DIGESTO ECONÔMICO, número 320, setembro e outubro 1986

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e América do Norte — o outro, ü paradigma do totalitarismo socialista.

De um modo geral, o ponto de vista que tenho obstinada mente defendido desde quando, em 1965, segui o Curso Superior de Guerra e elaborei a tese que se transformou num livro, “Po lítica Externa. Segurança e De senvolvimento", publicado em 1967 pela Agir. é o de que cons titui o Brasil uma potência emergente do mundo ocidental. O Brasil pertence à esfera do Ocidente democrático, com cujos destinos está irreversívelmente ligado nos quatro cam pos do poder. No que diz re.s peito ao poder político, porque somos uma democracia, ainda que imperfeita, frouxa e hesi tante. Nosso ideal é um ideal de liberdade, numa sociedade multirracial, pluralista e aber ta. Sendo assim, a segurança da democracia brasileira está condicionada à segurança cole tiva do Ocidente democrático.

brar que um único submarino estratégico de tipo Trident, isto é. de um tipo que também a URSS, a Grã-Bretanha e França possuem, carrega uma bateria de 240 ogivas de hidro gênio, o que representa uma força destrutiva suficiente pa ra. em quinze minutos, liquidar com todo 0 poder nacional e le var deste mundo a melhor, a metade ou a terça-parte da pn-

Há quase cem anos os Estados Unidos substituiram a França

e a Inglaterra como modelo ou sociedade exemplar que procuramos imitar.

nha concepção da postura bra sileira, em face do contencioso Leste X Oeste, não tem sido fa vorecida pela Casa a que servi lealmente durante 43 anos de carreira. Do que foi denunciaüo como “alinhamento automáti co*’. 0 Brasil, progressivamente, trasladou-se, a partir de 1959, 1961 e 1974, com ligeira inter rupção no período 1964/73, para uma política externa dita “inde pendente”, ou "não-alinhada”, ou de “pragmatismo responsá vel” mas que implica, na prá tica, um alinhamento automáti co com os Interesses da URSS

a no mundo. Longe de mim a in tenção de atribuir unicamente à contaminação marxista de uma parte considerável de nossa In* leiligentsia essas ominosas ten dências. Publiquei recentemente um livro, A Ideologia do Século XX (pela editora Convívio de São Paulo), para demonstrar a conjunção da ideologia socialis ta com a ideologia nacionalista — outrora irmãs inimigas, mas unidas

a cuja defesa nos devemos as sociar . no pulação brasileira.

No que diz respeito ao po der econômico porque o grosso de nosso comércio externo se desenvolve com o mundo capi talista. Do Ocidente capitalista recebemos os financiamentos c a tecnologia necessários ao nosso desenvolvimento; e no Ocidente capitalista sempre en contraremos os grandes merca dos para nossos produtos pri mários e industriais.

No que diz respeito ao po der militar, tendo em vista nov 50 papel imprescindível na de fesa do Atlântico Sul, hoje ameaçado pela lenta e sutil pe netração soviética na África austral e no Mediterrâneo das Américas como é conhecido o Mar Caribe. E porque, na era nuclear, nossa independência e soberania dependem exclusiva mente do guarda-chuva atômico proporcionado pela Otan. Paro ilustrar esse fato, bastaria lem-

País ocidental

Finalmente, no que diz res peito ao poder psicossocial, por que cabe salientar que o Brasil é e sempre foi um pais ociden tal pela sua herança portuguesa, sua religião cristã, sua língua latina, sua cultura mediterrâ nea, — um país que segue mo das ocidentais, influenciado pe los costumes sexuais ocidentais, lendo livros, vendo filmes e tevê ocidentais, pensando em categorias filosóficas européias e americanas, e de qualquer forma representando uma das mais curiosas e criadoras expe riências de expansão da civili zação ocidental nos trópico.s úmidos do planeta.

Confesso, entretanto — e é esse 0 segundo ponto importante de minha disquisição —, que de uns trinta anos para cá esta mi-

terceiro-mundismo que motiva nossa intelectuária. O nacionalismo xenófobo de nos sa puberdade de grande potên cia, tanto quanto a obsessão social-estatizante e autoritária da tradição patrimonialista brasi leira, é o que. a meu ver, expli ca a gradual alienação de nossa política externa de uma neces sária solidariedade intelectual e prática com os países do Oci dente democrático. O que ca racteriza aquilo que gosto de denominar de nacional-socíalismo é a necessidadede encontrar bodes expiatórios.

