculo XX não gerou nada que se comparasse nem de longe a nificado originário da Constituição é "falsa humildade": o verdaum Thomas Mann, a um Proust, a um Jacob Wassermann, a um deiro sentido do texto constitucional tem de ser livremente invenHermann Broch, a um Robert Musil, a um Antonio Machado, a tado conforme as pressões dos grupos abortistas, feministas, gays um Bernanos, a um Mauriac. Nas nações do Terceiro Mundo, etc. É isso o que o ex-vice-presias sementes da cultura superior em gestação foram impiedodente Albert Gore entende por samente arrancadas. O país que cinqüenta anos atrás tinha "Constituição viva". A profunManuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano didade da subversão judicial Ramos, Annibal M. Machado, Marques Rebelo, José Lins do nos EUA já não pode ser mediRego, agora lê Luís Fernando Veríssimo e acha o máximo. da. Um pequeno indício é que, Se os efeitos se limitassem à esfera das letras, já seriam suem plena guerra contra o terroficientemente perversos. À retração da criatividade literárismo islâmico, crianças de esria corresponde, pari passu, a degradação da linguagem púcola pública, em vários Estados, blica, a progressiva incapacidade de expressar a experiênsão obrigadas a ouvir horas e cia real e, conseqüentemente, a fixação dos debates em eshoras de louvações à religião tereótipos alienados, prenunciando a ascensão da loucura muçulmana, sendo ao mesmo geral como alternativa política. tempo proibidas de expressar Mas, como não poderia deixar de ser, os procedimentos interpreem voz alta sua fé cristã, sob petativos da escola desconstrucionista e similares logo foram estenna de expulsão ou de medidas didos para as ciências humanas em geral, afetando todas as espoliciais mais graves. É a guerra feras do debate público. Aí os efeitos foram muito além do mero psicologia ao contrário, movida sucesso propagandístico. Ampliaram-se até à destruição de todo não contra o inimigo mas contra Diário do Comércio princípio de ordem e racionalidade na vida social. Avaliar, meso próprio país, sob a proteção da 04/12/06 mo sumariamente, a extensão do dano, ocupará muitos artigos Suprema Corte.

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Geração maldita Celso Junior/Arquivo AE/11/05/2001

11 de maio de 2001. José Dirceu, presidente nacional do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente de honra do partido, e o deputado federal Aloizio Mercadante lançam campanha anticorrupção: "ardil baseado no mais puro cinismo leninista".

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O

s crimes do partido governante e do seu inocentíssimo chefe ultrapassam tudo o que a imaginação maligna de seus mais odiosos opositores teria podido inventar. As revelações dos últimos dias impõem a conclusão incontornável de que a administração federal, subjugada aos interesses de uma organização partidária autolátrica, se transformou em instrumento para uma variedade alucinante de esquemas delinqüenciais, postos em ação numa escala jamais vista em qualquer parte do mundo ou época da história. Quando o PT, no início da década de 90, adotou a prática do moralismo acusador que até então tinha sido mais típica da direita (v. Carlos Lacerda, Jânio Quadros e a própria Revolução de 1964), percebi e anunciei claramente que se tratava de um ardil baseado no mais puro cinismo leninista: "Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é." O estilo mesmo

das invectivas petistas era tão inflado, tão hiperbólico, tão teatral, que se autodenunciava no ato como camuflagem de alguma perversidade superlativa em curso de preparação. Qualquer ridícula tramóia concebida por políticos do interior para ciscar uns tostões do governo federal, qualquer miúda negociata entre barnabés endividados e financistas ladrões, era denunciada imediatamente como uma "manobra golpista", um "Estado dentro do Estado", uma ferida mortal no coração da ordem pública, um perigo apocalíptico para o futuro da nação. Ninguém que desejasse apenas tirar proveito publicitário da desmoralização de seus inimigos exageraria a tal ponto a ênfase da acusação. Tinha de haver algo mais por trás desse esbanjamento retórico. Investigações que fiz na ocasião levaramme a concluir que o serviço secreto petista, então denunciado pelo governador Esperidião


Amin sob o nome humorístico de "PT-POL", era uma realidade. Milhares de militantes e olheiros espalhados em partidos, empresas privadas, bancos, organismos da administração federal, alimentavam de informações colhidas ilegalmente a central chefiada pelo sr. José Dirceu, que então as usava para brilhar nas CPIs com revelações espetaculares vindas de fontes anônimas e irreveláveis. Não se tratava, é claro, apenas de brincar de Eliott Ness. O serviço secreto petista já era, por si, uma máquina criminosa de dimensões incomparavelmente maiores do que aquelas que o sr. José Dirceu, em patéticos êxtases de hiperbolismo verbal, atribuía aos réus do momento. Era o Estado dentro do Estado, no sentido literal da expressão, que, camuflando seus crimes sob os alheios, se usava a si próprio como figura de linguagem para ampliar os medíocres delitos dos adversários e lhes dar uma significação política que não tinham. Nada mais interessante do que comparar estilisticamente os discursos da época com as notícias de hoje: os tribunos da moralidade petista nada imputaram a seus microscópicos adversários que eles próprios já não estivessem fazendo ou preparando em dimensão macroscópica. Pequenos delinqüentes eles próprios, tornaram-se gigantes do crime ao erguer-se sobre os ombros dos Anões do Orçamento. Mais ou menos na mesma época, um dirigente do PT, César Benjamin, era expulso da agremiação por denunciar a criação, pela cúpula do partido, de um esquema de corrupção então ainda em estado germinal. Paralelamente, o PT articulava-se com organizações revolucionárias e gangues de criminosos de vários países do continente, montando o Foro de São Paulo como central estratégica devotada ao projeto de "reconquistar na América Latina tudo o que foi perdido no Leste Europeu", isto é, de reconstruir no continente o regime mais corrupto que já existira no mundo. Completava o esquema uma rede de apoios jornalísticos solidamente cimentados em lealdades partidárias secretas e na farta distribuição de dinheiro e empregos. A CUT, braço sindical do PT, confessava ter oitocentos jornalistas na sua folha de pagamentos, o bastante para tirar duas edições diárias da Folha, do Estadão e do Globo, embora não publicasse um tablóide semanal sequer. Como todas essas iniciativas envolviam sempre os mesmos indivíduos - o comando e estado-maior do PT -, era óbvio que elas não constituíam ações separadas e inconexas, mas aspectos da construção integrada de um siste-

ma de poder destinado a engolir o Estado brasileiro e usá-lo para a consecução dos objetivos do Foro de São Paulo. A existência desse sistema já era visível em 1993, quando José Dirceu e Aloizio Mercadante posavam na CPI das empreiteiras como restauradores da moralidade pública. Quem quer que depois disso ainda tenha confiado na honorabilidade do PT, na sua disposição de disputar eleições lealmente e governar o país em rodízio democrático com os outros partidos, é um irresponsável, um burro, um palpiteiro fanfarrão que, diante das atuais revelações, deve ser excluído do círculo de formadores sérios da opinião nacional e recolher-se à vida privada, senão à privada da vida. Incluo nisto políticos, professores universitários, consultores empresariais pagos a preço de ouro, donos de jornais, chefes de redação e uma coleção inteira de "intelectuais e artistas" de todos os tipos e formatos. Toda essa gente, quando não foi cúmplice consciente do que se tramava contra o Brasil, mostrou ao menos uma futilidade palavrosa que, em matéria de tal gravidade, é um crime tão grande quanto os do PT. Tudo o que está acontecendo no Brasil de hoje poderia ter sido evitado. Poderia e deveria. Não foi - e, mais do que os próprios delitos petistas, isso ficará como mancha indelével na história da alma nacional. Haja o que houver no futuro, o Brasil terá sido durante quase duas décadas um país de tagarelas levianos, covardes, intelectualmente ineptos, dispostos a sacrificar o futuro do povo no altar de um otimismo vaidoso e da recusa obstinada de enxergar a realidade. O Brasil não foi vítima só de "um grupo", "uma camarilha", "uma elite". Foi vítima de toda uma geração, a mais presunçosa e fútil de todas quantas já nasceram aqui. Essa geração é a minha. Agora entendo retroativamente por que, ao longo de toda minha vida adulta, quase só tive amigos quinze anos mais jovens ou trinta anos mais velhos. Uma desconfiança irracional, instintiva, me afastava dos colegas da minha idade, com exceção de quatro ou cinco puros de coração, visceralmente incapazes de baixeza, alguns dos quais, por significativa coincidência, hoje trabalhando neste Diário do Comércio. Ficar longe dos meus coetâneos foi deprimente e, para a minha carreira nas redações, letal. Mas me livrou de ser cúmplice do maior delito intelectual da nossa história. Agora, quando a verdadeira índole do petismo já não pode mais ser ocultada ou disfarçada, a presente geração de formadores da opinião pública (refiro-me aos que não foram comprados ou seduzidos pelo PT) corre o risco

O esquema de corrupção que se apossou do governo federal não é fenômeno isolado. Não é iniciativa de um grupelho autônomo, separado das raízes partidárias.

Qualquer que seja o resultado das eleições, qualquer que seja o desenlace das investigações de corrupção, a gangue petista não vai largar gentilmente a rapadura.

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Hoje, a desproporção de força física entre a esquerda e seus opositores é tão grande, que esses últimos têm até medo de pensar no assunto.

O estilo das invectivas petistas era tão inflado, hiperbólico, teatral, que se autodenunciava como camuflagem de alguma perversidade superlativa em curso de preparação.

Diário do Comércio 25/09/2006

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de repetir esse crime, se presumir que a mera concorrência eleitoral ou mesmo a punição judicial de algumas dúzias dos culpados mais óbvios livrará o país do flagelo e lhe abrirá as portas de um futuro mais digno. O esquema de corrupção que se apossou do governo federal não é fenômeno isolado. Não é iniciativa de um grupelho autônomo, separado das raízes partidárias. Não é um caso de pura delinqüência avulsa. É parte integrante da máquina revolucionária cuja montagem, se entrou em ritmo acelerado no início dos anos 90, remonta a pelo menos duas décadas antes disso, quando ao fracasso das guerrilhas se seguiu um esforço generalizado de rearticulação da esquerda continental nas linhas circunspectas e pacientes preconizadas por Antonio Gramsci em substituição aos delírios belicosos de Régis Débray, Che Guevara e Carlos Marighela. Quem quer que não conheça essa história com detalhes está por fora do que se passa na América Latina e não tem nenhum direito de solicitar a atenção pública para as opiniõezinhas com que deseje se exibir em colunas de jornal ou encontros empresariais. Está na hora de calar a boca dos palpiteiros irresponsáveis e começar a estudar o assunto que eles ignoram. Incluo entre esses tagarelas o ex-presidente José Sarney e seu ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, que, em plena época de gestação da nova estratégia revolucionária continental, retiraram do currículo das academias militares a disciplina de "Guerra Revolucionária" sob o pretexto de que "os tempos mudaram", deixando duas gerações de oficiais brasileiros desguarnecidos contra as manobras estratégicas que hoje os usam como instrumentos. Incluo na mesma classificação todos os que, numa fase muito mais avançada do processo de tomada da América Latina pelas forças da esquerda revolucionária, diziam que alertar contra as maquinações do Foro de São Paulo era "açoitar calavos mortos". Incluo os chefetes de redação que tentaram tapar a minha boca para que eu não perturbasse o lazer de seus leitores com advertências de que viria a acontecer precisamente o que veio a acontecer. Incluo os "liberais" que, vendo montar-se à sua volta a maior organização revolucionária e criminosa já registrada na história da América Latina, insistiam em ater-se a miúdas críticas de ordem econômica e administrativa, como se toda sua diferença com o PT consistisse de polidas divergências doutrinais e estratégicas entre homens igualmente sérios, igualmente honestos, igualmente devotados ao bem do Brasil. O nú-

mero dos cretinos auto-satisfeitos, que não precisam estudar nada para julgar tudo e ter opiniões definitivas, é grande o suficiente para que o peso dos seus rechonchudos traseiros esmague a nação inteira. Toda essa gente é culpada por ter dado ao povo a ilusão de que o PT era um partido normal, respeitador das leis, ordeiro e pacífico. Ele não é nada disso e nunca foi nada disso. Ele já era o partido das Farc, ele já era o partido dos seqüestradores do MIR chileno, muito antes de ser o partido do Mensalão. Muito antes de que brotasse dinheiro em cuecas, a CUT já carregava nas calcinhas seus oitocentos jornalistas, sem que alguém ligasse a mínima quando denunciei isso como a maior compra de consciências na história da mídia universal desde a década de 30. Parafraseando Nelson Rodrigues: a desmoralização nacional não se improvisa, é obra de décadas. Se, agora, alguém pensa que vai se livrar dessa encrenca com uma eleição e dois ou três processos, está muito enganado. Ninguém empenha décadas da sua vida na construção de um gigantesco esquema de poder, para depois deixá-lo derreter-se e escorrer por entre seus dedos ao primeiro sinal de mudança das preferências da opinião pública. O que é, substantivamente, o esquema de poder petista? Ele não é apenas uma conspiração de gabinete. Ele se assenta na força da militância organizada que, a qualquer momento, pode colocar nas ruas alguns milhões de manifestantes furiosos, com o apoio de quadrilhas de delinqüentes armados, para impor o que bem entenda a uma nação inerme e aterrorizada. Durante quatro décadas a esquerda desfrutou do monopólio absoluto da formação e adestramento de militantes para a ação permanente em todos os campos da vida social, enquanto seus opositores, confiantes no poder mágico do automatismo institucional, se contentavam com mobilizar auxiliares contratados às pressas para exibir uns cartazes de candidatos nas épocas de eleição. Hoje, a desproporção de força física entre a esquerda e seus opositores é tão grande, que esses últimos têm até medo de pensar no assunto. Novamente, eles se arriscam a confiar no abstratismo das instituições e em vagas "tendências da opinião pública", contra a massa organizada, adestrada e armada. E novamente eu me arrisco a ser chamado de maluco por advertir contra o perigo óbvio. Qualquer que seja o resultado das eleições, qualquer que seja o desenlace das presentes investigações de corrupção, a gangue petista não vai largar gentilmente a rapadura.


A arte da acusação invertida JB Neto/Ag. O Globo

Marco Aurélio Garcia, coordenador da campanha do presidente Lula

Reprodução

Inversão: tipo de prática vem desde os tempos de Lênin

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Comunista, quando quer caluniar alguém, não precisa inventar crimes: atribui-lhe um dos seus, e pronto. Isso é assim desde os tempos de Lênin.

Os soviéticos denunciaram a morte de 20 mil oficiais poloneses num campo de prisioneiros da II Guerra. Anos depois, vieram provas de que os autores do massacre tinham sido os próprios acusadores.

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omunista, quando quer caluniar alguém, não precisa inventar crimes: atribui-lhe um dos seus, e pronto. Resolve dois problemas de uma vez: queima a reputação do infeliz e ainda esconde as suas próprias culpas sob as cinzas do cadáver. Isso é assim desde os tempos de Lênin. O método é simples, prático, brutal e descarado. Tão descarado que a platéia, recusando-se instintivamente a acreditar que alguém seja mau o bastante para usá-lo, cai no engodo de novo e de novo e de novo. O exemplo mais espetacular, em escala nacional, foi aquele que citei aqui no artigo anterior: o hiperbolismo retórico dos Dirceus e Mercadantes, na CPI de 1993, transformando os Anões do Orçamento em gigantes do crime e acusando-os de montar "um Estado dentro do Estado", coisa que ia muito além das possibilidades e até da imaginação daquelas diminutas criaturas, tudo para camuflar a montagem de um genuíno "Estado acima do Estado", obraprima de maquiavelismo, que o próprio PT já ia construindo com a ajuda das mais ricas e temíveis organizações criminais do continente, e cuja potência continua e continuará produzindo efeitos devastadores, pouco influindo nisso o resultado das eleições de ontem. No plano internacional, exemplos ainda mais edificantes brotam em profusão cornucópica. O caso mais célebre talvez tenha sido a matança de 20 mil oficiais poloneses num campo de prisioneiros da II Guerra, executados por nada, por frescura, por divertimento. Os soviéticos levantaram a denúncia no Tribunal de Nuremberg. O mundo ficou chocado ante as fotos de cadáveres que não paravam de surgir do fundo da floresta de Katyn. Anos depois, vieram provas concludentes de que os autores do massacre tinham sido os próprios acusadores. Notem bem o detalhe: haveria escassez de crimes praticados pelos nazistas, para que os soviéticos tivessem de lhes emprestar um? Não, é claro. Mas a coisa parece que está no sangue: é uma comichão, uma volúpia ir-

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resistível, uma compulsão avassaladora. O gostinho da dupla mentira leva esses sujeitos ao orgasmo. Não é delicioso, por exemplo, xingar os judeus em todos os jornais do mundo e depois sair choramingando que eles são os donos da mídia? É melhor que sexo. O sujeito fez isso uma vez, não quer parar nunca mais. Por isso mesmo, essa conduta não se limita aos comunistas professos. Ela espalhou-se na esquerda em geral ao ponto de constituir um reflexo condicionado, um estilo de vida, um modo de ser, um traço permanente da cultura "progressista". Mais recentemente, veio a onda de denúncias contra os padres pedófilos. Foi uma tempestade mundial, uma epidemia planetária. Por toda parte, os homens comprometidos com o voto de castidade pareciam não ter outra ocupação na vida senão bolinar meninos. Mas havia na acusação alguns detalhes estranhos. Desde logo, embora na quase totalidade dos casos as vítimas fossem do sexo masculino, as palavras "homossexual", gay ou mesmo "pederasta", que era o termo técnico exato para descrever a conduta dos criminosos, não aparecia nunca no noticiário. Nunca mesmo. A uniformidade global da omissão sugeria que os pedófilos eram pedófilos não por serem homossexuais, mas por serem padres. A idéia subjacente era persuadir o público de que a culpa de tudo estava no cristianismo, não numa cultura anticristã intoxicada de estímulos a toda sorte de sacanagem lícita ou ilícita, cultura da qual a própria mídia internacional era a expressão mais vasta e permanente. A intenção canalha tornava-se ainda mais evidente porque o número de pedófilos entre os padres era muito menor do que entre os assistentes sociais da ONU, uma classe politicamente correta que havia devastado duas gerações de meninos na África e na Ásia, com o agravante cruel de aproveitar-se da situação local de miséria e dependência, própria a induzir as vítimas a que se submetessem a qualquer exigência despótica em troca de comida e abrigo. Ora, estes casos eram divulgados apenas em livros, em sites de organizações filantrópicas e em pesqui-


O gostinho da dupla mentira leva esses sujeitos ao orgasmo. Não é delicioso xingar os judeus em todos os jornais do mundo e depois sair choramingando que eles são os donos da mídia?

Dar suporte político ao crime é crime, e o suporte dado pelo PT aos seqüestradores de Abílio Diniz repetiu-se igualzinho no seqüestro de Washington Olivetto, praticado pela mesma gangue.

sas acadêmicas: nem uma palavra sobre os campeões mundiais do abuso de menores aparecia naqueles mesmos jornais e noticiários de TV que ostentavam tanta indignação contra os padres. A seletividade deformante era tão óbvia, que tinha de haver alguma perversão maior por trás de tudo. Só entendi o fenômeno quando li o livro do repórter Michael S. Rose, Goodbye, Good Men: How Liberals Brought Corruption into the Catholic Church (Washington DC, Regnery, 2002). Era a história de como organizações ligadas ao movimento gay haviam infiltrado psicólogos nos seminários, durante duas décadas, para que vetassem o ingresso de homens vocacionalmente dotados para o sacerdócio e, em contrapartida, dessem preferência a candidatos homossexuais. Fontes citadas pelo autor: os próprios psicólogos, muitos deles arrependidos de haver colaborado com essa maldade descomunal. A operação havia mudado radicalmente a composição do clero americano, produzindo artificialmente a situação que depois seria imputada à Igreja Católica pelos próprios autores do crime. É claro que esse efeito não depende de um acordo prévio, de uma conspiração entre os planejadores originais e a mídia que anos depois completa a operação. Nesses casos, pode-se contar sempre com aquilo que Willi Munzenberg, o gênio comunista da desinformação midiática, chamava "criação de coelhos". Basta dar o empurrão inicial, e o resto vem pelo automatismo imitativo - o processo mental mais característico do "proletariado intelectual" que espalha as modas culturais. Hoje em dia qualquer engenheiro social de quinta categoria domina a técnica de gerar esses efeitos. O mundo cultural está agora repleto não somente de coelhos, mas de milhões de pequenos Willis Munzenbergs com orelhas de coelho. Por meio deles a arte de usar os próprios crimes como instrumento de difamação dos inimigos deixou de ser privilégio da elite comunista para tornar-se patrimônio geral da esquerda. E não venham com a bobagem de que estou contando isso por "preconceito", "homofobia"

ou coisas assim. Jamais abri minha boca para criticar as preferências sexuais de quem quer que seja. Apenas não sou idiota o suficiente para confundir preferência sexual com crime. Muito menos crime comum com uma operação de calúnia em larga escala, montada como camuflagem perversa de uma trama ainda mais perversa voltada contra a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. A desvantagem do ardil é que, pela sua própria tendência de reproduzir-se mecanicamente ad infinitum, ele só serve para ludibriar ignorantes. Quem conheça a história do movimento comunista logo acaba apreendendo a fórmula do truque e reagindo ao automatismo com outro automatismo: onde quer que ouça um comunista acusando alguém de qualquer coisa, já sabe que alguma o comunista fez. O outro pode também ter feito, mas não é por isso que o comunista o acusa. É porque ele próprio fez, e quase com certeza fez pior. Posso testemunhar que, no meu caso, esse reflexo imunizante jamais falhou: todas as vezes que busquei algum crime por trás do discurso de acusação esquerdista, encontrei. E em geral encontrei mais de um. O sr. Marco Aurélio Garcia acaba de me fornecer mais um exemplo, ao chamar de "violação da Justiça e da vontade popular" a divulgação das imagens do dinheiro usado na compra do dossiê anti-PSDB, comparando o episódio ao seqüestro do empresário Abílio Diniz em 1989, quando, diz ele, os malvados direitistas "tentaram identificar seqüestradores com o PT" por meio de uma foto dos delinqüentes com camisetas do partido. A inversão é patente, para quem se lembra do caso. Quem "identificou o PT com os seqüestradores" não foi a foto. Não foram os direitistas. Foi o próprio PT, com a desavergonhada campanha que moveu para proteger e libertar os bandidos. Essa campanha mobilizou rapidamente todo o beautiful people paulista, a tropa inteira das garotas-propaganda do comunismo local, mostrando a extraordinária importância política que a causa tinha para o partido, tradicional amigo

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O PT está, sim, envolvido com narcotráfico e seqüestros, está envolvido com as Farc, com o MIR, com tudo quanto é bandido esquerdista no continente.

Investigar o delegado que divulgou o crime, em vez dos delinqüentes que o praticaram, não foi invenção do sr. Garcia, mas de outro ainda mais farsante e malicioso do que ele.

Diário do Comércio 02/10/2006

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do MIR chileno, a quadrilha dos seqüestradores. Maior prova de cumplicidade não poderia haver. Cumplicidade não quer dizer necessariamente ajuda material na execução do delito, nem participação nos seus lucros financeiros. Dar suporte político ao crime é crime, e o suporte dado pelo PT aos seqüestradores de Abílio Diniz repetiu-se igualzinho no seqüestro de Washington Olivetto, praticado pela mesma gangue. No ano seguinte ao do primeiro seqüestro, a aliança do PT com o MIR, com as Farc e com outras organizações criminosas foi formalizada com a fundação do Foro de São Paulo, que articula ações políticas com a prática de delitos para a vantagem mútua dos dois braços da revolução comunista, o "legal" e o "ilegal". Quando veio o caso Olivetto, a mobilização do suporte político foi mais rápida e eficiente, porque já estava tudo pré-arranjado no Foro. O PT estava tão profundamente comprometido com os autores do seqüestro, que além de socorrê-los na mídia e na Justiça ainda tratou de livrar a cara do MIR, dizendo que os bandidos eram "ex-membros" da organização, mentira que uma vez passado o perigo foi desmascarada por um dentre eles mesmos, Mauricio Norambuena, ostentando num jornal chileno uma bandeira do MIR e afirmando que era, sim, membro da quadrilha e não um extraviado free lancer como o rotulavam seus protetores petistas para descaracterizar a origem comunista do crime. Mais impressionante ainda foi a operação montada para livrar da justiça brasileira o falso padre Olivério Medina, para que não esclarecesse em público o que havia revelado a amigos numa festa petista: que havia trazido dinheiro das Farc para a campanha do PT em 2002. O PT está, sim, envolvido com narcotráfico e seqüestros, está envolvido com as Farc, com o MIR, com tudo quanto é bandido esquerdista no continente. Se ganha ou não dinheiro com isso, é indiferente. Ganha politicamente, e sabe que ganha. Isto já basta para qualificá-lo, acima de qualquer possibilidade de dúvida, como beneficiário de uma série interminável de crimes hediondos, como o partido mais criminoso que já existiu

neste país. O sr. Garcia sabe de tudo isso, e se ele vier com desconversa esfrego-lhe no nariz os documentos do Foro de São Paulo que provam a unidade estratégica das ações empreendidas em escala continental por partidos legais de esquerda e organizações criminosas, tudo sob o comando direto do delinqüente-mor, fundador e mentor da porcaria toda, Luís Inácio Lula da Silva. Um detalhe especialmente elegante da fala do sr. Garcia é a singela cara de pau com que ele sugere que a "vontade popular" é não saber nada sobre o dinheiro do dossiê antitucano. Informar os eleitores é insultá-los. Mentir para eles, mantê-los na ignorância como menores de idade, isto sim é que é respeitá-los. Cabeça de comunista é assim. Não se contenta com a perversão. Parte logo para a inversão. E não estou falando de inversão sexual, que é um fenômeno corriqueiro na sociedade. Comunista não se satisfaz com tão pouco: quer praticar veadagem é com o traseiro dos outros. O traseiro da pátria. O traseiro da humanidade. Mas, no caso de agora, a inversão da ordem dos fatores não começou com o sr. Garcia, nem se limitou à esfera verbal. Investigar o delegado que divulgou o crime, em vez dos delinqüentes que o praticaram, não foi invenção do sr. Garcia, mas de outro ainda mais farsante e malicioso do que ele. Outros ainda piores fizeram o mesmo no caso Celso Daniel. Como é possível que, com tantas testemunhas assassinadas e tantas provas da operação-abafa arranjada pelo PT, a relação entre uma coisa e outra ainda não tenha sido esclarecida? Se foi o partido queridinho de Fidel Castro que mandou matar o boquirroto Daniel e deu sumiço nas testemunhas, que é que poderia haver de estranho nisso, sendo esse partido tão repleto de terroristas e assassinos treinados pelo serviço secreto mais homicida do continente, que já matou mais de cem mil pessoas em Cuba sob os aplausos - se não com a colaboração pessoal - desses mesmos indivíduos? Para gente como Fidel Castro, dar cabo dos inconvenientes é simples questão de rotina. Por que não o seria também para seus discípulos?


Felipe Varanda/AE

Museu de iniqüidades

Zé Dirceu, Lula e Genoino: "quando o acusado é de esquerda, seus crimes devem ser apresentados como uma ruptura com o seu passado"

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á quase acostumado aos bate-bocas medonhos entre conservadores e "liberals" na mídia americana, fico cada vez mais deprimido ao observar a pastosa uniformidade dos jornais brasileiros. É uma assembléia de cães amestrados, cada qual mais ansioso de mostrar obediência aos cânones admitidos. O que um declara, o outro repete. O que um suprime, os outros omitem. O que um aprova, os outros aplaudem. O que um condena, os outros vaiam. Felizes tempos aqueles em que pelo menos as moscas mudavam. Hoje, rodando em círculos uniformes sobre a imperturbável massa excrementícia, até elas se tornaram indiscerníveis umas das outras. A conversação pública nesses locais tornou-se um sistema de automatismos desesperadoramente previsíveis, imunizados contra qualquer intromissão da inteligência e da verdade. Tamanha é a força entorpecente da repetição, que mesmo os fatos mais inegáveis recuam ante a homogeneidade do falatório, recolhendo-se ao buraco negro do esquecimento e da negação como se jamais tivessem acontecido. Como é possível que tanta gente, em uníssono, jure ver na maré montante da roubalheira petista um súbito desvio de conduta,

o repentino descaminho de uma congregação de almas santas infectadas, tardiamente e a contragosto, pelo contágio do poder? Pois não foi esse mesmo partido que, desde 1997, veio sendo denunciado por um de seus próprios fundadores e líderes, Paulo de Tarso Venceslau, como organização criminosa empenhada no saque obstinado e geral aos cofres públicos? Venceslau publicou suas acusações no Jornal da Tarde de 26 de maio daquele ano. A resposta do partido foi expulsá-lo e sufocar as investigações. No Rio Grande do Sul, durante o longo império petista, a safadeza alastrou-se ao ponto de gerar um processo de impeachment, do qual o governador Olívio Dutra foi literalmente salvo pelo gongo, pois tantas eram as denúncias que a Assembléia Legislativa não conseguiu terminar de apurá-las antes de encerrar-se o mandato do acusado. E todo mundo parece ter esquecido que, de todos os partidos brasileiros, o PT tem a honra macabra de ser o único que teve o seu nome envolvido num processo de homicídio, no qual, para cúmulo de horror, ao assassinato da vítima seguiram-se os de seis testemunhas. E que pode haver nisso de estranho, tendo sido essa agremiação fundada por homens de ferro, adestrados na disciplina marxista para sacrificar sua cons-

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ciência moral no altar das Como é ambições partidárias? possível Qualquer jornalista capaz de varrer esses fatos para baique tanta gente xo do tapete, inventando um jure ver na passado honroso para atenuar roubalheira a feiúra presente do desempepetista o repentino nho petista, é um criminoso, descaminho de um sociopata cínico tal como uma congregação aqueles a quem, por meio desse expediente, ele tenta protede almas santas? ger das conseqüências de suas ações. A uniformidade mesma da opinião jornalística brasileira é um fenômeno tão estranho, tão antinatural, que não poderia se produzir sem a deliberação fria de grupos organizados que se apossaram dos meios de comunicação para fazer deles, sob uma fachada de jornalismo normal, o instrumento dócil de uma prodigiosa manipulação das consciências. Não, não digo que sejam, todos os envolvidos nessa operação, agentes petistas. Pretender isso seria ignorar na raiz o caráter informal e plástico das novas modalidades de ação esquerdista que, desde a década de 80 pelo menos, se substituíram à antiga rigidez monolítica dos partidos comunistas. Não se trata, hoje em dia, de favorecer um determinado partido, mas de assegurar, na concorrência entre várias denominações partidárias só diversas em aparência, o resultado geral sempre honroso para o esquerdismo de fundo, que deve sair não só intacto mas engrandecido da revelação de seus crimes. Daí a diferença de tratamento nas denúncias de corrupção. Se o suspeito é direitista - ou, sem ideologia própria, pode assim ser catalogado para fins de enaltecimento da esquerda -, o ataque é geral, impiedoso e sem meias palavras, sendo os atos criminosos associados ao direitismo real ou aparente do acusado, como produtos naturais do predomínio dos seus interesses de classe sobre o belo idealismo social de seus adversários. Se, ao contrário, o acusado é de esquerda, seus crimes, quando já não podem mais ser pura e simplesmente negados, devem ser apresentados como uma ruptura com o seu passado, uma traição a seus ideais de juventude, algo, enfim, que não deponha em nada contra o seu esquerdismo, mas antes o exalte, mesmo por contraste, como a única encarnação possível do bem e da justiça. Também não digo que todos os envolvidos nessa cachorrada tenham plena consciência do que fazem. Não é possível ter ao mesmo tempo plena consciência e falsa consciência. Antes de mentir para os outros, um homem tem de mentir muito para si mesmo até transformar a mentira na única verdade concebível - e é esse, precisamente, o mais típico mecanismo de funcionamento da mente esquerdista, já tão abundantemente retratado na literatura que nenhum ser humano adulto e alfabetizado tem o direito de se deixar enganar por ele sem tornar-se pessoalmente cúmplice do engodo. Kingsley Amis, o escritor inglês que consentiu em encobrir durante décadas as piores atrocidades comunistas, veio a descrever com exemplar realismo a natureza desse mecanismo, neste parágrafo citado por seu filho Martin Amis em Koba the Dread (New York, Hyperion, 2002):

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"Estamos lidando com um conflito entre sentimento e inteligência, uma forma de auto-engano voluntário na qual uma parte da mente sabe perfeitamente bem que sua crença de conjunto é falsa ou maliciosa, mas a necessidade emocional de crer é tão forte que o conhecimento permanece, por assim dizer, enquistado, isolado, impotente para influenciar as palavras ou as ações." Qualquer ser humano afetado por essa patologia do espírito torna-se incapaz de julgar sua própria conduta, quanto mais as dos outros. E a classe dos "formadores de opinião" no Brasil compõe-se quase que inteiramente desses indivíduos. Já é tempo de admitir que, tanto quanto deputados corruptos e senadores ladrões, eles são um perigo público. Mas também não espanta que essa horrível deformidade tenha se espalhado como epidemia entre os jornalistas brasileiros. O domínio incontestado do esquerdismo cultural nas universidades que os formaram basta para explicar isso. A mente estudantil engendra-se na devoção a ídolos culturais que a marcam para sempre com sua influência. Para conhecer o espírito de uma geração é preciso estudar a psicologia dos líderes intelectuais cuja conduta lhe serviu de modelo. Ora, quando investigamos com certo detalhe as figuras dos mentores da esquerda mundial, principalmente das últimas décadas, encontramos entre eles um número de farsantes e vigaristas muito maior do que jamais houve em qualquer escola ou corren-

te de opinião ao longo de toda a história humana. E, quando falo em farsa e vigarice, não me refiro a meras idéias falsas, argumentos capciosos ou opiniões erradas. Refiro-me a fraudes no estrito sentido material e jurídico do termo: adulteração de documentos e citações, falsificação de testemunhos, invenção deliberada de episódios jamais ocorridos. O que estou dizendo não é novidade nenhuma, a rigor. O assunto já foi muito estudado. Desde as memórias de Arthur Koestler até Intellectuals de Paul Johnson, Double Lives de Stephen Koch, e The Politics of Bad Faith de David Horowitz, a bibliografia a respeito é tão grande e de tão vasto impacto que ninguém pode ignorá-la e pretender continuar opinando responsavelmente sobre a política contemporânea. Mas o atraso brasileiro na aquisição dessas informações é enorme. Por isso um resumo geral torna-se aí de muita utilidade. Em Hoodwinked. How Intellectual Hucksters Have Hijacked American Culture ("Ludibriados. Como os camelôs intelectuais seqüestraram a cultura americana", Nashville, TN, Nelson Current, 2005), o jornalista Jack Cashill fornece um mostruário dos epi-


sódios mais célebres de vigarice explícita entre os pop stars da esquerda. Embora o foco seja o cenário americano, as fontes européias e latino-americanas são abordadas com extensão suficiente para dar ao diagnóstico um alcance mundial. Os casos são tantos, e tão grosseira a patifaria em cada um deles, que nenhum leitor isento pode deixar de concluir que, definitivamente, há algo de errado na mentalidade esquerdista. Não é possível que multidões tão vastas cultuem personagens tão desonestos, mesquinhos e desprezíveis sem que haja nisso o sintoma de um embotamento moral alarmante. O mais lindo é que, em quase todos os exemplos citados, a revelação cabal dos crimes não empanou em nada a reputação de seus autores, que continuaram a ser incensados, às vezes até mais intensamente, como modelos de superioridade excelsa habilitados a passar pitos no restante da espécie humana. A guatemalteca Rigoberta Menchú, por exemplo, ganhou o Prêmio Nobel e a Légion d'Honneur com uma autobiografia celebrada pela revista Chronicle of Higher Education como "um pilar fundamental do cânone multicultural". O núcleo da narrativa era a infância sofrida de uma índia filha de camponeses expulsos de suas terras por grandes proprietários. Mais tarde comprovou-se que o pai de Rigoberta nunca tinha sido vítima desses proprietários, pela simples razão de que ele próprio era um deles. A tempestade de desculpas esfarrapadas que se seguiu foi tão grande quanto a onda de aplausos que a antecedeu.

Investigações meticulosas Antes de sobre o restante do livro mosmentir traram que Mary McCarthy não tinha exagerado muito ao para os outros, um dizer que tudo o que sua conhomem tem de corrente escrevia era mentira, mentir muito para "incluindo as palavras e e o ". si mesmo até Walter Cronkite, o célebre transformar a comentarista de TV, provomentira na única cou a ira do mundo contra a maldade das forças armadas verdade americanas ao exibir o filme concebível de uma garotinha vietnamita, nua e com queimaduras pelo corpo, correndo desesperada sob um bombardeio de napalm. Era quase impossível Crokite ignorar que nenhum americano havia participado direta ou indiretamente da operação, mesmo porque na época quase todas as tropas dos EUA já haviam saído do Vietnã. Ele jamais pediu desculpas. Nem jamais noticiou que a garotinha, Kim Phuc, cansada de ser usada como instrumento de propaganda comunista enganosa, fugiu para o Ocidente e hoje mora no Canadá. E assim por diante. É um museu da degradação humana. A conclusão é que a admiração geral dos esquerdistas tem sido devotada aos tipos humanos mais baixos e desprezíveis criados pela indústria da falsa consciência. E é bem compreensível que criaturas formadas nessa atmosfera acabem tentando transmutar os crimes e iniqüidades de seus correligionários em símbolos de uma superioridade moral quase angélica.

À esquerda, o escritor inglês Kingsley Amis. Acima, o petista Paulo de Tarso Venceslau, expulso do PT depois de denunciar casos de corrupção no partido

O historiador Alex Hailey ganhou milhões com a reconstituição de suas origens familiares africanas no livro Raízes, que virou uma série de TV de enorme sucesso e foi adotado como leitura multicultural obrigatória em todas as escolas públicas americanas. Um processo na justiça mostrou que essa obra de "não ficção" não passava de plágio... de um romance! O autor do romance recebeu uma polpuda indenização mas concordou em não divulgar o escândalo, que só veio a ser noticiado, com a discrição exigida pelo código de decência politicamente correto, anos depois da sua morte. Muita gente no Brasil deve ter visto o filme Julia, de Fred Zinemann, com Jane Fonda e Vanessa Redgrave, baseado nas memórias de Lilian Helmann, talvez a mais badalada escritora de esquerda nos EUA umas décadas atrás. O ponto culminante era a viagem heróica de Lilian pelo território alemão, em arriscada missão para as forças da resistência. Bem, na ocasião mencionada a escritora estava em plena segurança nos EUA. Ela simplesmente sugou os feitos de uma heroína anônima, colocando-se a si própria no papel principal.

Não que na direita não haja farsantes e vigaristas. É claro que há. Mas ninguém ali os considera modelos de virtudes, nem lhes dá preferência na escala de admirações. Nenhum conservador jamais confundiu Adolf Hitler com Winston Churchill, os terroristas da OAS com Charles de Gaulle, David Duke com Ronald Reagan ou o delegado Fleury com Gustavo Corção. Jamais a direita como um todo se enganou a si própria com o estusiasmo e a unanimidade da esquerda. O requisito básico do conservadorismo é o senso das proporções.