Na visão socialista do mun do, os pobres são pobres por culpa dos ricos. O componente nacionalista dessa visão distor cida é que 0 Brasil, como país subdesenvolvido, é pobre porque teria sido explorado pelos países industrializados do hemisfério Norte, pelos banqueiros e as multinacionais. Inútil insistir na dose emocional potente, carre-

gada de inveja e de ressenti mentos cegos, que a tese da “de pendência” comporta, sob a du pla ação das ideologias socialis tas e do nacionalismo tempera mental. Quero esclarecer a esta altura que, desde a proclama ção da República, há quase cem anos, os EUA substituíram a França e a Inglaterra como modelo, ou sociedade exemplar que procuramos imitar. Trans formou-se no paradigma coleti vo, no esquema segundo o qual construímos nossa Persona cul tural. Um simples passeio pela avenida Atlântica ou pela ave nida Paulista pode convencer que a imagem de nosso compor tamento jovem e moderno é es tritamente calcada na do com portamento da classe média americana. A imitação começou pelo próprio nome que adotamos em 1889; “Estados Unidos do Brasil”. Um relacionamento desse tipo cria, inevitavelmente, tensões emocionais de que re sulta o grave fenômeno de am bivalência. É por esse motivo que também se transformaram os EEUU em confortável cabide do que, em psicologia analítica, se chamaria a nossa sombra. São o depositário, o bode expia tório para a projeção de todas as mazelas, os ressentimentos, as inferioridades, as injustiças e as desordens acumuladas, de que sentimos confusamente a presença no processo natural de conscientização que se acentua sob o impacto da revolução in dustrial.

Na presente conjuntura, o pais que é o nosso principal mercado, nosso principal clien te e fornecedor, a principal fonte de tecnologia e de fi nanciamentos, e com o qual usufruímos no ano passado um saldo de cinco bilhões de dóla res, tornou-se também, aberta mente, nosso principal inimigo! Segundo as estatísticas do IBGE, em 1984 exportou o Brasil para a Europa Ocidental, os EEUU e

Canadá, mais Japão. Austrália e África do Sul. isto é. para o Pri meiro Mundo, 17,5 bilhões de dó lares, com uma importação de 6,2 bilhões e um saldo de 11,3 bi lhões. Para a Europa Oriental e outros países comunistas enfeudados à URSS. exportou o Bra sil, no mesmo período, 1,4 bi lhões de dólares, importando 627 bilhões, com saldo de 700 mi lhões. Só o saldo de nosso cc»-

Araújo Castro veicularia conceitos de uma ótica ilusória.

mo elemento de psicologia so cial profunda, na conjuntura que 0 Brasil atravessa, como fa tor essencial do nacionalismo social-estatizante de esquerda que tudo invade e que tudo contami na. Historicamente, é sabido que toda potência emergente em fase de modernização como que sente a necessidade de criar um pólo estrangeiro adversário, sobre o qual projeta emocio nalmente seu ímpeto de afirma ção para a mobilização das energias nacionais. A Rússia de Pedro 0 Grande fê-lo sobre a Suécia, a nação que então lhe barrava o caminho para o Mar Báltico. O Japão, posteriormen te. utilizou a Rússia e a pró pria América do Norte com esse intuito: 0 desastre de 1945 o levou a mudar de tática e hoje desafia seu adversário x ami go na competição tecnológica. No período de unificação do século XIX, Bismarck cons cientemente mobilizou contra a França o slogan do Wacht am Rhein para sobrepujar as bar reiras que fragmentavam o Reich em 200 Estados diferen-

mércio com os EEUU, cinco bi lhões de dólares, é três vezes maior do que todo nosso inter câmbio comercial com os países eufemisticamente ditos da “área socialista”. Comparem as cifras. Serão nossos principais clientes e fornecedores também nossos inimigos? tes. A necessidade de afirma ção nacionalista do País se fez sentir, pela primeira vez, sob ü governo do presidente Var gas. A Carta-testamento que deixou, ao suicidar-se, é o pri meiro documento das novas ten dências diplomáticas do País. Aliás, 0 discurso famoso, pre nunciado a bordo do encouraçado “Minas Gerais” em junho de 1940, coincidindo com a vitória de Hitler na Europa e com o aparente descalabro das duas grandes democracias européias, a França e a Inglaterra, já no? havia introduzido ao jogo de não-alinhado

AFIRMAÇÃO NACIONAL

Autores como os mexicaDaniel Cosíio Villegas e Octavio Paz, ou o venezuelano Carlos Rangel, têm finamente analisado o processo paralelo de projeção que afeta as na ções da América espanhola, O sucesso do marxismo ou do cripto-marxismo em nossa terra se nos i cintura posteriormente nossa política externa. O se gundo marco importante da nova diplomacia se cdloca por ocasião da Operação Pan-Ame ricana do presidente Juscelino que caracterizaria explicaria então pelas fórmu las primárias que emprega pa‘justificar” nossa postura subdesenvolvida. ra existencial Creio que temos que levar em consideração esse relevantíssl-

Kubltschek. Implícita na OPA estava uma espécie de chanta gem que se podería traduzir na fórmula; “Ou vocês, ameri canos, nos dão dinheiro para nosso desenvolvimento, ou ire mos recorrer aos russos”. A prova dessa tática suspeita es tá na escandalosa alegação do embaixador A. F. Schmidt, aos

do na memória dos que contro lam 0 que me atrevo a chamar a ex-casa de Rio Branco, vei cularia os mesmos conceitos de uma ótica ilusória. Repetidas textualmente pelo presidente Sarney na Assembléia Geral da ONU em setembro passado, foram as palavras de Araújo Castro: "Nem tudo é Este e Oeste nas Nações Unidas de 1963. O mundo possui outros

diplomatas americanos em Washington, de que o PNB da União Soviética superaria o 1970. A 1 norte-americano em declaração estapafúrdia, desde então desmentida, se baseava em vagos estudos realizados no Itamaraty sobre os cresci mentos comparativos da econo mia americana e da economia

soviética, bem como na pro messa, feita alguns anos antes por Kruchev, de que iria terrar o capitalismo”... en-

Na OPA salientou-se já um diplomata que, nos anos sub sequentes, se firmaria como n mais hábil, o mais inteligente e 0 mais forte propugnador do não-alinhamento terceiro-mundista no Itamaraty, Refiro-me ao embaixador Araújo Castro. Posteriormente, já como minis tro do Exterior do presidente Goulart, Araújo Costa confir maria e desenvolvería os prin cípios da “política externa in dependente” que se firmara na presidência Jânio Quadros, sendo chanceler o ministro Afonso Arinos de Mello Fran co. Em circular de 4 de setem bro de 1963, Araújo Castro pontificava: “O Brasil não crê que a atual divisão do mundo entre o bloco ocidental e o blo co comunista seja um traçu permanente das relações inter nacionais. Trata-se de uma si tuação passageira, conjuntural, que a dinâmica do processo his tórico já começa a superar”.

Na Assembléia Geral das Na ções Unidas, naquele mesmo triste ano de 1963, o diplomata brasileiro, até hoje reverencia¬

Foi Tocqueville, com 150 anos de antecedência, quem primeiro antecipou as dificuldades com que se deparariam as democracias, a partir de 1914, para se defender do expansionismo guerreiro dos grandes impérios autocráticos e totalitários.

pontos cardeais. Esses termos, que dominavam toda a política internacional até há pouco tempo, poderão eventualmente ser devolvidos à área da geo grafia. O esmaecimento do con flito ideológico e a progressiva despolitização dos termos Este e Oeste vieram também trazer algumas conseqüências — tanto políticas quanto semânticas — nos conceitos de. neutralismo c de não-alinhamento”. Lembremos que o alegado ‘esmaecimento se encaixava jeitosamente na política de détente então praticada pelas nações ocidentais. Araújo Cas tro argumentava ardorosamente que os EUA procuravam con gelar 0 poder mundial em nos so detrimento. Como se o po der mundial pudesse ou hou vesse sido jamais congelado por quem quer que seja! Vinte e tantos anos se passaram e não me parece lícito falarmos corsobre a realidade