Diário do Comércio 18/07/05

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SEM NOVIDADES, EXCETO AS PIORES Wilton Junior/AE

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om a reeleição de Lula, o Brasil continuará sendo governado diretamente das assembléias e grupos de trabalho do Foro de São Paulo, sem a mínima necessidade de consultar o Parlamento ou dar satisfações à opinião pública; o direito da esquerda ao crime e à mentira, já exercido sem maiores restrições, será consagrado como cláusula pétrea da moral política nacional, e os que a infringirem se sentirão pecadores e réprobos; os representantes das Farc e do Mir continuarão circulando livremente pelo território onde vendem drogas e seqüestram brasileiros; os cinqüenta mil homicídios anuais subirão para sessenta ou setenta, mas a liquidação de quadrilhas locais concorrentes da narcoguerrilha colombiana continuará sendo apresentada como vitória esplêndida da lei e da ordem; o MST continuará ditando a política agrária federal; e os empresários que não participem de mensalões ou esquemas similares continuarão sendo criminalizados pela Receita. Até aí, tudo será como antes, exceto do ponto de vista quantitativo, no sentido de que o ruim ficará incalculavelmente pior. As únicas novidades substantivas previsíveis são as seguintes: 1 Nossas Forças Armadas, que até agora conseguiram adiar um confronto com a realidade, terão de escolher entre continuar definhando ou integrar-se alegremente na preparação de uma guerra continental contra os EUA, ao lado das Farc e sob o comando de Hugo Chávez. 2 Como Lula promete para o seu segundo mandato a "democratização dos meios de comunicação", os órgãos de mídia que se calaram quanto aos crimes maiores do presidente serão recompensados mediante a oficialização da mordaça. Não deixa de ser um upgrade. 3 Alguns políticos com veleidades legalistas, que faziam alarde de querer punir os crimes do PT, partirão para o adesismo re-

troativo e inventarão para isso justificativas sublimes. Tudo o que ficou impune será esquecido ou premiado. Geraldo Alckmin perdeu porque sacrificou sua candidatura, sua consciência e até sua religião ao voto de silêncio no que diz respeito ao abortismo, ao Foro de São Paulo, às ligações de Lula com as Farc e do PT paulista com o PCC. No último debate, uma insinuação velada - ou ato falho - mostrou que ele estava bem avisado pelo menos quanto a este último ponto, mas não queria passar a informação aos eleitores. Gastou seus quinze minutos de fama empregando nisso o melhor da sua covardia, e não se pode dizer que se esforçou em vão. Simultaneamente, um artigo meu sobre o Foro de São Paulo era censurado na Zero Hora de Porto Alegre e o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh fazia o que podia para calar o jornal eletrônico Mídia Sem Máscara. No tópico do abortismo, pela primeira vez na história das eleições no mundo um partido proibiu, com sucesso, toda menção pública a um item do seu próprio programa oficial. Os que violaram o voto de censura pagaram pela audácia: o arcebispo do Rio de Janeiro teve sua casa invadida pela polícia e, em Belo Horizonte, dois jovens foram presos por distribuir folhetos sobre o c o m p ro m i s s o f i r m a d o por Lula

Collor comanda a primeira reunião após a posse

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no sentido de legalizar o aborto no país. Nunca um partido teve um controle tão completo sobre a lista dos argumentos permitidos e proibidos na propaganda eleitoral. Os últimos dias da campanha deram uma amostra do que o segundo mandato de Lula promete ao Brasil. A auto-estupidificação moral de um povo

Diário do Comércio 30/10/2006

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Se julgar da culpa ou inocência alheia fosse habilidade natural e espontânea do ser humano, todos seríamos magistrados de nascença. Desde que o mundo é mundo, porém, a sabedoria das civilizações reconheceu as tremendas responsabilidades do ato de julgar, delegou essa tarefa a indivíduos especialmente dotados e, ao longo dos séculos, veio aprimorando os meios de exercê-la e acumulando o imenso patrimônio intelectual da ciência jurídica. Inversamente, escolher entre dois pretendentes ao mando aquele a quem se prefere obedecer é decisão de foro íntimo que cada um tem de tomar por si mesmo, livremente, valendo aí os conselhos dos sábios e o testemunho das ciências tão-somente como sugestões, sem nenhum poder determinante. É mais fácil, em suma, escolher um governante do que decidir se um réu é culpado, e qual a pena que lhe cabe. Por isso, a diferença entre decisão eleitoral e decisão judicial é um

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dos pilares da ordem democrática e da própria racionalidade nos debates públicos. Por duas vezes, já, o Brasil desprezou essa diferença. Primeiro, quando julgou e condenou Fernando Collor antes de ter uma certeza juridicamente consistente quanto aos crimes que lhe imputavam. Segundo, quando protelou toda iniciativa judicial contra Lula até transferir aos eleitores, hoje, a decisão quanto à culpa ou inocência do acusado. No primeiro caso, o réu foi absolvido, depois de desgraçado politicamente, nos 103 processos movidos contra ele na Justiça. Como é impossível uma nação inteira arrepender-se de haver condenado um inocente, a mídia e a opinião pública desprezam solenemente a decisão da Justiça e continuam a tratar Collor como se fosse culpado. Quanto a Lula, as provas existentes da sua culpabilidade já são tão volumosas, que dificilmente ele escapará de uma condenação se elas forem levadas à Justiça. Então, pela lógica da história recente, não restará alternativa senão continuar tratando o culpado como inocente. Duas mentiras colossais, consagradas como opinião geral, bastam para destruir completamente a capacidade de julgamento moral de um povo. Por meio delas, a nação inteira tornou-se culpada de injustiça, e, reprimindo em si própria a compreensão do que fez, não há de reencontrar tão cedo o sentido do que é consciência moral.


Rick Brown/Corbis

O PARTEIRO DO MAL

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m leitor me envia a pergunta mais urgente e mais temível dos últimos tempos: Será que todo mundo já esqueceu a gravação, transcrita meses atrás na revista Veja, na qual um líder do PCC confessava que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, havia ajudado a organização a obter o apoio do MST? É claro que, sem esse apoio, a matança do dia 15 não teria chegado a acontecer. Ela resultou diretamente da ponte entre as duas organizações criminosas. E quem construiu essa ponte foi o sr. ministro. Se ele não foi o pai da criança, foi pelo menos o parteiro. Quando vemos, porém, que a mídia e a opinião pública em geral continuam inocentemente tratando S. Excia. como se fosse um virtual portador de soluções em vez de parte do problema, a pergunta é irresistível: Será que todo mundo esqueceu quem é esse cidadão? Será que as galinhas já não sabem - ou não querem - distinguir entre o granjeiro e a raposa? Não tenho resposta. E não tenho um remédio mágico para curar a amnésia coletiva dos brasileiros. Em compensação, acho que não é só amnésia. Também não é só incapacidade de juntar os fatos e tirar conclusões. A percepção mesma que nossos patrícios têm dos fatos singulares, na hora em que acontecem, já é deficiente. No trajeto do olho ao cérebro, são tantos os neurônios dorminhocos estendidos pelo caminho, que a coitada da informação vai tropeçando, tropeçando, e não chega nunca. Em qualquer país medianamente acordado, um ministro suspeito de colaborar tão intimamente com duas gangues de criminosos seria bombardeado na mídia, afastado do cargo e investigado. No Brasil, a denúncia não ecoou nem nos jornais: morreu ali mesmo, nas páginas de Veja, como se nunca tivesse sido publicada. O sr. Bastos continuou no seu posto, imperturbado e solene como um cavalo de bronze indiferente aos cocôs dos passarinhos. DINHEIRO DAS FARC - Antes disso, a declaração do sr. Olivério Medina, de que havia trazido cinco milhões de dólares das Farc para a campanha do PT, também foi amortecida com reconfortante facilidade. Alguém alegou que fôra apenas uma bravata, e imediatamente a explicação foi aceita como um motivo razoável para não perturbar o sr. Medina, mesmo depois de preso, com perguntas inquietantes. Em compensação, qualquer especulação idiota contra os militares brasileiros, mesmo quando contraria a lógica e o senso de realidade, é alardeada como se fosse uma verdade definitiva, uma revelação dos céus.

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Jamais esquecerei a história do terrorista que, assassinado e colocado por malvados milicos num automóvel em velocidade para simular acidente, emergiu do além para frear o veículo em tempo de não morrer de novo. Essa estupidez foi trombeteada pela Rede Globo durante uma semana inteira e, mesmo depois de demonstrada a sua absoluta impossibilidade física, rendeu dois prêmios jornalísticos ao seu inventor, Caco Barcelos. Nem sai dos meus pesadelos o episódio do soldadinho que, na urgência de sumir com documentos comprometedores, vendo que não tinha cinco minutos para lhes atear fogo, optou por passar algumas horas cavando um vasto buraco para enterrá-los. E, por mais desmemoriada que esteja a nação, talvez ainda recorde por alto as fotos do falso Vladimir Herzog, fartamente exibidas como provas da crueldade militar até ser demonstrado que as imagens do preso cabisbaixo e deprimido na beira da cama eram, de fato, as de um padre num bordel, recuperando forças após o extenuante exercício da cópula em doses cardinalícias. Os casos dessa natureza são centenas. Mas, em sã consciência, não posso atribuí-los à pura incompetência jornalística, por mais disseNo trajeto do olho minada que esteja. Nenhuma inao cérebro, são competência é ideologicamente tantos os neurônios seletiva. Incompetentes genuínos dorminhocos estendidos errariam, de vez em quando, conpelo caminho, que a coitada tra a esquerda. Façam uma revisão dos jornais dos últimos trinta anos da informação vai e verão que isso jamais aconteceu. tropeçando, tropeçando... Lapsos, distrações, burradas, inconseqüências, são sempre contra os mesmos alvos - os militares, o "imperialismo", a "direita". CIRCUNSPEÇÃO PARALÍTICA - Outro detalhe que me chama a atenção nesse assalto persistente e sistemático à honra das Forças Armadas é a reação sempre tímida, quase envergonhada, dos comandos militares. No máximo soltam uma notinha oficial de protesto, que ninguém lê. Nunca processam ninguém, nunca fazem nenhum engraçadinho pagar pelo crime de calúnia dolosa. O resultado dessa circunspecção paralítica é bastante pedagógico: ano após ano os detratores aprendem, diretamente dos próprios comandos das três armas, que a mentira antimilitar é barata e rentável. Quando estreei na prática do jornalismo aprendi que a essência da técnica profissional era a capacidade de apreender a importância


relativa dos fatos e de discernir entre os verdadeiros e os falsos. Na época, isso não parecia ser objeto de dúvida entre meus colegas. Transcorridos quarenta anos, noto que essa capacidade distintiva elementar foi atrofiada, sufocada e por fim proibida no jornalismo nacional. Não por coincidência, isso aconteceu precisamente nos anos em que os jornalistas passaram a falar obsessivamente de "ética". É claro que a única ética imperante no jornalismo nacional consiste em mentir a favor do lado certo. A chave do enigma E o sr. Bastos reside portanto em saber o que é que entendem por "lado certo". continua no seu Que as crenças e valores gerais posto, imperturbado e recortam e determinam em grande solene como um cavalo de parte a percepção dos fatos, é algo bronze indiferente aos que nenhum psicólogo jamais colococôs de passarinhos cou em dúvida. Os antigos retóricos romanos já sabiam que a boa fama de um cidadão às vezes pesa mais do que centenas de provas contra ele. Quando a mentira se torna hábito e prática sistêmica de toda uma corporação profissional, é porque houve, antes disso, alguma mudança profunda na índole dos seus sentimentos morais. O império da mentira esquerdista na mídia brasileira tem de ser explicado, portanto, como efeito de uma mudança geral do código de valores imperante na sociedade brasileira. MUTAÇÃO RADICAL - Essa mudança de fato ocorreu e não foi nenhum fenômeno social espontâneo. Há mais de meio século o conjunto de fundações bilionárias e organizações subversivas empenhadas em criar uma nova ordem global paradisíaca vem usando de todo o poder de controle que o dinheiro tem sobre a mídia, o movimento editorial e as escolas, para operar uma mutação radical dos sentimentos morais da humanidade inteira. O fenômeno está hoje tão fartamente documentado que só botocudos isolados da civilização pensariam em negá-lo (não digo que eles não existam mas, por economia de tempo, permito-me não levar suas opiniões em consideração). O fundo doutrinal dessa mudança vem do ódio milenar que certas seitas ocultistas devotam às religiões tradicionais e aos valores morais que elas ensinaram à humanidade. Entre os séculos XVIII e XIX, algumas dessas organizações saíram do isolamento e se transformaram em movimentos revolucionários de massa. Tal é a origem do comunismo, do fascismo e do nazismo, cujos discursos econômico-sociais não são senão puras construções

pretextuais destinadas a encobrir as ambições civilizacionais muito mais vastas e profundas. Esse processo foi bem descrito em clássicos da historiografia e da ciência política como Fire in the Minds of Men, de James H. Billington (1980) e The New Science of Politics de Eric Voegelin (1950). Só a partir de fins do século XIX, no entanto, aparece comprovadamente a penetração da influência gnóstica em círculos de bilionários que então se transfiguram em reformadores do mundo e acabam dando as mãos aos movimentos revolucionários. ABERRAÇÕES IDEOLÓGICAS - No vasto documentário que reuniram sobre as ambições espirituais do projeto globalista, os pesquisadores Lee Penn, Stanley Montieth, Pascal Bernardin e Ted Flynn, entre dezenas de outros, demonstraram, acima de qualquer possibilidade de dúvida, que as organizações financiadoras da subversão mundial se inspiram diretamente em crenças ocultistas e gnósticas de uma grosseria sem par. Os maiores charlatães espirituais de todos os tempos - Madame Blavatski, Aleister Crowley, Albert Pike, Alice Bailey - são cultuados em altos círculos de potentados financeiros e planejadores sociais como portadores da mensagem celeste destinada a forjar a utopia do Terceiro Milênio. É horrível ver tão descomunal poder político e financeiro ser posto a serviço de ideais tão imbecis e destrutivos, mas quem disse que o dinheiro traz sabedoria? Se dois milênios atrás o destino espiritual da humanidade dependesse do gosto das classes abastadas, a Europa teria sido educada por Simão o Mago e não por Simão Pedro. A novidade do mundo moderno é que a tradição judaico-cristã foi sendo perdida de vista pelas multidões ao mesmo tempo que o veloz enriquecimento capitalista elevava ao sétimo céu do poder famílias inteiras de idiotas presunçosos que acreditam ter no bolso a solução de todos os males humanos. Se não fosse a vaidade insana de Morgans e Carnegies, aberrações ideológicas como o comunismo e o nazismo teriam morrido no berço, por falta de suporte financeiro. Hoje em dia, se não fossem pelas fundações Soros, Ford e MacArthur, não haveria a estupidez neocomunista no Terceiro Mundo, nem tanta inermidade ante o terrorismo no Primeiro. Muito menos haveria o surto mundial de ódio gnóstico ao cristianismo. SLOGANS CASUÍSTICOS - Dentre os itens fundamentais da mutação civilizacional em curso, destaca-se a idéia de desviar o culto religioso dos seus alvos espirituais tradicionais e canalizá-lo no sentido de "ideais sociais" oferecidos como o nec plus ultra da bondade humana.

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Ao longo de milênios a humanidade foi educada na base da devoção à bondade infinita, da prática das virtudes e do senso do dever. Um ataque maciço e simultâneo através de livros, filmes, espetáculos de teatro e TV, programas educacionais e ativismo judicial está tratando de abolir rapidamente esse quadro de referência e substituí-lo por slogans casuísticos como " inclusão", "justiça social", "igualdade", etc. No curso de duas gerações, esses novos símbolos de bom-mocismo lograram penetrar tão profundamente na alma das classes letraLegitimar a das, que hoje têm aí o mesmo valor pedofilia emocional coercitivo dos Dez consentida é legitimar Mandamentos. Quem os infringe sente-se um pecador, um réprobo, toda e qualquer um inimigo da espécie humana. pedofilia Na classe jornalística, por exemplo, não há mais quase ninguém que não esteja persuadido de que esses estereótipos constituem a mensagem essencial das grandes religiões, cuja doutrina efetiva já escapa por completo ao seu horizonte de visão. Quando anos atrás a revista Veja propôs, a sério, a beatificação do sr. Herbert de Souza - o estrategista revolucionário espertalhão que gramscianamente sugou o prestígio do cristianismo para esvaziálo do seu conteúdo espiritual e usá-lo como canal de agitação revolucionária -, não fez senão comprovar até que ponto a moral comunista, já tão assimilada que nem se reconhecia como tal, havia ocupado na mente da classe jornalística brasileira o lugar das crenças religiosas mais antigas e fundamentais. POLIGAMIA HOMOSSEXUAL - A "revolução cultural" gramsciana é, decerto, apenas uma expressão parcial e localizada de uma mutação muito mais vasta, empreendida por um exército de poderes entre os quais se destacam a ONU, a Unesco e as fundações bilionárias. As revoluções morais ali planejadas sucedem-se em rapidez alucinante e em escala tão gigantesca que o cidadão comum não tem sequer os meios de acompanhá-las, quanto mais de apreciá-las criticamente e defender a sua integridade psíquica pessoal que elas violam incessantemente. Em cada terreno, a escalada de novas exigências e cobranças que se Diário do Comércio substituem aos antigos deveres morais é veloz 29/05/2006 e prepotente. Só para dar um exemplo, aqueles

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que ainda estão escandalizados com a idéia do casamento gay, devem agora de se preparar para a etapa seguinte: a Fundação Ford está lançando uma vasta campanha em favor não do simples casamento, mas da poligamia homossexual. A força desses empreendimentos é irresistível: em menos de uma geração, quem quer que se oponha à idéia de crianças serem criadas por uma tropa de marmanjos entre uma suruba e outra será considerado um sujeito cruel e sem sentimentos, um perseguidor dos oprimidos, um nazista. Projetos do mesmo teor com relação à pedofilia já estão em avançado estado de implementação. O ardil é apelar à liberdade individual como legitimador de "relações consentidas" entre adultos e crianças. Que a coisa é uma mera bolha de sabão verbal, é claro que é. Todo ato de pedofilia é consentido, caso contrário não seria mera pedofilia e sim estupro. Legitimar a "pedofilia consentida" é legitimar toda e qualquer pedofilia. Isso está no programa e vocês dificilmente sairão desse mundo antes de ver a rejeição do "amor entre homens e meninos" ser condenada como atitude socialmente inaceitável. CONSCIÊNCIAS - Muito antes de se disseminar na sociedade em geral, essas mutações afetam a cabeça das classes letradas, dos "intelectuais" no sentido gramsciano do termo. E os jornalistas são, entre os "intelectuais", um alvo prioritário das lutas pela conquista das consciências. Especialmente no Brasil, país sem quaisquer tradições culturais sólidas que possam oferecer resistência ao assalto da utopia globalista, essas coisas penetram e se arraigam com impressionante facilidade, tornando-se o próprio cimento para a construção de personalidades adaptadas à "nova civilização". Vocês podem ter a certeza de que, entre os jornalistas brasileiros, essa é a crença, essa é a moral, esse é o sentimento orientador. A perversão cultural que os afetou é funda e letal ao ponto de abolir em suas mentes o próprio senso de realidade, quanto mais a habilidade jornalística de distinguir o verdadeiro do falso. Toda uma geração de jornalistas, independentemente das convicções políticas nominais de cada um, enxerga o mundo por um prisma onde o único pecado é violar os mandamentos da sensibilidade politicamente correta. Para evitar a experiência de isolamento e exclusão decorrente de eventuais transgressões, eles fazem tudo. Até esquecer que o ministro da Justiça é o padrinho da aliança PCC-MST.


Mais sábios que Deus

Jonne Roriz/AE

A

o chegar à América em 1623, o governador William Bradford encontrou a colônia de Plymouth numa situação desesperadora: magros, doentes, em farrapos, sem atividade econômica organizada, os peregrinos estavam à beira da extinção. Muitos, depois de vender aos índios todas as suas roupas e demais bens pessoais, tinham lhes vendido sua liberdade: eram escravos, vivendo de cortar lenha e carregar água em troca de uma tigela de milho e um abrigo contra o frio. Interrogando os líderes da comunidade em busca da causa de tão deplorável estado de coisas, Bradford descobriu que a origem dos males tinha um nome bem característico. Chamava-se "socialismo". ANARQUIA - Os habitantes de Plymouth, revolucionários puritanos exilados, trouxeram para a América as idéias sociais esplêndidas que os haviam tornado insuportáveis na Inglaterra, e tentaram construir seu paraíso coletivista no Novo Mundo. As terras eram propriedade comunitária, a divisão do trabalho era decidida em assembléia e a colheita se dividia igualitariamente entre todas as bocas. O sistema havia resultado em confusão geral, a lavoura não produzia o suficiente e aos poucos a miséria havia se transformado naturalmente em anarquia e ódio de todos contra todos. A um passo do extermínio, a comunidade

Marcos Michael/AE

A experiência socialista em dose mínima teve no corpo da América o efeito de uma imunização homeopática. A ojeriza às experiências coletivistas dura até hoje.

aceitou então a sugestão de mudar de rumo, voltando ao execrável sistema de propriedade privada da terra. "Isso teve muito bons resultados", relata Bradford. "Muito mais milho foi plantado e até as mulheres iam voluntariamente trabalhar no campo, levando suas crianças para ajudar." O surto de prosperidade que se seguiu é bem conhecido historicamente: ele permitiu que os colonos fincassem raízes na América e começassem a construir o país mais rico do mundo. Homem de fé, Bradford não atribuiu a sal-

Há décadas o MST vem habituando a opinião pública a aceitar passivamente a sua cínica usurpação de direitos autolegados, passando por cima da lei. MuNDOreAL 69


vação da colônia aos méritos dela ou dele próprio, mas à mão da providência divina. O sucesso do sistema capitalista, escreveu ele, "bem mostra a vaidade daquela presunção de que tomar as propriedades pode tornar os homens mais felizes e prósperos, como se fossem mais sábios que Deus". Encontrei essa história na coluna de Mike Franc no semanário Human Events. Para mim ela era novidade completa, mas depois descobri que por aqui até os meninos de escola a conhecem. O documento clássico a respeito é o livro do próprio Bradford, Of Plymouth Plantation, 1620-1647. Uma edição confiável é a de Samuel Eliot Morison (New York, Modern Library, 1967). BRADFORD - A experiência socialista em dose mínima teve no corpo da América o efeito de uma imunização homeopática. A arraigada ojeriza do povo americano às experiências coletivistas dura até os dias de hoje, malgrado as tentativas cíclicas de reintroduzi-las subrepticiamente por meio de manobras burocráticas que escapam ao controle do eleitorado, as quais terminam sempre no fracasso geral e no subseqüente retorno à constatação de Bradford: "Deus, na sua sabedoria, viu um outro rumo melhor para os homens." Há muita gente que, não gostando do socialismo, se curva de bom grado à sua pretensa necessidade histórica, sob a alegação de que o povo "precisa passar por isso" para aprender com a experiência. Uma das poucas coisas de que me gabo é nunca ter apelado a essa desculpa idiota para justificar meus erros. Adotei como divisa a máxima atribuída pelo povo gaiato ao ex-presidente Jânio Quadros - "Fi-lo porque qui-lo" - e, sem nada conceder ao fatalismo retroativo, considero-me o único autor de minhas próprias cacas (afinal, a gente tem de se orgulhar de alguma coisa na vida). O problema com a experiência é a dose: a quantidade de veneno de cobra numa vacina não é a mesma da mordida real. O que educa não é propriamente a experiência, mas a rememoração meditativa depois dela. A condição para isso é que você saia da experiência vivo e não muito danificado. Uma coisa é a miniatura de socialismo numa colônia de peregrinos. Outra são décadas de ditadura socialista em extensões territoriais continentais como a da Rússia e a da China. O Brasil ainda não chegou a esse ponto, mas já passou muito além do limite em que a experiência pode ensinar alguma coisa em vez de lesar o aprendiz para sempre. O vício estatista e coletivista é muito antigo e pertinaz, a intromissão do Estado na eco-

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nomia é muito vasta e profunda para que se possa simplesmente parar tudo de uma hora para a outra e meditar sobre o fracasso da experiência. Nem se pode designar com esse nome o que já se tornou um estilo de vida, uma cosmovisão, uma religião, um imperativo categórico investido de fatalidade quase cósmica: um empresário brasileiro sem subsídio estatal se sente tão desamparado quanto um inglês sem guarda-chuva, um russo sem vodca ou um italiano sem mãe. Inversa e complementarmente, não chegou a ser uma "experiência" a tentação de capitalismo liberal do brevíssimo governo Collor, punida exemplarmente pelo superego estatista sob o pretexto de crimes jamais provados e abortada na gestão subseqüente pelo escândalo das pseudoliberalizações monopolistas, que um presidente socialista, patrono da revolução no campo temporariamente disfarçado em adepto da liberdade econômica, forçou para dar a seus correligionários o pretexto que queriam para voltar correndo aos braços do Estado-babá. A imersão do Brasil na poção miraculosa do estatismo já durou tempo demais para que um mergulho ainda mais profundo e duradouro possa valer como experiência didática, exceto no sentido em que é didático trancar-se numa jaula com um tigre faminto para averiguar se come gente. Mas até essa advertência é tardia: já demos esse mergulho, já estamos dentro da jaula. O tigre já está lambendo os beiços. Os que quiserem esperar para só tirar conclusões quando ele começar a palitar os dentes não terão tempo para isso, pois estarão espetados no palito, reduzidos a fiapos de si mesmos. Não há covardia mais torpe que a covardia da inteligência, a burrice voluntária, a recusa de juntar os pontos e enxergar o sentido geral dos fatos. Toda a chamada "oposição" nacional é culpada desse pecado que terminará por matá-la. Não faltam aí políticos e intelectuais que protestem contra afrontas isoladas, mas não há um só que consinta em apreender a unidade estratégica por trás delas, clara e manifesta, no entanto, para quem tenha algum estudo, por modesto que seja, da técnica das revoluções sociais. Muitos são os que se sentem insultados pela proposta indecente de cursos especiais para o MST em universidades públicas, com concessão de diploma superior e dispensa de exame escrito, tendo em vista o direito dos doutores ao analfabetismo, já consagrado como um mérito na pessoa do sr. presidente da República e em parte na do próprio ministro da Cultura


Usar as terras para plantar nunca foi considerado, exceto para jogar areia nos olhos da opinião pública. O MST não produz nem para o sustento dos seus membros.

(seja isto lá o que for). Mais ainda são os que se revoltam contra a obstinada impossibilidade de punir qualquer mandatário petista, mesmo com provas cabais de crimes incomparavelmente superiores ao de um juiz Lalau, de um Maluf e de um P. C. Farias, todos somados. MÁFIA - O que não percebem é que, em ambos os casos, se trata da aplicação de um mesmo princípio básico da estratégia revolucionária, que é a progressiva substituição do sistema de legitimidades vigente por um novo sistema fundado na solidariedade partidária mafiosa. Não se trata nem de sugar vantagens ocasionais para o MST, nem de proteger improvisadamente um criminoso vermelho de colarinho branco. Estas são apenas oportunidades para a aplicação do princípio. Ao postular abertamente vantagens ilícitas para seus protegidos ou festejar descaradamente a impunidade do corrupto-mor, o esquema esquerdista dominante está enviando à nação uma mesma mensagem, que os analistas de plantão podem não perceber, mas que cala fundo no subconsciente do povo e impõe, com a força do fato consumado, o império da nova lei. Traduzida em palavras, a mensagem diz: "A velha ordem constitucional acabou. O Partido-Príncipe está acima de todas as leis. Ele é a fonte única de todos os direitos e obrigações." SOVIETES - Em todas as revoluções socialistas, essa mudança do eixo da autoridade é ao mesmo tempo o mecanismo básico e o objetivo essencial. Na Rússia, anos de boicote à administração oficial e de parasitagem das suas prerrogativas pelos sovietes antecederam a proclamação de Lênin ao voltar do exílio: "Todo o poder aos sovietes". Há décadas o MST, que tem uma estrutura e composição interna absolutamente idênticas às dos sovietes não constituindo uma organização agrícola, mas um todo político-militar complexo, com especialistas em todas as áreas, do marketing à técnica de guerrilhas - já vem habituando a opinião pública a aceitar passivamente a sua cínica usurpação de direitos autopromulgados, passando por cima da lei. Desde o instante em que o governo do sr. Fernando Henrique Cardoso - cúmplice consciente de um processo que ele conhece mais do que ninguém - aceitou alimentar com uma pletora de verbas públicas uma entidade legalmente inexistente, estava instaurado o direito à ilegalidade em nome da superior legalidade revolucionária. Destruindo voluntariamente a ordem estabelecida, o sr. Cardoso teria sido objeto de impeachment se sua pantomima de "neoliberal" não tivesse entorpecido as lideranças políticas e empresa-

riais hipoteticamente direitistas, tornando-as insensíveis ao desmantelamento da ordem, porque era preferível que viesse "de um de nós" em vez do espantalho petista. Cardoso elegeu-se com o simples endosso da frase "Esqueçam o que eu escrevi". Poucos meses depois, seu conluio com o MST trouxe a prova de que ele próprio não se esquecera de nada. Com a ajuda de uma popularíssima novela da Globo, as invasões de terras foram então legitimadas: a entidade sem registro recebia o registro pelas mãos de seus próprios crimes. Muito mais importante do que a posse das terras era, para o MST, essa imposição da sua vontade como força superior às leis. Era, já, a transferência tácita do poder aos sovietes. As terras podiam não servir de grande coisa, excluída a sua posição estratégica ao longo das estradas, nem sempre boa para o plantio, mas apta a paralisar o país numa futura e talvez até desnecessária hipótese insurrecional. Usá-las para plantar jamais entrou em consideração exceto na dose mínima suficiente para jogar areia nos olhos da opinião pública. A prova é que, transformado pelo roubo oficializado no maior proprietário de terras que já houve neste país, o MST não produz sequer o necessário ao sustento dos seus membros, que se nutrem de alimento muito mais substancioso: verbas públicas, direitos usurpados, ocupação do espaço aberto pela legalidade acovardada que recua. Quanto à impunidade do sr. José Dirceu, é extensão lógica da transformação do STF em assessoria jurídica do Partido-Príncipe. Não é um improviso espertalhão: é um capítulo previsível da história da imposição do poder revolucionário pelos meios esquivos e anestésicos concebidos por Antonio Gramsci mais de sete décadas atrás. Desde 1993 venho tentando chamar a atenção do empresariado, das Forças Armadas, dos intelectuais não comprometidos com o poder esquerdista para a obviedade da aplicação do esquema gramsciano não só pelo PT, mas pelo conjunto dos partidos esquerdistas aglomerados no Foro de São Paulo. Passo por passo, etapa por etapa, anunciei antecipadamente cada novo lance da implementação da estratégia. Em vão. Excetuando cinco ou seis homens sensatos que compartilharam imediatamente das minhas preocupações, mas cujo número e poder eram inversamente proporcionais ao mérito da sua coragem intelectual, a resposta que recebi foi sempre a mesma, vinda das mais variadas fontes. Neste país de gente pomposa e burra, o estudo mais extenso, o conhecimento mais preciso

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A imersão do Brasil na poção miraculosa do estatismo já durou tempo demais para que um mergulho profundo e duradouro possa valer como experiência didática

Diário do Comércio 28/11/2005

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dos fatos, a descrição mais exata do seu encadeamento racional nada valem perante o apelo a um chavão tranqüilizante. Despediam-se do problema por meio do rótulo "teoria da conspiração" - e iam descansar seus traseiros gordos e suas consciências balofas no leito macio da traição passiva. Não perdôo ninguém: ricaços presunçosos, generais perfumados, senadores de musical pornô, sabonetões a granel. E não me venham com patacoadas pseudo-evangélicas: Jesus ordenou perdoar as ofensas feitas a nós pessoalmente; jamais nos deu procuração para perdoar as ofensas feitas a terceiros, muito menos a uma nação inteira. Por isso lhes digo: vocês todos são culpados da degradação sem fim que este país está sofrendo. Tão culpados quanto qualquer José Dirceu. E nem falo daqueles que, percebendo claramente a debacle, se adaptaram gostosamente a ela, distribuindo medalhas a criminosos, subsídios a vigaristas, afagos a quem só não os mata porque não chegou a hora. Esses não pecaram por omissão: ao contrário, nunca agiram tanto. Alguns já colheram o fruto amargo da bajulação: foram esmagados sob o peso dos sacos que puxavam. Outros não perdem por esperar. Quando a injustiça se eleva ao estatuto de norma geral, ironicamente sobra sempre um pouco de justiça nos detalhes. Mas, cavando um pouco mais fundo no estudo dos fenômenos acima apontados, descobre-se que a imposição cínica de direitos autoarrogados não é nem mesmo um simples instrumento da estratégia de tomada do poder: é um traço constante e uniforme da mentalidade revolucionária, nascido muito antes de que esse instrumento fosse concebido por Lênin no contexto da via insurrecional e adaptado por Gramsci à estratégia capciosa da revolução anestésica. ADORAÇÃO - Norman Cohn, em The Pursuit of the Millenium (Oxford University, 1961), assinala uma característica proeminente de certas seitas gnósticas medievais: seus adeptos sentiam-se tão intimamente unidos a Deus que se imaginavam libertos da possibilidade de pecar. "Isto, por sua vez, os liberava de toda restrição. Cada impulso que sentiam era vivenciado como uma ordem divina. Então podiam mentir, roubar ou fornicar sem problemas de consciência." Enquanto essas seitas se refugiavam em círculos estreitos de iniciados esotéricos, a pretensão de imunidade essencial ao pecado não passou de um delírio de auto-adoração grupal. Na entrada da modernidade, porém, como observou Eric Voegelin em The New

Science of Politics (University of Chicago, 1952), essas seitas se exteriorizaram em poderosos movimentos de massas. Foi quando começou a Era das Revoluções. Transposta para a esfera da ação política, a autobeatificação permissiva deu origem à moral revolucionária que isenta o militante de todos os deveres morais para com a sociedade existente, santificando as suas mentiras e seus crimes em nome dos méritos de um estado social futuro que ele se autoriza a exibir desde o presente como salvo-conduto para praticar o mal em nome do bem. Uma das primeiras manifestações dessa transmutação de uma falsa sabedoria esotérica em movimento revolucionário de massas foi, precisamente, a Revolução Puritana na Inglaterra. Nela já estão presentes todos os elementos da autobeatificação petista - e não só petista, mas esquerdista em geral, com especial destaque para a "teologia da libertação": a absoluta insensibilidade moral aliada à reivindicação de méritos sublimes; a idealização do "pobre" como portador de uma sabedoria excelsa não apesar mas em razão de sua incultura mesma; a vontade férrea de impor o critério grupal de justiça acima de toda consideração pelos direitos dos outros; o mito da propriedade coletiva; a pseudomística de um Juízo Final terrestrializado e identificado com o tribunal revolucionário. CARDOSOS - Pois bem, foram esses mesmos puritanos que, fracassado o intento revolucionário na Inglaterra, vieram criar seu simulacro de paraíso no Novo Mundo. A resistência da sociedade, que encontraram na Europa, ainda podia ser explicada como obstinação dos maus que não se rendiam à autoridade dos "Santos". Mas o que os "Santos" encontraram do outro lado do oceano não foi nenhuma discordância humana: foi a resistência implacável da natureza material, a estrutura da realidade - ou, em linguagem teológica, a vontade de Deus. A ela souberam no entanto conformar-se, diante da segunda derrota, os teimosos puritanos. Trocando seu orgulho pela humildade que lhes ensinava o sábio Bradford, tornaram-se mansos e herdaram a Terra. No Brasil, a soberba dos revolucionários, alimentada pela covardia geral e pela cumplicidade de muitos Cardosos, ainda vai levar muito tempo para se chocar de encontro aos limites da realidade. Comparadas as proporções entre a experiência dos puritanos e a deles, não é provável que isso aconteça sem uma dose de sofrimento superior àquela da qual pode resultar algum aprendizado.


A esquerda

americanizada

Nicolas Vial/Corbis

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N O Fórum Social Brasileiro vai capitalizar a roubalheira petista, explicando-a retroativamente como delito de neoliberalismo..."

Os turistas brincavam de se jogar na piscina quando chegou o boliviano que trazia pó. Jogaram-no também. Desespero geral".

Diário do Comércio 16/01/2006

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o tempo da ditadura, os esquerdistas da mídia, embora conservassem o poder sobre as redações, se sentiam isolados e constrangidos. Não tanto pela censura quanto pela hostilidade geral da população às guerrilhas. Deprimia-os que o povo não gostasse de ver recrutas e civis brasileiros ser feitos em pedaços por carros-bombas. Magoava-os profundamente que ninguém visse nada de heróico em "justiçar" com tiros nas costas homens desarmados, que ninguém admirasse a nobreza de sentimentos com que o capitão Lamarca esmagava a coronhadas a cabeça de um prisioneiro amarrado. Hoje, esses episódios sumiram tão completamente dos mesmos jornais que os denunciavam, que já parecem invencionices retroativas da direita. Na época, os próprios jornalistas de esquerda eram obrigados a contar tudo tim-tim por tim-tim, sem poder em contrapartida expor ao menos em detalhes a sua parte, os padecimentos que seus amigos terrorristas sofriam oh, quão injustamente! - em retribuição das bombas e das emboscadas. Tinham os mais altos cargos e os melhores salários, mas eram tão incompreendidos e infelizes que precisavam consolar-se mediante festinhas de embalo no Copacabana Palace. Terminaram achando que drogas e surubas tinham um alto potencial revolucionário, e não estavam de todo errados, já que acabaram conseguindo mais eficazmente corromper e drogar as gerações seguintes do que ganhar alguma simpatia dos contemporâneos para a violência revolucionária. Vindo a calhar com a estratégia gramsciana que então começava a ser importada, o modelo americano de "guerra cultural" da New Left, que no início julgavam desprezível e burguês na comparação com as propostas truculentas de Che Guevara e Régis Débray, acabou sendo a tábua de salvação que lhes permitiu sobreviver para reinventar depois a história daquele período, fazendo da derrota das guerrilhas uma espetacular vitória publicitária e uma fonte inesgotável de verbas consoladoras. Mas não foi só nisso que a esquerda midiática se americanizou. A época foi também a do afluxo maciço de brazilianists, que embora fossem também quase todos de esquerda - alguns deles tão enragés quanto qualquer guerrilheiro -, eram bem recebidos pelo governo por conta das instituições que os patrocinavam. Muita coisa que a esquerda local não podia dizer era dita pela boca desses medalhões, de onde o discurso esquerdista saía perfumado com o aroma da superior neutralidade acadêmica da Ivy League. Aos poucos, o hábito de respaldar-se em de-

clarações de americanos apresentados como insuspeitos tornou-se um dispositivo usual da retórica esquerdista. Na verdade homens como Ramsey Clark, John K. Galbraith, Jimmy Carter ou Ted Kennedy eram a fina flor do esquerdismo chique. Estavam comprometidos até a goela com a ajuda à subversão no Terceiro Mundo. Mas a simples insistência geral da esquerda na lenda de que o golpe militar viera de Washington dava a qualquer americano, por contraste, a autoridade para falar contra a direita latinoamericana sem parecer nem um pouquinho esquerdista. O mesmo acontecia com jornais patologicamente mentirosos em favor da esquerda, como New York Times e Washington Post, que ante a platéia tupiniquim ignorante podiam ser citados como modelos de isenção profissional pelo simples fato de ser americanos. A geração seguinte de esquerdistas continuou usando o mesmo truque, mas por automatismo paspalho e sem saber que era truque. Quando um Eliakim Araújo, ardido de dores petistas e embriagado de alegria vingativa pela demissão de Boris Casoy, compara desvantajosamente o ex-âncora da Record a "respeitados jornalistas do horário nobre" da TV americana, incluindo entre estes últimos dois notórios vigaristas de esquerda como Peter Jennings e Dan Rather, ele parece acreditar mesmo no que diz, coitado. A malícia dos gurus impregnou-se em seus discípulos sob a forma de ingenuidade perversa. Eles já não mentem por astúcia. Mentem porque ninguém os ensinou a fazer outra coisa. NOTINHA HORRÍVEL Quanto às festinhas no Copacabana Palace, não falo genericamente. Há uma crônica inesquecível de Daniel Más sobre isso, publicada na extinta revista Visão. Segundo o cronista, até a expressão "Anos Dourados", usada para designar de maneira aparentemente paradoxal uma época também carimbada como "Anos de Chumbo", se originou entre o pessoal da mídia e do show business por alusão a uns pacotinhos dourados em que vinha a cocaína. O episódio é edificante. Um dia, turistas estavam brincando de jogar-se uns aos outros na piscina do hotel, enquanto a turminha esperta dos brasileiros, nas mesas em torno, aguardava a chegada de um boliviano que trazia o pó. De repente, aterrorizados, viram o sujeito entrando e sendo agarrado pelos brincalhões. Não houve tempo nem de gritar. Foi o desespero geral: todo mundo pulando na água, atrás dos papeizinhos dourados...


O paradoxo esquerdista Carl de Souza/AFP/3/02/2006

V

ivenciar conscientemente o tempo histórico em que transcorre a nossa existência é um privilégio, um dever e um direito da inteligência individual, que não alcança sua plenitude senão absorvendo e integrando as tensões e mutações do ambiente maior em torno. Desde o início do século XX, esse direito foi negado a várias gerações de seres humanos, induzidos a viver uma história fictícia no mundo paralelo das militâncias ideológicas e a atravessar a existência em pleno estado de ignorância quanto aos fatores reais que determinaram o seu destino. A ilusão socialista não consiste somente num erro de previsão quanto aos objetivos finais. Se fosse assim ela seria apenas o final trágico de existências nobres. Mas a expectativa falsa quanto ao

futuro já falsifica a vida presente: ela perpassa toda a biografia de cada militante, tingindo de farsa e auto-engano cada um de seus atos e pensamentos, mesmo os mais íntimos, pessoais e aparentemente alheios à luta política. É só estudar as vidas de Marx, de Lênin, de Stalin, de Mao, de Guevara, de Fidel Castro, de Yasser Arafat (ou de seus acólitos intelectuais, os Sartres, Brechts, Althussers e tutti quanti) para entender do que estou falando: cada um desses homens que tiveram nas mãos os destinos de milhões de pessoas foi um deficiente emocional, cronicamente imaturo, incapaz de criar uma família, de arcar com uma responsabilidade econômica ou de manter relações pessoais normais com quem quer que fosse. Em compensação do aborto moral de suas vi-

Passeata de militantes palestinos em Londres: um novo Holocausto de proporções colossais

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Ben Stansall/AFP/18/02/2006

(...) nenhum regime direitista jamais matou, prendeu ou torturou tantos militantes esquerdistas quanto Stalin, Mao, Pol-Pot ou Fidel Castro.

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das, criaram a idealização pomposa do "revolucionário" (isto é, deles próprios), como encarnação de um tipo superior de humanidade, adornando com um toque de estética kitsch a mentira existencial total. Eles não são personagens de tragédia. A regra essencial da tragédia é a ausência de culpa. O herói trágico não pode estar abaixo das circunstâncias, não pode ser um perverso, um fraco, um idiota incapaz de arcar com a própria vida. Ele fracassa porque entra em choque com as exigências superiores de uma ordem cósmica invisível. Seu único delito é ser apenas humano numa situação que lhe impõe desafios sobre-humanos. Mas perceber a falácia intrínseca da promessa socialista não é um desafio sobre-humano (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060611zh.html ). É um dever elementar de qualquer inteligência média que se disponha a examinar o assunto objetivamente. Aqueles que fogem a esse exame, transferindo a partidos, a movimentos ou à "opinião pública" as responsabilidades da sua consciência individual, renunciam ipso facto à dignidade da inteligência e se consagram a uma luta obstinada e fútil contra a estrutura da realidade. Vai nisso uma mistura de vaidade adolescente, de revolta gnóstica e daquele orgulho satânico que é a compensação quase automática da covardia existencial. Tudo isso é lamentável, mas não é trágico: é grotesco. Não há tragédia no fracasso do socialismo: há apenas uma palhaçada sangrenta. O modelo dos líderes e dos ídolos intelectuais é repetido, em série ilimitada, nas vidas de militantes, simpatizantes e "companheiros de viagem", acabando por espalhar-se entre o público geral. O rancor sem fim contra pais e mães, a destruição da unidade familiar, o ódio às exigências morais das tradições religiosas, a busca desesperada de sensações por meio do consumo de drogas, a reivindicação pueril do "direito ao prazer", a transformação do erotismo numa escalada de exigências egolátricas que começa no protesto feminista e culmina na apologia aberta da pedofilia e do incesto, a disseminação de técnicas pedagógicas que estimulam a delinqüencia infanto-juvenil - tudo isso é a projeção ampliada do estilo de vida dos "grandes revolucionários", espraiada no tecido da sociedade ao ponto de já não reconhecer-se como tal e transfigurada num sistema de obrigações "éticas" que se torna a base de julgamentos, acusações, cobranças e chantagens. O fundo de tudo é o ódio à realidade, a recusa de arcar com o peso da existência, o sonho gnóstico de transfigurar a ordem das coisas por meio

da auto-exaltação psicótica e de truques mágicos como a "reforma do vocabulário". Não espanta que a política produzida por essas pessoas seja uma contradição, uma imensa engenhoca entrópica que cresce por meio da autodestruição e se inebria de vanglória na contemplação das próprias derrotas. Nenhuma exploração capitalista, por mais "selvagem" que a rotulassem, conseguiu matar de fome multidões tão vastas quanto as que pereceram durante a estatização da agricultura na URSS, o "Grande Salto para a Frente" de Mao Dzedong ou os experimentos socialistas em vários países da África. A "luta contra a miséria" continua sendo o principal pretexto moral do socialismo, mas a verdade é que a maior contribuição do socialismo à vitória nessa luta seria simplesmente cessar de existir. Do mesmo modo, o protesto inflamado contra qualquer violência anti-socialista é um persistente Leitmotiv do discurso de esquerda, mas nenhum governante direitista jamais ma-


Os terroristas sabem que as nações ditas infiéis têm sentimentos morais, enquanto eles, os santos, os eleitos, não têm nenhum e não precisam ter nenhum.

tou, prendeu ou torturou tantos militantes esquerdistas quanto Stalin, Mao, Pol-Pot ou Fidel Castro. É uma simples questão de fazer as contas. Se os socialistas tivessem um pingo de respeito por seus próprios direitos humanos, voltariam para suas casas e deixariam que a boa e velha democracia burguesa os protegesse contra a tentação suicida de implantar o socialismo. Do mesmo modo, quando os esquerdistas começam a falar em "paz", a prudência recomendaria que começassem a estocar comida no porão para a próxima guerra em que seus líderes estão tratando de metê-los naquele mesmo momento. O movimento pacifista encabeçado pelos partidos comunistas da Europa nos anos 30 foi um truque concebido por Stalin para dar tempo à Alemanha de se rearmar com a ajuda soviética e destruir a "ordem burguesa" do velho mundo (leiam o clássico Stalin's War, de Ernst Topitsch). Milhões de franceses idiotas gritaram em passeatas e agi-

taram bandeirinhas brancas sem saber que isso era o passaporte para o matadouro. Os tratados que, atendendo ao clamor de uma geração inteira de jovens enragés, puseram fim aos combates no Vietnã em 1972, deram um salvoconduto para que os comunistas invadissem o Vietnã do Sul e o vizinho Camboja e matassem aí três milhões de civis - quatro vezes o número total de vitimas civis e militares da guerra. Enganam-se aqueles que enxergam na novilíngua (newspeak) de George Orwell apenas um truque publicitário concebido por líderes maquiavélicos para induzir militantes estúpidos a aceitar a guerra como paz, a tirania como liberdade. Esses líderes maquiavélicos não têm nenhum controle sobre o processo, que, com raras e inevitáveis exceções, termina por arrastálos e destruí-los junto com suas vítimas. O paradoxo autodestrutivo está na centro de cada alma militante porque está na raiz mesma do movimento socialista, que nasce da aspiração

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Diário do Comércio 07/08/2006

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gnóstica à supressão do mundo físico e se condensa na proclamação absurda de Hegel: "O ser, na sua indeterminação, é o nada" - uma confusão patética entre discurso e existência, destinada a ter as mais monstruosas conseqüências intelectuais e históricas. O puro newspeak já marca sua presença ostensiva na fórmula de Engels, "A liberdade é o reconhecimento da necessidade", que inspirou tantas auto-acusações falsas nos Processos de Moscou e cujo sentido último, de ironia verdadeiramente demoníaca, aparece com nitidez fulgurante no comentário de Bertolt Brecht: "Se eram inocentes, mais ainda mereciam ser condenados." Brecht, aliás, foi aquele mesmo que resumiu com cinismo exemplar a essência da moral socialista: "Mentir em favor da verdade." Experimente fazer isso e, é claro, você nunca mais vai parar de mentir. Algumas regras usuais do leninismo ilustram esse cinismo na prática diária: "Fomentar a corrupção e denunciá-la" e "Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é" resumem às mil maravilhas a história do nosso PT, que cresceu pelo discurso de acusação moralista ao mesmo tempo que montava uma máquina de corrupção de dimensões faraônicas, perto da qual os velhos políticos ladrões começam a parecer meninos de escola culpados de roubar chicletes. Era inevitável que, com o tempo, a forma mentis autonegativa do movimento esquerdista se cristalizasse numa fórmula estratégica simples, ingênua até, que por sua simploriedade mesma fosse de aplicação fácil e lucrativa, reprodutível em escala mundial por simples automatismo. Essa estratégia, cujo nome é hoje proclamado abertamente pelo sr. Hugo Chávez, é a guerra assimétrica. Ela consiste, como explica Jacques Baud em La Guerre Asymétrique, ou la défaite du vainqueur (Paris, Éditions du Rocher, 2003), em transformar as derrotas militares em vitórias políticas por meio de um ardil psicológico: outorgar a um dos lados, sob pretextos edificantes, o direito incondicional a todos os crimes, a todas as brutalidades, a todas as baixezas, e desarmar o outro por meio de cobranças morais paralisantes. O que nem os praticantes nem os colaboradores passivos nem as vítimas desse ardil parecem perceber é que ele traz em si a prova definitiva da superioridade moral do adversário no mesmo momento em que acusa seus supostos crimes e iniqüidades. É claro: se o acusado não fosse moralmente sensível, consciencioso, escrupuloso, seria impossível inibi-lo mediante o apelo a seus deveres éticos. E, se o acusador fos-

se por sua vez sensível a esses mesmos deveres no plano da sua própria conduta, ele se veria igualmente travado por escrúpulos e não haveria assimetria nenhuma. É justamente o fato de dispensar-se das obrigações morais exigidas do inimigo que dá ao praticante da guerra assimétrica a vantagem estratégica da sua posição. É essencial para o sucesso desse ardil que o discurso de acusação seja feito sempre pelo culpado contra o inocente, pelo criminoso contra a vítima. O público e a totalidade dos colaboradores passivos usados como caixas de ressonância do moralismo indignado nem de longe se dão conta disso, mas o fato é que, quanto mais veemente a acusação, maior a malícia do acusador e mais irrefutável a prova de seus crimes. A assimetria consiste precisamente nisso. Um exemplo didático, colhido da guerra entre Israel e o Hezbollah, aparece no contraste entre as atitudes dos dois lados no que diz respeito às vítimas civis. Enquanto na mídia ocidental os israelenses são condenados como monstros porque mataram acidentalmente trinta civis num bombardeio, em países islâmicos as matanças deliberadas de civis israelenses pelos mísseis do Hezbollah são comemoradas como atos meritórios. Se o leitor duvida, veja o documentário em http://pmw.org.il/bulletins_Aug2006.htm#b020806 . Os terroristas sabem que as nações ditas infiéis, pecadoras, têm sentimentos morais, enquanto eles próprios, os santos, os eleitos, não têm nenhum e não precisam ter nenhum. Sua moral consiste apenas na glorificação descarada dos próprios crimes - e é ela que lhes dá a vitória na guerra assimétrica. Outros exemplos, ainda mais eloqüentes, estão nas fotos que ilustram esta página. Tiradas numa passeata de militantes palestinos em Londres, foram enviadas pela escritora Bella Jozef, uma judia brasileira residente na Inglaterra, a amigos seus em várias partes do mundo, e vieram parar na minha caixa postal. Enquanto na própria comunidade judaica muitos se sentem inibidos de desejar em público a vitória de Israel, preferindo fazer discursos tímidos e genéricos em favor da "paz", elas mostram a verdadeira face da ideologia radical islâmica, que a mídia ocidental, colaborando na guerra assimétrica, esconde para dar feições mais humanas aos terroristas e criar no mínimo uma impressão enganosa de equivalência moral. As inscrições nestes cartazes dizem tudo. O que o "outro mundo possível" promete conscientemente à humanidade, sob os pretextos mais sublimes, é um novo Holocausto, de proporções colossais, e a liquidação de tudo o que conhecemos como liberdade e direitos humanos.


Em plena guerra assimétrica Yonathan Weitzman/REUTERS

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uando o sr. Hugo Chávez proclama que sua estratégia contra os EUA é a da "guerra assimétrica", já não há como negar que esse conceito é o instrumento essencial para a descrição e compreensão do estado de coisas na América Latina. Se nossos comentaristas internacionais, analistas estratégicos, politólogos e tutti quanti continuam a usá-lo com parcimônia ou a abster-se por completo de usá-lo, não é só por preguiça mental: é porque um dos elementos fundamentais da assimetria é a desigual iluminação do quadro. Esses cavalheiros jamais desejariam ver o seu querido mentor bolivariano mostrado à mesma luz implacável e crua com que seus inimigos são exibidos e dissecados diariamente na mídia. Conceder a um dos lados o direito à penumbra protetora e obrigar o outro a um contínuo strip-tease ante a curiosidade sádica dos holofotes não é descrever nem analisar a guerra

assimétrica: é praticá-la. Jornalistas, professores e similares, os "formadores de opinião" ou "intelectuais", no sentido calculadamente elástico que Antonio Gramsci dá ao termo, são a vanguarda da revolução. Sua função não consiste em mostrar o mundo como ele é, mas transformá-lo naquilo que ele não é. Deformar propositadamente o quadro, portanto, é seu dever profissional número um. Mas a palavra mesma "deformação" é um tanto enganosa. Deformar por meio do fluxo de informações uma realidade preexistente é uma coisa; outra bem diversa é criar praticamente do nada uma nova realidade constituída do puro fluxo de informações falsas. Mentir em situações de guerra, para favorecer um dos lados, é tão antigo quanto a própria guerra. Mas mesmo o formidável desenvolvimento da técnica da desinformação ao longo de duas guerras mundiais e inumeráveis revoluções do século XX não dá

Um judeu ortodoxo examina o estrago de um míssil. Mas o alvo foi outro: a repercussão do ataque mundo afora.

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uma imagem adequada do que hoje se passa. Em todos esses casos, os "formadores de opinião" desempenhavam um papel auxiliar: a parte substantiva dos conflitos desenrolava-se nos campos de batalha. Os protagonistas da narrativa bélica eram os militares, os guerrilheiros, os terroristas, os partiggiani. Jornalistas e tagarelas em geral formavam apenas o coro. Nas últimas décadas, as proporções inverteram-se. A integração mundial das comunicações e a conseqüente reorganização da militância revolucionária em "redes" de extensão planetária permitiram reduzir ao mínimo a função bélica das armas e ampliar ao máximo a da guerra de informações. O princípio subjacente a essa mudança é simples e baseia-se na regra clássica da arte militar que mede a eficácia da ação armada segundo a relação custo-benefício que ela guarda com os resultados políticos visados. Quanto mais ampla a repercussão política que se pode obter com um esforço militar reduzido, tanto melhor. Nesse sentido, batalhas inteiras da II Guerra Mundial, com centenas de milhares de mortos, foram politicamente menos relevantes do que alguns ataques terroristas comparativamente modestos realizados nas últimas décadas, pela simples razão de que neste caso havia meios de alcançar repercussão jornalística mais vasta e imediata, determinando decisões de governo que em outras épocas necessitariam de um estímulo sangrento muito mais eloqüente. Exemplos característicos foram a guerrilha mexicana de Chiapas, militarmente irrisória, que graças ao apoio instantâneo da mídia internacional conseguia transformar em vitória política cada nova derrota que sofria em combate, e o atentado à estação férrea de Madri, que do dia para a noite fez a Espanha mudar de lado na guerra contra o terrorismo. Napoleão, Rommel, Zhukov ou MacArthur jamais sonharam em obter resultados tão espetaculares com investimentos bélicos tão minguados. O fenômeno ao qual estou me referindo recebe às vezes o nome de "guerra informática" (netwar). A bibliografia a respeito já é bem extensa e foi inaugurada em 1996 com a excelente monografia da Rand Corporation sobre a guerrilha de Chiapas, The Zapatista 'Social Netwar' in Mexico, que pode ser comprada ou descarregada gratuitamente em PDF no site htt p:// www.r and. org/ pubs/ mono graph_reports/MR994/index.html, mas nunca encontrei entre as elites brasileiras, seja intelectuais, empresariais, políticas ou militares, quem a tivesse lido. Menos ainda encontrei quem tivesse alguma consciência clara da ligação entre guerra informática e guerra assimé-

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trica, embora essa ligação seja a chave mesma para a compreensão do quadro internacional hoje em dia. A fórmula do negócio pode ser enunciada numa frase: A guerra assimétrica não é outra coisa senão uma estratégia destinada a compensar a desproporção de força e capacidade militares por meio da guerra informática. Uma sugestão para quem deseje entender o funcionamento da coisa é ler a monografia da Rand junto com o livro de Jacques Baud, La Guerre Asymétrique, ou la défaite du vainqueur (Paris, Editions du Rocher, 2003). Uma vez que se entendeu a unidade de guerra informática e guerra assimétrica - e quem não entendeu está fora do mundo --, torna-se inevitável tirar dessa convergência de estratégias algumas conclusões óbvias:

Os alvos da guerra assimétrica são três e sempre os mesmos: os EUA, Israel e aquilo que, nesses países ou em quaisquer outros, ainda reste da civilização judaico-cristã.

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Os alvos da guerra assimétrica são três e sempre os mesmos: os EUA, Israel e aquilo que, nesses países ou em quaisquer outros, ainda reste da civilização judaico-cristã. A "guerra cultural" é parte integrante da guerra assimétrica.

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Se a identidade dos alvos é nítida e bem conhecida, a das forças atacantes permanece difusa e nebulosa ao ponto de que a noção mesma de sua unidade estratégica continua impensável até para o público mais culto. Para apreendê-la é preciso ter estudado a estrutura das "redes", mapeando a circulação de dinheiro, de informações e de palavras-de-ordem entre governos, fundações, partidos políticos, ONGs, banditismo organizado e mídia no mundo inteiro. Elementos para esse estudo podem ser encontrados nos sites http://www.discoverthenetworks.org e www.activistcash.com, que já citei aqui, bem como na recém-inaugurada seção "Mapas Visuais" do jornal eletrônico brasileiro www.midiasemmascara.com.br. Quem quer que examine esse material com a devida atenção sabe que a existência de um eixo antiamericano, anti-israelense e anticristão formado pelos governos da Rússia e da China, pelas fundações globalistas bilionárias, pela grande mídia esquerdista chique, pela rede terrorista internacional e por milhares de organizações militantes espalhadas pelo mundo não é uma hipótese ou uma teoria: é um fato brutalmente real - o fato essencial do nosso tempo. Mas as informações que o evidenciam não saem, é claro, no "Jornal Nacional" nem na Folha, não são alardeadas desde o alto das cátedras universitárias e, enfim, não chegam de maneira alguma ao público maior. O resultado é que a hostilidade contra os EUA, Israel e o cristianismo, meticulosamente fabricada a um custo de muitos


Ahmed Tawil/REUTERS

bilhões de dólares, parece surgir do nada, como manifestação espontânea dos belos sentimentos morais da humanidade - e qualquer tentativa de contestar essa hipótese logicamente insustentável e supremamente imbecil é rejeitada, mesmo por pessoas cultas, como "teoria da conspiração". O sucesso psicológico da guerra assimétrica pode medir-se pela facilidade com que histórias da carochinha acabam parecendo mais verossímeis do que os fatos mais abundantemente comprovados.

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A função da mídia e dos "formadores de opinião" em geral, no novo quadro estratégico, é bem diversa daquele papel meramente auxiliar que tiveram em outras ocasiões, incluindo nisto as vastas campanhas de desinformação e manipulação montadas pelo governo soviético desde a década de 30 até o fim da Guerra Fria (campanhas cuja amplitude permanece ainda desconhecida fora do círculo dos estudiosos, por ter sido revelada só a partir da abertura temporária dos Arquivos de Moscou). Se a orientação geral é inverter as proporções recíprocas do esforço bélico e da manipulação informática que o transmuta em resultados políticos, os militares e terroristas é que se tornam força auxiliar, enquanto o papel principal incumbe aos manipuladores da opinião pública. Uma vez que você percebeu isso, sabe que é uma ingenuidade suicida continuar interpretando a situação como se os únicos agentes revolucionários que importam fossem os terroristas e os militantes mais descarados a serviço de organizações subversivas e como se os formadores de opinião fossem apenas cidadãos inofensivos exercendo candidamente o seu direito à liberdade de expressão. Ao contrário: jornais, rádios, noticiários de TV, aulas, livros, espetáculos de teatro são hoje as principais armas de guerra, sua função essencial ou única é serem armas de guerra, e por isso mesmo o controle planejado do noticiário deixou de ser uma exceção para se tornar a regra. Um dos sinais mais alarmantes dessa mudança é o fato de que a exclusão de notícias indesejáveis, um recurso extremo antes usado com parcimônia até por censores oficiais, se tornou procedimento normal e rotineiro da maioria dos órgãos da chamada "grande mídia" (no Brasil, em todos eles, sem exceção). A supressão é tão vasta e tão sistemática que continentes inteiros da realidade contemporânea se tornaram invisíveis para o público. Notícias sobre torturas e assassinatos políticos em Cuba, na China, no Vietnã ou na Coréia do Norte, por exemplo, desapareceram por completo há mais de vinte anos, embora

nesse período o número das vítimas nesses países não esteja abaixo dos dez milhões de pessoas. É só quando projetados sobre esse fundo vazio que episódios inócuos como as humilhações ocasionais e incruentas sofridas por terroristas em Abu-Ghraib ou Guantánamo podem despertar atenção. É só nesse quadro totalmente deformado que centenas de mísseis lançados diariamente contra Israel podem parecer menos chocantes do que a tardia reação israelense. É só nesse mundo de fantasia que o simples pedido de uma congressista da Flórida para que o governo americano estude a possibilidade de alguma ação militar na Tríplice Fronteira pode parecer uma intervenção estrangeira mais perigosa, e mais insultuosa à dignidade nacional, do que a movimentação efetiva e constante, naquela área, de bandos de terroristas armados atuando em parceria estreita com quadrilhas de narcotraficantes, sob os olhos complacentes das nossas autoridades federais. É só no reino da mentira total que a presença amazônica de agentes do Conselho Mundial das Igrejas, um órgão acentuadamente pró-comunista e antiamericano, pode ser vendida ao público como prova de intervenção imperialista ianque. Não, já não se trata de censurar esta ou aquela notícia, mas de modificar radicalmente a estrutura e as proporções do panorama inteiro. Já não se trata de enganar o público quanto a um ou outro episódio em particular, mas de modificar sua percepção integral da realidade. Por isso é que a "guerra assimétrica", tão constantemente presente no mundo dos fatos, raras vezes ou nunca dá o ar da sua graça no universo de discurso da mídia brasileira. É que aí não se trata de falar da assimetria, mas sim de criá-la.

Onde está o real campo de batalha: nos protestos contra os EUA e Israel na Indonésia (foto), ou no Líbano, acertado pelas bombas?

Diário do Comércio 24/07/2006

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Raça de víboras. Ou: o Ma

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Diário do Comércio 06/11/2006

inguém deve regozijar-se com a desgraça alheia, mas mostrar ao dr. Emir Sader que ele não está acima das leis era uma questão de saneamento básico. Apenas não concordo com a Justiça catarinense ao desprovê-lo de suas funções oficiais na USP. Onde mais haveria lugar para um tipo como ele? Nas ruas, ele espalhará a mentira e a loucura entre a população. Na cadeia, corromperá os presidiários. Só na Cidade Universitária do Butantã é que ele pode estar entre seus iguais ou piores, sem chance de fazer o mal a quem não o mereça. Prova disso é a solidariedade que seus pares acabam de lhe hipotecar em mais um "Manifesto de Intelectuais", o único gênero em que a produção literária nacional tem alcançado algum destaque no mundo. Sabemos como tudo começou. Tendo o senador Jorge Bornhausen dito que o voto era a maneira natural de expelir da vida pública a "raça petista", o dr. Sader, fazendo-se de criancinha e fingindo ignorar a acepção do termo "raça" como coletivo usado para designar pejorativamente ou laudatoriamente qualquer grupo de pessoas sem o menor parentesco genético (como no xingamento "raça ruim" ou no título do famoso poema de Cassiano Ricardo), acusou o senador de racista e nazista. Sendo o racismo delito inafiançável, a imputação de crime, forçada até o extremo limite do ridículo, era ela própria crime doloso, e tinha de render a seu autor o prêmio judicial merecido. Talvez se pudesse alegar em favor do réu o fato de que essa micagem semântica, por boboca que seja, é o único procedimento retórico que ele conhece, sendo possível reduzir a ela, por análise estilística, absolutamente todos os argumentos que ele apresenta na sua coluna internética "O Mundo às Avessas", na qual, como já se vê pelo título, a verdade pode em geral ser obtida mediante simples inversão das assertivas do autor. Se, portanto, ele acusou o senador de racista, foi precisamente por saber que ele não era racista de maneira alguma. No início, o colunista pode ter feito essas coisas com a satisfação sádica da calúnia consciente, mas, com o tempo, parece que o hábito se incorporou de tal modo à sua pessoa que acabou por se tornar um cacoete, um reflexo instintivo e, por fim, uma cosmovisão e um estilo de vida: o mero sadismo transfigurou-se em saderismo. Mas eu seria injusto se visse nisso uma idiossincrasia pessoal saderiana. "Inversão" é a premissa univer-

sal do movimento revolucionário desde muitos séculos. Apenas, de Diderot e Hegel até Jacques Derrida, o procedimento geral era encobri-la sob alguma aparência requintada de coerência e sensatez, induzindo os leitores a engolir a enormidade sem percebê-la. Foi apenas no Brasil dos últimos anos que, reduzida a nada a capacidade literária por excesso de indulgência no vício do jargão partidário, e devidamente rebaixado o QI do público em iguais proporções, a inversão começou a se exibir em estado puro, pelada, nuinha, sem pejo, com toda a sua mecanicidade bárbara e o orgulho obsceno da estupidez triunfante. A esquerda inteira, em suma, começou a escrever, falar e pensar como o marquês de Sader. A prova disso, como eu ia dizendo, era o manifesto em favor do referido. Assinado por pessoas que se imaginam ilustres e são mantidas nessa crença pelos agradinhos mútuos e intenso troca-troca de subsídios oficiais sob os pretextos mais variados, essa peça literária copia tão exatamente o modus argüendi do referido, que parece ter sido escrita por ele em pessoa. Não digo isso pela pletora de solecismos, já demonstrada no estilo do dr. Sader pela Profa. Norma Braga (http://normabraga.blogspot.com/2006_ 06_01_normabraga_archive.html) e agora meticulosamente confirmada pelo Reinaldo Azevedo no texto do documento coletivo (v. as mensagens "Nos Emirados Sáderes", "A palavra 'escorchante' e ProUni para Sader", "Intelectuais, relembrem o texto de Sader" e "Luminares das letras em manifesto solecista pró-Sader" no seu blog http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo). Se é verdade que o estilo é o homem, o estilo do manifesto é "usômi". Mas o analfabetismo endêmico da classe dita intelectual neste país já é fato notório no qual não pretendo insistir. O caracteristicamente sadérico no manifesto é mesmo o seu conteúdo. A inversão já começa quando os signatários acusam a sentença condenatória de ser um atentado contra a liberdade de expressão. A demissão de Boris Casoy, a supressão de meus artigos no Jornal da Tarde, no Globo, na revista Época e na Zero Hora, as ameaças judiciais do deputado Greenhalgh ao jornal eletrônico Mídia Sem Máscara, as agressões a repórteres, a pressão policial contra a Folha de São Paulo e sessenta e três processos movidos contra Diogo Mainardi por ter dito verdades óbvias e arquiprovadas não aten-

Ilustração: Céllus

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rquês de Sader na prisão tam de maneira alguma contra a liberdade de expressão, mas proibir que o dr. Sader atribua crimes a quem não os cometeu, ah!, isto sim atenta, isto sim agride, isto sim fere a consciência libertária de Flávio Aguiar, Antônio Cândido e similares. Mas o inversionismo em todo o seu esplendor aparece é na comparação entre esse documento e o seu antecedente internacional. Em janeiro, tão logo anunciado o processo aberto contra o dr. Sader, uma vasta patota global constituída de Eduardo Galeano (escritor uruguaio), Anibal Quijano (sociólogo peruano), Ignacio Ramonet (Le Monde Diplomatique), Samir Amin (Fórum Mundial das Alternativas), Walden Bello (Focus on the Global South) e outros tantos já tomou partido do acusado e, sem ter a menor idéia do uso do termo "raça" em português, endossou a acusação ao senador Bornhausen, tachando-o de "fascista e racista". O manifesto de agora, assinado por brasileiros que ao menos teoricamente falam a língua do senador, esperneia em todas as direções na defesa do dr. Sader, mas abstém-se meticulosamente de subscrever aquela acusação e até mesmo de transcrevê-la. Por que? Se a sentença judicial contra as palavras do dr. Sader é injusta, elas são obviamente justas. Por que defender o denunciante ocultando ao mesmo tempo o conteúdo da denúncia? A resposta é óbvia: por mais amigos que fossem do dr. Sader, os autores do manifesto não quiseram ser seus cúmplices retroativos, sujeitando-se eles próprios à penalidade que o atingiu. Confessam, portanto, que ele é culpado, no instante mesmo em que o proclamam inocente, e tiram o corpo fora da encrenca no ato mesmo de fingir que entram nela corajosamente em defesa do condenado. É mesmo "o mundo às avessas". Que tenham assim procedido por desatenção e inocentemente, é hipótese que se exclui desde logo pelo fato de que alguns deles, a começar pelo próprio Flávio Aguiar, já tinham assinado antes o manifesto de janeiro, no qual se fizeram cúmplices do crime cometido pelo dr. Sader, tentando agora apagar as pistas da sua participação no episódio, fazendo-se de advogados neutros para camuflar sua condição de co-autores do delito. Esforço inútil. Está tudo bem documentado, e, se faltassem provas patentes da má-fé dos "intelectuais de esquerda" em geral, essa já diria tudo. O senador Bornhausen não apenas obteve justiça no seu con-

fronto com o dr. Sader, mas tem direito ainda a reparações, por danos morais, da parte de uma infinidade de estrelas e estrelos do elenco internacional e local do ativismo esquerdista, a começar pela Agência Carta Maior, que publicou originariamente a patifaria saderiana no site http://cartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=2171. Creio mesmo que o senador tem a obrigação de lhes mover o devido processo cível, ferindo-os no único ponto sensível das suas consciências - o bolso - e ajudando o país a livrar-se dessa raça. Qual raça, exatamente? Em janeiro, o dr. Plínio de Arruda Sampaio, elegante esquerdista quatrocentão e um dos mais assanhados partidários do dr. Sader, chegou a tentar justificar o truque semântico pueril concebido contra o senador Bornhausen, proclamando que "não se pode aceitar o uso do termo 'raça' para referir-se a uma parte da população". Esse critério lingüístico, se adotado oficialmente, obrigaria as autoridades a recolher como propaganda racista todos os exemplares do Evangelho, onde Jesus constantemente se refere a uma parte da população como "raça de víboras". Mas, assim como o termo "raça petista" não ofende a nenhuma raça biológica, e sim somente à raça política petista, a expressão de Jesus não soa ofensiva e inaceitável senão às próprias víboras. Eis a resposta à minha pergunta. É a essa raça que pertencem *http://normabraga. o marquês de blogspot.com/2006_06_01_ Sader e todo o normabraga_archive.html cortejo dos seus **http://veja.abril.com.br/ ad mir ad ore s. blogs/reinaldo Por isso o lugar ***http://cartamaior.uol. mais apropriado com.br/templates/ para eles é na USP, colunaMostrar.cfm? no bairro do Butantã, coluna_id=2171 ao lado de um serpentá-

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rio e dentro de outro.

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Mais um advogado do marquês Marlene Bergamo/Folha Imagem

Professor Emir Sader, punido pela Justiça ao acusar o senador Jorge Bornhausen (PFL-SC) de racista e nazista

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marquês de Sader tem um blog em cuja seção de comentários publica democraticamente todos os elogios que recebe. No último dia 18, logo de manhãzinha, postei lá a seguinte mensagem: "Desculpe-me por imiscuir a minha nefanda pessoa em ambiente tão seleto, mas tenho duas perguntinhas: (1) Você imputou ou não ao senador Bornhausen a prática de crime inafiançável? (2) Imputação de crime é mera opinião ou é denúncia de um fato? Peço que você responda com a brevidade direta que as perguntas exigem." Até o momento, a mensagem não foi respondida, aliás nem publicada. Claro: o marquês não é besta de querer que o núcleo mesmo da questão que o envolve venha à luz, quando há tantos subterfúgios interessantes para alimentar uma desconversa sem fim. Mas a prova de que minhas perguntinhas eram decisivas vêm dos próprios argumentos da sua defesa que, descontados os floreios ideológicos e as la-

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crimejações publicitárias, são dois: 1) O marquês está sendo punido por um delito de opinião. 2) O senador Bornhausen é racista mesmo, portanto a acusação que o marquês lhe lançou traduz uma verdade de fato. Como esses argumentos se contradizem um ao outro, julguei-me no dever de pedir ao marquês que esclarecesse a dúvida em torno da qual gira toda controvérsia judicial possível quanto à sua culpa ou inocência. Mas para que esclarecê-la, quando é muito mais lindo jogar tinta na água para que ninguém enxergue nada com clareza? O promotor Renato Eugênio de Freitas Peres, no recurso que apresentou contra a sentença do juiz Rodrigo César Muller Valente, faz isso com a potência de um exército de polvos, compondo uma petição-camuflagem onde não se encontra uma só afirmação unívoca entre batalhões de indiretas capciosas. Ele argumenta, por exemplo, que jamais viu uma condenação por crime contra a honra mas não esclarece se com isso quer dizer que foi inépcia judicial, que esses crimes não existem ou que eles não devem ser punidos. Ele alega também que juízes não lêem petições, mas não esclarece se está se referindo ao juiz que condenou o marquês, ao juiz que vai julgar o seu recurso ou aos juízes em geral. Também não diz se espera que a sua petição desfrute da atenção legente que os juízes sonegam às demais ou se aposta na sorte de que ela seja deferida sem leitura. Não querendo insistir abertamente na alegação de que Bornhausen é mesmo racista, mas não querendo prescindir dela por completo, ele transmuta-a de afirmação explícita em sugestão indireta, alegando que o senador "efetivamente tem o hábito de utilizar o conceito de raça". A ambigüidade é aí levada ao extremo do confusionismo, pois, de um lado, o promotor não cita um único exemplo extra de utilização da palavra "raça" pelo senador, donde se conclui que ato habitual, para S. Exa., é o ato praticado uma vez só. De outro lado, faz de conta que não sabe que utilizar uma palavra em sentido impróprio ou figurado é precisamente o contrário de usar o conceito correspondente. Chamar de jumento um animal que caiba na classe dos jumentos é usar o conceito de jumento. Chamar de jumento o marquês de Sader ou o promotor Freitas é usar a palavra totalmente fora do conceito que ela nomeia, pois nada, na definição de jumento, admite a inclusão de animais de outra espécie que só se jumentalizam

por vontade própria. Deste modo, ao atribuir ao senador um hábito, o promotor não apenas se absteve de provar a reiteração de atos necessária para configurar um hábito, mas se absteve de provar até mesmo um único ato, solitário e isolado que fosse. Está claro, portanto, que o único motivo que ele pode ter tido para atribuir ao senador o uso habitual do conceito de raça é seu desejo de carimbar o senador como racista sem ter de afirmar explicitamente que ele é racista. Aí fica difícil distinguir se o promotor é advogado do marquês ou se é o próprio marquês. Diz ainda o referido que os demais insultos lançados contra o senador, como "repulsivo, fascista, mente suja, abjeto, mesquinho, desprezível" - ele omitiu gentilmente "assassino de trabalhadores" - são apenas expressões de "um debate acalorado", não cabendo pois ação judicial para puni-los. Diante do exposto, e data vênia de S. Exa., deixo aqui registrada a minha acaloradíssima opinião de que o promotor Renato Eugênio de Freitas Peres é um chicaneiro, malicioso, mentiroso, trapaceiro na argumentação e fofoqueiro de cortiço na escala de valores morais, além de jumento em sentido arquifigurado, que em nada depõe contra a espécie jumenta. Quanto ao marquês, professor universitário que escreve "Getulho" e "opróbio" e usa da solidariedade ideológica como gazua para tirar vantagem ilícita de seus companheiros, o gajo é tão ruim que não pode ser qualificado. Já o xinguei de tudo quanto é nome, e sinto que ainda não consegui expressar a quintessência da sua personalidade excrementícia. Ele é uma espécie de cocô metafísico, transcendental, inefável e inexprimível. Nem todos os demônios do inferno defecando juntos poderiam produzi-lo. Talvez só ele próprio, em agonias intestinais dantescas, conseguisse se ger a r a s i m e s m o p o r p ro p u l s ã o g a s o s a , invertendo-se todo na saída do jato pelo orifício anal e, com as tripas no lugar do cérebro, julgasse por isso ver o mundo às avessas. Opinião por opinião, deixo também registrada aqui a minha sobre o tal de minhocarta. Se ele dissesse ou publicasse de um filho meu o que publicou e disse do filho do Diogo Mainardi, eu só não quebraria a cabeça do desgraçado a pauladas caso não conseguisse distingui-la do rabo. Neste último caso, que pelo que li da sua autoria é o mais provável, meterlhe-ia um rojão aceso com o cano para dentro e daria o problema por resolvido sem maiores discussões. Mesmo no auge da fúria, sou um sujeito educadíssimo.

Diário do Comércio 23/11/2006

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Experimento sociológico

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maioria dos cientistas sociais não se dedica a outra coisa senão a explicar os acontecimentos como efeitos de "causas" impessoais e anônimas, como por exemplo a "luta de classes" (com todas as variações aí introduzidas pela moda e pelas conveniências táticas), escamoteando a ação concreta dos indivíduos e grupos que dirigem o processo. Tudo aí parece derivar de estruturas, de leis, de estatísticas, reduzindo-se os agentes reais a meros instrumentos, quase sempre inconscientes, de forças coletivas que os transcendem imensuravelmente. A principal utilidade dessa construção fantasiosa é encobrir sob um manto de invisibilidade a força dos próprios cientistas sociais enquanto "agentes de transformação", bem como a dos grupos e entidades que lhes dão sustentação editorial e financeira. Os exemplos sucedem-se a cada semana, mas tornam-se mais enfáticos nos momentos de confusão e pânico, quando essas criaturas das trevas emergem de seus sepulcros acadêmicos para vir explicar ao mundo que não há nada de novo sob o Sol, que está tudo sob o controle infalível da ciência que professam. Assim, diante do estado insurrecional triunfante produzido em São Paulo por uma iniciativa estratégica bem articulada entre o governo brasileiro e três organizações milionárias, PCC, MST e FARC, o sociólogo francês Loïc Wacquant, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, foi convocado às pressas pela Folha de S. Paulo do dia 15 para acusar os culpados de sempre e ajudar as vítimas a não enxergar os agentes efetivos por trás do processo. A principal glória curricular do prof. Wacquant é ser autor de dois livros que explicam a criminalidade como efeito da guerra dos ricos contra os pobrezinhos e ter recebido, em função de suas obras, um prêmio da paupérrima John D. & Catherine T. MacArthur Foundation, badalado como "o prêmio dos gênios". Felizmente, a ciência social às vezes nos fornece o antídoto à sua própria vigarice. No caso, o antídoto é o "experimento imaginário" sugerido por Max Weber para comparar a importância relativa de vários fatores causais numa dada situação. Trata-se de fazer abstração mental de determinado fator e averiguar se, sem ele, os acontecimentos teriam sido possíveis. Suponhamos a miséria e a desigualdade. Elas estão presentes por igual em sociedades assoladas pela violência criminosa e entre povos mais pacíficos como os indianos e os romenos. Mutatis mutandis, a criminalidade no Brasil não se expandiu nas áreas mais pobres, mas justamente naquelas que, ao longo das últimas décadas, passaram da miséria

L.C. Leite/Folha Imagem

absoluta a um padrão de vida que, na Índia, seria considerado de classe média, como por exemplo as favelas cariocas. Omitida a comparação, porém, restam dentro de cada área isolada sinais aparentes em quantidade bastante para manter viva a impressão de que o crime é efeito da miséria. Acoplada a outro topos da retórica esquerdista, o de que a miséria é causada pelo imperialismo americano, essa crença tem por efeito despertar o ódio aos EUA e fomentar esperanças messiânicas numa nova ordem internacional paradisíaca, a ser instaurada sob os auspícios da ONU, da China e da Rússia. Para a realização desse objetivo trabalham incansavelmente várias fundações bilionárias, entre as quais Rockefeller, Carnegie, Soros e, é claro, MacArthur. Seus esforços nesse sentido já foram bem documentados meio século atrás por uma comissão do Congresso americano (v. René A. Wormser,


Na escala individual, a pobreza só pode ser justificação direta e determinante do crime em exemplos excepcionais e raros

Foundations: Their Power and Influence, New York, Devin-Adair, 1958) e desde então não fizeram senão multiplicar-se em abrangência e quantidade de recursos, incluindo dotações de dinheiro do próprio governo de Washington, que essas entidades sugam e utilizam para seus próprios fins (de modo que esse governo acaba aparecendo como o culpado do que fazem contra ele). Premiar uns quantos "gênios" que ajudem a revestir de honorabilidade científica a trapaça essencial em que se assenta a operação é a parte menos dispendiosa do orçamento. O grosso do dinheiro vai para fomentar diretamente movimentos subversivos e organizações próterroristas (v. a estrutura da rede em www.discoverthenetwork.com). Se, de acordo com o experimento weberiano, abstrairmos do quadro presente a atuação dessas fundações, o resultado será simples-

mente que a esquerda revolucionária do Terceiro Mundo não teria podido continuar a existir e prosperar depois da queda da URSS e, portanto, a utilização do crime como instrumento da subversão organizada, que é o seu principal modus operandi na última década, se tornaria inviável. O banditismo, assim, cresceu junto com o prestígio oficial da tese mesma que o explica pela luta de classes. Alegando razões fundadas nessa teoria, o prof. Wacquant prevê um aumento da violência no Brasil. Mas essas razões são desnecessárias. A violência crescerá junto com o número de idiotas que acreditam no prof. Wacquant. Se os praticantes da ciência wacquântica fossem sérios, estudariam um pouco de lógica da investigação científica e saberiam que nenhuma

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A correlação entre pobreza e crime é uma fraude, um sofisma estatístico da espécie mais intoleravelmente suína que se pode imaginar

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correlação causal (entre pobreza e crime ou entre qualquer coisa e qualquer outra) pode ser generalizada para um grupo abrangente de casos sem que esteja muito bem provada ao menos em alguns deles individualmente. Ora, na escala individual a pobreza só pode ser justificação direta e determinante do crime em exemplos excepcionais e raros - tão excepcionais e raros, na verdade, que em todo país civilizado a lei os isenta da qualificação mesma de crimes. São os chamados "crimes famélicos" - o desnutrido que rouba um frango, ou o pai sem tostão que furta um remédio para dar ao filho doente. Em todos os demais casos, a pobreza, se está presente, é um elemento motivacional que, para produzir o crime, tem de se combinar com uma multidão de outros, de ordem cultural e psicológica, entre os quais, é claro, a persuasão pessoal de que delinqüir é a coisa mais vantajosa a fazer nas circunstâncias dadas. Quando o hábito da delinqüência se espalha rapidamente numa ampla faixa populacional, é claro que, antes dele, essa persuasão se tornou crença geral nesse meio, reforçando-se à medida que as vantagens esperadas eram confirmadas pela experiência e pelo falatório. Ora, é de conhecimento público que, entre a mesma população pobre, por exemplo das favelas cariocas ou da periferia paulistana, duas crenças opostas se disseminaram concorrentemente nas últimas três décadas: de um lado, o apelo do crime; de outro, a fé evangélica. Numa população uniformemente pobre, o número de evangélicos praticantes que delinqüem é irrisório. Basta esse fato para provar que a correlação entre pobreza e crime é uma fraude, um sofisma estatístico da espécie mais intoleravelmente suína que se pode imaginar. Nenhuma ação humana é determinada diretamente pela situação econômica, mas pela interpretação que o agente faz dela, interpretação que depende de crenças e valores. Estes, por sua vez, vêm da cultura em torno, cujos agentes criadores pertencem maciçamente à camada letrada, como por exemplo os bispos evangélicos e os cientistas sociais. Os bispos ensinam que, mesmo para o pobre, o crime é um pecado. Os cientistas sociais, que os criminosos, agindo em razão da pobreza, são sempre menos condenáveis do que os ricos e capitalistas que (também por uma correlação geral mágica) criaram a pobreza e são por isso os verdadeiros culpados de todos os crimes. Essas duas crenças disputam a alma da população pobre. Não é preciso dizer qual delas estimula à vida honesta, qual à prática do crime. Nos bairros mais miseráveis e desassistidos, qualquer um pode fazer esta observação direta e simples: as pessoas de bem repetem o discurso dos bispos,

os meliantes o dos cientistas sociais (do sr. Marcola nem preciso dizer nada, já que ele próprio é meio cientista social). Quando, do alto das cátedras, esses senhores pregam a doutrina de que a pobreza produz o crime, não estão cometendo um inocente erro de diagnóstico. Estão ocultando, com maior ou menor consciência, a colaboração ativa que eles próprios, por meio dessa mesma doutrina, dão ao crescimento irrefreado da criminalidade. E, quando são premiados por uma organização ostensivamente interessada em disseminar a subversão, como é o caso notório da Fundação MacArthur, eu seria o último a negar que mereceram o prêmio. Se, deixando de lado as generalizações etéreas, nos atemos à seqüência real dos fatos, a ordem temporal de produção dos acontecimentos da semana passada aparece com o seguinte desenho:

Desde a década de 30, atendendo a uma ordem de Stalin, a intelectualidade esquerdista mundial, onde há mais cientistas sociais per capita do que lobos numa alcatéia, se dedicou ativamente a infundir em todas as patologias sociais, como o crime e o racismo, a substância universalmente explicativa da luta de classes. O esforço dos teóricos foi aí secundado por uma multidão inumerável de romances, filmes, peças de teatro e canções populares que faziam a idéia penetrar profundamente no imaginário popular ao ponto de se tornar um dogma inabalável. Nos países do Terceiro Mundo, justamente graças à profusão de patologias sociais existentes, essa doutrina se impregnou com aderência maior ainda, tornando-se o tema dominante, se não único, de várias culturas nacionais, entre as quais a brasileira (dediquei a esse tema uma série de artigos publicados em 1994 sob o título "Bandidos e letrados").