em esmaecimento do confron to Leste-Oeste ou congelamen to do poder mundial. Pelo con trário. O Japão emergiu como grande potência e nunca este ve a Aliança do Atlântico Norte mais firme em seus propósitos. Mesmo um país que, como a Espanha, não possui senão li mitada tradição democrática votou recentemente por maioria maciça a preservação do pais na Otan. Os partidos de esquer da recuam em todo o Ocidente, com a subida do poder dos liberais-conservadores na Inglater ra, na Alemanha, na França, nos Países Baixos e Escandina vos, no Japão e na América do Norte. Reagan, Malonev, Mrs. Thatcher, Nakasone, Kohl, Chirac, até mesmo Mitterrand, González, Craxi e Mario Soares são anti-soviéticos. Desde a Se gunda Guerra Mundial, nunca se revelou Washington tão cons ciente da realidade global como sob a decidida presidência de Ronald Reagan. Do que posso concluir que a diplomacia bra sileira não está refletindo retamente muito pouco esmaecida do con fronto entre a democracia oci dental e o despotismo oriental. Comentaristas mais atentos e mais perspicazes dos aconte cimentos contemporâneos do que aqueles que têm falado em nome do Brasil, no período de 1961-63 e posteriormente a 1974, têm apreciado as divisões que afetam o destino do planeta e considerado sua gravidade, no tando que -essas divisões não en volvem apenas diferenças de sistemas políticos ou sócio-econômicos, conflitos de interesses nacionais e luta natural pelo poder por parte de duas super potências, mas atingem profun damente a própria Cosmovisão dos contendores, entre os quais nos colocamos. Utópico seria, na realidade, pensar que a an títese possa ser em breve so brepujada. Como escreveu em

fórmula magistral Raymond Aron poucos anos antes de mor rer, "a guerra é improvável mas a paz Impossível”. Nessas condições, constitui na verda de falta de lucidez atribuir ;'u chamado “neutralismo” e à po siçâo de ‘‘não-alinhamento’’ ou de “terceira-força" outro valor que não seja o de um simplos recurso tático, transitório, a ser utilizado pelas nações mais fra cas e geograficamente situadas nas áreas de mais forte tensão internacional, para evitar seu envolvimento imediato nos gol pes e contragolpes do confron to mundial. É uma tática de fuga, uma estratégia de aves truz. Não é uma política digna de potência emergente que en frenta a dura realidade do con vívio internacional. No relacionamento do Bra sil com os países comunista? não descubro qualquer elemen to claramente positivo. O que é que vamos vender a Cuba, charutos? O que é que vamos comprar no gulag insular deJ comandante, cana-de-açúcar? Quais as vantagens de nosso in tercâmbio comercial com a Eu ropa de Leste, além dos crédi tos subsidiados de cerca de quatro bilhões de dólares que lhe concedemos, inclusive dois bilhões de dólares de polonetas incobráveis? Desses paises im portamos pouca coisa útil, a não ser se como tal se consi dere a propaganda inepta que invade nossas escolas, contami na nossos meios de comunica ção e leva à apostasia nos sa esquerdigreja dita “pro gressista”. Que apoio militar, tecnológico e político nos prdem oferecer? Que enriqueci mento cultural, além do balé Bolshoi e do Circo de Moscou? Em contraste, avaliem a rique za de nosso relacionamento In terdependente com 0 centro mundial do poder no Atlântico Norte, riqueza imensa nos qua tro campos desse poder.

Relação polêmica

queville e Locke, Burke, Adarrt Smith, Benjamin Constant, Lord a relação polêmica Acton, os Pais de Pátria amecom 0 mundo ocidental capita- ricanos, tantos outros. O que lista em geral, e com os EUA na França, na Inglaterra, m particular, tem sido habil-. Alemanha, na Itália se denomi na o neoliberalismo, com no mes como Aron, Hayek, Bauer, Dahrendorf, Bobbio, Sartorl, Revel, Peyrefitte, Sorman, Lepage. manifesta-se com vigor na América do Norte sob o tí tulo de libertarianismo ou neoconservadorismo, com nomes como Kristol, Podhoretz, Novak, Friedman, Rothbard. É a tradição renascida da economia liberal, das leis do mercado e da venerável herança da Filo sofia Perene que advoga o fun damento ético da sociedade po lítica, pela liberdade do cidadão moralmente responsável. O que