Quando o ambiente cultural estava suficientemente preparado, a transformação do banditismo em instrumento da luta de classes revolucionária passou da teoria à prática. No Brasil, especialmente, o empenho organizado dos militantes de esquerda para arregimentar a serviço da subversão as gangues de delinqüentes já é um fato abundantemente documentado desde a década de 60. Da esquerda o banditismo absorveu não somente a doutrina e o discurso, mas também as técnicas de guerrilha urbana que empregou, por exemplo, no movimento insurrecional da semana passada. O contato entre as gangues e os grupos terroristas intensificou-se ao ponto de tornar-


se institucional. A presença de técnicos das FARC e das organizações terroristas islâmicas em vários grupos criminosos do Brasil já se tornou tão freqüente que não suscita mais nenhuma reação de escândalo. Acostumamonos a isso como a um dado da natureza.

Quando a esquerda latino-americana, em 1990, passou por um formidável upgrade com a fundação do Foro de São Paulo, as organizações de narcotraficantes, seqüestradores e assaltantes acompanharam-na na sua ascensão social, assentando-se ao lado de partidos legais como o PT e o PC do B nas assembléias do Foro, coordenação estratégica do movimento comunista latino-americano. Desde então, todo empreendimento subversivo de larga escala, no continente, é realizado sob a supervisão ao menos indireta do Foro de São Paulo. Não há mais iniciativas isoladas: o banditismo avulso vai sendo sepultado na memória coletiva como um resíduo de eras extintas. Por toda a parte o que se vê é integração, conexão, unidade ideológica e estratégica.

Comerciantes de armas relatam que viram policiais saírem de suas lojas chorando, conscientes de que estavam condenados à morte sem apelação.

Como fundador e principal líder do Foro de São Paulo, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva sempre esteve muito bem informado do grau de organização que seus colegas de militância haviam conseguido transmitir aos grupos de delinqüentes, nas cadeias ou fora delas. Mais informado ainda encontrava-se esse cidadão pelo fato de ser presidente da República, tendo sob seu serviço direto os órgãos de inteligência e a Polícia Federal, além, é claro, da figura insubstituível do seu ministro da Justiça, cuja convivência íntima com os líderes maiores do banditismo nacional tem representado, para ele, mais que um estilo de vida, um meio de próspera subsistência.

Aqueles que acima da suspeita racional coloquem a crença dogmática na idoneidade do governo petista podem apostar numa conjunção fortuita de fatores, na santa e pura coincidência. Eu é que não.

Em vista disso, é absolutamente impossível que essas duas excelências ignorassem a preparação do mais vasto movimento insurrecional já planejado neste país no último meio século, e que, portanto, fosse com cândida inocência e desconhecimento das conseqüências que ambas vissem entrar em ação o indulto que colocou na rua, livres, armados e bem articulados, doze mil delinqüentes, entre os quais os autores da carnificina.

Mais impossível ainda é que os excelentíssimos ignorassem o detalhe mais lindamente perverso da situação aí gerada. Todo mundo sabe que, neste país, os policiais recebem uma quantidade irrisória de munições, tendo de

dispender do próprio bolso para garantir-se em situações de risco de vida. Ao ver-se acossados, nas ruas, nos batalhões e nos postos, por inimigos decididos a tudo e incomparavelmente mais armados e municiados, os policiais paulistas, naturalmente, correram às lojas de armamentos para trocar o leite das crianças por meios elementares de defesa. Com enorme surpresa, descobriram que um determinado item da lei do desarmamento, que até então jazia inerte num papel, tinha acabado de entrar em vigor: não podiam comprar munição nenhuma sem autorização escrita da Polícia Federal. Comerciantes de armas relatam que viram policiais saírem de suas lojas chorando, conscientes de que estavam condenados à morte sem apelação. Se me disserem que o sr. ministro da Justiça ignorava essa armadilha, responderei então que ele é o mais estúpido incompetente que já passou pelo seu cargo, já que a entidade encarregada de fornecer as autorizações repentinamente exigidas e faltantes está sob o seu comando direto. Mas somente um país muito louco, muito alienado, mantém nesse cargo, numa hora dessas, o advogado pessoal do próprio chefe da inssurreição. Como defensor de Marcola, o sr. Márcio Thomaz Bastos tem confiabilidade zero até mesmo para dar uma opinião imparcial quanto aos acontecimentos da semana passada, quanto mais para reter em suas mãos, com avareza assassina, os meios de defesa que teriam podido salvar centenas de pessoas.

Diário do Comércio 22/05/2006

P.S.- A situação de total desamparo em que o governo brasileiro deixa os policiais, entregando-os à mercê dos criminosos, já é um fato oficialmente reconhecido pela justiça norte-americana. No fim de abril, um tribunal da Flórida concedeu asilo político a um policial de Minas Gerais por reconhecer que, após matar em tiroteio um importante líder do narcotráfico local, o infeliz estava tão desguarnecido quanto um pato de plástico num estande de tiro. Voltarei ao assunto num próximo artigo. Como a promotoria abdicou de recorrer da sentença, a decisão está incorporada à jurisprudência americana e valerá para os casos subseqüentes. Os policiais brasileiros propositadamente deixados sem munição na hora do aperto já não podem dizer que não têm a quem recorrer: esqueçam o sr. Márcio Thomaz Bastos, peçam socorro à justiça de um país onde existe justiça.

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O dever que nos espera

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os últimos anos chegaram ao meu conhecimento várias dúzias de projetos de Estado democrático liberal, de Constituição federalista, de reforma fiscal e judiciária, etc. etc. Por um vício herdado da tradição bacharelesca, os brasileiros adoram as definições doutrinais, sobretudo de coisas que não existem. Liberais e conservadores não escapam à regra. Quando sonham com um futuro melhor, buscam logo transmutá-lo num código e recheá-lo de comentários eruditos, esmiuçando-lhe as mais delicadas nuances conceptuais e fundamentando sua construção ideal em citações de John Locke, Friedrich Hayek, Hannah Arendt e não sei mais quantos luminares do pensamento democrático. Tão intensamente se entregam a esses respeitáveis afazeres, que se esquecem de pensar em três detalhes. Primeiro: Como vamos tirar do caminho os malditos comunistas que ocuparam o espaço inteiro e nos separam do belo ideal a que aspiramos? Segundo: Supondo-se que esse obstáculo já tivesse sido removido, para que serviria ter uma concepção prontinha do Estado democrático, se o próprio exercício da liberdade haveria de produzir, na prática diária, soluções novas e mais apropriadas à situação? Terceiro: Os homens podem matar e morrer por um sonho, mas não o farão por um código. Reduzido à formulação racional de uma proposta jurídica explícita, o ideal já não impele à ação, mas à contradição e ao debate. Quanto mais detalhada a proposta, mais discussão e menos ação. Enquanto os liberais e conservadores brasileiros criam doutrinas, os comunistas dominam o país e aumentam dia a dia o seu poder. E fazem isso sem nenhuma unidade doutrinal, antes curtindo gostosamente a nebulosidade e

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Enquanto os liberais e conservadores brasileiros criam doutrinas, os comunistas dominam o país e aumentam dia a dia o seu poder

a indefinição cuja fecundidade estratégica e tática aprenderam com Antonio Gramsci. Por isso é que, se me pedem uma definição de democracia liberal, saco do meu revólver. Não digo isso por ser um praticista avesso a teorias. Adoro teorias, mas não quando se transformam em fetiches. Teorias só são boas quando se contentam em ser expressões provisórias da realidade apreendida na experiência. E, como estudei um pouquinho de Hegel, sei que, no domínio das coisas humanas, o sentido real de um conceito não está no significado nominal da sua expressão verbal: está naquilo que se opõe a ele, não enquanto idéia, mas enquanto realidade. Para sabermos o que pode e deve ser a democracia liberal no Brasil, não temos de formulá-la doutrinalmente, mas de olhar em torno e entender as causas que levaram ao triunfo do seu oposto. Da própria dialética histórica que produziu a hegemonia esquerdista é que temos de obter o sentido e a direção dos nossos esforços. Essa dialética mostra, desde logo, que a mixórdia doutrinal da esquerda foi, de maneira aparentemente paradoxal, um dos segredos da sua vitória. Diluindo numa pasta confusa a antiga ideologia monolítica dos partidos comunistas, a esquerda continental ampliou formidavelmente sua base de apoio e obteve os meios de sugar o prestígio dos ideais democráticos, dos valores morais e até do cristianismo. Esse inimigo informe e onipresente é o avesso daquilo que queremos. Invertê-lo não é fácil, mas é o único meio de vislumbrar um futuro democrático para o Brasil. E isso é uma questão de estratégia e tática, não de doutrina. Não podemos esquecer, desde logo, que a


Veja mais sobre Gramsci em www.dcomercio.com.br/especiais/digesto/gramsci_esp/08.htm

base da hegemonia comunista neste país foi construída sobre o prestígio mágico de umas quantas dezenas de intelectuais de esquerda. Digo "mágico" porque há algo de feitiçaria no modo como tantos charlatões semicultos puderam adquirir a autoridade quase sacerdotal que os transformou em juízes supremos da moralidade pública. Sem destruir primeiro o encanto desses ídolos de papier mâché, nenhum futuro terá a democracia liberal no Brasil. Ele foi o cimento psicológico que deu solidez ao edifício do poder petista e tornou possível que um bando de delinqüentes dominasse o país em nome da moral. Mais urgente do que definir a democracia liberal é destruir um a um os falsos prestígios que bloqueiam o acesso da juventude universitária ao conhecimento dela. Não falo propriamente de "guerra cultural". Guerra cultural é luta de idéias. Desmascarar vigaristas é algo ao mesmo tempo mais simples e mais dificultoso que uma luta de idéias. Trata-se de contestar, na base, qualquer pretensão de autoridade intelectual dos usurpadores e charlatões que dominaram o universo cultural brasileiro. Para isso não é preciso expor as nossas idéias nem discutir as deles. É preciso apenas demonstrar que não têm idéia nenhuma, apenas "ideologia" no sentido antigo e pejorativo do termo, isto é, um "vestido de idéias" (Ideenkleid) encobrindo o desejo de poder e os mais sórdidos interesses grupais. Desprovida de seus ídolos acadêmicos, a juventude sairá em busca de novos pólos de orientação. Esse sim será o momento de expor e discutir doutrinas. O segundo pilar de sustentação da hegemonia esquerdista é o controle da informação. O povo brasileiro pouco ou nada sabe do Foro de São Paulo, da estratégia criminosa continental, dos nexos secretos entre narcotráfico, seqüestros, assassinatos, revolução e petróleo, sem cujo conhecimento é impossível entender o que se passa hoje. Por exemplo, a recente denúncia dos crimes petistas pôde ser facilmente reaproveitada em prol do mito da superioridade moral esquerdista mediante o artifício de imputar as culpas a "um grupo", encobrindo a articulação maior que o colocou no poder e que, expurgada de dois ou três ladrões de galinha mais notórios, continuará a operar com redobrado prestígio moral. Estudar, conhecer e divulgar o alcance e o funcionamento do esquema inteiro é muito mais urgente para os liberais e conservadores do que definir e expor suas doutrinas. A difusão de idéias pressupõe um ambiente de clareza e sinceridade, que não existe nas presentes condições de ocultação

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Para sabermos o que deve ser a democracia liberal no Brasil, não temos de formulála, mas de olhar em torno e entender as causas que levaram ao triunfo do seu oposto

geral e mentiras cruzadas. É preciso antes limpar a atmosfera, diluir a névoa infernal que cega e estupidifica a audiência. O terceiro sustentáculo do império do crime é a rede de apoios que a ignomínia esquerdista conseguiu tecer entre banqueiros, empresários, investidores da bolsa e potentados da mídia, na base de interesses imediatistas em nome dos quais essa gente vende a honra que nunca teve e a pátria que ainda tem. A extensão dessa rede é quase impossível de calcular. Um indício eloqüente obtém-se pelas reações de algumas dessas criaturas ao ato de guerra empreendido pelo sr. Evo "Imorales" contra o patrimônio nacional. Desculpam-no e celebram-no sob os pretextos mais fúteis, postiços e absurdos. Querem até que tenhamos peninha de um "povo sofrido", como se a massa de cocaleros não vivesse, há décadas, de espalhar o vício e a morte entre os jovens do continente. Um pai que, na miséria, prostitui suas filhas, merece mais respeito do que aquele que sobrevive de desgraçar os filhos dos outros. Cocaína é isso, não é outra coisa. Evo "Imorales" é isso, não é outra coisa. A economia boliviana é isso, não é outra coisa. E se precisam tanto de petróleo, não é para encher o tanque dos carros que não têm: é porque daí sai o único solvente apropriado para o pro-

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A mixórdia doutrinal da esquerda foi, de maneira aparentemente paradoxal, um dos segredos da sua vitória

Sustentáculos do império do crime são os apoios que a ignomínia esquerdista conseguiu tecer entre banqueiros, empresários, investidores da bolsa e potentados da mídia (...)

Diário do Comércio 15/05/2006

cessamento da cocaína. Os poços brasileiros vão servir é para fazer um upgrade na indústria boliviana da morte. Muita gente sabe disso. Mas, se pedimos o apoio de certos donos do capital financeiro à nossa luta contra o maior crime de que o Brasil foi vítima nas últimas décadas, eles nos respondem que estão contentinhos, que nunca ganharam tanto dinheiro, que o governo Lula tem um sex appeal irresistível. Isso é um bando de criminosos tão abominável quanto a turma do Mensalão. Identificá-los e desmascará-los é uma providência sem a qual nenhuma esperança sensata se pode depositar na futura democracia liberal brasileira. É, ademais, tarefa pedagógica, que nos esclarecerá, no curso da sua execução, sobre as estruturas de poder em que se assenta a pax luliana, o sorridente império do mal neste país. É derrubando os obstáculos que a democracia liberal irá tomando forma ante os nossos olhos. Essas são as três primeiras etapas de uma autodefinição da democracia liberal no Brasil. Definição que não deve surgir de especulações teóricas prévias, mas da própria prática das virtudes essenciais do debate democrático: transparência, sinceridade e idoneidade. É preciso por em ação estas armas temíveis. Elas nos ensinarão - a nós e a nossos ouvintes - o que é a democracia liberal. Cortar as línguas dos falsos profetas, dissipar a treva que espalharam com suas bocas mentirosas, destruir as muralhas da antidemocracia que nos oprime - estas são as tarefas primordiais da intelectualidade conservadora e liberal no Brasil. Para exercê-las, não é preciso ter nenhuma definição clara e final da fórmula democrática com que sonhamos. É preciso apenas ter vivo nos nossos corações o ideal da liberdade e do império das leis. Esse ideal pode continuar vago e impreciso durante todo o período inicial da luta, que equivale àquilo que os antigos retóricos denominavam a pars destruens, a parte destrutiva do serviço, o longo e dificultoso "trabalho do negativo", como o chamava Hegel: os ideais se esclarecerão e se transformarão em fórmulas práticas no próprio curso do combate. Raciocinar na pura atmosfera abstrata e rarefeita das formulações doutrinais é para acadêmicos e beletristas. Tanto o filósofo genuíno quanto o líder político sério raciocinam, isto sim, desde dentro do próprio fluxo da realidade, agindo e experimentando, aprendendo com a experiência e fazendo a cada momento os ajustes necessários a manter a intuição clara do rumo das coisas.


A direita autocastrada

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uando me perguntam como quebrar a hegemonia esquerdista, a primeira fórmula que me ocorre é a do poeta austríaco Hugo von Hofmannsthal: "Nada se torna realidade na política de um país se antes não está presente, como espírito, na sua literatura." A palavra "literatura", aí, tem a acepção ampla de cultura superior escrita. Criem uma cultura superior na qual predominem os valores liberais e conservadores, e a esquerda não terá mais chance na política. Este resultado não se seguirá automaticamente, é claro, mas sem essa limpeza prévia do terreno mental nenhuma iniciativa política poderá prosperar contra o esquerdismo triunfante e monopolístico. Entrem numa livraria qualquer e verão nas prateleiras a demonstração clara do que estou dizendo: a ascensão do império petista foi precedida de meio século de ocupação do espaço cultural. Antes de o Estado ser engolido pelo PT, impregnaram-se de esquerdismo militante as idéias, os juízos de valor, as palavras, os sentimentos, até as reações automáticas de aplauso e rejeição. A esquerda dominou de tal modo o imaginário nacional que até quem a detesta não ousa criticá-la senão nos termos dela, como se fosse possível derrotar politicamente o inimigo fortalecendo o controle ideológico que ele exerce sobre a sociedade. Políticos tarimbados como os srs. Marco Maciel, José Sarney ou Cláudio Lembo mimetizam o discurso politicamente correto, esperando atenuar sua imagem de "direitistas" e só conseguindo com isso atrair, junto com o ódio usual, uma boa dose de desprezo. Essa falsa esperteza, tão mesquinha e provinciana quanto suicida, é o máximo de inteligência estratégica que um exame histológico atento revelará nos cérebros dos políticos "de direita" neste país. Com a colaboração prestimosa e servil dessas criaturas, os critérios e juízos de valor esquerdistas se impregnaram tão profundamente na mentalidade das classes falantes que já não são reconhecidos como tais:

tornaram-se dogmas do senso comum. Nessa atmosfera, não é de estranhar que os eventuais opositores do governo já nem mesmo consigam imaginar o que é uma luta política, mas entendam sob esse termo a mera concorrência eleitoral. Essa é a diferença, no Brasil, entre a esquerda e a "direita": a primeira quer o poder, a segunda quer apenas mandatos. Mandatos conquistam-se nas eleições; a luta pelo poder abrange um território muito mais amplo. Eleição não é política, é o resultado de uma política preexistente que começa no fundo anônimo e obscuro da sociedade, naquela camada quase invisível onde a hegemonia cultural se traduz como influência sutil exercida sobre as emoções básicas da população. A esquerda sabe disso, a "direita" não. Os

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partidos de esquerda marcam sua presença numa variedade impressionante de campos da vida social - escolas, sindicatos, campanhas humanitárias, clínicas de psicoterapia e aconselhamento, telas de cinema, exposições de arte, novelas, programas culturais e educativos da TV, o diabo. A direita só é visível nos comitês eleitorais, às vésperas da votação. Isso é assim já faz muitos anos. Quem quer que tivesse observado esse fenômeno, como eu observei, teria chegado, como cheguei há mais de uma década, à conclusão de que a total esquerdização da vida política nacional era não só previsível como inevitável a prazo mais ou menos curto. Os inumeráveis idiotas - políticos, empresários, intelectuais, oficiais militares - a quem expus essa conclusão em tempo de reverter o processo, e que riram dela do alto de sua ignorância presunçosa, olhavam apenas o panorama eleitoral e, vendo ali a vitória fácil de um Collor, de um Fernando Henri-

A ascensão do império petista foi precedida de meio século de ocupação do espaço cultural

Essa é a diferença, no Brasil, entre a esquerda e a "direita": a primeira quer o poder, a segunda quer apenas mandatos

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que, proclamavam: a esquerda jamais dominará este país. Ainda às vésperas das eleições de 2002, algumas dúzias desses sábios, selecionados entre brasileiros e brazilianists, consultados pelo Los Angeles Times, asseguravam que Lula não teria mais de trinta por cento dos votos. Não entendiam que os resultados das eleições anteriores refletiam apenas o conservadorismo residual da população brasileira, o qual, desprovido de canais de expressão cultural e partidária, acabaria por ceder terreno à invasão esquerdista. Tanto mais que esta última tomava o cuidado de não se apresentar ostensivamente como tal, camuflando-se de "populismo" ideologicamente neutro e ludibriando até observadores estrangeiros experientes como os dois Vargas Llosas, Mário e Álvaro, pai e filho. Chamemos de direita, para fins de raciocínio, o conjunto heterogêneo e inorganizado dos que não querem viver sob o socialismo. Eles constituem, segundo uma pesquisa da Folha de S. Paulo, 47 por cento da população brasileira, face a 30 por cento de esquerdistas professos. Os restantes 23 por centro definem-se como centristas, com a ressalva de que aquilo que imaginam como centrismo inclui o apoio ostensivo a propostas conservadoras em matéria de moral e segurança pública. Com ou sem nome, a direita é 70 por cento dos brasileiros. Um programa político ostensivamente conservador teria portanto sucesso eleitoral garantido. Mas, como esse programa não existe - e se tentasse existir teria de vencer em primeiro lugar o desafio de criar uma linguagem própria num panorama semântico já totalmente impregnado de esquerdismo -, o resultado é que a população conservadora acaba votando em candidatos de esquerda nos quais não percebe esquerdismo nenhum mas apenas as qualidades externas mais afins à exigência conservadora, a começar, é claro, pela honestidade e honradez. Mas que honestidade e honradez pode haver em políticos que passam o tempo todo tentando parecer o que não são? E qual político brasileiro, de esquerda ou "direita", se ocupa hoje de alguma coisa que não seja precisamente isso? Assim, toda a política neste país tornou-se um sistema de armadilhas e auto-enganos: o eleitorado vota maciçamente em candidatos que representam o contrário simétrico das suas aspirações, os políticos que poderiam representar essas aspirações recusam-se obstinadamente a fazê-lo e se apegam à busca de uma sobrevivência degradante por meio da


parasitagem servil do discurso adversário. É tudo fingimento, hipocrisia, teatro, camuflagem, desconversa. Nenhuma discussão objetiva do que quer que seja é possível nessas condições. Os tais "problemas nacionais" podem esperar sentados: nenhuma discussão política, pelos próximos anos, tocará em nada que tenha algo a ver com a realidade. Nossa única esperança de um despertar coletivo é o programa comunista do Foro de São Paulo alcançar sucesso total e, tranqüilizado pela ausência de oposições, arrancar finalmente a máscara e dizer a que veio. Aí a platéia chocada perceberá que, por décadas, viveu entre as névoas de uma fantasia entorpecente. Mas essa tomada de consciência tardia já não servirá para nada, exceto para produzir lágrimas inúteis em torno da vida que poderia ter sido e que não foi. Entre os homens da "direita", muitos teimaram em recusar os meus diagnósticos, ao longo dos anos, sob o pretexto de que eu era demasiado pessimista. Nem percebiam o quanto sua resposta provava o que eu dizia. Pessimismo e otimismo são atitudes da mente, são estados subjetivos. Não têm nada a ver com a situação externa, com a realidade das coisas. É possível ser pessimista diante de uma situação objetivamente positiva e otimista quando tudo está perdido. Quando uma descrição do estado de coisas é rejeitada por ser "pessimista", é claro que o ouvinte está respondendo na clave dos seus estados emocionais e não no da percepção da realidade. Ele não está impugnando um diagnóstico: está reagindo contra os sentimentos desagradáveis que ele lhe infunde. É uma mera reação de autodefesa psicológica, uma autovacina contra a depressão

Diário do Comércio 28/08/2006

O único resultado objetivo alcançado pelas denúncias de corrupção no governo foi a ascensão da sra. Heloísa Helena nas pesquisas

pressentida. Só reage assim quem está fragilizado demais para abstrair-se de estados emocionais e concentrar a atenção na realidade. Os fortes não têm medo de encarar o pior: os fracos fogem dele porque sua mera visão os esmaga. Aquelas afetações de otimismo, fingindo desprezo superior ante as minhas análises deprimentes, não eram senão sintomas de debilidade terminal. A liderança "direitista" já não tinha força nem para admitir sua própria fraqueza. Um pouco mais adiante, ela agravou mais ainda a sua situação, quando, após a revelação dos crimes do PT, perdeu a oportunidade de denunciar toda a trama comunista do Foro de São Paulo e, por covardia e comodismo, se limitou a críticas moralistas genéricas e sem conteúdo ideológico. Estas podiam facilmente ser apropriadas pela esquerda, e de fato o foram. Rapidamente alguns ratos abandonaram o navio petista e trataram de tirar proveito do naufrágio, sendo ajudados nisso pela recusa obstinada da "direita" de falar de assuntos politicamente incorretos O único resultado objetivo alcançado pelas denúncias de corrupção no governo foi a ascensão da sra. Heloísa Helena nas pesquisas eleitorais. Agradeçam esse resultado à autocastração voluntária da liderança "direitista".

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Automacumba semântica

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cabo de ler a entrevista do sr. Rubens Requeijão na renir forças num vasto front anti-americano, o termo é perfeivista Caros Umbigos, e lá vem de novo esse personatamente apropriado. gem de comédia da Atlântida tentando assustar Só resta perguntar se o objeto assim concebido pode existir criancinhas com o fantasma do "neoliberalismo" - o efetivamente ou se, ao contrário, o impacto persuasivo da paculpado de todos os males. lavra não reside precisamente no fato de que ela junta numa Mas é só um exemplo entre infinitos. A facilidade, a desensíntese ideal elementos que, na realidade, só podem existir covoltura, a segurança com que no Brasil se usa esse termo, como mo entidades separadas, heterogêneas ou antagônicas. Um se designasse uma entidade patente e arquiconhecida, é para breve exame tirará isso a limpo: mim o sinal mais evidente da psicose nacional, do completo Globalismo não é simples abertura de mercados: é introdução divórcio brasileiro entre linguagem e realidade. de regulamentações em escala mundial que transferem a soÉ deprimente observar como os autoproclamados repreberania das nações para organismos internacionais. Nenhum sentantes do "pensamento crítico", incapazes da mais elemenapóstolo da economia de mercado é sonso o bastante para não tar análise crítica de seu próprio discurso, se deixam hipnotiperceber, hoje em dia, que a abertura das fronteiras arrisca não zar pelas palavras que empregam. Não existe nenhum "penproduzir um paraíso de liberdade econômica, e sim a proliferação samento crítico" se você continua preso numa malha de comde legislações e controles em escala global - o Leviatã dos leviatãs. pactados verbais, impotente para descascar suas várias A incompatibilidade lógica traduz-se, no plano da ação política, camadas de significado e confrontá-las com os dados de reacomo briga de foice entre os liberais clássicos e os lidade que presumidamente elas designam. Só planejadores-legisladores econômicos globais. o que existe, nessas condições, é pensamento Nos EUA, isso é um fato do dia-a-dia. Mas, como mágico, é automacumba semântica. no Brasil e em outros países da América Latina a "Neoliberalismo", no vocabulário usual da O termo mídia intoxicada de lendas esquerdistas jamais esquerda - que no Brasil de hoje é o da mídia e da “neolibemenciona esse fato, a união harmônica e indissointelectualidade inteiras -, é uma corrente de ralismo” foi lúvel de liberalismo clássico e globalismo presopinião que favorece (a) a livre-empresa contra inventado para suposta no conceito de "neoliberalismo" parece a intervenção estatal na economia, (b) o globaenganar os não só viável como realmente existente. Rarissilismo em detrimento dos interesses nacionais e nacionalistas, mamente encontrei entre brasileiros um colunis(c) a moral judaico-cristã tradicional em oposita de mídia, cientista social, empresário, analista ção aos princípios "politicamente corretos", camuflando a econômico ou estrategista militar que tivesse albuscando, por esses três meios, (d) ampliar a healiança discreta guma consciência desse engano monumental. gemonia norte-americana no mundo em prejuíentre a esquerda zo dos interesses das nações pobres. Com essas latino-americana Um dos temas mais discutidos nos EUA é a características, o neoliberalismo aparece como e os poderes contradição aparentemente insolúvel entre (e) sinônimo da "direita", dando-se por pressuglobais abertura econômica e segurança nacional. Os posto que (f) é a ideologia dominante no mundo chineses, por exemplo, têm alguma chance de dos negócios e entre os políticos antipetistas e vencer a Chevron na concorrência para a comanti-esquerdistas em geral. pra da Unocal (a nona maior companhia ameDado o objeto, só resta tomar posição diante ricana de petróleo), mas, se isso acontecer, as dele: a primeira coisa que no Brasil se espera de conseqüências estratégico-militares podem ser um político, de um jornalista, de um formador Não existe desastrosas. A maior parte dos poços da Unode opinião, é que se defina - ou consinta em ser "pensacal está na Ásia, mais perto da China que dos definido pelos outros - a favor ou contra o neomento crítico" se EUA. Se os chineses cumprirem sua ameaça de liberalismo. Tal seria a questão fundamental, o você está preso invadir Taiwan, a quem a Unocal chinesa vai supremo divisor de águas que separa não apenuma malha de fornecer combustível? A eles ou às tropas amenas duas correntes políticas, mas dois sistemas compactados ricanas, comprometidas a defender a ilha custe de valores, duas concepções da existência. o que custar? E não são só as empresas privadas A síntese dos elementos designados pela verbais, sem que, na sua ânsia de livremercadismo absoluto, junção das camadas de significado forma um confrontá-la com colocam o país em risco. O próprio governo desenho apto a despertar o ódio dos nacionaa realidade americano, semanas atrás, estava quase felistas, terceiromundistas e progressistas em chando um negócio bilionário de venda de reageral. Como slogan político criado para reu-

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Mark Weber/Corbis

tores nucleares à China, quando a Câmara dos Deputados, no último instante, vetou a brincadeira. Afinal, só um doido canta vitória comercial quando consegue bom preço na venda de armas ao inimigo que jurou matá-lo. Diante de fatos dessa envergadura - e eles são milhares -, como acreditar nos tagarelas brasileiros quando proclamam que a "idolatria do mercado" é um instrumento do poderio americano? Aqui, quem grita contra essa idolatria são precisamente os conservadores. Há pelo menos dez anos eles estrilam contra a orgia de investimentos na China, que os economicistas de plantão justificavam sob a desculpa da liberdade econômica, dotada, segundo eles, do poder

miraculoso de gerar a liberdade política. Hoje as conseqüências dessa ilusão são tão evidentes que há mesmo quem suspeite que ela foi plantada na mente dos investidores americanos com o propósito consciente de esvaziar a ideologia capitalista dos valores morais e culturais que a sustentam, reduzi-la a um triunfalismo econômico suicida e usá-la como instrumento de liquidação das defesas nacionais americanas. Se essa hipótese lhes parece demasiado assustadora para ser verdade, lembrem-se de que a abertura econômica acoplada à destruição sistemática das bases morais do americanismo foi a marca registrada da era Clinton - e ninguém aqui ignora a intensa troca de

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favores entre os Clintons e a espionagem chinesa. Como lembrou o colunista Terence P. Jeffrey no semanário Human Events - de muita influência nos círculos republicanos -, os chineses leram Clausewitz e chegaram à conclusão de que comprar certos bens de capital é também "fazer política por outros meios", isto é, guerra por outros meios.

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Se identificar o globalismo com a ambição nacional americana já é maluquice bastante, ainda mais insano é associá-lo ao conservadorismo religioso que, nos EUA, vem crescendo ano após ano. Para o automatismo mental brasileiro, nada mais óbvio e autoprobante do que essa associação. O cérebro nacional acostumou-se a saltar direto das palavras às reações emocionais que elas evocam, sem a menor necesside de referência a alguma realidade do mundo exterior. Assim, a associação verbal é infalível: religião = reacionarismo; reacionarismo = capitalismo; capitalismo = imperialismo ianque; imperialismo ianque = globalismo; globalismo = neoliberalismo; logo, a moral religiosa tradicional é um instrumento do neoliberalismo. Esse método puramente galináceo de raciocínio é hoje obrigatório em todas as universidades brasileiras, e tamanha é a sua autoridade que a simples tentação de corrigi-lo já desapareceu do fundo das almas. Deve portanto soar como um escândalo intolerável a informação que vou dar a seguir: todos os conservadores religiosos americanos - cristãos ou judeus - são, em maior ou menor medida, contra o globalismo. E são contra por um motivo muito simples: o projeto de cultura mundial administrada, que vem junto com a uniformização econômica do planeta, traz no seu bojo as sementes de uma neo-religião híbrida, meio ecológica, meio ocultista, criada em laboratório por engenheiros comportamentais da ONU (procurem saber quem é Robert Müller), e cuja implantação resultaria pura e simplesmente na destruição completa do cristianismo e do judaísmo. Não foi por coincidência que uma onda de anti-semitismo e anticristianismo se espalhou pelo planeta nas últimas décadas: ela veio por intermédio da rede global de ONGs subsidiadas pela ONU e por fundações milionárias, empenhadas na "guerra cultural" pela criação de uma civilização biônica inaceitável para toda mentalidade religiosa tradicional. Mais especialmente, o ataque cultural globalista se volta contra a cultura americana, tentando criminalizar e destruir as suas raízes judaico-cristãs e substituí-las por uma nova moral abortista e hedonista adornada pelo culto de Gaia ou fetiches similares. Nos EUA não há quem não esteja consciente de que esse é o verdadeiro divisor de águas, o verdadeiro campo de Diário do Comércio combate pelo domínio dos co25/07/2005 rações e mentes no século XXI.

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Os debates brasileiros passam a anos-luz de distância do centro dos acontecimentos.

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É insano associar o globalismo a ambição nacional americana e ao conservadorismo religioso que cresce ano após ano

Por fim, é absolutamente falso que a esquerda, no Brasil ou em qualquer outro país do continente, oponha alguma resistência ao globalismo, exceto o mínimo indispensável para fins de camuflagem. Nenhuma corrente política existe para se opor àqueles que a subsidiam. As fontes de dinheiro para a esquerda, tanto na América Latina quanto nos EUA e na Europa, são hoje bem conhecidas, e elas são precisamente as mesmas que, a pretexto de livre mercado, financiam o estabelecimento da Nova Ordem Global: as fundações Ford, Rockefeller, MacArthur e sobretudo a rede tentacular de agentes do multibilionário golpista George Soros - eis aí os grandes financiadores e protetores do chavismo, do lulismo, do fidelismo e de todas as demais patologias políticas que, numa atmosfera geral de loucuras e mentiras, tem se apossado velozmente do poder em várias nações do continente. A essas fontes capitalistas devem somar-se os agentes políticos (Partido Democrata, Diálogo Interamericano, os Clintons, os Kennedys e uma multidão de Carters) que ajudam a drenar para os mesmos destinatários o dinheiro do governo americano, principalmente as verbas da USAID. O leitor encontrará nos sites www.discoverthenetwork.org e www.activistcash.com um mapeamento bem minucioso da circulação de dinheiro entre os potentados do globalismo e as organizações que, na América Latina e em outras partes do Terceiro Mundo, fingem combatêlos. Essa elite invariavelmente toma partido da burocracia mundial quando esta fere o interesse nacional dos EUA, tal como aconteceu na guerra do Iraque, nas discussões sobre o Tratado da Lei do Mar, na introdução da moral "politicamente correta" na educação americana, etc. Financiando a esquerda do Terceiro Mundo, ela tem a seu serviço um útil instrumento para enfraquecer a resistência americana, facilitando a implantação do governo mundial que a ONU já declarou ser seu objetivo prioritário para as próximas décadas. Para isso, precisamente, serve o termo "neoliberalismo": para ludibriar nacionalistas sonsos nos países pobres, desviando suas pretensões de resistência antiglobalista para canalizá-las no sentido de um anti-americanismo despropositado que, hoje, é um dos instrumentos essenciais da ascensão da burocracia mundial. Intelectuais esquerdistas tagarelas do Terceiro Mundo são os tipos mais caricatos e desprezíveis que a humanidade já conheceu. Estão sempre dispostos a inventar belas desculpas para servir a tudo o que não presta. Quem quer que use o termo "neoliberalismo" com ares de falar a sério só pode ser um manipulador de idiotas ou um idiota manipulado. Não creio que algum dia terei interesse em saber em qual dessas duas classes se incluem o sr. Requeijão e os redatores de Caros Umbigos.


Puro teatro, nada mais

Q

uarta-feira, dia 15, a Folha de S. Paulo publicou uma entrevista minha, apresentando-me como o "decano", entre merecidíssimas aspas, de uma nova corrente política de direita que estaria surgindo no país, e convocando, naturalmente, meia dúzia de tagarelas de esquerda para sondar as causas de tão alarmante fenômeno. O fato mesmo de que ele tenha de ser explicado mostra o quanto parece anormal e surpreendente no Brasil de hoje. Sou testemunha direta e pessoal da estranheza, mista de terror e pânico, que a simples hipótese de alguma resistência, mesmo isolada, mínima e solitária, suscitava entre os esquerdistas uns anos atrás. Lembro-me perfeitamente bem da brutalidade mental psicótica com que reagiram ao meu ingresso em cena, reunindo-se instantaneamente em esquadrões de emergência para repelir o intruso. Os métodos usados revelavam a gravidade apocalíptica que enxergavam no episódio: xingar histericamente o recém-chegado, fingindo ao mesmo tempo superior desprezo olímpico; criminalizá-lo, atribuindo-lhe toda sorte de ligações sombrias com pessoas e entidades que ele ignorava por completo; acusá-lo alternadamente de ser um agente bem pago de potentados internacionais e um pé-rapado a quem ninguém jamais pagaria coisa alguma; suprimir toda menção aos seus livros e aulas de filosofia, para dar a impressão de que era um mero polemista de mídia; espalhar toda sorte de invencionices contra ele nas salas de aula, longe da possibilidade de resposta; por fim, mobilizar estudantes fanatizados para que o agredissem e matassem, e ao mesmo tempo chamá-lo de "raivoso", como se numa competição de hidrofobia eu fosse páreo para terroristas e assassinos. Tais foram os procedimentos de crítica literária usados para o meu livro O Imbecil Coletivo. Tudo isso revela até que ponto o esquerdismo era e é ainda o estado normal e obrigatório em toda a mídia, em todo o movimento editorial, devendo qualquer exceção ser denunciada como ameaça à ordem pública ou sintoma de desarranjo mental. À imagem e semelhança do que as placas nos botequins nos advertem

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quanto à condição de corintiano, o ser humano nasce, cresce, vive e morre esquerdista. Quando ele se recusa a fazer isso e já não se pode dar um sumiço no desgraçado, então é preciso chamar uma junta médica para diagnosticá-lo. Dada a situação premente, alguns dos diagnósticos assumem a forma de uma busca de culpados pelo advento de semelhante descalabro. Culpados não são difíceis de encontrar. O ambiente doméstico da esquerda tem hoje uma superpopulação de sacos de pancada. Se não fosse o "tombo ético" (sic) da administração petista, conjetura o jornal, parece que Olavo de Carvalho e quejandos jamais emergiriam das trevas do anonimato onde jaziam soterrados por um decreto da justiça cósmica. Da minha parte, jamais vi "tombo ético" algum. Originado da promiscuidade entre o movimento sindical e a pseudo-intelectualidade uspiana, o PT é filho de um vigarista com uma prostituta. Nasceu ladrão e só evoluiu nos métodos. Exemplo da conduta de seu pai é a confissão da CUT, já em 1993, de que tinha oitocentos jornalistas na sua folha de pagamentos uma compra de consciências por atacado que só encontra paralelo, talvez, no orçamento da KGB. Quanto à mamãe, tem vivido da impostura intelectual e do corporativismo mafioso da esquerda pelo menos desde os anos 50. As denúncias de corrupção grossa no PT já datam de 1990. O único resultado que produziram foi a expulsão do denunciante. Atribuir a roubalheira atual a um "tombo" é um truque de linguagem usado pelos gerenciadores de danos para limpar o passado na imagem de um presente que já não se pode salvar. Sabem que no momento perderam toda credibilidade, mas querem guardar para o futuro os dividendos de uma lenda de santidade laboriosamente construída com a ajuda dos oitocentos empregadinhos da CUT. O expediente serve também para cada um tirar o corpo fora da responsabilidade pela cria-

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bo . O Glo ivo/Ag

ção do monstro vexaminoso que é o PT no poder. Não havia nessa droga de partido um só militante ou simpatizante medianamente alfabetizado que, em 2002, ignorasse as denúncias de Paulo de Tarso Venceslau ou do irmão do prefeito Celso Daniel, nem os esforços da cúpula partidária para abafar ambos esses escândalos, esforços que, no segundo desses casos, vieram a ocorrer -- por coincidência, por pura coincidência, é claro - junto com o assassinato de seis testemunhas do processo. Se todos se recusaram a ver aí qualquer sinal de bandidagem no partido; se não só continuaram a confiar nele mas redobraram a aposta na sua idoneidade, ao ponto de fazer da eleição de Lula um acontecimento comparável ao Segundo Advento, por que foi? Só pode ter sido por uma destas duas razões: ou apegaram-se tão fanaticamente ao mito da santidade petista que mesmo fatos visíveis com os olhos da cara não podiam abalar sua fé; ou, ao contrário, sentiam perfeitamente o mau cheiro mas preferiram tampar o nariz para não perder a oportunidade de ter amigos e correligionários no poder, por mais fedorentos que fossem. Na primeira hipótese, mostraramse obstinados na credulidade até o limite da estupidez criminosa. Na segunda, provaram ser tão maldosos e vigaristas quanto qualquer José Dirceu. Em ambos os casos, desqualificaram-se completamente para qualquer ofício intelectual que se preze. Duvido que, no fundo, muito no fundo, cada um deles não saiba disso perfeitamente bem e, ao contemplar-se solitário no espelho, não se veja com orelhas de burro ou feições de vampiro. Como atenuar semelhante desconforto? Apelando, é claro, ao mesmo recurso de sempre: fingimento, pose, histrionismo. O intelectual ativista do Terceiro Mundo é, por tradição, um ator, um palhaço, um tipo caricato que, no esforço de ocultar seu próprio ridículo, se torna patético. É alguém que se alimenta da mentira e do auto-engano em doses que, para o cidadão comum, seriam letais. Para camuflar ao mesmo tempo sua própria desmoralização e, de modo geral, a debacle irreversível do pensamento de esquerda no mundo, os diagnosticadores do neodireitismo empinam o narizinho, levantam professoralmente o dedo indicador, e, ante um público que presumem ignorar tudo, imitam seus próprios trejeitos de superioridade acadêmica de outras épocas, tentando mostrar que ainda são os donos do pedaço, os juízes supremos de toda aspiração intelectual possível, imbuídos da autoridade de barrar na porta os pretendentes novatos. É claro que essa superioridade, mesmo em

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tempos passados, já era pura propaganda enganosa. O boicote geral a um Gustavo Corção ou a um Gilberto Freyre, o silêncio obsceno em torno da obra de um João Camilo de Oliveira Torres, já provavam que não havia ninguém na esquerda com cacife para discutir com qualquer dos três. Mas, não podendo arrogar-se ostensivamente uma qualidade que sabem ser duvidosa, limitam-se a dá-la como pressuposto implícito, na esperança de que seja aceita por distração. E, fazendo-se de juízes justos que só medem o similar pelo similar, tratam de ostentar desprezo à "nova direita" por meio de comparação com a "velha", proclamando que já não há na praça nenhum Mário Henrique Simonsen, nenhum Roberto Campos, nenhum José Guilherme Merquior. O grotesco da performance não tem limites. Desde logo, se esses três são até hoje os modelos de intelectuais conservadores mais citados pela esquerda, é graças apenas à afinidade que têm com ela, os dois primeiros por serem economistas e argumentarem numa clave bastante acessível ao cérebro esquerdista médio, o terceiro por ter raízes no esquerdismo acadêmico e jamais tê-las cortado para valer, ao ponto de só ter trocado o seu marxismo cultural de juventude por um ateísmo burguês de molde iluminista bem típico, inteiramente compreensível à mentalidade de seus adversários. O esquerdismo é uma cultura tribal, um círculo etnológico fechado que, no universo em torno, só reconhece o que lhe é semelhante. Mesmo o antagonismo já tem de vir catalogado, senão é tido por inexistente. Ninguém da tribo se aventurou jamais, por exemplo, a uma discussão com Miguel Reale, espírito incalculavelmente superior aos três citados, porque isso obrigaria a leituras que escapavam, de longe, à esfera de percepções habituais da esquerda na época. Muito menos havia na taba quem pudesse entender, mesmo por alto, a obra de um Vicente Ferreira da Silva, de um Vilém Flusser, de um João Camilo, de um Paulo Mercadante. Nem menciono Mário Ferreira dos Santos, tão grande que escapa não apenas à visão, mas à imaginação esquerdista. Não que o desconhecessem. Conheciam-no perfeitamente, e passaram por tantas humilhações na presença dele que por fim o excluíram do seu horizonte de consciência, como se faz com um trauma que não se consegue superar. Amputados os andares superiores, a cultura conservadora recortada à escala do QI esquerdista compõe-se de dois economistas e um crítico literário - muito bons os três, cada um no seu domínio, mas nenhum necessário, em ter-

mos absolutos, à formação de um pensamento conservador intelectualmente relevante. Ao escolher essa régua para medir a "nova direita", os saberetas consultados pela Folha mediram-se tão somente a si mesmos. No mais, o fenômeno conservador que assinalam, abstraída a minha obra pessoal da qual não se aventuram a dizer um "a", pois não são bobos de dar a cara a tapa, se limita até agora à crítica jornalística, o que torna ainda mais extemporâneo o julgamento que fazem. Esse neoconservadorismo, ainda no berço, não tem sequer expressão política, quanto mais uma produção bibliográfica que pudesse ser confrontada com as de Merquior, Simonsen e Campos, acumuladas ao longo de décadas de trabalho. As próprias condições adversas em que surgiu, incomparáveis com o conforto e a segurança de que desfrutaram esses três, tornam o paralelo esboçado na Folha apenas um exercício de cinismo e impropriedade, bem ao feitio de quem, não tendo a menor idéia de onde está, quer dar a impressão de que está por cima. Mas não imaginem que empreendimentos diagnósticos dessa natureza sejam exclusividade brasileira. Nos EUA pululam hoje em dia estudos sobre a "direita religiosa", procurando caracterizá-la como um fenômeno inédito, estranhíssimo e necessitado de explicação científica, como se os primeiros Founding Fathers já não fossem conservadores religiosos, como se a América não tivesse sido sempre o país mais cristão e pró-capitalista do universo, como se tivesse sido desde a origem uma nação de socialistas ateus que, de repente, com susto enorme, vissem descer do Mayflower o primeiro pregador protestante. Esquerdismo é teatro, nada mais.

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Dormindo profundamente

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lguns leitores reclamam que descrevo o problema mas não indico solução. Sabem por que faço isso? É que as únicas soluções possíveis são tão difíceis e remotas que só de pensar nelas a visão do problema se torna ainda mais insuportável. Cada vez que volto ao assunto ecoa na minha memória o verso de Manuel Bandeira, o mais triste da literatura universal, que resume a história do Brasil nas últimas décadas: "A vida inteira que poderia ter sido e que não foi." Em 2002, numa reunião internacional (v. http://www.midiasemmascara.com.br/ artigo.php?sid=4960), os estrategistas da revolução latino-americana já haviam chegado à conclusão de que nenhuma força de direita tinha condições de erguer-se para enfrentá-los. Desde então o poder da esquerda veio crescendo formidavelmente, especialmente no Brasil, e seus eventuais adversários não fizeram senão ceder terreno, acomodar seu discurso ao do inimigo, abdicar de toda identidade ideológica e gastar energias preciosas em alianças debilitantes, em campanhas de bom-mocismo sem teor ideológico e em esforços eleitorais perfeitamente fúteis. É claro que antevejo soluções. Mas tenho a quase certeza de que ninguém vai colocá-las em prática. Todos os que poderiam fazê-lo estão demasiado fracos, demasiado sonsos para reagir. Oito, dez anos atrás andei sugerindo soluções. Falei a empresários, políticos, religiosos, intelectuais, militares. Em geral não consegui persuadi-los nem mesmo de que havia um problema - o mesmo problema sob cujo peso agora estão gemendo. Todos, sem exceção, avaliavam a situação baseados somente no que liam na mídia, prescindindo solenemente de qualquer conhecimento das fontes diretas, da bibliografia especializada ou mesmo dos clássicos do marxismo. E julgavam tudo com uma segurança, com uma pose! Uns confiavam nos seus galões, outros no seu saldo bancário,

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outros nos seus diplominhas da USP como se fossem garantias de infalibilidade, incomparavelmente superiores a décadas de estudo e montanhas de documentos. Uns diziam que eu estava açoitando cavalos mortos, outros estavam tão despreocupados que lhes sobrava tempo para criticar detalhes de estilo que os incomodavam nos meus artigos, outros, ainda, davam-me conselhos jornalísticos, recomendando-me temas mais agradáveis para conquistar os coraçõezinhos das leitoras em vez de assustá-las com advertências apocalípticas. Assim o tempo passou. Acabei-me recolhendo à (...) o verso minha insignificância, e hoje de Manuel me dedico à função que me Bandeira, o mais resta: analisar o mais triste da literatura objetivamente possível a universal, resume agonia do Brasil, para uso a história do Brasil dos futuros historiadores. Larguei a prática da nas últimas medicina de urgência para décadas: 'A vida dedicar-me ao estudo das inteira que patologias terminais. É um poderia ter sido e assunto inesgotável e, para que não foi' quem observa o moribundo de longe, interessantíssimo. Se eu estivesse no Brasil, morreria de depressão. À distância em que estou, a melancolia do declínio se torna quase uma experiência estética. Vou lhes dar só um exemplo de como a esquerda está adiantada na conquista de seus objetivos e a direita, ou o que resta dela, ainda nem começou a se dar conta do estado de coisas. No fim dos anos 70, o presidente Jimmy Carter, fiel às diretrizes do CFR, decretou que a melhor maneira de combater o avanço do comunismo na América Latina era apoiar a "esquerda moderada". Quem conhece a figura sabe precisamente o que ele queria dizer com


Cameran/Corbis

isso: tratava-se de fomentar o comunismo alegando combatê-lo. Os brasileiros estão (até hoje) tão por fora do que acontece nos EUA, que a simples hipótese de um presidente americano pró-comunista ainda lhes parece absurda e fantasiosa. Falta-lhes o conhecimento de pelo menos setenta anos de história. Ainda nem se tocaram de que o braço-direito de Franklin D. Roosevelt em Yalta era um espião soviético, de que na gestão Truman o Departamento de Estado foi entregue a um advogado chiquíssimo cujo escritório representava oficialmente o governo da URSS nos EUA, de que todas as acusações de espionagem nos altos círculos lançadas pelo senador Joe McCarthy acabaram sendo confirmadas (com uma única exceção) e de que, enfim, o lugar mais seguro para os comunistas, depois da redação do New York Times, é o governo americano. É horrível conversar com pessoas que, precisamente por não saber nada, acreditam saber tudo. Principalmente quando elas têm dinheiro bastante para pagar consultores que as conservam na ilusão. Graças à ação conjugada da ignorância e dos consultores, até hoje o empresariado brasileiro acredita piamente na lenda esquerdista de que os americanos deram o golpe de 64 e não sabem que a verdade é precisamente o contrário, que o governo de Washington não ajudou em nada a criar o regime militar mas sim foi o principal

responsável pela sua destruição. "Fortalecer a esquerda moderada" significava, desde logo, eliminar a direita, radical ou moderada, como alternativa válida ao esquerdismo. A morte da direita nacional foi decretada por Jimmy Carter, pelo CFR e pelas fundações Ford e Rockefeller (peço que consultem os meus artigos http://www.olavodecarvalho.org/ semana/060611zh.html e http://www.olavodecarvalho.org/ semana/060605dc.html para esclarecimentos de ordem teórica). O programa foi cumprido à risca, com sucesso total. Como a política de Washington para com a América Latina não mudou substancialmente desde então (exceto parcialmente e por breve tempo na gestão Reagan), e como a atuação das fundações bilionárias em prol da esquerda continental se intensificou enormemente nas últimas décadas, a direita brasileira não só perdeu qualquer apoio americano residual mas ainda nem sequer se deu conta do tamanho dos inimigos que a cercam e estrangulam hoje em dia. A esquerda encobriu tão bem essas informações elementares, essenciais para a compreensão do que se passa no Brasil, que até agora elas são radicalmente ignoradas por quem mais precisaria delas. Refiro-me especialmente ao empresariado. Os militares, por sua vez, não desconhecem os fatos, mas, bem trabalhados por agentes de desinformação, interpretam tudo às

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avessas: enxergam os Carters e os Clintons como agentes do "imperialismo americano" (e não do globalismo anti-americano) e acabam sendo levados pela tentação de se aliar à esquerda para se vingar das humilhações sofridas pelas forças armadas nas últimas décadas. Os aplausos dos homens de farda à recem-constituída "Comissão de Defesa das Forças Armadas" - mais um ardil da esquerda inventado para integrar as nossas tropas na revolução chavista - mostra que o horizonte de consciência dos nossos militares, pelo menos os de comando, é tão estreito quanto o do empresariado. Entre a esquerda e a direita, no Brasil, não há só uma monstruosa desproporção de forças: há um desnível de consciência imensurável. De um lado, informação abundante e integrada, intercâmbio constante, flexibilidade estratégica, conhecimento e domínio dos meios de ação. Do outro, fragmentos soltos mal compreendidos, amadorismo bem pago, opiniões arbitrárias e bobas voando para todo lado, desperdício das últimas energias em esperanças eleitorais insensatas e projetos "anti-corrupção" ideologicamente inócuos, facilmente absorvidos e instrumentalizados pela própria esquerda. Os esquerdistas absorveram profundamente o preceito de Sun-Tzu: conhecer o inimigo melhor do que ele conhece você. A esta altura, o general chinês, se consultado por algum direitista brasileiro interessado em "soluções", responderia: "Não converso com defuntos." Por que eu deveria ser menos realista que Sun-Tzu? A direita não está somente esmagada politicamente sob as patas da esquerda. Está dominada psicologicamente por ela, ao ponto de repelir com ojeriza a simples hipótese de fazer algo de efetivo contra a adversária. Exemplo? Façam a lista de todas as ONGs, departamentos do governo, cátedras universitárias, empresas de produções artísticas e órgãos de mídia empenhados, há trinta anos, em investigar, divulgar e ampliar até dimensões extraplanetárias os crimes reais e imaginários da "direita". A quantidade de dinheiro e mão-deobra envolvida nisso é incalculável. Agora experimentem ir falar com algum empresário soi disant liberal ou conservador, e sugiram ao desgraçado fundar uma ONG, mesmo pequenininha, para informar o público sobre torturas e assassinatos de prisioneiros políticos em Cuba, sobre os feitos macabros das Farc e do MIR, sobre as conexões entre esquerdismo e narcotráfico. A resposta é infalível: ou o sujeito rotula você de extremista, de louco, de fanático,

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ou desconversa dizendo que não se deve tocar em assuntos indigestos, que é mais bonito circunscrever-nos a assuntos inofensivos de economia e administração. Se um dos lados tem o monopólio do direito de fazer a caveira do outro, e o outro ainda reconhece esse monopólio como legítimo e inquestionável, a briga já está decidida. A própria direita concede à esquerda o direito de matar, torturar, ludibriar, e ainda posar de detentora exclusiva das mais altas qualidades morais. Depois disso, que alternativa resta aos partidos direitistas, senão tornar-se subseções dos de esquerda? Vejam o PFL. Esse partido, que um dia chegou a ter alguma perspectiva de futuro, se autodestruiu mediante sucessivas alianças com a "esquerda moderada" tucana. Em vez de afirmar sua independência, de reforçar sua ideologia, de criar e expandir a militância, preferiu dissolver-se em Se eu troca de carguinhos que só estivesse lhe davam o poder de fazer o no Brasil, morreria que o sócio mandasse. A de depressão. À experiência de mais de uma distância em que década não lhe ensinou estou, a nada. Continua ingerindo doses cada vez maiores do melancolia do remédio suicida. declínio se torna Querem soluções? Elas quase uma existem, mas os homens experiência influentes deste país, tão logo estética acabem de ler a lista, já vão querer atenuá-las, adaptá-las ao nível de covardia e preguiça requerido para ser direitistas "do bem" ou então diluí-las em objeções sem fim até que se transformem nos seus contrários, mui dialeticamente. Se querem saber, essas soluções são as seguintes:

1

Aceitar a luta ideológica com toda a extensão das suas conseqüências. Não fazer campanhas genéricas "contra a corrupção", salvando a cara do comunismo, mas mostrar que a corrupção vem diretamente da estratégia comunista continental voltada à demolição das instituições.

2

Criar uma rede de entidades para divulgar os crimes do comunismo e mostrar ao público o total comprometimento da esquerda atual com aqueles que os praticaram. A simples comparação quantitiva fará o general Pinochet parecer Madre Teresa.


3

Criar uma rede de ONGs tipo media watch para denunciar e criminalizar a desinformação esquerdista na mídia nacional, a supressão proposital de notícias, a propaganda camuflada em jornalismo.

4

Desmantelar o monopólio esquerdista do movimento editorial, colocando à disposição do público milhares de livros anticomunistas e conservadores que lhe têm sido sonegados há quatro décadas.

5

Formar uma geração de intelectuais liberais e conservadores habilitados a desmascarar impiedosamente os trapaceiros e usurpadores esquerdistas que dominaram a educação superior e os órgãos de cultura em geral.

6 7

Formar e adestrar militância para manifestações de rua.

Durante pelo menos dez anos enfatizar antes o fortalecimento interno do movimento do que a conquista de cargos eleitorais.

8

Criar um vasto sistema de informações sobre a estratégia continental esquerdista e suas conexões com os centros do poder globalista, de modo a esclarecer o empresariado, os intelectuais e as Forças Armadas. Essas são as soluções. Tudo o mais é desconversa. Ou os brasileiros fazem o que tem de ser feito, ou, por favor, que parem de choradeira. Que aprendam a morrer com decência. Se o Brasil cessar de existir, ninguém no mundo vai sentir falta dele. E se todos os brasileiros não inscritos no PT, no PSOL, na CUT e similares entrarem na próxima lista de falecidos do Livro Negro do Comunismo, talvez só eu mesmo ache isso um pouco ruim. Em todo caso, o fim do Brasil não vai abalar as estruturas do cosmos. Os esforços da direita nacional para a conquista da perfeita inocuidade estão perto de alcançar o sucesso definitivo. Quem em vida se esforçou para não fazer diferença, não há de fazer muita depois de morto. Se escrevo essas coisas no jornal da Associação Comercial, faço-o com dupla razão, porque vejo o esforço dessa entidade

para fazer alguma coisa com bravura num país onde todo mundo está procurando um lugarzinho para se esconder em baixo da cama e até a mulher do presidente já tratou de se garantir com um passaporte italiano. Assisto aos vídeos daqueles combatentes reunidos no seminário "Liberdade, Democracia e o Império das Leis", e me pergunto: Cadê o resto do país? Cadê os donos da mídia, que lambem os sapatos dos comunistas aos quais entregaram suas redações? Cadê os banqueiros, que têm um orgasmo a cada novo aumento dos impostos e sabem que lucram com a destruição da liberdade, da segurança, das leis? Imaginam por acaso que trogloditas capazes de depredar o Congresso vão, miraculosamente, respeitar amanhã as sedes dos bancos privados? Cadê os homens da indústria, que estão de quatro, sem fôlego, e ainda insistem em bajular seus algozes? Cadê a Igreja Católica - ou a entidade que ainda leva esse nome --, autotransfigurada em órgão auxiliar do Foro de São Paulo? Cadê a tal "classe dominante", cuja única ocupação nas últimas décadas é deixar-se dominar? Cadê os militares, cujo mais alto sonho de glória parece ser a aposentadoria sob as asas do Estado previdenciário socialista? Pergunto isso ao vento, e a resposta vem em outro verso de Manuel Bandeira: "Estão todos dormindo, dormindo profundamente."

Diário do Comércio 19/06/2006

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Da ignorância à mentira

U

m simpático leitor enviou o meu artigo "Dormindo Profundamente" a um círculo de empresários de bastante peso em São Paulo, e recebeu de um deles, em resposta, um compêndio de chavões pueris, irresponsáveis e presunçosos cuja autoridade nesse meio basta, por si, para explicar a desgraça do Brasil, mesmo abstraída a obra petista de destruição. A carta merece ser examinada porque reflete menos a opinião de um indivíduo do que um conjunto de crenças compartilhadas por uma parcela ativa da classe empresarial, crenças que contrariam flagrantemente a realidade mas são reforçadas todo dia pela mídia bem-pensante. Sócrates dizia que a ignorância é a raiz de todos os males. Mas o ignorante pobre só faz o mal a si mesmo, no máximo a mais meia dúzia em torno. Transformar a ignorância em autoridade pública é empreendimento dispendioso: o sujeito tem de pagar muito bem para que as pessoas ouçam com reverência bobagens que sem isso nem mereceriam atenção. Groucho Marx dizia a um desses opinadores milionários: "É preciso ter mesmo muito dinheiro, para sobreviver com essa sua cabeça." Mas a ignorância, como tudo o mais nesta vida, não permanece estável: evolui. Nasce como pura falta de conhecimentos, mas transmuta-se em incapacidade e por fim em recusa absoluta de adquiri-los, mesmo quando disso dependa a sobrevivência do interessado. Começa como um estado natural e transforma-se numa requintada forma de perversidade. Mais ainda: se o ignorante ocupa um lugar de destaque n a s o c i edade, se ele é o que hoje se chama

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um "formador de opinião", então deve ter à mão um estoque de declarações requeridas para as diferentes ocasiões de uma vida social variada: jantares, reuniões de diretoria, entrevistas na mídia, discursos de posse, homenagens etc. Sem disposição ou paciência para criar opiniões mediante estudo, só lhe resta preencher as lacunas voluntárias do conhecimento com os produtos espontâneos da sua fantasia pessoal. Não sendo, porém, verossímil que a mente imune ao conhecimento seja ao mesmo tempo dotada de grande vivacidade imaginativa, o mais provável é que o sujeito não crie suas fantasias, mas as absorva passivamente do falatório em torno, repetindo-as como se fossem suas e legitimando-as com a autoridade da sua posição na sociedade. É assim que milhares de mentiras tolas, vindas de uma multidão de pequenos fofoqueiros e desinformantes, se condensam num sistema de cretinices respeitáveis, oficiais, cuja contestação se expõe à repulsa e ao desprezo gerais. Em todo caso, estou muito grato ao palpiteiro, por ter resumido em poucos parágrafos o conjunto das lendas e ilusões que entorpecem boa parte da nossa classe empresarial e a incapacitam para uma reação eficaz ao presente estado de coisas. Ele começa sua exposição apelando a dois chavões consagrados: "Tão atrasado e fora de contexto quanto qualquer projeto revolucionário marxista em qualquer parte do mundo, é o temor e a neurose permanente em combatê-los." Em outras palavras: (1) O anticomunismo está fora de moda. (2) Ele é um sintoma neurótico. Discutir com o ignorante é uma das tarefas mais difíceis deste mundo. As razões do debatedor inteligente, culto, são transparentes: exibem-se no conteúdo do seu discurso, porque ele mesmo as pensou e as colocou ali. As do ignorante, sendo desconhecidas dele próprio, vêm de uma atmosfera social difusa, entre obscuras associações de idéias, automatismos de linguagem e mil e um pressupostos mal conscientizados. Desencavá-las é como analisar um sonho. Você tem de mergulhar fundo no inconsciente coletivo para descobrir de onde o cidadão tirou os motivos de crer naquilo que afirma. A origem das duas idéias expostas é diferente. Uma espalhou-se pela mídia como reação


imediata do t r iu n f a l is m o liberal ante a queda da URSS. A outra é bem anterior: é um slogan inventado pela KGB nos anos 40 e tão intensamente repetido ao longo das décadas que acabou por disseminar entre os próprios liberais e conservadores a inibição de declarar-se e mais ainda de ser anticomunistas. São, ambas, puras expressões emotivas, que nem mesmo podem ser discutidas como juízos de realidade. A primeira expressa um desejo, a segunda uma autodefesa preventiva contra a ameaça do riso e da chacota, propositadamente espalhada no ar pelos próprios inventores do slogan. No primeiro caso, o que tenho a observar é que a moda local está um tanto atrasada em relação ao debate de idéias nas áreas mais civilizadas do planeta. No ano 2000, Jean-François Revel já publicava La Grande Parade. Essai sur la Survie de l'Utopie Socialiste (Paris, Plon), expressando a tomada de consciência dos liberais franceses de que o movimento comunista, aparentemente defunto em 1990, se havia reerguido mais poderoso do que nunca, organizado mundialmente e com uma rede de apoios muito mais vasta do que jamais tivera. Esta constatação é uniformemente compartilhada por todos os estudiosos do assunto nos EUA e na Europa. A bibliografia a respeito é esmagadora, mas, no Brasil, como ninguém lê nada, ainda se pode alegar manchetes do Economist de quinze anos atrás como se fossem a última palavra. A ignorância tem seu tempo histórico próprio, imune aos fatos do mundo. Quanto à difamação do anticomunismo como "neurose", sua eficácia paralisante tende a diminuir no resto do universo, à medida que a direita euro-

péia e americana descobre que foi vítima desse engodo para muito além do que poderia admitir a honorabilidade da sua inteligência. Em 1956, o preconceito contra o anticomunismo fez com que os EUA aceitassem Fidel Castro como um grande líder democrático, ajudando-o a consolidar-se no poder. Em 1973, quando Henry Kissinger recebia o Prêmio Nobel da Paz por ter retirado as tropas americanas no Vietnã, quem dissesse que o efeito da festejada obra diplomática seria o genocídio da população civil era objeto de riso. Três milhões de cadáveres depois, é preciso muita teimosia para não enxergar que a pax kissingeriana ocasionou a tomada do Vietnã do Sul pelo Vietnã do Norte, a ascensão de Pol-Pot no vizinho Camboja e todos os horrores que transcenderam em muito os males da guerra. Em 2002, o analista estratégico Constantine Menges, do Hudson Institute, foi alvo de toda sorte de gracejos maliciosos na mídia nacional por ter dito que a América Latina caminhava para a formação de um eixo anti-americano. Hoje o eixo está visível diante de todos, e aqueles que riram de Constantine Menges já tiraram a máscara, confessando que queriam apenas o silêncio e a discrição necessários para chegar exatamente a isso. O que o cidadão nos propõe é cairmos de novo no mesmo truque, só para não corrermos o risco temível de ser alvo de gozações comunistas. Não há nada mais ridículo do que o medo do ridículo. Prossegue o indigitado: "Clinton e Jimmy Carter como agentes do comunismo internacional??? A criação de teorias

A crença de que Chávez ou Lula tenham estratégias pessoais independentes, inconexas entre si, é uma bobagem descomunal que não resiste ao mínimo confronto com os documentos

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conspiratórias sempre desperta curiosidade e por mais absurdas e não fundamentadas que sejam, apenas por contrariarem radicalmente o senso comum e o que é de domínio público, já conferem a seus autores uma aura de inteligência superior ou informação privilegiada..." Deixo de comentar a elipse enganosa que, para gerar uma falsa impressão de comicidade, substitui "agentes do CFR" por "agentes do comunismo". É um tipo de truque estilístico que também remonta ao jornalismo comunista dos anos 40. Seu contínuo poder de impregnação na linguagem dos próprios adversários nominais do comunismo é uma das glórias da estupidez humana. Também nada digo dos três pontos de interrogação. Seria realmente o cúmulo da genialidade retórica, destruir um edifício de fatos e documentos mediante um simples aceno ortográfico. O sujeito acha que conseguiu isso. Só falta chamar a mãe para contemplar o filhinho em seu momento de triunfo. A vaidade da ignorância é um abismo de miséria humana. Quanto à depreciação do meu artigo como "teoria conspiratória", era infalível e já estava prevista nele mesmo. Chavões têm sobre certas mentalidades o poder persuasivo de uma revelação divina. Muito significativamente, após alegar a "falta de fundamentos" da minha exposição, o indivíduo apresenta os da sua: "o senso comum e o que é de domínio público". Muito bem: contra informações diretas da fonte, prevalece a autoridade do que a patota diz e do que sai no jornal. Mais explícita confissão de credulidade beócia não se poderia esperar. Pergunto-me o que pode ser de um país onde a liderança empresarial se deixa guiar por gente assim, inflada de desprezo pela inteligência e pelos estudos sérios. Foi essa mentalidade, afinal, que elegeu Lula. Não vejo como ela pode tirá-lo do poder que lhe deu. Baseado no que lê na Folha e no Globo, o indivíduo sentencia: "Acredito sinceramente que estamos em outro momento histórico, sem espaço para qualquer coisa semelhante a uma revolução esquerdista..." Ele deveria informar isso ao Fórum Social Mundial, ao Foro de São Paulo, à Organização de Cooperação de Shangai, à rede mundial de ONGs ativistas e ao movimento terrorista internacional. Em todos esses lugares prevalece a crença oposta: a de que a direita está desmantelada politicamente por toda parte, exceto nos EUA, e de que nunca o projeto da revolução mundial foi tão viável como neste momento. Evidentemente, as atas e documentos dessas entidades, suas discussões internas e as análises feitas por seus estrategistas

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não saem no Jornal Nacional. Muito menos nas novelas. São um material difícil, tedioso, que só interessa aos envolvidos ou a estudiosos. Se depender de líderes como o autor dessa carta, a classe empresarial jamais conhecerá os planos que seus inimigos estão fazendo contra ela. Em seguida o sujeito parte para a negação explícita de que os líderes articulados no Foro de São Paulo - Lula, Chávez, Evo Morales, o próprio Fidel Castro -- sejam agentes de uma estratégia esquerdista comum. No seu entender, são apenas tipos singulares agindo em função de preferências, idiossincrasias e interesses pessoais. Chávez, por exemplo: "Há muito pouco de ideológico nele, sua orientação é apenas e tão somente populista e seu projeto é pessoal... Ele sabe que a adoção de qualquer discurso ou convicção ideológica mais sólida (principalmente a comunista) colocariam seu governo a perigo, reduziriam seu apoio e colocariam sua própria figura em segundo plano... Por isso adota como discurso ideológico o mais óbvio e vazio, mas tão caro aos pobres latinoamericanos: o anti-americanismo. Sua semelhança com Lula? Total. Chávez, Lula, Dirceu e companhia leram Maquiavel de cabo a rabo, e aí reside o problema... Não há nem em Lula nem no PT mais nada de ideológico. Acreditar no contrário, é cair na armadilha criada por eles de tentar implicitamente justificar, sob argumentos ideológicos, a bandalheira praticada. O 'Projeto' não é à esquerda ou à direita. É de perpetuar-se no poder, pura e simplesmente. Ideologia tem o Bruno Maranhão, que está preso. Ideologia tem a Heloisa Helena e a Luciana Genro, que fundaram um partido nanico..." Cada uma dessas opiniões pode ser rastreada até suas origens na própria mídia esquerdista que as pôs a circular como pura desinformação. Desde logo, a identificação, muito caracteristicamente pequeno-burguesa, de "ideologia" com "idealismo" ou "esperança utópica" em oposição a "interesses", "maquiavelismo" e "desejo de poder". Todo esquerdista com QI superior a 12 sabe que essa identificação é falsa, mas por isso mesmo boa para ser espalhada entre direitistas idiotas. Ideologia, segundo a tradição marxista, é precisamente um vestido de idéias encobrindo interesses político-econômicos determinados. Longe de opor-se aos interesses, ela é seu instrumento e é concebida para atendê-los, para conquistar e ampliar o poder. Se o adversário boboca vê uma oposição inconciliável onde o esquerdista sabe haver uma unidade dialética, tanto melhor para este último: pode bater com duas mãos num adversário que só enxerga uma de cada vez.

Lula, Chávez e Dirceu, se chegaram a ler Maquiavel, o leram através de Gramsci, e sabem que nas condições do mundo moderno o maquiavelismo individual nada pode (...)

A ignorância, como tudo o mais nesta vida, não permanece estável: evolui. Nasce como pura falta de conhecimentos, mas transmuta-se em incapacidade e por fim em recusa absoluta de adquiri-los (...)


Mais ingênuo ainda é tentar explicar tudo pelo maquiavelismo pessoal dos líderes esquerdistas, como se a estratégia da revolução gramsciana na sua totalidade não fosse ela própria baseada em Maquiavel. Lula, Chávez e Dirceu, se chegaram a ler Maquiavel, o leram através de Gramsci, e sabem que nas condições do mundo moderno o maquiavelismo individual nada pode: o novo "Príncipe" é o partido revolucionário. As dimensões majestosas da corrupção petista, superando incomparavelmente os delitos avulsos de políticos individuais, são a melhor prova disso. Quanto à crença de que Chávez ou Lula tenham estratégias pessoais independentes, inconexas entre si, é uma bobagem descomunal que não resiste ao mínimo confronto com os documentos. As atas do Foro de São Paulo atestam abundantemente a estratégia comum -- e a unidade dessa estratégia se torna visível nos momentos em que sua realização ameaça estender até à ruptura o conflito de interesses nacionais, como se viu no caso da Petrobrás, no dos lavradores brasileiros expulsos da Bolívia ou nos tiroteios entre as Farc e o Exército nacional. Nada disso, que normalmente resultaria em guerra, abala a firmeza dos acordos estratégicos firmados no Foro de São Paulo. Mais unidade que isso, só na fórmula 1 = 1. O diagnóstico flagrantemente errado produz uma terapêutica ainda mais alienada da realidade. Contra a marcha avassaladora do esquerdismo continental, o homenzinho propõe o moralismo apolítico, a recusa obsequiosa de atacar a esquerda como tal, a persistência no erro já velho de uma década: "Melhor seria se a direita conseguisse fazer um contraponto moral àquilo que hoje está aí, o que não consegue porque está contaminada até a alma de interesses espúrios e associada a práticas políticas abomináveis." Mas se a falta de ideologia, o oportunismo sujo e o império dos interesses pessoais fizeram tão bem ao PT, por que teriam sido a causa do fracasso do PFL? Por puro instinto lógico, toda criança de dez anos percebe isto: um fator que permanece constante e idêntico em dois processos opostos não pode ser a causa da sua diferenciação. Não é interessante que o apóstolo do "senso comum" o maltrate tão desapiedadamente ao exigir que ele engula como verdade tranqüila uma contradição intolerável? Sugerir que a direita, para vencer o PT, se dedique a novos e ampliados rituais de auto-sacrifício purificador é querer que ela entregue de bandeja mais algumas cabeças de líderes, como já entregou tantas, na inútil e covarde esperança

de assim escapar às críticas maliciosas de petistas que enquanto isso roubavam e delinqüiam incomparavelmente mais que os acusados. Basta comparar as miúdas ilicitudes de um Collor à grandeza imperial do Mensalão ou à violência do caso Celso Daniel para compreender que o apelo à penitência moralista só serve para tornar a direita uma vítima inerme da "guerra assimétrica", onde um dos lados tem a obrigação de se prosternar no altar da moralidade, enquanto o outro, quando ameaçado por denúncias, aproveita a ocasião para buscar fortalecer sua unidade na defesa comum contra o atacante. A direita nacional começou a destruir-se quando, após ter depositado suas melhores esperanças em Fernando Collor, correu para ajudar o inimigo comum a destrui-lo, mesmo antes de ter contra o suspeito qualquer prova juridicamente válida. Com anos de antecedência, em 1993, expliquei que a "Campanha pela Ética na Política" tinha sido concebida exatamente para isso, que qualquer concessão à versão brasileira da "Operação Mãos Limpas" (ela própria um truque esquerdista sujo) seria apenas cumplicidade suicida com a estratégia mais perversa e astuta já adotada pela esquerda nacional ao longo de toda a sua existência. Collor, mais tarde, foi absolvido pela Justiça, mas sua fama de ladrão, criada pela esquerda, persiste inabalável, mesmo diante da comparação com tudo o que de infinitamente pior veio depois. Para conservá-la viva, a direita consiste em mentir contra si mesma e ainda se oferece para humilhar-se mais um pouco diante do adversário. Aí a ignorância se transcende, se transforma em apego irracional à mentira. "Liberais" como o signatário dessa carta são a praga que debilita o liberalismo e o impede de se tornar uma força política à altura dos desafios colocados pela ascensão geral do esquerdismo. O serviço que ele presta à esquerda é tão grande, que tornaria razoável a suspeita de tratar-se de um agente provocador ou desinformante infiltrado, se fosse preciso essa hipótese para dar razão de uma conduta que, no entanto, o amor patológico à mentira basta para explicar perfeitamente bem. O pior dos mentirosos não é aquele que mente uma vez, duas vezes, mil vezes. Não é aquele que mente muito, quase sempre ou até mesmo sempre. Não é aquele que mente tão bem que chega a se enganar a si próprio. É aquele que, em prol da mentira, destrói tão completamente a sua própria inteligência que se torna incapaz de perceber a verdade até mesmo quando ele próprio, por desatenção ou inabilidade, a proclama diante de todos.