Ora, em mente manipulada pela esquer da social-estatizante botocuda. no sentido de romper nossas amizades tradicionais, apresen tando a União Soviética como modelo alternativo de desenvolOu, se não a URSS vimento. (vejam só que admiráveis mo delos!) Cuba, a Nicarágua e a Albânia... A civilização ocider. tal moderna, industrial, capitalista, tecnológica, pluralista aberta e democrática, centrali zada na área do Atlântico Nor te, constitui 0 grande pólo dc atração do mundo em desenvolvimento. Isso mesmo, e sobre tudo quando vão os delegados morenos à Assembléia da ONTJ derno comporta a superaçao criticar, em Nova York, o Oci dente e os EUA. Essa civiliza ção ocidental gerou em seu pròelementos de uma alguns já chamam o “pós-modas ideologias social-estatizanies de esquerda. Infelizmente, a intelectuária tupiniquim, atra sada como sempre, ainda não se deu conta do fenômeno... pno seio os Contracultura, cia critica ou uma contestação de que se tornaram o democratismo à Ia Rousseau e o sociauma dissidên-

É com essa tradição e com essa herança, meus senhores, que devemos renovar. No rela cionamento Leste-Oeste, deve mos novamente nos situar dian- lismo marxista os principai.s intérpretes. A chamada Escola de Frankfurt, de que é aqui meu eminente colega, o embaixador Rouanet, um dos mais abalisU' dos e eruditos porta-vozes no Brasil, elaborou mesmo uma fi losofia .crítica da cultura oci dental, abstendo-se contudo de apresentar qualquer proposta concreta para substituir aquilo que critica.

De uns dez anos para cá, entretanto, esse processo maso quista de autodestruição foi su perado por um renascimento estupendo da consciência liberal-conservadora. O prestígio recente de Tocqueville, o nome com o qual iniciei esta confe rência, se explica à luz des.se desenvolvimento singular. Toc-

te dessa verdade simplíssima futuro da civilização oclfuturo da que o dental neste pais, o cultura, da liberdade, do pro gresso, da Justiça e da demo está inelutavelmente as- cracia, sociado à segurança coletiva das democracias ocidentais, an te o desafio monstruoso levan tado pelo totalitarismo socialestatizante. É assim que apre cio 0 impacto do relacionamen to polêmico Leste x Oeste na conjuntura da Nova República.

Exposição feita na Escola Supe rior <Ie Guerra, dia 18 de agosto últi mo, a propósito do tema ções Leste-Oeste e seus Reflexos na Conjuntura Política Nacional”. O autor foi embaixador do Brasil. Ê professor na Universidade de Bra sília. As Reia-

Constituinte: uma proposta em defesa da Livre Iniciativa

EULAUO DE BUENO VIDIGAL FILHO

Em recente trabalho que consubstancia minha contribui ção para a futura Constituição brasileira, como integrante da Comissão Provisória de Estu dos Constitucionais, saliento a necessidade de que o Poder Constituinte, que vai fixar as normas dessa nova Constitui ção, elabore uma Carta políti ca, econômica e social. Enten do que só através da aborda gem desses três planos, em conjimto, é que havaremos de obter um consenso que propi cie 0 grande pacto entre os bra sileiros.

Naturalmente, como empre sário tenho firmado meu ponto de vista especialmente no sen tido de que se defina uma Cons tituição econômica para o Bra sil. Uma Constituição que res guarde a liberdade no plano econômico, que explicite os li mites da ação do Estado, no sentido de assegurar à iniciati-

va privada uma atuação mais segura e de longo prazo. A reformulação constitucio nal brasileira deve se inserir na tradição de liberdade que im pera no mundo ocidental. E de corre de uma postura liberal que prevalece na Nova Repú blica.

E é dentro desse quadro que me preocupo com o estabe lecimento de parâmetros eco nômicos explícitos, a partir do argumento de que a liberdade não pode ser apenas política, sob pena de não vingar. Há um vínculo indissolúvel entre liber dade política e liberdade eco nômica, que não pode ser igno rado.

Nesse sentido, defendo uma linha filosófica própria do li beralismo. E é claro que o li beralismo rejeita não apenas o Estado autoritário mas também 0 Estado providencialista. Ocorre que o liberalismo de hoje

não pretende o Estado indife rente a tudo o que não diga res peito, diretamente, à segurança e ordem pública. Admite a in tervenção do poder público nos domínios econômico e social. Mas vê o Elstado atuando como um mediador, que concilia in teresses pela persuasão, jamais como um tirano que comanda, ou um pai que dispõe, em prol do que pensa ser o bem dos governados, recusando a estes, porém, 0 valor maior, a liber dade.