Diário do Comércio 03/07/2006

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O avesso do avesso

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té o começo dos anos 90 ainda era possível acreditar, honestamente, que a Nova Ordem Mundial que se formava ante os olhos de todos após a queda da URSS era, em essência, a mundialização do poder americano, a realização dos sonhos mais ambiciosos dos imperialistas do Norte. Todas as aparências indicavam isso, e e s t u d i os o s t ã o isentos de v i é s e s-

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querdista como o Pe. Michel Schooyans e o historiador espanhol Ricardo de La Cierva afirmavam categoricamente que a ONU, governo mundial em germe, não era senão a expressão e instrumento do Estado americano ampliado à escala global. Hoje, quem quer que continue acreditando nisso, depois de tudo o que aconteceu nessa década e meia e com todas as informações que se torn aram


Divulgação

acessíveis a respeito, é um autêntico homem de Neanderthal, se não for seu antepassado mais próximo, o dr. Emir Sader em pessoa. Na visão dessas criaturas primevas, a Nova Ordem Mundial é o bom e velho imperialismo americano que, mal camuflado, estende suas asas sobre o globo terrestre, pondo em risco a soberania das nações pobres, cuja esperança então se volta para os poucos núcleos de resistência espalhados pelo mundo, como Cuba, a Coréia do Norte e os terroristas islâmicos, bravos pigmeus em luta contra o gigante, à imagem e semelhança da Princesa Léa e Luke Skywalker enfrentando aos trancos e barrancos as tropas imperiais sob o comando de Darth Vader (não inventei a comparação; ela já se tornou um lugar-comum do imaginário esquerdista). Hoje em dia, o material disponível com as provas cabais de que não é nada disso é tão vasto, tão abundante e tão consistente, que a única desculpa razoável que alguém pode apresentar para continuar apegado a essa idéia é ser pessoalmente o dr. Emir Sader e nada poder fazer contra tão cruel destino. Todos os demais são culpados de negligência proposital. Digo isso com a ressalva de que, as informações pertinentes sendo talvez menos acessíveis no Brasil do que em qualquer outro lugar do mundo com exceção dos países islâmicos e comunistas, a ignorância geral dos fatos explica a subsistência residual, neste país, de lendas e estereótipos já desmoralizados pelo tempo e em toda parte. Mas mesmo ignorantes profissionais não podem ter deixado de notar, nos últimos anos, o conflito aberto entre a ONU e os EUA, seguido de uma explosão mundial de anti-americanismo, cujas manifestações nas ruas e na mídia, simultâneas, súbitas e organizadíssimas, não poderiam ter surgido do nada, sem longa e dispendiosíssima preparação secreta. De repente, os pobres e esfarrapados tinham a seu serviço o New York Times, o Washington Post, a CBS, a CNN e praticamente todo o restante da grande mídia internacional (a brasileira, então, nem se fala), enquanto os ricaços imperalistas mal conseguiam uma entrevistinha na Fox, uns minutos no programa de rádio do Rush Limbaugh, sem a menor repercussão fora dos EUA, e dois parágrafos em sua defesa na coluna da Mary O'Grady no Wall Street Journal. A desproporção contrastava tão dramaticamente com a visão convencional dos coitadinhos em luta contra as forças tentaculares do império financeiro intergalático, que parecia mesmo a coluna do dr. Emir, "O Mundo pelo Avesso".

Luke Skywalker contra Darth Vader, face do imperialismo

Para quem ainda tivesse alguma dúvida, bastava, para eliminá-la, olhar a lista dos financiadores da gritaria anti-americana, entre os quais brilhavam, junto com George Soros, as fundações Ford e Rockefeller e outras fortunas do mesmo porte. Depois disso, só mesmo o cérebro geneticamente lesado dos apreciadores daquela coluna poderia, imune ao gritante paradoxo, continuar acreditando piamente na identidade de americanismo e globalismo. Nem falo dos discípulos do sr. Lyndon La Rouche, os quais, admitindo o paradoxo, tentavam explicá-lo como rebuscado truque do maquiavelismo ianque, como se rebuscada não fosse antes essa explicação e como se atrair todos contra si fosse astúcia digna do governo americano e não, mais apropriadamente, do saudoso Chapolín Colorado. Não obstante, a afirmação absoluta dessa identidade é não apenas a crença unânime do esquerdismo local, para o qual ela tem ao menos a utilidade de fomentar o ódio ao seu inimigo tradicional, mas é também o fundamento de uma "nova doutrina militar brasileira" que vem se esboçando desde os anos 90, firmemente empenhada em criar, com base em informação deficiente, uma estratégia desastrosa que arrisca fazer das Forças Armadas brasileiras, amanhã ou depois, o instrumento ser-

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Não inventei a comparação, ela já se tornou lugarcomum do imaginário esquerdista: a Princesa Léa e Luke Skywalker [a resistência] enfrentam as tropas imperiais sob o comando de Darth Vader [os Estados Unidos]

Até o começo dos anos 90 ainda era possível acreditar, honestamente, que a Nova Ordem Mundial que se formava ante os olhos de todos após a queda da URSS era, em essência, a mundialização do poder americano

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vil da revolução continental, seja como aliadas da esquerda lulo-chavista que tanto as difamou e humilhou ao longo das décadas, seja, na melhor das hipóteses, como suas concorrentes na liderança do anti-americanismo nacional. Essa visão das coisas não expressa nenhuma realidade objetiva; expressa apenas, indiretamente, o estado de total alienação da elite falante brasileira, separada do mundo por um muro de fantasias obsessivas e complexos incapacitantes, agravados por uma indolência intelectual verdadeiramente criminosa e pela compulsão irresistível de complicar ainda mais as coisas tentando mostrar boniteza em vez de exercer a única virtude que, numa hora dessas, poderia ser salvadora: a sinceridade. Se entre todos os políticos, oficiais de alta patente, grandes empresários, professores de universidade, juristas e economistas de uma nação não se encontra um só que seja capaz de descrever corretamente o estado de coisas no mundo e enquadrar nele a posição do país - e a realidade é que não se encontra quase nenhum -, é claro que esse país está perdido e desorientado no espaço e no tempo, condenado a erros descomunais de política externa e administração interna que só por milagre não tornarão inviável sua existência de Estado independente num prazo mais veloz do que a imaginação desses indivíduos e grupos pode alcançar. Os planos de grandeza e discursos patrióticos que saem da boca dessa gente são um coral de marinheiros bêbados num barco prestes a afundar. São sintomas psicóticos de uma total falta de senso da realidade. Na verdade, ao tentar lhes explicar que as coisas não são como eles pensam, eu mesmo me sinto um pouco psicótico. Esperar que entendam alguma coisa é tão louco, no fundo, quanto apostar no futuro de um país liderado por eles. Mas, como essa esperança se recusa a morrer, vamos lá. Vamos tentar outra vez. Os EUA são mesmo a potência hegemônica, mas é ridículo imaginar que todas as ações que os projetam no mundo sejam o resultado de um cálculo unitário fundado no seu "interesse nacional" (no sentido que o termo tem na ESG). Com mais freqüência, isto sim, exteriorizam o conflito interno americano, conflito que, por força da própria hegemonia dos EUA, expressa por sua vez a essencial divisão de forças no mundo. Dito de outro modo: a política americana, o drama americano, a guerra cultural americana, são o modelo em miniatura do conflito global. O problema é que, entre os palpiteiros midiáticos, acadêmicos, empresariais e militares do Brasil, nin-

guém entende coisíssima nenhuma do que acontece nos EUA, portanto enxerga menos ainda o que se passa no mundo. Duas visões padronizadas, ambas falsas e profundamente idiotas, se alternam no imaginário nacional como pretensas descrições do cenário americano: Visão 1 - As duas correntes em disputa ali são apenas duas faces da mesma moeda imperialista. Nos EUA não existe esquerda politicamente atuante, apenas uma direita capitalista durona e outra mais molinha. Visão 2 - Existem, sim, uma direita e uma esquerda: a direita, republicana, é fundamentalista, imperialista e militarista, representando os interesses calhordas da elite financeira e industrial: a esquerda, democrata, representa os pobres e oprimidos do mundo, os direitos humanos, a democracia iluminista e, enfim, tudo o que é lindo desde o ponto de vista do Fórum Social Mundial. Quanta besteira, porca pipa! A divisão americana, em primeiro lugar, não é entre republicanos e democratas. É entre conservadores e globalistas. Estes estão nos dois partidos, os primeiros estão em parte no republicano, em parte órfãos de agremiação partidária, sem por isto deixar de constituir uma força política e cultural considerável. O programa globalista, longe de ser imperialismo americano, consiste essencialmente em quebrar a soberania dos EUA, submetendo cada vez mais o país a organismos internacionais, sendo necessário, para esse fim, diluir a cultura e a identidade nacionais numa pasta "multiculturalista". O globalismo não tem finalidades essencialmente econômicas ou mesmo políticomilitares: é todo um conceito integral de civilização, uma verdadeira mutação revolucionária da espécie humana, incluindo a total erradicação das religiões tradicionais ou sua diluição numa religião biônica universal cuja expressão mais visível é o movimento da "Nova Era". Seus ideais são tão opostos aos valores e interesses da nação americana que os conservadores, sem pestanejar, os consideram inimigos tão perigosos quanto a AlQaeda. Os poderosos grupos econômicos que apóiam o globalismo são os mesmos que elegeram Bill Clinton e sustentaram a campanha de John Kerry. Apóiam o aborto, o casamento gay, a liberação das drogas, a imigração ilimitada e tudo o mais que possa dissolver rapidamente a unidade histórica da cultura nacional americana. Fazem uso maciço do ativismo judicial para mudar completa-


David Brauchli/Reuters/11/11/1989

mente o sentido da Constituição através de sentenças que permitem o que era proibido e proibem o que era permitido. Patrocinam maciçamente a esquerda do Terceiro Mundo e as manifestações anti-americanas, mas, lutando para enfraquecer o país enquanto Estado independente, buscam ao mesmo tempo fortalecê-lo como instrumento da ONU. Daí a ambigüidade de suas tomadas de posição quanto ao terrorismo, por exemplo. Os conservadores, cuja base de apoio econômico está essencialmente na prodigiosa capacidade de coleta de fundos de milhares de organizações populares (grassroots), mas que têm algum respaldo na indústria nacional acossada pela concorrência chinesa, defendem o predomínio americano no mundo, mas não querem a diluição do país num império transnacional. Suas ambições "imperialistas", incomparavelmente mais modestas que as de seus concorrentes, consistem apenas em manter uma relativa superioridade econômica e militar dos EUA (numa inversão patética, é este plano, e não o globalista, que a mídia brasileira denuncia como grande perigo para a nossa soberania). Não aceitam a ingerência de organismos internacionais em assuntos de soberania, defendem as interpretações consagradas da Constituição, a restrição dos poderes do governo central, o liberalismo econômico clássico, os direitos das religiões tradicionais - protestantismo, catolicismo e judaísmo -- e a preservação da identidade cultural americana. Cada palavra que se ouve em debates na mídia, no parlamento, nas universidades dos EUA, ecoa essa divisão, da qual o Brasil em peso continua ignorando praticamente tudo, graças aos bons préstimos de uma elite falante mentirosa, corrupta, vaidosa e radicalmente estúpida. É absolutamente impossível entender o jogo de forças no mundo - e portanto tomar uma posição consistente dentro dele - sem ter em conta a luta de concepções civilizacionais por trás do conflito partidário americano que a reflete de maneira irregular e parcial. O presidente Bush, por exemplo, é moralmente um conservador, mas atado por mil e um compromissos globalistas que tornam suas ações freqüentemente ambíguas e não raro incompreensíveis nos termos usuais do nosso debate político. Entender essas coisas dá algum trabalho, requer muito estudo e o mergulho numa infinidade de dúvidas, mas é imensamente recompensador para quem, com sinceridade,

A queda do muro de Berlim: celebração de uma Nova Ordem Mundial

queira encontrar uma esperança para o Brasil nesse mare ignotum. Em vista disso, peço aos distintos jornalistas, empresários, professores etc., que, por favor, por caridade, por misericórdia, não saiam dando palpites sobre o presente artigo antes de estudar pelo menos estes três livros: * Carroll Quigley, Tragedy and Hope: A History of the World in Our Time, New York & London, Macmillan, 1966. É a Bíblia do globalismo. Não existe uma do antiglobalismo; as objeções estão espalhadas; aqui vão duas amostras: * Cliff Kincaid, Global Bondage: The U. N. Plan to Rule the World, Lafayette, Louisiana, Huntington House, 1995. * Lee Penn, False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004. * Vale a pena também examinar o artigo de Steven Yates, "From Carroll Quigley to the UN Millennium Summit: Thoughts on the New World Order", em http://www.lewrockwell.com /yates/yates14.html . Os que não quiserem ler nada disso, então, por gentileza, queiram freqüentar a coluna do dr. Emir Sader e continuar entendendo tudo às avessas, como já se tornou costume nacional.

Diário do Comércio 11/07/2005

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Images.com/Corbis

Doença moral hedionda O socialismo é uma doença do espírito, uma deformidade moral hedionda, dificilmente curável

Quanto mais deploráveis os resultados econômicos do socialismo, tanto mais virulento o discurso esquerdista contra o capitalismo e os seus defensores

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á uma década e meia a Heritage Foundation de Washington e o Wall Street Journal publicam anualmente o Index of Economic Freedom, volumoso estudo comparativo dos controles estatizantes e da liberdade de mercado nas várias nações. Os critérios diferenciais abrangem a propriedade governamental dos meios de produção, a participação acionária do Estado nas empresas de economia mista, a incidência de impostos sobre a iniciativa privada e a dose maior ou menor de legislações restritivas. É, de longe, a publicação econômica mais importante do mundo, a única que permite, numa visão abrangente, avaliar sem muita dificuldade os méritos respectivos do capitalismo e do socialismo, não segundo os argumentos concebidos para justificá-los, mas segundo o seu desempenho real no esforço para dar uma vida melhor ao conjunto da população dos países ao seu alcance. Ano após ano, a realidade desse desempenho é ali mostrada com uma profusão de dados e com uma integridade metodológica que nenhum estudioso da área ousou jamais contestar. Essa realidade pode ser formulada em termos simples e inequívocos: quanto maior a dose de controle estatal, mais miséria, mais

opressão, mais sofrimento; quanto maior o índice de liberdade econômica, mais prosperidade, mais respeito aos direitos humanos, mais oportunidades para uma vida digna oferecidas a faixas mais extensas da população. Qualquer esquerdista intelectualmente capacitado a ler uma publicação desse tipo tem, diante dela, no mínimo a obrigação de ficar em dúvida quanto à superioridade moral excelsa que a propaganda política atribui ao socialismo e de moderar um pouco aquele tom de certeza absoluta e inquestionável com que sempre atribui ao adversário, pelo simples fato de ser prócapitalista, as piores e mais baixas intenções. Na mais modesta das hipóteses, uma consciência moral tão elevada quanto aquela que se arrogam os esquerdistas deveria ter ao menos um pouquinho de senso da verdade, ao menos um pouquinho da humildade necessária para admitir os fatos e tirar alguma conseqüência deles. Mas isso está infinitamente acima do que se pode esperar dessas criaturas. Quanto mais deploráveis os resultados econômicos do socialismo, quanto maior a dose de crimes e violências necessários para produzi-los, tanto mais enfática a alegação de superioridade, tanto mais inabalável o sentimento de possuir


o monopólio da bondade humana, tanto mais virulento o discurso esquerdista contra o capitalismo e seus defensores. Quanto mais extensas as provas do seu erro, tanto mais arraigada e intolerante a sua certeza, tanto menor a sua disposição de conceder ao adversário o benefício da dúvida ou até mesmo o direito à palavra, que com a maior desenvoltura lhe cassam ao mesmo tempo que, numa apoteose de cinismo, o rotulam de dogmático e intolerante. Observar esse contraste, repetidamente, ao longo dos anos, é ser arrastado a uma conclusão que a alma rejeita, mas que a consciência impõe inexoravelmente: o socialismo não é uma opinião política como qualquer outra, é uma doença do espírito, uma deformidade moral hedionda, pertinaz e dificilmente curável. A observação pessoal é confirmada por estudos consistentes como La Fausse Conscience, Joseph Gabel, Intellectuals, de Paul Johnson, Modernity Without Restraint, de Eric Voegelin, Fire in the Minds of Men, de James Billington e outros inumeráveis. Não há nada de estranho em que o mesmo diagnóstico se aplique ipsis litteris ao nazifascismo, já que este não passa de uma variante interna do socialismo - obviedade histórica que na época dos fatos era universalmente conhecida e que só a propaganda maciça pode ter apagado da memória pública ao menos em alguns países.

Nem é de espantar que, observados de perto, na escala de suas atitudes pessoais, os mais destacados expoentes da ideologia socialista se revelem invariavelmente personalidades cruéis, sem moral, sem amor ao próximo, sem o mínimo de sentimentos humanos nem mesmo por seus familiares e amigos. Estudem as biografias de Karl Marx, de Lênin, de Stalin, de Mao-TséTung, de Pol-Pot, de Fidel Castro - sobretudo os depoimentos do médico pessoal de Mao e os das filhas de Stalin e Castro - e vejam se há algum exagero em chamar esses indivíduos de monstros, ou de perversos os que os admiram. Quem quer que, conhecendo esses fatos, ainda julgue que o oceano de crueldade e sofrimento produzido por esses personagens e pelos movimentos que lideraram é preferível aos "males do capitalismo", decididamente não tem senso de proporções, não tem maturidade intelectual ou humana bastante para ser admitido como interlocutor respeitável num debate de idéias. Desgraçadamente, é justamente esse o tipo de indivíduo que hoje dá o tom das discussões nacionais e se arroga, com sucesso, o papel de medida-padrão das virtudes humanas, à luz da qual devem ser julgados todos os atos, seres e situações. A covardia e o despreparo gerais da classe dominante no Brasil fizeram dela a cúmplice ao menos passiva da ascensão desses celerados ao primeiro escalão da hierarquia social, de onde hoje é quase impossível removê-los.

Diário do Comércio 19/09/2005

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Frederic J. Brown/AFP

Soldados chineses desfilam em Beijin: país usa sucesso econômico como meio provisório para crescer e vencer no campo das armas

A China no Wal-Mart

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ara saber quanto a intelligentzia brasileira está por fora do que se passa no mundo, basta uma visita ao WalMart em qualquer cidadezinha americana. Setenta por cento dos produtos aí vendidos são chineses. Os dados são da revista China Business Weekly. "Se o Wal-Mart fosse um país" - escreve Ted C. Fishman no seu recente livro China, Inc., "seria o quinto maior mercado exportador da China, acima da Alemanha e da Inglaterra". E não é só no Wal-Mart: em todos os supermercados populares dos EUA, é difícil encontrar algum móvel ou eletrodoméstico barato, com marca americana, que não seja fabricado na China.

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Nenhum cidadão americano ignora o que isso significa: 2,9 milhões de vagas perdidas nas fábricas e a atrofia das velhas cidades industriais como Detroit, Cleveland, Allentown, Bethlehem e Pittsburgh. Alguns estudiosos de estratégia militar, como Jeffrey Nyquist - um dos homens mais inteligentes da América -- vão um pouco além: sabem que os fregueses da rede mais barateira de supermercados da América estão financiando o crescimento da máquina de guerra chinesa, cujo objetivo explícito, já reiterado mil vezes em publicações militares da República Popular da China, é a destruição dos EUA (explicarei mais sobre isto nas próximas semanas). Essa máquina aumenta dia a dia seu estoque de bombas atômicas, num ritmo


Peter Parks/AFP

Depois de Mao, a China é um país que Brasil e Estados Unidos não entendem bem: o salário de um trabalhador chinês é cinco vezes menor que um mexicano e os serviços públicos não equilibram a baixa remuneração

Andres Stapff/Reuters

jamais conhecido pelos EUA e pela URSS durante a Guerra Fria, e investe maciçamente na produção de armas biológicas cujo estoque atual já seria suficiente para infectar toda a população americana em questão de horas. E, quando os estrategistas advertem que o gasto americano com produtos chineses fomenta o crescimento de um inimigo potencial, eles não se referem apenas ao ganho implícito que as forças armadas de qualquer país têm quando a economia nacional cresce. O Exército é o principal capitalista da China: ele lucra diretamente com a venda de cada TV, tocador de CD ou telefone celular que as fábricas chinesas vendem no exterior. E ganha em dobro, pois ao lucro se soma a verba que o governo chinês recolhe em impostos e repassa às forças armadas. Em dobro, não: em triplo, porque, quanto mais os produtos chineses fazem sucesso nos EUA, mais investimentos americanos vão para as empresas chinesas, isto é, para o Exército chinês. É sobretudo graças à ajuda americana que a China cresce num ritmo capaz de fazer dela em 2012 a maior potência industrial e em 2050 a maior economia do mundo. Nada disso, é claro, resulta em benefício considerável pa-

Stan Honda/AFP/AE

ra o povo chinês. Em volta de cinco cidades que prosperam em ritmo alucinante, estendese um continente de misérias que o público ocidental mal pode imaginar. O salário de um trabalhador na China é cinco vezes menor que no México. E não pensem que os serviços públicos - a desculpa máxima do socialismo - equilibrem a baixa remuneração. Os hospitais chineses, todos do governo, não fazem um parto, não engessam um braço, não arrancam um dente sem enviar a conta no fim do mês. A rede de água e esgotos é péssima em todo o interior, e a dificuldade de sobrevivência para as famílias camponesas é tanta que o governo se torna cúmplice delas na chamada "guerra contra as meninas": o hábito de jogar as recém-nascidas aos porcos (e depois comer os porcos, é claro). A prosperidade chinesa não se assenta só na cegueira americana, é claro, mas na polícia política onipresente, no trabalho escravo, na esterilização forçada de milhões de mulheres e na perseguição maciça das minorias, especialmente religiosas (o número de cristãos assassinados pelo governo chega a 20 mil por ano). À violência e à crueldade de um Estado policial soma-se a semvergonhice institucionaliza-

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É sobretudo graças à ajuda americana que a China cresce num ritmo capaz de fazer dela em 2012 a maior potência industrial

da: dos lucros da indústria chinesa, 50 bilhões de dólares anuais são em produtos falsificados. Também não caiam na esparrela de imaginar que toda essa quantidade monumental de sofrimento humano tenha servido ao menos para preservar uma cultura milenar. A "Revolução Cultural" de Mao Tsé-tung devastou a cultura tradicional da China mais do que poderia tê-lo feito uma ocupação estrangeira. E o que sobrou foi totalmente deformado pelas reinterpretações oficiais que, incrivelmente, trataram de dar um sentido materialista aos clássicos da espiritualidade chinesa. Hoje, nas universidades de Pequim, é impossível encontrar um estudioso que compreenda o sentido do taoísmo ou o simbolismo do I-Ching. Se estudiosos ocidentais como René Guénon e Marcel Granet não tivessem preservado esses conhecimentos, o tesouro espiritual chinês estaria irremediavelmente perdido para a humanidade. Ciência e tecnologia também não ganham nada com o investimento americano na China. A maior parte dos conhecimentos chineses nessa área é simplesmente comprada em Nova York ou na Flórida e copiada com a maior cara-de-pau. O que não se pode comprar em loja obtém-se por espionagem - às vezes sob a proteção do próprio governo americano, como aconteceu no caso do laboratório nuclear de Los Alamos, onde o presidente Clinton em pessoa mandou bloquear as investigações (nada mais lógico, aliás, uma vez que empresas estatais chinesas tinham contribuído substantivamente para a sua campanha eleitoral). Como foi possível que tanto dinheiro americano fluísse para alimentar essa monstruosidade? O nome do culpado é "globalização". E é olhando as coisas desse ponto de vista que se percebe a total alienação da mídia brasileira e principalmente dos intelectuais iluminados que a freqüentam com suas lições de sabedoria. "Globalização", para essa gente, é sinônimo de Império Americano. Nos nossos debates públicos, o triunfo da doutrina do livre mercado na década de 90 é apresentado invariavelmente como um artifício maquiavélico inventado por estrategistas de Wall Street para implantar no mundo o "american way of life". Alguns desses estrategistas, de fato, alegavam que a abertura das fronteiras comerciais espalharia a democracia americana no mundo. Mas outros alertavam que a simples liberdade econômica não poderia operar essa mágica, sobretudo se adotada no ar, em abstrato, fora de um enfoque geopolítico que levasse em conta, para além da concorrência empresarial, a concorrência estratégica entre os Estados. A abertura econômica da China, diziam, era perfeitamente compatível com a continuidade da ditadura comunista e de uma política exterior agressiva, militarista e expansionista. Este lado do debate americano foi inteiramente ignorado pela nossa mídia: raciocinan-

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Os fregueses da rede mais barateira da América financiam o crescimento da máquina de guerra chinesa

do exclusivamente na base do estereótipo Estado versus mercado, que se tornou o fetiche máximo do pensamento esquerdista nacional, ela identificou a priori o dogma do livre mercado com o interesse nacional americano, vendo uma convergência justamente onde os melhores analistas americanos viam uma oposição. A relação entre liberdade de mercado e interesse nacional é ambígua, para dizer o mínimo, e se torna altamente problemática quando não há reciprocidade suficiente na abertura dos mercados de parte a parte, isto é, quando um dos Estados aposta tudo na liberdade econômica e o outro no crescimento do poder nacional, usando como arma a abertura oferecida pelo outro. A abertura econômica é fórmula boa para as relações entre povos comerciantes. Mas, entre o comerciante e o guerreiro, a vantagem a favor deste último é esmagadora. No romance de Flaubert, Salammbo, dois mercenários conversam sobre o que planejam fazer quando a guerra entre Roma e Cartago acabar. Um deles sonha comprar uma fazenda e um arado, para enriquecer no comércio de alimentos. O outro responde que não precisa de nada disso para enriquecer. Mostrando a espada, diz: "Este é o meu arado." Tal é a diferença entre americanos e chineses: os primeiros apostam no sucesso de um sistema econômico; os segundos usam esse sucesso como meio provisório para crescer e vencer no campo das armas. Os americanos querem apenas dinheiro, e se iludem pensando que os chineses querem o mesmo. Os chineses alimentam essa ilusão, apostando que ela os ajudará a obter o que querem: o dinheiro e tudo o mais - a completa destruição cultural, política, militar e econômica do inimigo. No começo, as apologias abstratas do livre mercado tendiam a encobrir essa diferença. Hoje ela é patente aos olhos de todos, e é nela, exclusivamente, que reside a causa do crescimento inusitado da China, paralelamente ao enfraquecimento da indústria americana. As relações entre ideologia e poder são obviamente mais complexas do que as concebe a vã filosofia das classes falantes brasileiras. O que um observador atento aprende no WalMart é que a doutrina do capitalismo liberal pode ajudar a liquidar o capitalismo liberal, fomentando o crescimento de uma ditadura comunista tão Diário do Comércio agressiva, pelo menos, quanto 20/06/2005 a antiga URSS.


A guerra contra as religiões Ludvik Glazer-Naude/Corbis

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mbora desde a Revolução Francesa o grosso da violência militante tenha se originado sempre nas ideologias materialistas e escolhido como vítima preferencial a população religiosa; embora a perseguição aos católicos, ortodoxos, protestantes e judeus tenha matado mais gente só no período de 1917 a 1990 do que todas as guerras religiosas somadas mataram ao longo da história universal; embora nas duas últimas décadas o morticínio de cristãos tenha voltado a ser rotina nos países comunistas e islâmicos, chegando a fazer 150 mil vítimas por ano; embora todos esses fatos sejam de facílima comprovação e de domínio público (v. nota no fim deste artigo); e embora nas próprias nações democráticas o acúmulo de legislações restritivas exponha os religiosos ao perigo constante das perseguições judiciais, - a grande mídia e o sistema de ensino na maior parte dos países insistem em continuar usando uma linguagem na qual religião é sinônimo de violência fanática e na qual a eliminação de todas as religiões é sugerida ao menos implicitamente como a mais bela esperança de paz e liberdade para a humanidade sofrida. A mentira gigantesca em que se sustenta essa campanha é tão patente, tão ostensiva, tão cínica, que combatê-la só no campo das

discussões públicas é o mesmo que querer parar um assassino, ladrão ou estuprador mediante a alegação polida de que seus atos são ilegais. Os mentores e autores da campanha anti-religiosa universal sabem perfeitamente que estão mentindo. Não precisam ser avisados disso. Precisam é ser detidos, desprovidos de seus meios de agressão, reduzidos à impotência e tornados inofensivos como tigres empalhados. A propaganda insistente contra uma comunidade exposta a risco não é simples expressão de opiniões: é ação criminosa, é cumplicidade ostensiva ou disfarçada com o genocídio. Aqueles que a praticam não devem ser apenas contestados educadamente, como se tudo não passasse de um pacífico debate de idéias: devem ser responsabilizados judicialmente por crimes contra a humanidade. A jurisprudência acumulada em torno das atrocidades nazistas, unânime em condenar a cumplicidade moral mesmo retroativa, fornece base mais que suficiente para c o n d e n a r, p o r e x e m p l o , u m R i c h a r d Dawkins quando sai alardeando que o judaísmo e o cristianismo são "abuso de menores", como se a noção mesma da proteção à infância não tivesse sido trazida ao mundo por essas religiões e como se elas não fossem, hoje, o último obstáculo à erotização total da

A eliminação de todas as religiões é sugerida como a mais bela esperança de paz e liberdade para a humanidade sofrida"

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infância e à subseqüente legalização universal da pedofilia (já praticamente institucionalizada no Canadá, um dos países mais ateus do universo). Quando o sr. Dawkins se diz avesso ao uso de meios violentos para extinguir as religiões, mas propõe os mesmos objetivos ateísticos que há dois séculos buscam realizar-se precisamente por esses meios, ele sabe perfeitamente que a ênfase do seu discurso, e portanto seu efeito sobre a platéia, está na promoção dos fins e não na seleção dos meios. Voltaire, quando bradava "esmagai a infame", negava estar incitando quem quer que fosse à violência física contra a Igreja Católica. Mas, quando os revolucionários de 1789 saíram incendiando conventos, destripando freiras e decapitando bispos, era esse grito que ecoava nos seus ouvidos e saía pelas suas bocas. Se a religião é, segundo o sr. Dawkins, "o maior de todos os crimes", a matança de todos os religiosos terá sempre o atenuante da gravidade menor e o da sublime intenção libertadora. Quando em 1886 Edouard Drumont publicou o tremendo panfleto antijudaico La France Juive, ele não tinha em mente nenhuma crueldade a ser praticada coletivamente contra os judeus. Mas é impossível ler hoje suas páginas sem sentir o cheiro das câmaras de gás. Uma única e breve página vagamente anti-semita escrita por Winston Churchill na juventude precipitou-o numa tal crise de arrependimento, diante da ascensão do nazismo, que isso decidiu o restante da sua vida de líder e combatente. Drumont, que morreu em 1917, não poderia ter adivinhado o destino que os leitores dos seus livros dariam aos judeus. Mas o sr. Dawkins não precisa adivinhar o futuro para calcular o efeito de suas palavras: ele conhece a história do século XX, ele sabe a que resultados levam não somente as propostas explícitas como a de Lênin, "varrer o cristianismo da face da Terra", mas também o anticristianismo mais sutil, mais sofisticado de um Heidegger, que, pretendendo expulsar Deus para fora da metafísica, convocou Adolf Hitler para dentro da História. O homem que, sabendo de tudo isso, se oferece para gravar programas de TV que apresentam a religião como a raiz de todos os

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males, como se os mais amplos morticínios da História não fossem males de maneira alguma, esse homem é simplesmente um apologista do genocídio, um criminoso vulgar como qualquer neonazista de arrabalde. O sr. Dawkins já ultrapassou aquele limi-te da truculência mental e do desprezo à verdade, para além do qual toda a discussão de idéias se torna inútil. Não se trata de provar nada para o sr. Dawkins. Trata-se de provar seu crime perante os tribunais. O dele e o de inumeráveis organizações militantes, subsidiadas por fundações bilionárias, dedicadas a fomentar por todos os meios o ódio às religiões. Todas as organizações religiosas que não se mobilizarem para a defesa comum não só no campo midiático, mas no judicial, devem ser consideradas traidoras, colaboracionistas e vendidas ao inimigo. E não espanta que usem para legitimar sua covardia abominável o pretexto do perdão e da caridade, prostituindo o sentido da mensagem evangélica que manda cada u m d e n ó s p e rd o a r a s ofensas feitas a ele próprio, nunca pavonear-se de cristão mediante o expediente fácil de perdoar crimes cometidos contra terceiros, que aliás nunca lhe deram procuração para isso. Não é um discípulo de Jesus aquele que, vendo seu irmão ser esbofeteado, se apressa em cortejar o agressor ofecendo-lhe a outra face da vítima. Fundamentalismo? O mais extraordinário é que as forças anticristãs e antijudaicas, mal escondendo seu apoio à ocupação islâmica do mundo ocidental, se prevalecem da própria imagem sangrenta do radicalismo islâmico para projetá-la sobre as demais comunidades religiosas, sobretudo aquelas que são vítimas usuais da violência muçulmana, e transmitir ao mundo a noção de que todas são, no fundo, terroristas. O manejo astuto do termo "fundamentalismo" tem servido para esse ardil, que desonra qualquer língua culta. Esse termo designava originariamente certas seitas protestantes afeitas a uma leitura literal da Bíblia ou, mais genericamente, qualquer comunidade religiosa decidida a conservar o apego às suas tradições (um direito


que hoje se reserva para muçulmanos, índios, africanos e seus descendentes, negando-o a todo o restante da espécie humana). Ao transferir o uso desse qualificativo para os terroristas islâmicos, a grande mídia e os intelectuais ativistas que a freqüentam cometeram uma impropriedade proposital. De um lado, esse uso camuflava o fato de que esses radicais não eram de maneira alguma tradicionalistas: eram revolucionários profundamente influenciados pelas ideologias de massa ocidentais - comunismo e nazifascismo -, bem como pelo pensamento "vanguardista" de Heidegger, Foucault, Derrida e tutti quanti. De outro lado, e por isso mesmo, o termo assim empregado ia-se imantando de conotações repugnantes, preparando seu uso futuro como arma de guerra psicológica contra as mesmas comunidades religiosas que o radicalismo islâmico tomava e toma como suas vítimas preferenciais: os cristãos e os judeus. Numa terceira fase, o qualificativo passou a ser usado ostensivamente contra essas comunidades, ao mesmo tempo que se espalhava pelo mundo a campanha de difamação anti-religiosa da qual o sr. Richard Dawkins é agora o mais espalhafatoso garoto-propaganda. Durante a invasão do Iraque, rotular como "fundamentalistas" o presidente Bush (cristão) e o secretário Rumsfeld (judeu) tornou-se repentinamente obrigatório em toda a mídia chique, com uma uniformidade que comprova, uma vez mais, a presteza da classe jornalística em colaborar com a reforma orwelliana do vocabulário. Realizando um sonho de infância Desde pequenos, os membros da futura Comissão de Desconstituição e Injustiça da Câmara Federal nutriam profunda revolta contra as palmadas que levavam de seus progenitores em represália ao exercício de direitos humanos fundamentais, como o de tentar furar os olhos de seus irmãozinhos, atear fogo à casa, esganar o papagaio da vizinha, esticar um barbante entre os degraus da escada só para ver a vovó rolando ou praticar qualquer outra daquelas truculências encantadoras que prenunciam uma brilhante maturidade de discípulos de Che Guevara. Na adolescência, ainda parcialmente oprimidos sob a autoridade familiar, comoviamse até às lágrimas com a perspectiva de tornar-se, à imagem do mestre, "eficientes e frias máquinas de matar" e sair massacrando pa-

dres, burgueses, pais, mães e demais autoridades, "pero sín perder la ternura jamás". O sonho kitsch do morticínio meigo encantou sua juventude e tornou-se o ideal orientador de sua formação moral. Infelizmente, durante todo esse longo período, nada puderam fazer de substantivo contra a autoridade opressora, da qual dependiam para seu sustento, vestuário, educação, lazer e outras maldades a que se submetiam com paciência de verdadeiros mártires do socialismo. Em segredo, juravam que um dia iam acabar com toda aquela injustiça capitalista. Agora, crescidinhos, tiveram finalmente uma oportunidade da vingança redentora contra papai & mamãe. Ainda não puderam mandá-los para a cadeia, mas já quebraram a espinha dorsal da sua autoridade. Aprovaram, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 2654/03, que proíbe qualquer forma de castigo físico em crianças e adolescentes. O projeto será encaminhado ao Senado, sem precisar ser votado pelo Plenário da Câmara. O incentivo direto e indireto à delinqüência infanto-juvenil tem sido, há quase um século, um dos instrumentos fundamentais usados pelos ativistas de esquerda para minar a ordem social capitalista, gerando dentro dela um caos infernal para em seguida poder acusá-la de ser precisamente isso e propor a salvação geral mediante o acréscimo de controles estatais e burocráticos, exercidos, é claro, por eles mesmos. Intimamente associada a essa estratégia, a transferência progressiva de todas as formas de controle social para o grupo politicamente ativo é também um objetivo constante da subversão comunista. Todos os meios são usados para isso, sempre sob pretextos edificantes que colocam o eventual adversário na posição incômoda de parecer um defensor do mal. As mães que derem uma palmada no bumbum de seus filhos, por exemplo, serão agora encaminhadas compulsoriamente a um "programa comunitário de proteção à família". Quem pode ser contra a proteção à família? Na URSS, os dissidentes eram enca-

Todas as organizações religiosas que não se mobilizarem para a defesa comum devem ser consideradas traidoras"

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Diário do Comércio 20/06/2005

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minhados à "assistência psiquiátrica gratuita". Quem pode ser contra o tratamento gratuito dos doentes mentais? Nos EUA, já se tornou impossível ignorar o vínculo de causa e efeito entre as reformas educacionais "progressistas" adotadas desde John Dewey (1859-1952) e o crescimento avassalador da delinqüência infanto-juvenil, um problema que o Estado já desistiu de eliminar, contentando-se agora em dedicar-se ao "gerenciamento de danos", isto é, em adestrar a sociedade para que aceite o estado de coisas como fatalidade inevitável. (Sugiro, quanto a esse ponto, a leitura de Joel Turtel, Public Schools, Public Menace : How Public Schools lie to Parents and Betray our Children, Charlotte T. Iserbyt, The Deliberate Dumbing Down of America, Berit Kjos, Brave New Schools: Guiding Your Child Through the Dangers of the Changing School System, Brenda Scott, Children No More: How We Lost a Generation, Bob Whitaker, Why Johnny Can't Think e John Taylor Gatto, Dumbing Us Down: The Hidden Curriculum of Compulsory Schooling. Todos esses livros podem ser encontrados pelo site www.bookfinder.com.) Simultaneamente, a intelectualidade ativista tira proveito da situação que ela própria criou, imputando a violência adolescente, por exemplo, às fábricas de armas, que já existiam no tempo em que as crianças se contentavam com traquinagens domésticas inofensivas. A relatora do projeto na Comissão, Sandra Rosado (PSB-RN), justificou a nova lei afirmando que "educar pela violência é uma abominação, incompatível com o atual estágio de evolução da sociedade". Decerto: quando um país governado pelos gangsters do Mensalão intimamente associados aos narcotraficantes das Farc chega aos 50 mil homicídios por ano e ainda se preocupa mais em amarrar as mãos dos policiais do que em deter os criminosos, isso é um estágio de evolução incompatível com palmadas educativas nos bumbuns das crianças travessas. O tempo de tentar educar as safadinhas já passou: elas já estão todas na Câmara Federal. Somada às demais medidas concomitantes tomadas pelo Estado-babá para a proteção dos delinqüentes e a criminalização de todas as formas tradicionais de autoridade, a nova lei promete ter efeitos culturais que farão Antonio Gramsci e os fundadores da Escola de Frankfurt ter orgasmos no túmulo. Deve ser por fim! - a liberação sexual dos mortos.

FONTES SOBRE A PERSEGUIÇÃO ANTI-RELIGIOSA Livros: G David Limbaugh, Persecution: How Liberals Are Waging War Against Christianity (Washington, Regnery, 2003). G Roy Moore, So Help Me God: The Tem Commandments, Judicial Tyranny, and The Battle for Religions Freedom (Nashville, Tennessee, Broadman & Holman, 2005). G Janet L. Folger, The Criminalization of Christianity (Systers, Oregon, Multnomah, 2005). G Rabbi David G. Dalin, The Myth of Hitler's Pope (Washington DC, Regnery, 2005). G David B. Barrett & Todd Johnson, World Christian Trends, Ad 30-Ad 2200: Interpreting the Annual Christian Megacensus. William Carey Library, Send the Light Inc, 2003. G E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control (South Bend, Indiana, St. Augustine's Press, 2000). Internet: G http://www.christianper

secution.info/ G http://zbh.com/links/

martyred.htm G http://www.freedomhouse.

org/religion/ G http://www.christian monitor.org/ G http://www.worship.com /help/

http://www.wayoflife. org/fbns/ state.htm G http://www.thegreat separation. com/newsfront/ christian_persecution/ G http://www.persecution.com/ G http://www.jews4fairness.org/ index.php G http://www.wnd.com (site de notícias em geral, acompanha regularmente as notícias de perseguição religiosa no mundo).


Scott Picunko/Corbis

A chacota geral do mundo

Q

uem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber também que, se a demonstração da existência de Deus pode ser difícil, a da Sua inexistência é absolutamente impossível. Tanto é impossível que nenhum ateu jamais tentou sequer formulá-la. Todos limitam-se a argumentos periféricos e ocasionais, voltados antes a detalhes de doutrina religiosa, perfeitamente discutíveis em si mesmos, do que ao centro inexpugnável da questão. Essa impossibilidade não era desconhecida dos maiores pensadores ateus do passado, que a contornavam sem poder enfrentá-la. A quase totalidade dos que polemizam hoje em favor do ateísmo - e eles

ultimamente se multiplicam como ratos de esgoto não têm o menor pressentimento dela, embora esbarrem nas suas fronteiras a cada instante. A maioria apela em última instância ao argumentum ad ignorantiam, declarando com patética inocência que aquilo que desconhecem não pode existir. Esses são invencíveis na discussão, pois nenhum argumento tem o poder de infundir inteligência no ouvinte que uma sólida aliança da genética com a má educação tornou irremediavelmente estúpido. Sob esse ponto de vista, o ateísmo parece ter um futuro brilhante. A tese ateística não sendo logicamente defensável até suas últimas conseqüências, os inimigos de Deus acabaram-se distribuindo em tribos diversamente localizadas, cada qual atacando o problema por um

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pedacinho da borda, não na esperança de chegar um dia ao centro, mas na de vencer a platéia pelo cansaço, persuadindoa enganosamente de que a soma infindável de argumentos relativos tem o valor e a autoridade de uma prova absoluta. As principais dentre essas tribos são as seguintes: a) Os ateus propriamente ditos, que mesmo não sabendo disto são campeões da fé, na medida em que apostam naquilo que ninguém jamais poderá provar. Muitos deles, abdicando previamente de enfrentar a dificuldade intransponível inerente à sua tese, dispendem energias colossais em operações diversionistas como a do dr. Richard Dawkins, apegado à esperança de que a simples hipótese de poder o mundo ter surgido sem Deus, se formulada com sofisticação matemática bastante, já venha a resolver o problema inteiro, como se uma possibilidade teórica pudesse, por si, ser prova de realidade efetiva. b) Os deístas, que, cientes da impossibilidade de livrar-se completamente de Deus, tratam de diluí-Lo numa noção tão geral, tão vaga e tão abstrata que, no fim das contas, é como se Ele não existisse. A melhor solução para eles é a teoria do deus ocioso - muito em voga no tempo do mecanicismo renascentista -, o qual teria criado o mundo segundo regras tão fixas e imutáveis que toda interferência do criador se tornou desnecessária uma vez pronto o mecanismo do mundo. É a imagem do relojoeiro que, terminada a construção, dá corda no relógio e vai dormir. Não precisamos discutir essa puerilidade. c) Os agnósticos, que professam voltar as costas ao problema de Deus e, modestamente, lidar apenas com questões acessíveis aos métodos da moderna ciência natural, mas, feito isso, proíbem a investigação de qualquer objeto que esteja fora do alcance desses métodos ou proclamam abertamente a inexistência dele, mostrando ser ateus disfarçados que optaram por dificultar o acesso àquilo cuja inexistência não puderam provar. d) Os gnósticos, que admitem a existência do criador mas proclamam que ele é mau, que fez o mundo contra a vontade do verdadeiro Deus, ente espiritual puríssimo que jamais sujaria suas excelsas mãozinhas numa porcaria dessas; donde se segue a obrigação máxima do crente gnóstico, a qual consiste em destruir o mundo ou modificá-lo radicalmente, de preferência destruindo-o primeiro para depois substituí-lo por algo de totalmente diferente. Dessa proposta dupla do movimento gnóstico nasceu uma pluralidade caótica de seitas, das quais algumas se transformaram em movimentos de massa a partir do século XVIII, gerando as ideologias revolucionárias do anarquismo, do comunismo, do nazismo, do fascismo, do positivismo e da tecnocracia, bem como, para além delas, a proliferação de ocultismos da "Nova Era" e o plano da "Nova Ordem Mundial" ao qual esses ocultismos não servem senão de instrumento provisório. O gnosticismo é a ideologia suprema do nosso tempo, destinada a reinar soberana sobre uma humanidade idiotizada tão logo as religiões tradicionais se tornem incompreensíveis para as multidões e possam ser sintetizadas num culto biônico sob a administração da ONU ou órgão equivalente auto-incumbido das funções de governo do

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Os ateus são campeões da fé, na medida em que apostam naquilo que ninguém jamais poderá provar (...)

mundo. A proposta é tão virulenta, absurda e infame que, embora já esteja em fase avançada de implementação (v. o livro de Lee Penn já várias vezes citado aqui, False Dawn), jamais é apresentada em público com franqueza, apenas difundida indiretamente através de eufemismos anestésicos. Na verdade, o ateísmo, o deísmo e o agnosticismo já não têm qualquer energia própria. Propugnados por saudosistas do iluminismo voltaireano e do cientificismo positivista, tornaram-se instrumentos auxiliares que concorrem para criar a confusão necessária à implantação da nova religião universal, sendo por isso fomentados e subsidiados pelas mesmas fontes que a originam, entidades perfeitamente respeitáveis em aparência que são também as forças propulsoras de movimentos revolucionários e subversivos em várias partes do mundo. Até há algum tempo, tudo isso era apenas uma suspeita, e a investigação dos fatos por trás dela se misturava inevitavelmente a doses maciças de especulação imaginária, preconceitos monstruosos, desinformação proposital e um bocado de pseudociência. Foi a época das "teorias da conspiração". Hoje, os mesmos avanços tecnológicos que deram a esse movimento o impulso formidável da organização em "redes" tornaram fácil identificar essas redes e todas as suas conexões internas e externas, apreendendo a unidade por trás de uma multiplicidade que de outro modo seria desnorteante. O simples estudo da circulação de dinheiro entre fundações, governos, ONGs, movimentos terroristas e quadrilhas de narcotraficantes basta para tornar a realidade da subversão gnóstica mundial demasiado visível para que se possa continuar a ocultá-la mediante o apelo a evasivas difamatórias destinadas a intimidar o investigador. Um exame acurado dos sites http://www.activistcash.com e http://www.discoverthenetwork.org dará ao leitor uma idéia precisa do que estou dizendo. Estudos como The Marketing of Evil, de David Kupelian (Nashville, Tennessee, WND books, 2005), Machiavel Pedagogue, de Pascal Bernardin (Cannes, Édition Notre-Dame das Graces, 1995), Good Bye, Good Men, de Michael S. Rose (Washington DC, Regnery, 2002), The Deliberate Dumbing Down of America, de Charlotte Thomson Iserbit (Ravenna, Ohio, The Conscience Press, 1999) e The ACLU vs. America, de Alan Sears e Craig Osten (Nashville, Tennessee, Broadman & Holman, 2005), tirarão o restante da dúvida. Os nomes das mesmas organizações - a "Ford Foundation", o "Open Society Institute" de George Soros, a "John D. & Catherine T. MacArthur Foundation", a "Carnegie Corporation of New York" e o "Council on Foundations", entre uma centena de outras - aparecem com tão obsessiva freqüência entre os


Para os deístas, Deus é como o relojoeiro que, terminada a obra, dá corda no relógio e vai dormir

financiadores de movimentos subversivos e os do governo mundial, que já não é possível deixar de enxergar a ligação entre essas duas forças aparentemente díspares, uma voltada para a disseminação do caos, outra para a construção da Nova Ordem, tão articuladas entre si quanto as duas operações alquímicas da dissolução e da coagulação. Contra esse assalto geral às bases da civilização, os pontos de resistência são hoje as religiões tradicionais, o Estado constitucional americano, o Estado de Israel e alguns países do Leste Europeu egressos do comunismo. Das religiões, cada uma está mais corroída que a outra. O cristianismo, ainda forte nos EUA e no Leste Europeu e em plena expansão na Ásia e na África, está praticamente destruído na Europa ocidental e dominado pelo esquerdismo na América Latina. O Islã tradicional, evaporado, tornou-se apenas uma figura de retórica no discurso radical que a mídia do Ocidente, confundindo propositadamente as coisas, rotula de "fundamentalista". O judaísmo está assolado daqueles tipos que Don Feder chama de "judeus Seinfeld", para os quais as três solenidades judaicas fundamentais são o Bar-Mitzvah, o Rosh-Hashaná e o aniversário da Barbara Streisand. A América está ameaçada desde dentro pela potente simbiose das fundações milionárias com o esquerdismo revolucionário, solidificada pela mídia chique e hoje mentora inconteste do Partido Democrata. Israel, cercadao de três dezenas de países hostis, e talvez recordista mundial de traidores e muristas per capita, sobrevive não se sabe como. Voltado à sua destruição urgente, o anti-semitismo adquire novos contornos, mais sutis e enganadores, que não podem talvez ser compreendidos senão à luz do estudo empreendido pelo rabino Marvin S. Antelman, To Eliminate the Opiate (Jerusalem, Zionist Book Club, 2 vols., 1988 e 2002), que um dia comentarei aqui em detalhe. Minar esses três pontos de resistência é obviamente prioritário para a Nova Ordem Mundial. Daí fenômenos estranhos como a súbita revivescência do cientificismo, já totalmente demolido pelos maiores filósofos da primeira metade do século XX - Husserl, Jaspers, Lavelle, Berdiaev, entre outros -- mas facílimo de impingir a novas gerações que não tiveram acesso universitário às obras desses pensadores ou que foram preventivamente imunizadas contra eles por injeções maciças de desconstrucionismo, chomskismo, multiculturalismo e outros estupefacientes. Na esteira desse fenômeno vem o crescente anticristianismo da mídia e do show business, cada vez mais brutal e descarado, atuando sobretudo através do expediente orwelliano da "reforma do vocabulário", na qual antigos rótulos pejorativos reservados a

extremismos insanos são repentinamente ampliados para atingir a massa inteira dos fiéis, bastando, por exemplo, um cidadão de hoje em dia ser contrário ao aborto para receber o epíteto de "fundamentalista" ou "fanático teocrata". Acompanha esse cerco a escalada judicial, impondo cada vez mais restrições à liberdade de culto, estrangulando organizações religiosas mediante proibição de contribuições e criminalizando a simples expressão da fé em lugares públicos. Na mesma linha vem a súbita proliferação de pretensas obras de arte que se notabilizam exclusivamente pela astúcia da blasfêmia proposital destinada a dessensibilizar a população mediante o truque sórdido do escândalo rotinizado. Não é necessário dizer que esses empreendimentos vêm geralmente subsidiados pelas mesmas fontes acima citadas. A onda antiamericanista e anti-israelense, a mais vasta campanha de ódio que já se viu no mundo, subindo no tom até a perda completa do senso das proporções, abriu as portas da grande mídia a um tipo de jornalismo porco que décadas atrás só se via na imprensa partidária comunista. O desinformante profissional e o agente de influência são hoje aceitos como modelos de jornalismo, dominando não só as redações como também os órgãos sindicais da classe, donde exercem sobre o conjunto da profissão um controle monopolístico que torna a censura desnecessária. Nesse panorama, não é de espantar que ateus de velho estilo, reencarnações de Haeckel e Renan, reapareçam brandindo os mesmos velhos argumentos já mil vezes desmoralizados, mas agora reencorajados em suas pretensões "científicas" pela produção editorial de lixo gnóstico e ocultista em doses avassaladoras, sufocando a oposição pela força da gritaria ricamente subsidiada, facilmente ecoada pelo trabalho voluntário de uma multidão de chimpanzés no Terceiro Mundo. Que o pretenso materialismo científico apareça tão intimamente aliado à onda ocultista e satanista não deveria surpreender a ninguém. Hoje sabe-se que a fonte mesma do cientificismo - a rebelião iluminista - não brotou senão da mesma fonte gnóstica de onde nasceram o teosofismo e a Nova Era. Fenômenos como "O Código da Vinci" e "O Evangelho de Judas", tão manifestamente subsidiários da pseudo-religião mundial em preparação, não têm nenhum significado intelectual em si mesmos e não podem ser discutidos exceto como dados sociológicos de uma época que dá testemunho contra a inteligência humana. Os velhos ateísmos cientificistas que emergem das tumbas não Diário do Comércio são senão um detalhe patético 17/04/2005 a mais na chacota geral.

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Absurdo monumental

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nquanto o povo inteiro se emociona com a mirabolante sucessão de escândalos do Mensalão, outros acontecimentos, mais discretos porém ainda mais reveladores da ruína moral e intelectual da nação, podem passar totalmente despercebidos. Escolhi este porque é, em si, um monumento ao desastre. O leitor sabe que quem torce pelo Flamengo é flamenguista, quem vota no Maluf é malufista, quem se dói de amores por Lula é lulista, quem quer ver o comunismo implantado no mundo é comunista. Mas, segundo decisão unânime da Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais do DF, quem defende a prática do aborto não pode ser chamado de abortista. Ah, isso não. O Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz, do Pró-Vida de Anápolis, SP, entidade que luta contra a legalização do aborto, foi condenado a pagar R$ 4.250,00 de multa por ter designado com esse termo uma notória defensora (bem subsidiada pela fundação MacArthur, é claro) do direito de matar bebês no ventre de suas mães, em quantidade ilimitada, a mero pedido das ditas cujas. Pior: o sacerdote foi informado pela autoridade judicial de que doravante deve abster-se de usar a palavra proibida não só ao falar da mencionada senhora, ou senhorita, mas de qualquer outra pessoa, por mais abor(CENSURADO)ista que seja. Não sei o nome dos juízes que compõem a Turma. Mas sei que das duas uma: ou a proibição que baixaram se aplica a todos os cidadãos brasileiros ou exclusivamente ao Pe. Lodi. Na primeira hipótese, os signatários dessa nojeira ultrapassaram formidavelmente suas atribuições de magistrados e se autopromoveram a legisladores, com o agravante de que usaram dessa inexistente prerrogativa para instaurar, pela primeira vez na História universal da jurisprudência, a proibição de palavras (e logo de um termo banal do idioma, consagrado em dicionários e em pelo menos 24 mil citações no Google). Na segunda, terão negado a um cidadão em particular o direito de livre expressão desfrutado por todos os demais, configurando o mais descarado episódio de discriminação pessoal já registrado nos anais do hospício judicial brasileiro. Num caso, usurpam a autoridade do Con-

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O próprio Deus jamais sonhou remexer tão fundo os pilares do cosmos como o pretenderam os meritíssimos

Abortismo é um termo banal do idioma, consagrado em dicionários e em pelo menos 24 mil citações no Google

gresso e a usam para baixar uma lei digna da Rainha de Copas. Noutro, infringem a Constituição que lhes incumbe defender. Bem, uma ordem que tem dois significados possíveis, antagônicos entre si e cada um absurdo em si mesmo, é, com toda a evidência, uma ordem sem significado nenhum. Como obedecê-la, portanto? Obedecer a uma ordem é traduzir o seu significado em atos. Não havendo significado, a obediência é impossível. Ninguém pode se curvar a ela sem anular, no ato, os princípios constitucionais e legais que fundamentam a autoridade mesma de quem a emitiu. Aos juízes da Turma Recursal cabe, portanto, a invenção desta novidade jurídica absoluta: a sentença auto-anulatória. Se pretendem seriamente que ela seja cumprida, portanto, os magistrados brasilienses violam não somente um dos princípios fundamentais do Direito, que reza "ad impossibilia nemo tenetur" (ninguém é obrigado a fazer o impossível), mas também as leis da lógica elementar, a ordem causal da ação humana e, enfim, a estrutura inteira da realidade. Perto disso, aquele famoso prefeito de cidade do interior que mandou revogar a lei da gravidade foi um primor de modéstia, já que suspendeu somente uma das leis da mecânica clássica, deixando o resto da ordem universal em paz. O próprio Deus jamais sonhou remexer tão fundo os pilares do cosmos como o pretenderam os meritíssimos, já que anunciou desfazer no Juízo Final tão-somente o universo corpóreo presentemente conhecido, conservando intactos o princípio de identidade e os nexos de causa e efeito, sem o que não poderia julgar os vivos e muito menos os mortos. Sto. Tomás de Aquino ensinava que a onipotência divina não tem limites externos mas os tem internos: não pode anularse a si própria, decretando uma absurdidade intrínseca. Para os juízes da Turma Recursal, isso não é obstáculo de maneira alguma. Se os leitores pensam que a comédia parou por aí, enganam-se. Uma sentença que não tem sentido lógico requer interpretação psicológica. Mas quando tentamos sondar a obscuridade mental de onde suas excelências extraíram o fruto patético de suas caraminholações, defrontamo-nos com uma dificuldade insupe-


Padre foi informado pela autoridade judicial de que doravante deve abster-se de usar a palavra proibida

rável: ou esses juízes compreendem o sentido do que assinaram, ou então assinaram a esmo, de supetão, num arrebatamento paroxístico que só poderia alegar em defesa própria o atenuante da insanidade. No primeiro caso, são um grupo revolucionário místico-gnóstico pelo menos tão perigoso quanto o de Jim Jones, empenhado em corrigir os erros do Todo-Poderoso mediante a supressão da realidade. No segundo, estão absolutamente incapacitados para a função judicial ou aliás para qualquer outra, sendo obrigação da corregedoria removê-los imediatamente do cargo e devolvê-los aos cuidados de suas respectivas mães, para que estas apliquem nos seus bumbuns os corretivos requeridos em casos de molecagem intolerável. Incapaz de atinar com algum sentido lógico ou psicológico na enormidade judiciária brasiliense, acredito no entanto que posso encontrar para ela uma explicação sociológica: Suas Excelências são o produto acabado da universidade brasileira. Quatro décadas de desconstrucionismo, multiculturalismo, "direito alternativo", teologia da libertação e slogans politicamente corretos, sem nenhum contrapeso de racionalidade científica e educação clássica, bastam para infundir em pessoas clinicamente sãs a doença espiritual do irracionalismo anticósmico, de modo que, continuando a agir de maneira normal no dia a dia, são subitamente atacadas de autodivinização aguda quando no exercício de alguma função que lhes pareça ter relevância ideológica. Aí, sem a menor hesitação de consciência, passam a exigir que dois mais dois dêem cinco, que os pássaros voem para trás, que as vacas produzam vinho francês em vez de leite e que a soma dos ângulos internos dos triângulos dê 127,5. E fazem tudo isso acreditando cumprir uma alta missão ético-social. Já vamos para a terceira geração de estudantes brasileiros afetados por essa grotesca deformidade do espírito. Não é de espantar que, elevados ao cargo de magistrados, esses meninos tenham alguma dificuldade de discernir entre a toga judicial e a capa do Super-Homem.

Suas Excelências são o produto acabado da universidade brasileira

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efeito, o encanecido oficial, nos intervalos furtivos do seu convívio perfeitamente respeitável com velhos companheiros de farda, freqüenta o círculo de redat o re s d a H o r a d o P o v o , aquela publicação eminentemente fecal que, no centenário de Stalin, celebrou o ogro genocida como "o maior democrata da humanidade" (sic), e cuja misteriosa sobrevivência com tão poucos leitores e anúncios só veio a ser cabalmente explicada mediante a revelação das propinas que, por conta do tristemente célebre projeto "oil for food", recebera de Saddam Hussein. Nas horas sombrias em que o peso da dignidade castrense se torna excessivo e os instintos baixos da mendacidade atávica clamam por soltar a franga, é nesse submundo mental que o general Nery busca alívio e reconforto, não só intoxicandose daquela droga impressa, mas ajudando a produzi-la sob a forma de invencionices convenientemente anti-americanas, bem ao gosto de seus camaradas de farra ideológica, publicadas em confraternização promíscua com as de outras macacas de auditório d e M a o Ts é - t u n g , F i d e l Castro e Pol-Pot. O que se ouve num ambiente desses não se repete em casa. Deposita-se discretamente na privada do esquecimento. A não ser, é claro, quando se tem a vocação incoercível da papagaiada.

Aí o que o sujeito faz é empoleirar-se na janela do prostíbulo e repetir o discurso inteiro que ouviu lá dentro, surpreendendo-se de que os transeuntes distraídos não parem para aplaudi-lo. O que o general Nery escreveu de mim só fica bem no recinto fechado da redação da Hora do Povo. Fora daí, alardeado para o mundo, a céu aberto, é uma gafe medonha, um vexame co-

lossal, além de delito previsto nas leis penais do país. O general chama-me de todos aqueles nomes para dar a impressão de ser um tribuno indignado, erguido em defesa de uma nobre

O GRANDE

Janusz Kapusta/Corbis

eagindo com fúria burlesca ao meu artigo da semana retrasada, o general Andrade Nery, por extenso Durval Antunes Machado Pereira de Andrade Nery, vice-presidente da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, está fazendo circular pela internet uma nota repleta de solecismos, na qual me chama de "pseudojornalista dissimulado, entreguista, antipatriota, peitado, defensor intransigente de uma política globalizante que prioriza uma só nação dando-lhe o direito de explorar todos os povos" (sic). Eu não solicitaria a atenção do leitor para semelhante estupidez se esta fosse apenas um insulto pessoal e não, como de fato é, um sintoma elucidativo d a q u i l o m e s m o q u e d enunciei no meu artigo: o esforço maciço de traidores e usurpadores para colocar as nossas Forças Armadas a serviço de tudo o que elas combateram no passado. Pela sua posição na Adesg, Andrade Nery está bem equipado para dar uma substantiva contribuição a esse esforço, e é só isto o que torna as suas palavras dignas de exame. O teor mesmo das imputações é tão ridículo, tão inverso ao conteúdo expresso de tudo o que escrevi, disse e fiz ao longo da minha carreira jornalística, que nenhuma dificuldade séria impedirá o leitor de perceber, à primeira vista, que o general não tem a menor idéia do que está dizendo: é apenas um papagaio de bordel a repetir mecanicamente coisas feias que ouviu de prostitutas. Com


instituição, a Escola Superior de Guerra, que teria sido atacada por mim. Bela comédia. Na verdade, eu nada disse contra a ESG, mas tudo contra o estado atual em que se encontra. Nada contra a instituição, tudo contra os que hoje se servem dela para finalidades opostas às suas metas originárias. Defender esses farsantes e usurpadores não é defender a institui-

ROMBO

ção: é aviltá-la, é cuspir na sua história, fingindo-se de seu advogado. Atacá-los não é falar mal dela: é honrar os que a criaram, é dar voz aos mortos que já não podem se defender. Tal a

diferença entre o empreendimento do general Nery e o meu. A ESG de hoje não é mais a de ontem. Mas não é a sua continuação, o fruto de uma evolução normal. É a sua negação, o seu oposto simétrico. Não há conciliação entre elas. Quem ama a primeira, odeia a segunda, e vice-versa. O próprio general Nery fornece a prova dessa transformação. Leiam o seguinte parágrafo (transcrevo sem correções): " Assim foram encomendados (à ESG) planos de governo na área energética, planos para melhoria das comunicações - o que à época era um caos, pois se demorava quatro dias para falar do Rio de Janeiro para Manaus - domínio da energia nuclear, tecnologia para agroindústria, tecnologia de ponta na área de engenharia. desta forma, nasceram a Usina de Tucuruí, Itaipu, ampliação da Usina de Paulo Afonso, Furnas, a Usina Nuclear de Angra dos Reis, Embrapa, ITA, Embraer, bem como o desenvolvimento dos motores a álcool, plano hoje oferecido a Cuba para solução de suas carências, face ao atual valor do petróleo, e o e m b a rg o p e l o s E s t a d o s Unidos da América." Tudo o que ele diz aí é verdade. A ESG realizou grandes trabalhos para o país. Só que todos eles com exceção do último, e já veremos por quê - foram realizados entre a fundação da Escola e o fim do chamado "governo militar", em 1988. Nesse período, a instituição, com sua "doutrina da segurança nacional", servia ao Brasil e aos valores tradicionais da civilização cristã que nortea-

ram a construção do país. Ela era o centro intelectual da defesa da nacionalidade - e da segurança continental - contra a ameaça comunista vinda de Cuba. Por isso os comunistas a odiavam, tanto quanto hoje odeiam a mim, e falavam dela nos mesmos termos que o general agora usa contra mim. Consideravam-na o templo do entreguismo, chamavam-na de

Pseudo-jornalista dissimulado, entreguista, antipatriota, peitado" - do general Andrade Nery sobre o colunista Olavo de Carvalho

vendida ao imperialismo ianque, de servidora da exploração internacional. Nesse tempo, a ESG recebeu vultosas tarefas do governo e se desincumbiu delas com eficiência e patriotismo inigualáveis. Não é estranho que tantas coisas boas para o país fossem feitas por uma instituição acusada de trabalhar a serviço de interesses estrangeiros, como representante local de uma concepção de segurança continental "imposta por Wall Street"? O general não faz idéia de

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quanto me honra ao macaquear, contra mim, o discurso com que os inimigos do Brasil tentaram enlamear a imagem da instituição que hoje ele finge servir para melhor servir-se dela. Não por coincidência, de todas as realizações da ESG que constam da sua lista, só uma corresponde ao período atual, à chamada redemocratização ou Nova República: trata-se de um plano para o desenvolvimento de motores a álcool, já antigo, mas agora - surprise! "oferecido a Cuba para solução de suas carências, face ao atual valor do petróleo, e o embargo pelos Estados Unidos da América". Não liguem para a regência preposicional capenga. O homenzinho apenas exerce seu direito ao analfabetismo funcional. O que importa é a informação: o apologista da nova ESG não tem a alegar em favor dela senão o que a velha ESG fez pelo do Brasil e o que ela, agora, faz em benefício de Cuba. Para ele, já se vê, as duas coisas são igualmente patrióticas. Tanto faz defender o Brasil contra uma ditadura estrangeira que financiava a subversão armada no nosso território, nas décadas de 60-70, ou ajudar essa ditadura a fazer exatamente o mesmo, agora. Com um agravante formidável: comparadas aos feitos das FARC, as guerrilhas dos anos 70 eram uma escaramuça de moleques; ao lado do Foro de São Paulo, a velha OLAS de Fidel Castro (Organización Latino-Americana de Solidariedad) era um clube de futebol de botão. Se naquela época a ESG serviu como um poderoso cimento para dar solidez à "grande bar-

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reira" erguida contra as ambições cubanas, muito mais obrigação teria de fazê-lo hoje, em vez de dar força a uma ditadura que subsidiou e orientou a matança de tantos soldados brasileiros. Fazer de conta que a ESG não mudou, que dá na mesma servir ao Brasil ou a Cuba, é uma fraude tão mani-

O general não faz idéia de quanto me honra ao macaquear, contra mim, o discurso dos inimigos do Brasil" - reage Olavo de Carvalho

festa, tão despudorada, que só por endossá-la o general já faria jus ao estatuto de inimigo da pátria, de traidor das Forças Armadas, de agente de influência a serviço - gratuito ou remunerado, pouco importa - daquilo que existe de pior no mundo. E sua atuação na ESG é a prova mais evidente de que a entidade, para dizer o mínimo, traiu a si própria e hoje se empenha em cortejar seus inimigos de ontem. Saber como se deu essa transformação é outro problema. Não freqüento a Es-

cola, só observo suas manifestações exteriores, assustando-me com o espaço cada vez maior ali concedido a agentes de influência dedicados a fazer das Forças Armadas brasileiras um instrumento do comunismo internacional. Quando, alguns anos atrás, o sr. Márcio Moreira Alves chegou a ser cogitado para reitor civil da instituição, a mudança que ela sofrera ao longo dos anos se tornou visível demais para ser ignorada. O sr. Moreira Alves, pouco antes, tinha voltado de uma viagem à Amazônia, entusiasmado com a transformação ideológica das nossas tropas de fronteira, que, dizia ele, varavam noites estudando as obras de Ho Chi Mihn e sonhando com uma guerra na selva... contra os narcotraficantes? Não. Contra os guerrilheiros das Farc, que entravam e saíam do nosso território como se fosse sua própria casa? Não. Sonhavam com uma guerra contra os marines americanos. Era esse o mesmo Exército das décadas de 60 e 70? Quantos soldados brasileiros a Marinha americana havia matado, para que nossos jovens oficiais a odiassem tanto? Que extraordinários benefícios o Brasil havia recebido do movimento comunista internacional, para que nossas tropas se oferecessem para morrer a serviço dele? Não acompanhei a transformação da ESG capítulo por capítulo, mas observei que, tão logo veio abaixo a ditadura soviética, intelectuais iluminados, civis e militares, se aproveitaram da impressão do momento para proclamar que o movimento comunista inter-

nacional já não era problema e que nosso inimigo potencial, daí por diante, eram os EUA. Como prova disso, alegavam a presença constante de ONGs americanas na Amazônia e, naturalmente, a expansão do "imperialismo americano" através do Plano Colômbia e atividades similares. A falsidade desse diagnóstico saltava aos olhos de quem quer que conhecesse algo do movimento comunista. Desde logo, a extinção da URSS não foi acompanhada de nenhuma modificação substancial na velha KGB, que só mudou de nome mas nem sofreu cortes no seu orçamento, nem foi expurgada de seus velhos quadros comunistas, nem teve alteradas as suas funções tradicionais. Falar em "fim do comunismo", nessas circunstâncias, era tão ridículo quanto teria sido proclamar a extinção do nazismo se, morto o Führer, a Gestapo continuasse a funcionar sem ser incomodada. Desde o começo dos anos 90, era previsível a qualquer momento a revivescência do comunismo sob outro nome qualquer. Quando a IV Assembléia do Foro de São Paulo proclamou seu objetivo de "reconquistar na América Latina tudo o que perdemos no Leste Europeu", ignorar esse perigo trornou-se cegueira suicida. Hoje, quando o poder no continente está nas mãos dos Chávez,


dos Evos Morales, dos Kirchners e dos Lulas, continuar a ignorá-lo é cumplicidade criminosa. Mas, na ESG, os Andrades Nerys estão preocupados é com o "avanço do imperialismo americano". Ora, só um observador perverso e mal intencionado, ou ainda mais burro do que o próprio Andrade Nery jamais conseguiria ser, não percebe que as entidades americanas que interferem na Amazônia, como por exemplo o Conselho Mundial das Igrejas, a Fundação Rockefeller e agentes de George Soros, não representam de maneira alguma os interesses nacionais dos EUA, mas, ao contrário, estão profundamente associadas ao movimento esquerdista e antiamericano que se esforça para quebrar a espinha do poder nacional americano e transferir a soberania do país para organismos internacionais. Não há ninguém que ignore isso nos EUA - mas, graças a onipres e n ç a d e a g e n t e s d e i nfluência na mídia nacional e em entidades como a ESG, essa informação ainda não chegou ao Brasil. Claro: é preciso ocultá-la a qualquer preço, pois ela modifica radicalmente a visão do quadro estratégico internacional e dilui perigosamente o empenho de juntar forças no mundo inteiro para um ataque multilateral aos EUA - empenho apoiado pelas mesmas organizações que os intelectuais iluminados descrevem como pontas-de-lança do "imperialismo ianque". Quanto ao Plano Colômbia, obra de um presidente cujas conexões ideológicas não escapam nem a velhi-

nhos com Alzheimer desde que ele se elegeu com a ajuda do governo da China e depois se tornou protetor da espionagem chinesa em Los Alamos, o seu único efeito, previsível demais para ser coincidência, foi desarmantelar os velhos cartéis e transferir todo o seu poder às Farc. Se isso é imperialismo americano, eu sou o Andrade Nery em pessoa. Dentro dos EUA, até as crianças de escola sabem que há uma briga de foice entre o nacionalismo americano, tradicionalista e conservador, e o esquema globalista associado às fundações bilionárias, à intelectualidade enragée, ao movimento neocomunista e aos organismos administrativos internacionais. Juntar tudo no mesmo saco e catalogá-lo sob o rótulo geral de "imperialismo americano" só é possível no

Terceiro Mundo, onde a população ignora tudo da política interna americana e pode ser facilmente ludibriada para desviar seu ressentimento das verdadeiras centrais globalistas e despejá-lo sobre os EUA. Patifes como Andrade Nery não fazem outra coisa na vida senão colaborar com esse gigantesco esquema de desinformação, no qual se depositam as mais altas esperanças de "reconquistar na América Latina o que perdemos no Leste Europeu". Se para isso tentam parasitar as glórias da velha ESG, é porque sabem que só por meio do engodo podem manipular as Forças Armadas, transformando a "grande barreira" no "grande rombo" por onde a tropa inteira dos tradicionais inimigos do Brasil vem entrando para galgar todos os altos postos e cobrir-se de glórias usurpadas. Durante anos fui, na grande mídia brasileira, o único jornalista empenhado em defender as Forças Armadas contra o bombardeio de calúnias, sabendo que este, no fundo, vinha

Diário do Comércio 09/01/2006

das mesmas fontes da "nova doutrina estratégica" que ia ganhando terreno na ESG e por toda parte. Por ter assumido essa posição, sofri toda sorte de ataques e boicotes, recebi inumeráveis ameaças de morte, vi minha família ser difamada e perdi três empregos. Recebi duas condecorações, uma do Exército, outra da A e ro n á u t i c a . S e n t i q u e compensavam tudo aquilo. Não tenho estômago para assistir a esse espetáculo grotesco de um agente de influência comunista posar de advogado da honra militar enquanto eu faço o papel do malvadinho, do inimigo, do bandido. É absurdo demais, é insano demais. É o mundo de Pirandello, de Kafka, de Ionesco, o mundo da Rainha de Copas. É a realidade transformando-se em sátira de si mesma. Um engenheiro do rombo falando em nome da "grande barreira"! Valha-me Deus! Até que ponto este país vai consentir em deleitar-se no fingimento, na farsa, na burla geral? PS - No terceiro parágrafo deste artigo, o leitor não deve enxergar nenhuma insinuação maldosa contra as prostitutas, essas boas moças que tanto alegraram a nossa juventude. Como diria o eminente Agamenon Mendes Pedreira, o jornalista mais sério do Globo, a única coisa em comum entre elas e os Andrades Nerys é que mudam de posição a pedido do freguês.

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A miséria do mundo Ed Ferreira/AE/03/02/03

Populares no lançamento do programa Fome Zero em Guaribas (PI), no começo de 2003

A

migos que muito respeito pedem-me às vezes que escreva algo sobre pobreza, desigualdade social ou coisa assim. Sendo esse o assunto mais mexido e remexido em campanhas eleitorais, discursos parlamentares, teses universitárias, editoriais sapientíssimos, debates de botequim e congressos internacionais de especialistas em tudo, sinto-me naturalmente inibido de entrar numa conversa na qual praticamente todos os membros da espécie humana, por direito de nascimento, se sentem convidados a opinar e na qual, pela insuperável limitação de tempo decorrente da afluência universal ao microfone, cada um só pode desfrutar do seu direito de falar quando exerce com ainda mais tenacidade o direito de não ouvir. Por isso mesmo tenho acreditado que a minha maior contribuição ao melhoramento da condição social dos desfavorecidos seria uma espartana abstinência de opiniões. Isso não quer dizer que não pensasse no assunto. Pensava nele, sim, mas sem ne-

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nhuma esperança de chegar a diagnósticos gerais ou propor terapêuticas. Movido por aquela prudência quase obsessiva que nasce da ignorância consciente, julguei que antes de me alçar a tão altos vôos seria recomendável coletar um certo número de observações básicas fáceis de confirmar, mas suficientemente amplas, na generalidade do seu alcance, para ter alguma utilidade em futuras especulações mais ambiciosas. Em compensação da penúria de opiniões e propostas, não me esquivo de maneira alguma a fornecer aos interessados uma lista dessas constatações:

1

Até onde alcança a visão do historiador, a pobreza e a desigualdade são as condições mais gerais e permanentes do ser humano na Terra. Não são de maneira alguma anomalias observadas, aqui e ali, sobre um fundo univer-

Hesíodo


sal de prosperidade e igualdade. Também não são mutações sobrevindas após uma etapa historicamente registrada de riqueza geral e justa distribuição. O comunismo primitivo é uma conjeturação mítica exatamente como a Idade de Ouro de Hesíodo.

2

Em nenhuma etapa histórica anterior ao século XVIII europeu observa-se um estado de espírito marcado pela revolta geral, radical e crescente contra a desigualdade social em qualquer das suas formas. Essa revolta, partindo da França, veio junto com a crença na possibilidade de uma sociedade inteiramente planejada por uma elite de revolucionários iluminados.

4

Só povos que se atiraram de cabeça na aventura capitalista conseguiram elevar significativamente o padrão de vida de suas populações, mas em muitos países a prosperidade veio junto com um crescimento ainda maior do aparato burocrático-estatal, resultando naquela mistura de capitalismo e socialismo que leva o nome genérico de "fascismo", um regime que deságua quase que naturalmente na autodestruição por meio da guerra.

5

Embora desde o século XVIII as esperanças de uma vida melhor para os pobres viessem associadas à expectativa de uma ampliação geral dos direitos civis e políticos, em muitos países es-

Presidente Wilson: desenvolvimento e atividades militares

Revolução Francesa: luta contra a desigualdade social

Mao Tsé-tung: em uma década matou de fome 30 milhões de pessoas

3

A idéia da sociedade planejada sofreu muitas modificações desde então, mas toda tentativa de realizá-la produziu níveis de miséria e desigualdade social nunca imaginados pelas gerações anteriores. O mais radical desses experimentos, o "Grande Salto para a Frente" da China revolucionária, matou de fome trinta milhões de pessoas em uma década - por certo o mais notável desastre econômico de todos os tempos, só comparável a devastações produzidas por catástrofes naturais. Na Rússia soviética, após sete décadas de comunismo, o cidadão médio consumia menos proteínas do que um súdito do tzar, e tinha menos meios de adquirir um automóvel do que um negro da África do Sul sob apartheid.

ses dois objetivos entraram em conflito, ora sacrificando-se a liberdade em nome da igualdade, ora esta em nome daquela.

6

Somente um país conseguiu manter-se numa linha de desenvolvimento econômico constante e progressiva eliminação da pobreza sem sacrifício considerável das liberdades individuais: os Estados Unidos da América. Coincidência ou não, esse foi o país em que a doutrina da sociedade planejada foi recebida com maior frieza e hostilidade, só alcançando alguma aceitação nos períodos de atividade militar intensa (presidências de Woodrow Wilson, Franklin D. Roosevelt e Lyndon B. Johnson).

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A pobreza e a desigualdade são as condições mais gerais e permanentes do ser humano na Terra. Não são de maneira alguma anomalias (...)

7

Desde a época de Johnson, no entanto, a tendência ao controle estatal crescente e à restrição das liberdades nos EUA tem aumentado perigosamente nas últimas décadas, com ou sem atividade guerreira concomitante. Essa tendência vem associada a projetos de uma Nova Ordem global, fortemente apoiada por uma elite de metacapitalistas (a explicação do termo encontra-se em http://www.olavodecarvalho.org /semana/040617jt.htm ), que, para realizar sua ambição de uma sociedade planejada global, já se mostraram dispostos a sacrificar parcelas importantes da própria soberania nacional americana. (O conflito mortal entre globalismo e interesse nacional americano, o fato capital da nossa época, é totalmente desconhecido do público brasileiro, graças à ignorância maciça - não raro voluntária - da classe jornalística e daquela raça de macacos, mistos de papagaios, com cérebros de jumento e almas de víbora, que a si próprios se denominam "intelectuais". Há muitos livros a respeito, mas a fonte mais acessível é o site de Henry Lamb, http://www.sovereignty.net , que abrirá para o leitor uma infinidade de outras fontes.)

8

Hoje em dia, a promessa de eliminação radical da miséria e da desigualdade social no mundo, repetida ao ponto de disseminar por toda parte uma explosiva impaciência com a continuidade desses males, é alardeada principalmente pelos centros de difusão do projeto globalista, cujo porta-voz mais notório é a ONU. Dessa mesma origem provêm inúmeros ou-

L.B. Johnson

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tros projetos associados, como o da uniformização mundial dos padrões educacionais, o de um controle ecológico global o de uma fusão administrativa de todas as religiões numa espécie de gerência espiritual do planeta. Não pretendo opinar sobre os planos econômicos da ONU e demais entidades associadas, que não estudei a fundo, mas tenho a certeza de que não estão desligados dos projetos nas áreas de educação, ecologia e religião, já que, se me permitem, o globalismo é global, isto é, holístico, uma visão unificada construída ao longo de meio século e não uma colcha de retalhos improvisada. Tal como no século XVIII, a utopia do progresso igualitário vem hoje no bojo de um projeto civilizacional integral, a ser realizado por meio do planejamento centralizado. A diferença é que os philosophes se tornaram burocratas, têm poder decisório, recursos financeiros ilimitados e escala de ação global.

9

Um breve exame do Index of Economic Freedom, aqui citado na semana retrasada, basta para mostrar que os níveis máximos de miséria e desigualdade social coincidem com os locais de maior interferência estatal e economia planejada. O argumento em favor da economia planejada global é que os planejamentos falharam porque adotados em escala nacional, defrontando-se ao mesmo tempo com dificuldades que transcendiam as fronteiras das nações. Basta portanto universalizálos e tudo correrá às mil maravilhas.

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O programa globalista não é a mesma coisa que a expansão mundial do capitalismo, um processo historicamente espontâneo no qual ele toma carona parasitária, tal como aconteceu em escala nacional em vários países, onde o crescimento do capitalismo teve como efeito colateral a ascensão dos metacapitalistas e a proliferação dos seus aliados naturais, os burocratas e os intelectuais ativistas. Nesse sentido, a profecia de Karl Marx de que o capitalismo geraria os seus próprios coveiros se revelou acertada, com a ressalva de que esse papel não coube nem poderia caber aos proletários, mas à parcela mais ambiciosa politicamente da própria classe capitalista e aos "intelectuais" (no sentido gramsciano e ampliado do termo). Esta ressalva, por sua vez, foi diagnosticada e expressa em tempo hábil pelos socialistas fabianos - especialmente Bernard Shaw -,

ONU: promessa de eliminação da miséria


O capitalismo é uma força de expansão, o globalismo uma força de contração. Equivalem, no simbolismo alquímico, ao mercúrio e ao enxofre

não sendo, pois, de espantar que o fabianismo tenha se tornado, formal ou informalmente, a ideologia dominante das elites burocráticas globalistas. A tensão aparentemente insolúvel entre expansão do capitalismo e centralização burocrática mundial lateja no fundo do conflito, acima mencionado, entre os EUA e os organismos globais.