Não cabe aqui analisar a fundo a democracia e suas for mas de expressão. Todavia, ressalto que a democracia mo derna constitui, dentro do pos sível, a maior aproximação até hoje efetivada em relação à li berdade como participação.

Por conseqüência, entre as liberdades reconhecidas desde o século das Luzes está a liber-

dade econômica,em suas várias projeções. Está também a li berdade de iniciativa e de asso ciação (a liberdade de empre sa), está a liberdade de traba lho, comércio e indústria, a li berdade de ofício ou profissão. Tais direitos permitem ao indi víduo, isolado ou unido a ou tros, desempenhar atividade produtiva e socialmente útil, in dependentemente de autorização do Estado.

Aplicada à economia, a de mocracia econômica também apresenta um modelo puro e uma aproximação possível. A primeira é o próprio sistema de mercado. Da oferta e da

procura resulta a vontade ge ral econômica.

É certo que, no mundo dos fatos, o sistema sofre distor ções. Entretanto, o sistema de mercado é inegavelmente o úni co sistema não-autoritário de regulação da economia. Todos os demais sistemas experimen tados presumem um comando, portanto, uma autoridade, que disciplina a produção e o con sumo, segundo critérios pró prios.

Na verdade, o sistema de mercado tolera a atuação do Estado. Uma atuação reduzida ao mínimo indispensável e ten do em vista o restabelecimento ou a facilitação do funciona mento livre do mercado ou à realização da justiça social. Es te sistema de mercado é a aproximação possível e conve niente da democracia econômi ca pura. Intervenção no senti do do bem de todos, que a de mocracia política deve assegu rar.

Esse intervencionismo deve ser limitado ao imprescindível, não só em abono do espírito do sistema, como em razão da experiência concreta. Vale no tar que 0 intervencionismo freqüentemente tem levado a dis torções bem maiores, e bem piores, do que aquelas que pre-

tendeu corrigir. A mente hu mana, mesmo dos mais sábios dos economistas, se tem reve lado mais falível do que a **mão invisível”.

Destaco, ainda, que a' de mocracia econômica “possível não passa pelo favorecimento de grupos, mormente de sindi catos, no processo econômico.

Insisto em que é nítida a relação entre democracia polí-

IEntre as liberdades reconhecidas desde o século das Luzes, está a liberdade econômica, em suas várias projeções.

mento pelo qual se fixam as atribuições aos órgãos do Esta do, estabelecendo-se o alcance de seus poderes. Deste decorre a limitação com a contraparti da de que persiste a liberdade individual. Fica claro que a Constituição garante a liberda de natural do homem. Ora, sen do a Constituição a lei suprema, os próprios poderes do Estado nada podem contra ela. Poderes constituídos que são, têm na ^ Constituição a fonte de sua au toridade. E perdem-na se a contrariam e no que com ela colidem seus atos inválidos.

Ainda em defesa da idéia de liberdade, só merece ser de signada por Constituição a lei suprema que garanta os direi tos do homem e estabeleça a separação de poderes. Cabe lembrar aqui o artigo 16 da De claração dos Direitos Homem e do Cidadão, de 1789: “Toda so ciedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem mm' determinada a separação dos poderes, não tem Constituição.”

tica e democracia econômica, entre o Governo pelo povo e o sistema de mercado, que é tam bém 0 governo da economia pelo povo por intermédio do mercado.

É fato que as constituições liberais são políticas, tão-so mente. E por duas razões prin cipais. A primeira é derivada do sistema de pensamento. No sistema liberal clássico, o pla no econômico é do domínio da liberdade individual, que deve estar fora do alcance do Elstado. No tocante à economia, esse pensamento confia no mer cado, na livre competição.

Outra razão: a renovação institucional iniciada no século XVIII procede de uma reação contra os abusos do absolutismo. O Estado, o governo, o Po der é o inimigo da liberdade. Esta há de ser conquistada con tra este, protegida contra ele.

As constituições, por isso, cuidam de limitar o Poder po lítico, organizando-o de forma

Assim, não é por mera coincidência que todas as de mocracias coexistem com o sis tema econômico' de mercado. Nem é mera coincidência que o totalitarismo se implante to da vez que o sistema político e 0 sistema econômico são con duzidos de cima para baixo, autoritariamente, ainda que em nome do bem último do povo. Nessa linha de raciocínio, vale ressaltar que a Constitui ção serve para limitar o Poder. A Constituição, posta como Lei das Leis, com posição hierár quica suprema, organiza o Po der, limitando-o. Sua função a ter de respeitar a liberdade primordial é exatamente essa: individual. Neste sentido, são a de limitar o Poder. elas armas contra o Poder poA Constituição é o instru- lítico.

Em torno da Constituição americana

O trabalho que se vai ler foi escrito para ser publicado prefácio do livro A Cons tituição Viva dos Estados Uni dos, de Saul K. Padover, a ser lançado pela editora Ibrasa. documentos terão como Poucos merecido bibliografia tão vasta, Constituição dos Esta- como a dos Unidos. Não há constitucionalista que não a tenha estu dado ou a estude, sobretudo quando é convocada uma As sembléia Constituinte. Primeira Constituição escrita do mundo. Congresso dos Estados Unidos Congresso Continental .ela borou-a com representantes de dos treze Estados que for0 ou nove maram, inicialmente, nalidade emergente das colo nias inglesas. Condensando os princípios da filosofia das Lu zes, da qual Locke foi e preConstituição de 1787 a nacio-

com 0 constitucionalismo irrom pido no Ocidente, a partir da Constituição de 1787.

Eriglu-se a Constituição americana como um ídolo fas cinante, pelo qual se deixaram seduzir todos os povos. Não perceberam, contudo, que o ra cionalismo da filosofia das Lu zes não havia destruído a he rança das antigas instituições inglesas trasladadas para as colonias da América: o direito consuetudinário, as liberdades medievais, usos e costumes das quais resultaram o Biil of Rights, que até aos nossos dias fazem da Inglaterra um mode lo de nação imbuída de convic ções, sentimentos e respeito democráticos radicados na mensagem evan gélica. Mostram-no, em seu monumental estudo, os irmãos Carlyle, e basta ir às fontes das instituições americanas, para nelas se encontrar esse legado, que a lima inexorável do tempo não desgastou.

profundamente

fez da ideologia da liberdade, da prosperidade e da democra cia a sua razão de existir no tempo e no espaço. Graças à Declaração da Independência, e de sua fórmula jurídica, a Constituição, os Estados Unidos consagraram a filosofia das Luzes, imprimindo-lhe o cunho do triunfo. Sua influência veio a ser irresistível- As mesmas idéias da filosofia das Luzes, que se encontram no nascimen to dos Estados Unidos, também se encontram no irrompimento da Revolução Francesa, mas o rumo que tomaram na Europa foi de todo diferente das que consolidaram, na pujante na cionalidade americana, uma au têntica democracia, entendida como ideal moral, estrutura ju rídica e regime político.

Quando a Constituição foi elaborada, presidiu-se a idéia de dotar a nacionalidade ame*

cursor, a corporificou o racionalismo filosofico do século XVIII. Em terra sem história, aberta a to dos os povos que a escolhessem para nela começarem vida no va, os constitucionalistas de Fi ladélfia deram origem a uma Carta, cujo destino seria, com a Declaração da Independência, ricana, já independente, de 0 de um dos totens sobre os uma Carta de princípios, essenquals se ergueu a ideologia ciais â sua consolidação. Eramericana. Não se lhe deve, gueu-se sobre o granito desse entretanto, estabelecer paralelo documento a nacionalidade que

Tocqueville, o mais arguto e erudito observador das insti tuições americanas, fixou suas notas dominantes, inconfundí veis, das quais estão distancia das as de outros povos. Funda ção destinada a durar, a insti tuição, segundo se infere do seu doutrinador, Georges Renard, se expressa nos Estados Unidos na Declaração da Inde pendência e na única Constitui ção. até hoje inalterada, senão para aprimorá-la. Tão longe

foram, mesmo, os membros do Congresso americano, que, na primeira emenda, se autolimitaram em seus poderes. No mais. na sua essência a Consti tuição não mudou, mas, apenas nos acidentes, para usarmos terminologia escolástica.