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Exatamente como as propostas globalistas em educação, ecologia e cultura religiosa - cujas fontes analisarei em outro artigo --, a promessa de eliminação mundial da pobreza é uma parte integrante de um discurso ideológico globalista, e a ela não corresponde nenhum mecanismo prático de realização exceto aqueles já desencadeados espontaneamente - e anteriormente -pela expansão planetária do capitalismo, à qual o globalismo só vem a acrescentar, em última análise, um elemento parasitário: os custos crescentes de uma burocracia planetária cada vez mais intromedida, paralisante e contraproducente.

12

A luta contra a pobreza e a desigualdade social encontrase hoje no seu ponto de máxima tensão. De um lado, a revolta radical contra esses males milenares se incorporou de tal modo à mentalidade coletiva, que por toda parte se espalhou a expectativa insana de soluções globais a prazo relativamente curto. De outro lado, essa mesma expectativa alimenta o crescimento da burocracia planetária que suga e desvia para seus próprios objetivos políticos os frutos da expansão mundial do capitalismo, retardando a distribuição dos seus benefícios a bilhões de seres humanos necessitados.

O Brasil é uma folha levada na tempestade, incapaz de controlar o seu destino e até de compreendê-lo, graças à inépcia geral dos 'intelectuais'

ca desse objetivo ao longo das próximas décadas, apesar de todas as conquistas da técnica agrícola e industrial. A tensão entre capitalismo e globalismo não resultará necessariamente em tragédia global, mas é quase impossível que ela não desemboque mais cedo ou mais tarde em agressões militares de conseqüências incalculáveis. O capitalismo é uma força de expansão, o globalismo uma força de contração. Equivalem, no simbolismo alquímico, ao mercúrio e ao enxofre. A produção da resultante - alquimicamente, o sal - é um processo infinitamente delicado, sutil e complexo, mais sujeito ao acaso e à providência divina do que ao arbítrio humano. A atenção devota, a paciência, a prudência e a busca constante da compreensão do processo são aí incomparavelmente mais úteis e necessárias do que os programas e as palavras-de-ordem. Mais úteis ainda para aqueles países que, sem ter voz ativa no processo, não podem contar senão com a esperança de uma adaptação vantajosa às circunstâncias de cada momento. Infelizmente, é precisamente nesses países que prolifera de maneira mais incontrolável a raça dos "intelectuais" amantes de slogans e palavras-de-ordem.

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O Brasil, nesse panorama, é uma folha levada na tempestade, incapaz não só de controlar o seu destino mas até mesmo de compreendê-lo, graças à inépcia geral dos "intelectuais" nacionais, que estão entre os mais despreparados, levianos e pretensiosos do mundo. Assim descrito o quadro, na medida das minhas possibilidades, e ressalvada qualquer imprecisão devida à pressa da redação jornalística, permito-me agora emitir uma opinião. Como qualquer outro ser humano, eu desejaria uma vida melhor para todos, mas, ao contrário da maioria deles, não acredito que se deva esperar algum progresso substancial na bus-

Diário do Comércio 10/10/2005

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DIA DO SACI

O

deputado Aldo Rebelo, cujo cargo de presidente da Câmara custou quinhentos milhões de reais em favores distribuídos pelo governo para elegê-lo, não parece ser pessoalmente um corrupto nem um conspirador maquiavélico. Durante um tempo cheguei a imaginar que fosse homem honesto. Hoje compreendo que ele não pode ser honesto nem desonesto, porque ambas essas condutas requerem um pouco de imaginação. Ele é o inverso simétrico do SuperHomem de Nietzsche: está aquém do bem e do mal. Se pertence ao partido que aplaudiu o genocídio empreendido por Mao Tsé-tung, não é porque seja malvado, nem porque consiga seriamente enxergar algum bem em tanta crueldade: é porque, reunindo todas as forças intelectuais de que dispõe, não chega a atinar com a diferença entre o número de sessenta milhões de chineses assassinados pelo regime comunista que ele tanto admira e o das três centenas de vítimas da ditadura militar que ele tanto abomina. Insensível às diferenças quantitativas, é natural que o deputado Rebelo o seja mais ainda às qualitativas. A distinção entre enaltecer a pátria e humilhá-la, por exemplo, lhe escapa completamente. Ele é o autor de uma lei que, sob alegações nacionalistas, proíbe a importação de palavras, lei que, se fosse aplicada, produziria velozmente a redução do vernáculo à condição de dialeto local sem comunicação com o mundo. Vá ser patriota assim lá na Bruzundanga. Com idêntico espírito verde-amarelista propôs ele a instituição do Dia do Saci, para oferecer uma alternativa local ao Halloween, o Dia das Bruxas, que no seu entender foi introduzido no Brasil como parte de um plano perverso de dominação cultural. Quando conto isso aos americanos, eles nem riem. Engolem em seco e, mediante esforços prodigiosos de autocontrole muscular, imitam

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Com idêntico espírito verde-amarelista propôs Rebelo a instituição do Dia do Saci, para oferecer uma alternativa local ao Halloween, o Dia das Bruxas.

o melhor que podem uma expressão de respeitosa seriedade. Fazem isso para não me humilhar, mas só conseguem é me humilhar mais ainda. Eu preferiria que rissem logo da minha cara. Antes ser alvo de gozação que de piedade. O Congresso deveria instituir logo o Dia da Mula-Sem-Cabeça. Só não faz isso para não parecer badalação do presidente da República. Mas, após o Dia do Boto, o Dia do Curupira, o Dia da Mãe d´Água e os dias de várias outras criaturas inconcebíveis, virá quase que infalivelmente o Dia do Aldo Rebelo, ou Dia da Curtura. Um país precisa estar na última lona, na mais desesperadora miséria espiritual, para apelar a uma brincadeira de crianças como símbolo representativo da sua cultura, principalmente porque brincadeiras de crianças são, por definição, arremedos infantis de símbolos representativos. Nenhum menino americano brincaria de caubói, de confederado, de fuzileiro ou de paraquedista se não tivesse havido uma epopéia da ocupação do Oeste, uma Guerra Civil e duas Guerras Mundiais e se esses capítulos grandiosos e sangrentos da História não tivessem se cristalizado em símbolos tradicionais que a imaginação infantil só pode imitar de maneira diminuída e caricatural. No caso do Dia das Bruxas, a distância entre o símbolo originário e a brincadeira é maior ainda, na medida em esta não alude nem remotamente a valores tradicionais, mas, ao contrário, resulta da diluição progressiva com que a cultura se livrou de um contravalor que ela desprezava. O Dia das Bruxas veio para a América de contrabando, trazido por feiticeiras espalhadas entre os imigrantes irlandeses, e não era era sequer representativo dessa nacionalidade minoritária, acentuadamente católica: era o vício sintomático de uma minoria dentro da minoria. Tão deslocado estava no novo


meio social, que logo perdeu a virulência da intenção originária, tornando-se brincadeira de crianças. Era uma celebração satanista, virou folclore infantil. Só é um símbolo cultural americano no sentido em que uma marca de vacina é um monumento à varíola, ou no sentido em que a "Farra do Boi", pela analogia remota com a malhação do Judas, é um ritual cristão. É nesse mesmíssimo sentido que o deputado Rebelo é um patriota. Acreditando enaltecer a cultura nacional, ele a avilta e a espezinha pela escala diminutiva em que a concebe, proporcional à visão mesquinhamente pueril que tem da cultura vizinha. Direi então que o deputado Rebelo é uma diluição, uma caricatura de patriota? Não. Diluição, caricatura, era Policarpo Quaresma, o homem cheio de boas intenções imaginárias, traduzidas no mundo real como propostas nacionalistas irrealizáveis, inúteis e sem sentido. Mas Policarpo tinha ainda algum fundamento na realidade, na medida em que seu conhecimento de história do Brasil e das línguas indígenas era genuíno. O deputado Rebelo não tem nem isso. Ele só é um patriota no sentido duplamente indireto em que a caricatura de uma caricatura, a imitação da imitação, o postiço do postiço, a diluição da diluição, pode ter ainda alguma ligação com o objeto originário. Mas por isso mesmo ele é representativo daquilo que, no Brasil de hoje, se chama de cultura nacional - o culto de bonecos de papelão improvisados ao sabor de um oportunismo publicitário sufocante. A imagem completa de um país espiritualmente morto.

Diário do Comércio 03/10/2005

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Jason Reed/Reuters

A deputada Nancy Pelosi, futura presidente da Câmara, saúda militantes do Partido Democrata na festa da vitória, em Washington

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A vitória ambígua DOS DEMOCRATAS

O

marquês de Sader diz que a esquerda é "responsável pelos melhores momentos da história da humanidade". Vou lhes dar um exemplo entre outros inumeráveis. Em 1974, os soldados americanos se retiraram do Vietnã, deixando o campo livre para os comunistas, que então promoveram a matança de três milhões de civis vietnamitas e cambojanos, o mais hediondo episódio de genocídio da segunda metade do século XX, superando em mais de três vezes o total de mortos da guerra. O resultado era mais que previsível, mas os amorosos pacifistas que se esforçaram para torná-lo realidade jamais foram cobrados na grande mídia pelo crime imensurável que ajudaram a praticar. Alguns, como Noam Chomsky, ainda fizeram o possível para ocultálo, e por isso são honrados até hoje como exemplos de honestidade intelectual. Outro belo momento, que poderá levar o marquês ao êxtase, anuncia-se para breve no Iraque, caso os radicais de esquerda do Partido Democrata americano, embriagados pela vitória fácil na Câmara e no Senado, se deixem levar pelo entusiasmo pacifista de John Murtha, Nanci Pelosi e outros que tais.

É difícil que isso chegue a acontecer, pois, quando tiveram a chance de levar à prática a proposta de retirada imediata que advogavam da boca para fora, os democratas recuaram mais que depressa. Eles sabem perfeitamente que o Irã, atualmente já o maior fornecedor de recrutas para o terrorismo iraquiano, está pronto para ocupar o território do país vizinho ou pelo menos para realizar ali uma matança sem precedentes tão logo veja os soldados americanos pelas costas. E uma coisa é falar mal do governo, outra é compartilhar das responsabilidades de governo. Uma dessas responsabilidades, que George W. Bush agora se sente aliviado de poder dividir com seus críticos mais ferozes, é a de decidir o que fazer com Kim Il-Jung. Mais provável e mais iminente do que uma retirada do Iraque é um ataque à Coréia do Norte. Neste momento, os EUA estão reforçando suas tropas na Ásia e dando os retoques finais ao plano de bombardear com mísseis Tomahawk as instalações coreanas de processamento de plutônio em Yongbyon. Há outras opções militares menos devastadoras, mas alguma delas terá de ser levada à prática em breve, a não ser na hipótese de que Kim vol-


te atrás nos seus planos já anunciados de atacar os EUA. Entre os democratas, alguns esperam ou dizem esperar que ele seja induzido a isso pelas pressões da Coréia do Sul e sobretudo da China. Mas aí a coisa se complica espetacularmente, porque, segundo o relatório em preparo pela U.S.-China Economic Security Review Commission (Comissão de Revisão da Segurança EUA-China), cuja versão oficial deverá ser divulgada ainda este mês, a China, ao mesmo tempo que fingia apoio aos EUA, ajudava secretamente o programa norte-coreano de armas nucleares. O relatório baseia-se em informações de testemunhas diretas. Partes do documento foram passadas ao jornalista Bill Gertz por assessores parlamentares, de modo que ninguém no Congresso pode verossimilmente alegar completa ignorância a respeito. No tempo em que os democratas eram apenas oposição, informações como essa os ajudavam a espremer o pobre George W. Bush na parede, obrigando-o a escolher entre o risco de ignorar a ameaça e o de tomar sozinho uma decisão impopular. Agora, quem está na parede são eles. Esse é só um dos motivos por que, nos círculos conservadores, ninguém está lamentando muito a derrota republicana. É verdade que os jornalistas brasileiros nem falam disso. Apanhar de petistas enragés não há de tê-los tornado mais inteligentes, nem extinguido em seus corações as afeições esquerdistas que já se tornaram a sua segunda natureza. A esta altura, eles estão comemorando a dupla vitória de-

mocrata nos EUA como se fosse o começo do fim da "direita religiosa", se não do abominável Império americano inteiro. Mas, se é verdade que o povo americano está mesmo cansado da guerra no Iraque, nunca a política internacional, sozinha, decidiu uma eleição nos EUA. Ninguém duvida de que o Partido Republicano pagou pelos pecados de George W. Bush, mas a rejeição nacional ao presidente tem muito menos a ver com a guerra do que com as atitudes dele com relação a gastos públicos, imigração e legislação eleitoral - e, nessas três áreas, ele não errou contra os democratas, e sim com o apoio entusiástico deles. Deles e dos chamados Rinos (republicans in name only, "republicanos só no nome"), como John McCain e Lincoln Chafee. O exemplo mais notório foi a lei de imigração. Enquanto o país inteiro clamava por medidas drásticas contra a imigração ilegal, o presidente tramava com os rinos e os democratas um plano ridículo que não só anistiava os invasores, mas lhes dava mais direitos do que os imigrantes legais jamais tiveram. A proposta despertou tanta revolta que os republicanos conservadores na Câmara dos Deputados frustraram o esquema, trabalhando contra seu próprio presidente e suprimindo da lei contra a imigração ilegal o dispositivo de anistia. Isso foi em dezembro. Então já havia conservadores chamando Bush abertamente de "traidor". Bush complicou muito sua própria situação quando deu apoio a uma nova legislação elei-

Os radicais democratas sabem perfeitamente que o Irã atualmente já é o maior fornecedor de recrutas para o terrorismo iraquiano

Ahmad-Al-Rubaye/AFP

Tropas americanas patrulham ruas centrais de Bagdá, em dia de explosões e violência

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Bazuki Muhammad/Reuters/3/8/2006

Ahmadinejad, presidente do Irã: fornecimento de terroristas

Uma das responsabilidades das quais Bush agora se sente aliviado de poder dividir com seus críticos mais ferozes é a de decidir o que fazer com Kim Il-Jung

Quando tiveram a chance de levar à prática a proposta de retirada imediata do Iraque, que advogavam da boca para fora, os democratas recuaram mais que depressa.

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toral que limitava severamente a ação das ONGs não partidárias. Ora, essas ONGs como por exemplo a National Rifle Association, a American Family Foundation e sobretudo os think tanks como a Heritage Foundation ou a Claremont Foundation, são a principal força do movimento conservador americano. É claro que os democratas, que nunca conseguiram montar um think tank que funcionasse, adoraram a nova regra e os conservadores viram nela uma traição explícita de Bush à causa que professou defender. Mais motivo ainda para revolta o presidente deu quando violou ao mesmo tempo duas leis sagradas do conservadorismo, gastando um dinheirão do governo para aumentar a interferência estatal na educação infantil, com a ajuda, é claro, dos democratas. A repugnância dos conservadores ao excesso nos gastos públicos é tradicional, mas sua resistência à educação estatal, que era apenas moderada, se transformou em ódio ostensivo quando ficou claro que as escolas americanas estavam se tornando centros de doutrinação politicamente correta orientados... pela ONU. O pior de tudo foi a súbita revelação dos planos secretos do Council on Foreign Relations para dissolver as fronteiras entre os EUA, o Canadá e o México, praticamente eliminando a nação americana como unidade política independente. A idéia já era antiga, mas quando alguém levantou a lebre e um cidadão apelou ao FOIA (Freedom of Information Act), obrigando o governo a divulgar os documentos sobre o assunto, o que se descobriu foi que Bush já estava formalmente comprometido com os governos do Canadá e do México a realizar o plano. O Partido Republicano, onde há tantos membros do CFR quando no Democrata, não podia nem aprovar uma coisa dessas nem romper aberta-

Alexander Nemenov/AFP/23/8/2003

Kim Il-Jung: o que fazer com ele?

mente com o presidente. Confuso e indeciso, optou por fazer-se de morto, o que era o mesmo que pedir aos eleitores que o sepultassem. Mas é claro que nem toda a justa irritação dos conservadores contra Bush poderia transformá-los em esquerdistas. O que eles fizeram foi o que havia de mais inteligente a fazer: escolheram os mais conservadores entre os candidatos democratas, e votaram neles. Deste modo, o sucesso do Partido Democrata não foi nem uma vitória da esquerda nem uma derrota do conservadorismo. Foi uma derrota de um presidente ambiguamente "tucano" e de seus aliados rinos. Entre os republicanos, o comentário geral é que o partido tem de abandonar o bushismo e voltar à boa e velha linha conservadora de Goldwater e Reagan, que Bush, por momentos, fingiu representar.

Diário do Comércio 13/11/2006


A CIA QUE

NINGUÉM CONHECE

T

odo mundo no Brasil imagina que a CIA é uma espécie de KGB de direita, um governo invisível dominando com mão de ferro uma multidão inerme. No plano internacional, uma vasta organização subterrânea empenhada em fomentar golpes de Estado, assassinar intelectuais esquerdistas e implantar por toda parte o império do capitalismo ianque. Se essas fantasias imitam tão simetricamente o modelo da espionagem soviética, é porque foi ela mesma que as criou à sua própria imagem e semelhança, invertendo apenas o signo ideológico da sua realidade macabra para formar o desenho de um tipo de organização que, num país com eleições e imprensa livre, jamais teria condições de existir. Esse desenho foi espalhado pelo Ocidente através de toda uma imensa subcultura editorial e cinematográfica produzida, sobretudo, entre os anos 60-80. Após a abertura dos Arquivos de Moscou, ninguém mais tem o direito de ignorar, por exemplo, que o enredo conspiratório do filme de Oliver Stone, "JFK", saiu direto dos escritórios da KGB, nem que o exagente Philip Agee, badaladíssimo pela mídia popular pelas denúncias escabrosas que fez contra a CIA no seu livro Inside the Company: CIA Diary (1975), esteve sempre na folha de pagamentos do serviço secreto soviético e hoje é um agente

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full time do governo cubano. Mas não há país do mundo em que esses fatos tenham sido suprimidos mais sistematicamente da mídia do que o Brasil. Resultado: as balelas mais sonsas postas em circulação por aquela subcultura tornaramse, aí, verdades de evangelho cuja contestação ainda soa, no mínimo, "polêmica", isto quando não lança sobre o contestador a fama de psicótico... ou de agente da CIA. Para avaliar a distância entre o imaginário brasileiro e os fatos, basta notar que aqui nos EUA também circula uma multidão de livros contra a CIA, mas que a maioria deles a acusa de fazer exatamente o contrário do que os brasileiros imaginam que ela faz. Nenhum americano razoavelmente culto ignora que esse serviço de inteligência, há bastante tempo, trabalha mais para grupos políticos - de esquerda em geral - do que para o governo do seu país. Isso começou na era Reagan. Ronald Reagan foi um grande presidente, mas nas últimas semanas de mandato fez uma burrada monumental: privatizou uma parcela importante dos serviços secretos. Quem podia comprar comprou um pedaço e o pôs a serviço de si próprio. A família Clinton, por exemplo, tem lá seu feudo particular. Sem saber dessas coisas, o público brasileiro entende às avessas acontecimentos importantes como a falsa informação sobre as armas de destruição em massa de Saddam Hussein. O que aos olhos brasileiros pareceu uma desculpa maquiavélica inventada por George W. Bush para legitimar a invasão do Iraque (até hoje isso é repetido na mídia nacional como obviedade de senso comum) foi na verdade uma cama-de-gato armada para o presidente por gente desleal dentro da CIA. Daí a limpeza geral que o governo está fazendo nesse serviço de inteligência, trocando tipos suspeitos por funcionários concursados. Uma das melhores fontes para estudar o assunto são os artigos de Jack Wheeler, filósofo que abdicou da carreira acadêmica para levar uma vida de aventureiro, caçador de tigres e estudioso de culturas primitivas, acabando por ser conhecido como "o Indiana Jones da direita". Wheeler trabalhou na CIA por algum tempo e não modera as palavras ao dizer o que viu lá dentro: um panorama que vai da indolência anárquica ao antipatriotismo militante de altos funcionários empenhados em amarrar as mãos dos agentes por meio de exigências "politicamente corretas" impossíveis de cumprir, quando não em sonegar ao governo informações vitais para a segurança do país. Wheeler me disse que o empreendimento mais importante do governo Bush era justamente a reforma dos serviços de inteligência, mas que seus resultados seriam muito lentos, tamanhas as resistências que encontrava entre os marajás remanescentes da era Clinton. Mesmo depois da conversa com Wheeler, porém, eu não imaginava que essas resistências podiam chegar ao ponto do boicote sistemático e da rebelião ostensiva. O que me abriu os olhos foi o livro de Curt Weldon, Countdown to Terror ("Contagem Regressiva para o Terror"), publicado há uns meses pela Regnery e a mais importante dentre as obras sobre a CIA que entraram na lista de bestsellers do New York Times. O autor é um deputado pela Pensilvânia, reeleito consecutivamente por vinte anos. Durante sua experiência como vicepresidente de duas comissões parlamentares encarregadas de assuntos de segurança, Weldon obteve informações confiá-

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veis de um dissidente iraniano sobre esquemas terroristas diretamente concebidos pelo governo de Teerã. O principal era o plano de atirar aviões com pilotos suicidas não sobre um simples prédio comercial como no 11 de setembro, mas sobre o reator nuclear de Seabrook, Massachusetts, ocasionando uma catástrofe do tipo e das dimensões de Chernobyl. O informante dava também detalhes sobre a fabricação da bomba atômica iraniana em íntima associação com a Coréia do Norte - um projeto em estágio muito mais avançado do que se imaginava no Ocidente --, descrevia a rede de agentes iranianos infiltrados no Iraque para espalhar o terror e esmagar no berço a democracia iraquiana, e resumia atas e mais atas do "Comitê dos Nove", a entidade criada pelo governo do Irã para coordenar a atividade terrorista em escala internacional. Dizia ainda que Osama bin Laden se encontrava refugiado no Irã como hóspede de honra e que entre os projetos terroristas em andamento estava o assassinato do ex-presidente George H. W. Bush. Mas a surpresa maior estava por vir. Quando tentou passar essas informações para a CIA, Weldon se defrontou não só com uma barreira de má-vontade e indolência, mas com uma hostilidade ativa que tentava por todos os meios - inclusive a ameaça de coerção física - bloquear o acesso ao informante e impedir que os dados fornecidos por ele chegassem ao primeiro escalão do governo. Isso continuou mesmo depois que a mais espetacular das revelações, a do ataque a Seabrook, foi integralmente confirmada pela prisão, pelo governo canadense, de um grupo de terroristas preparados para realizar a operação - o que, segundo Weldon, não significa que o plano tenha sido abandonado e não esteja sendo levado adiante neste preciso momento, em algum outro lugar do mundo. Weldon tentou por todos os meios articular os vários serviços de inteligência para que fizessem a análise cruzada dos dados, mas todos os seus esforços foram boicotados de maneira tão ostensiva que ele desistiu de buscar a atenção do governo e resolveu apelar diretamente ao povo americano, publicando os relatórios do seu informante clandestino na esperança de que a opinião pública pressione o governo para levar a fundo a reforma do sistema de segurança. "Este livro - escreve ele no prefácio - é um ato de desespero. Trago-o à presença do leitor porque não consegui que a comunidade de informações fizesse nada a respeito, embora minha fonte tenha provado sua credibilidade e embora a informação que ela fornece anuncie um ataque terrorista maior aos Estados Unidos." Não é possível ler essas coisas e continuar não enxergando o abismo de diferença entre a reaDiário do Comércio lidade da CIA e o que se escreve a 11/07/2005 respeito dela na nossa mídia.


APÊNDICE

O Foro de São Paulo, versão anestésica

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epois de esconder por dezesseis anos a existência da mais poderosa entidade política latinoamericana, a mídia chique deste país, vencida pela irrefreável divulgação dos fatos na internet, trata agora de disfarçar, como pode, o mais torpe e criminoso vexame jornalístico de todos os tempos. O expediente que usa para isso é ainda mais depravado: caluniar, difamar, sujar a reputação daqueles poucos que honraram os deveres do jornalismo enquanto ela não se ocupava senão de prostituir-se, vendendo silêncio em troca de verbas estatais de propaganda. Envergonhada de si mesma, ela não tem nem a dignidade de citar nominalmente essas honrosas exceções. Designa-as impessoalmente, fingindo superioridade, mediante pejorativos genéricos. O mais comum é "radicais de direita". Encontro-o de novo no artigo "Os limites de uma onda esquerdista", assinado por César Felício no jornal Valor no último dia 12. O autor é uma nulidade absoluta, e eu jamais comentaria uma só linha da sua fabricação se as nulidades não se tivessem tornado, num jornalismo de ocultação, os profissionais mais necessários e bem cotados. Por favor, não me acusem de caçar mosquitos. Compreendam o meu drama: nas presentes circunstâncias, a recusa de falar de nulidades me deixaria totalmente desprovido de material nacional para esta coluna.

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A primeira coisa que tenho a dizer a esse moleque é bem simples: Radical de direita é a vó. Antigamente chamava-se por esse qualificativo o sujeito que advogasse a matança sistemática de comunistas como os comunistas advogam e praticam a matança sistemática de populações inteiras. Hoje em dia, para ser carimbado como tal, basta você ser contra o aborto ou o casamento gay. Basta você achar que o Foro de São Paulo existe e é perigoso. Basta você fazer as contas e notar que centenas de prisioneiros morreram de tortura na Guantanamo cubana e nenhum na americana. Basta você apelar à matemática elementar e concluir que a guerra do Iraque matou muito menos gente do que o regime de Saddam Hussein sob os olhos complacentes da ONU. Se você incorre em qualquer desses pecados mortais, lá vem o rótulo infamante grudar-se na sua pessoa indelevelmente, como marca de escravo fujão ou ferrete de gado. E não vem por via de nenhum jornaleco de partido, de nenhum panfleto petista. Vem pela Folha de São Paulo, pelo Globo, pelo Estadão, pelo jornal Valor - os órgãos da burguesia reacionária, segundo o site oficial do PT. Que é que posso concluir disso, objetivamente, senão que a esquerda radical conseguiu impor à grande mídia a sua escala de mensuração ideológica e o correspondente vocabulário, agora aceitos como opinião centrista, equilibrada, mainstream, enquanto as opiniões que eram da própria grande mídia ontem ou anteontem já não podem ser exibidas ante o público porque se tornaram politicamente incorretas? Será extremismo de direita concluir que o eixo, o centro, se deslocou vertiginosamente para a esquerda, criminalizando tudo o que esteja à direita dele próprio? Será extremismo de direita concluir que a única direita admitida como decente na mídia chique é o tucanismo - abortista, gayzista, quotista racial, desarmamentista, politicamente corretíssimo, padrinho do MST e filiado à internacional socialista, além de bettista e boffista, quando não abertamente anticristão? Será extremismo direitista notar que o traço mais saliente dessa direita bem comportadinha é a abstinência radical de qualquer veleidade anticomunista? Será extremismo de direita entender que esse fenômeno é a manifestação literal e exata da hegemonia tal como definida por Antonio Gramsci? Será extremismo de direita concluir que o establishment midiático deste país é, no seu conjunto, um órgão da esquerda militante mesmo nos seus momentos de superficial irritação antipetista, quando jamais proferiu contra o partido dominante uma só crítica que não viesse de dentro da esquerda mesma e que não fosse previamente expurgada de qualquer vestígio de conteúdo ideológico direitista? Qualquer pessoa intelectualmente honesta sabe que um juízo de fato não pode ser derrubado mediante rotulação infamante. Tem de ser impugnado pelo desmentido dos fatos. Se quiser rotulá-lo, faça-o depois de provar que é falso. Não antes. Não em substituição ao desmentido. Ora, o tal Felício, em vez de desmentido, fornece uma brutal confirmação. Vejam só:

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"O grupo que se reúne a partir de hoje em San Salvador... atende pelo nome de 'Foro de São Paulo' e nasceu sob o patrocínio do PT, em 1990. Os encontros anuais não costumam chamar muita atenção, a não ser de certos radicais de direita no Brasil." Ora, como é possível que encontros esquerdistas anuais repetidos ao longo de uma década e meia, com centenas de participantes, entre os quais vários chefes de Estado, não chamem atenção exceto de radicais de direita? Ninguém na esquerda prestou atenção ao Foro de São Paulo? O sr. Lula fez um discurso presidencial inteiro a respeito sem prestar a mínima atenção à entidade da qual falava? Antes disso, quando presidia pessoalmente as sessões da entidade até 2002, não lhes prestou nenhuma atenção? Entrava em transe hipnótico e balbuciava mensagens do além, sem se lembrar de nada ao despertar? Os jornalistas de esquerda que, às dezenas, compareceram aos debates, foram lá por pura desatenção, dormiram durante as assembléias e voltaram para casa sem coisa nenhuma para contar? O sr. Bernardo Kucinsky, um dos fundadores da entidade, que emocionado assistiu ao nascimento dela num encontro entre Fidel Castro e Lula, não prestou a mínima atenção àquele momento supremo da sua vida de militante esquerdista? Pago com dinheiro público para relatar aos eleitores os atos presidenciais, calou-se por mera distração, e também por mera distração guardou os fatos para contá-los depois no seu livro de memórias, onde só os colocou porque não tinham a mínima importância? Ora, menino bobo, você não sabe a diferença entre a desatenção e a atenção extrema acompanhada de um propósito deliberado de ocultar? Que você seja desprovido do senso da verdade, vá lá. Sem isso não se sobe no jornalismo brasileiro. Mas será que você precisa também desprover-se do senso do ridículo ao ponto de tentar minimizar a importância do Foro e logo em seguida, citando documento oficial da entidade, alardear que "na primeira reunião do grupo, em 1990, os integrantes estavam no governo em um único país: Cuba. Hoje desfrutam o poder na Venezuela, Brasil, Bolívia, Nicarágua, Argentina, Chile, Uruguai e Equador"? Você acha mesmo que a organização que planejou e dirigiu a mais espetacular e avassaladora expansão esquerdista já observada no continente é um nada, um nadinha, no qual só radicais de direita ou teóricos da conspiração poderiam enxergar alguma coisa? Na verdade, o próprio Felício enxerga ali alguma coisa. Ele cita o documento oficial: "Passamos a controlar uma cota de poder, mas as outras cotas continuam sob controle das classes dominantes. Os chamados mercados, as grandes empresas de comunicação, os setores da alta burocracia do Estado, os comandos centrais das Forças Armadas, os poderes Legislativo e Judiciário, além da influência dos governos estrangeiros, competem com o poder que possuímos."


Ou seja: a entidade que já domina os governos de nove países não admite, não suporta, não tolera que parcela alguma de poder, por mais mínima que seja, esteja fora de suas mãos. Nem mesmo as empresas de comunicação e o judiciário, sem cuja liberdade a democracia não sobrevive um só minuto. Com a maior naturalidade, como se fosse uma herança divina inerente à sua essência, o Foro de São Paulo, com a aprovação risonha do nosso partido governante, reivindica o poder ditatorial sobre todo o continente. Felício lê esse documento assim: "Os limites a um poder absoluto parecem incomodar os participantes do encontro." Parecem, apenas parecem. Quem ficaria alarmado com aparências, senão radicais de direita? Afinal, eles vivem enxergando comunistas embaixo da cama, não é mesmo? Para tranqüilizar a população, Felício trata de lhe mostrar que no Foro não há socialismo nenhum, apenas o bom e velho populismo nacionalista, tão difamado pelos agentes do imperialismo. "Um mesmo discurso estava presente na oposição a Perón e a Getúlio nos anos 40 e 50. Reapareceu, quase igual, no tipo de ataque recebido ano passado por Lopez Obrador no México e Evo Morales na Bolívia." A circunstância de que, ludibriados por milhares de Felícios, até membros da oposição temam dar nome aos bois, preferindo falar de "populismo" em vez de comunismo, é usada como prova de que o Foro não é uma organização comunista. O fato é que as idéias e as pessoas dos velhos populistas jamais aparecem citadas nos documentos do Foro como exemplos a ser imitados. Ao contrário, os apelos à tradição revolucionária comunista ressurgem a cada linha, com todos os seus heróis e símbolos, com todos os cacoetes lingüísticos medonhos do jargão marxista-leninista mais típico e obstinado, acompanhados da declaração explícita, infindavelmente repetida, de que a meta é o socialismo. Mas, decerto, todos os participantes do Foro, todos aqueles tarimbados militantes revolucionários treinados em Cuba, na China e na antiga URSS, estão equivocados quanto à sua própria ideologia e metas. Eles apenas pensam que são comunistas, socialistas, marxistas. Felício é quem, penetrando com seus olhos de raios-x no fundo das almas deles, sabe que não são nada disso. São getulistas que se ignoram. A prova? Ele não se recusa a fornecê-la. É esta: "Antes de ser uma verdadeira marcha ao socialismo, a ofensiva de Chávez... sugere a coroação de um processo de concentração de poder". Entenderam a lógica profunda? Se é concentração de poder, não é socialismo. Pena que ninguém avisou disso Marx, Lênin, Stalin, Mao, Fidel e Che Guevara. Todos eles sempre entenderam, ao contrário, que a concentração de poder é a única via para o socialismo, é a essência mesma do processo revolucionário. Mas talvez estivessem enganados, tanto quanto a turminha do Foro. Quem entende do negócio é César Felício.

No tempo em que havia jornalismo no Brasil, um sujeito como esse não seria designado para cobrir nem partida de futebol de botão. Hoje ele é uma espécie de modelo, reproduzido às centenas em todas as redações. O resultado é óbvio. Faça um teste. Segundo pesquisa da Folha de São Paulo, a opinião majoritária dos brasileiros é acentuadamente conservadora. É contra o casamento gay, contra o aborto, contra as quotas raciais, contra o desarmamento civil. É contra tudo o que os Felícios amam. É até a favor da pena de morte para crimes hediondos. E confia infinitamente mais nas forças armadas do que na classe jornalística que as difama sem cessar. Quantos jornalistas, nas redações das empresas jornalísticas de grande porte, se alinham com essa opinião majoritária? Não fiz nenhuma enquete, mas, por experiência pessoal, afirmo: poucos ou nenhum. A leitura diária dos jornais confirma isso da maneira mais patente. A opinião pública brasileira não é refletida nem representada pela grande mídia. Não tem direito a voz, a não ser por exceção raríssima concedida a algum colaborador ocasional só para depois ser exibida como exemplo de aberração extremista, felizmente compensada pela pletora de articulistas serenos, normais e equilibrados que igualam George W. Bush a Hitler e Abu-Ghraib a Auschwitz. A idéia mesma de que uma mídia só pode ser equilibrada quando reflete proporcionalmente a divisão das correntes de opinião no país já desapareceu por completo da memória nacional. O simples ato de enunciá-la tornou-se prova de direitismo radical. Resultado: a elite microscópica de tagarelas esquerdistas que domina as redações (não mais de duas mil pessoas) se permite tomar a sua própria opinião como medida da normalidade humana, condenando como patológicas e virtualmente criminosas as preferências gerais da nação. Quem se coloca em tais alturas está automaticamente liberado de prestar quaisquer satisfações à realidade. Não quer conhecê-la, quer transformá-la. Para transformá-la, não é preciso mostrar os fatos às pessoas: é preciso alimentá-las de crenças imbecis que as induzam a se comportar da maneira mais adequada para favorecer a transformação. Da classe empresarial que lê o jornal Valor, que é que se espera? Que permaneça idiotizada e passiva, embriagada de falsa segurança, incapaz de mobilizar-se em tempo para se opor à onda revolucionária que vai submergindo o continente. Foi para isso que os Felícios lhe negaram por dezesseis anos o conhecimento do Foro de São Paulo. É para isso que, hoje, não podendo mais levar adiante a operação-sumiço, apelam à operação-anestesia, chamando-a, cinicamente, de jornalismo. E são pagos para fazer isso pelos próprios empresários de mídia, aqueles mesmos cujas empresas o Foro de São Paulo promete calar ou expropriar junto com todos os demais instrumentos de exercício da liberdade, num futuro mais breve do que todos imaginam.

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ESTANTE

Obras de Olavo de Carvalho 1. UNIVERSALIDADE E ABSTRAÇÃO E OUTROS ESTUDOS São Paulo, Speculum, 1983 2. O CRIME DA MADRE AGNES OU : A CONFUSÃO ENTRE ESPIRITUALIDADE E PSIQUISMO São Paulo, Speculum, 1983

10. UMA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA DA CULTURA: INTRODUÇÃO À TEORIA DOS QUATRO DISCURSOS. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994

5. OS GÊNEROS LITERÁRIOS: SEUS FUNDAMENTOS METAFÍSICOS Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993 6. O CARÁTER COMO FORMA PURA DA PERSONALIDADE. Rio, Astroscientia Editora, 1993

8. O JARDIM DAS AFLIÇÕES. DE EPICURO À RESSURREIÇÃO DE CÉSAR – ENSAIO SOBRE O MATERIALISMO E A RELIGIÃO CIVIL São Paulo, É Realizações, 2000

3. ASTROS E SÍMBOLOS São Paulo, Nova Stella, 1983 4. SÍMBOLOS E MITOS NO FILME "O SILÊNCIO DOS INOCENTES" Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993

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7. A NOVA ERA E A REVOLUÇÃO CULTURAL: FRITJOF CAPRA & ANTONIO GRAMSCI Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994 (1ª. ed., fevereiro; 2ª. ed. revista e aumentada, agosto).

9. COMO VENCER UM DEBATE SEM PRECISAR TER RAZÃO. COMENTÁRIOS À "DIALÉTICA ERÍSTICA" DE ARTHUR SCHOPENHAUER Rio, Topbooks, 1997

11. O IMBECIL COLETIVO I: ATUALIDADES INCULTURAIS BRASILEIRAS São Paulo, É Realizações 2006

12. ARISTÓTELES EM NOVA PERSPECTIVA: INTRODUÇÃO À TEORIA DOS QUATRO DISCURSOS São Paulo, É Realizações 2006


Coleção História Essencial da Filosofia 16. Aula 4 – ARISTÓTELES São Paulo, É Realizações, 2003 17. Aula 5 – PRÉ-SOCRÁTICOS São Paulo, É Realizações, 2003

13. Aula 1 – HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS DA FILOSOFIA São Paulo, É Realizações, 2002 14. Aula 2 – O PROJETO SOCRÁTICO São Paulo, É Realizações, 2002 15. Aula 3 – SÓCRATES E PLATÃO São Paulo, É Realizações, 2002

18. Aula 6 – PERÍODO HELENÍSTICO I São Paulo, É Realizações, 2003 19. Aula 7 – PERÍODO HELENÍSTICO II São Paulo, É Realizações, 2003 20. Aula 8 – ADVENTO DO CRISTIANISMO São Paulo, É Realizações, 2003

21. Aula 9 – FILOSOFIA PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA São Paulo, É Realizações, 2004 22. Aula 10 – SANTO AGOSTINHO São Paulo, É Realizações, 2004 23. Aula 11 – SÃO TOMÁS DE AQUINO E DUNS SCOTT São Paulo, É Realizações, 2004 24. Aula 12 – FILOSOFIA ISLÂMICA São Paulo, É Realizações, 2004 25. Aula 13 – FILOSOFIA CRISTÃ São Paulo, É Realizações, 2005

26. Aula 14 - IDÉIA VERSUS REALIDADE São Paulo É Realizações 2005 27. Aula 15 – A ESCOLÁSTICA São Paulo, É Realizações 2006 28. Aula 16 – Xavier Zubiri e a Escolástica, São Paulo É Realizações 2006 29. Aula 17 – A ESCOLÁSTICA II São Paulo, É Realizações 2006 30. Aula 18 – SANTO TOMÁS DE AQUINO São Paulo É Realizações 2006

NO PRELO: 31. Aula 19 – MAQUIAVEL E A FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES NACIONAIS São Paulo, É Realizações, 2007 32. O FUTURO DO PENSAMENTO BRASILEIRO. ESTUDOS SOBRE O NOSSO LUGAR NO MUNDO São Paulo, É Realizações, 2007

34. O IMBECIL COLETIVO II: A LONGA MARCHA DA VACA PARA O BREJO & OS FILHOS DA PUC São Paulo, É Realizações, 2007 33. A DIALÉTICA SIMBÓLICA: ENSAIOS REUNIDOS São Paulo, É Realizações, 2007

35. O IMBECIL COLETIVO III: O IMBECIL JUVENIL São Paulo, É Realizações, 2007



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