Projeção das convicções fi losóficas e religiosas dos Pais Fundadores, todos eles forma dos no Iluminismo e no protes tantismo, a Constituição é mo delo do racionalismo da época, o século XVIII. É, mesmo, o único modelo do racionalismo político que alcançou pleno êxi to. Elaborado na Idade da Ra zão, 0 século XVIII, plasmou uma nacionalidade, infundindolhe uma ideologia, tão forte, tão sólida nos seus fundamentos e

na sua estrutura, que está viva até aos nossos dias, e nada in dica que venha a desvivificar- não obstante a se no futuro, tremenda crise política, social, moral em cujas tenazes se de bate todo o mundo moderno. Todas as idéias em circula-

ção no século XVIII, o deismo inglês, 0 iluminismo francês, a Aufklaerung alemã floresciam na América. Daí o papel pre ponderante, como demonstrou Claude Manceron, da revolução americana no curso dos acon tecimentos e no s.eu refluxo para a Europa. Graças à terra sem passado, os futuros Esta dos Unidos, foi possível ali es tabelecer instituições duradou ras. Os Pais Fundadores inau guraram um regime, a repúbli ca presidencial, deram-lhe uma Constituição, modelo de síntese, e puseram em movimento a ideologia que se embebeu de racionalismo, do puritanismo de sua confissão religiosa e da vocação missionária de sua de mocracia.

Concorreram para a insti tuição do novo regime os auto res do Federalista, com seus escritos, Paine, com o Senso Comum, mas, acentuamos, so¬

bretudo, a identidade de forma- trepidação da História, em veção filosófica e religiosa dos loz movimento, nem as crises Pais Fundadores, discípulos di- que abalaram o mundo nesses retos ou indiretos da filosofia dois séculos, as revoluções, as das Luzes. Os Pais Fundadores guerras, todas as visissitudes restauraram a idéia de repú- por que passaram os povos, a blica, deram-lhe contéudo polí- fizeram estremecer. Não há um co adjetivo e acrescentaramlhe 0 que nunca, antes, lhe fora adjudicado, o presidente, com dêramos relevante, copiá-la é mandato a prazo certo. Os temerário. Provam-no os maioConstituintes de Filadélfia sa- gros de, praticamente, tòdas as nações que o fizeram. Até mes mo a França, orgulhosa de sua cultura, teve numerosas Cons tituições.

Tocqueville, o mais arguto e erudito observador das instituições americanas, fixou duas notas dominantes, das quais estão distanciadas as de outros povos.

só exemplo que se lhe compa re. Por esse motivo, que consi-

caram, como diz Afonso Arinos de Melo Franco, de um caso particular, uma norma geral, criando a figura do presidente, adotada por outros povos, daí por diante. A Constituição é a própria expressão jurídica da filosofia que inspirou os Fun dadores. Obra tipicamente ame ricana, diremos, mesmo, exclusivaraente americana. Segundo Harold J. Laski, o presidencia lismo, que não deveria ser co piado, impôs-se triunfante como regime de governo.

Ao comemorar dois séculos de vigência, em 17 de setembro de 1987, a Constituição que as segura a duração da ideologia americana exemplo único de um documen to de sete artigos, vinte e seis emendas e mais de uma cente na de decisões da Suprema Corte americana, que não lhe mudaram a substância. Nem a

Os Estados Unidos podem se orgulhar de suas instituições, das quais a Constituição é a pedra angular. É a homenagem que se lhes deve render, com a ressalva de ser impossível, segundo ensina a História, essa mestra infalível, outros povos a adotarem com o mesmo espíri to e a mesma ideologia.

A obra A Constituição viva

dos Estados Unidos, apresen tada com notas históricas por Saul K. Padover, na tradução de A. Dplla Nina, não tem a pretensão de ser um estudo, mas importante documento, maior utilidade para se aquila tar 0 fundamento constitucional dos Estados Unidos, a grande e sólida democracia. Ler esta pequena obra, incluída “Clássicos da Democracia’’, é instrutivo. Comprova que é viá vel uma democracia, de todos os regimes, o menos imperfeito, desde que assente sobre a natu reza das coisas. A resistência de uma instituição política é possível, em qualquer época, se for respeitada a formação es piritual, política, social do povo._ Os Estados Unidos nos ofereedificante exemplo,.

uma divulgação sobre o É da nos

estatui-se como cem esse ao se comemorar o segundo centenário d^ sua Constituição.

João de Scantimburgo é jornalista e prrfjfessor universitário. PHD. SCD.

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