Digesto Econômico - Nº 479

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Propostas para o próximo presidente

Rogério Amato Presidente da Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (FACESP), presidente-interino da Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB).

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Masao Goto Filho/e-SIM

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s associações comerciais, embora entidades voltadas para a defesa dos interesses dos empresários, sempre se preocuparam e se ocupam com problemas nacionais, visando contribuir para o crescimento do País e o aumento do bem estar de sua população. Nesse sentido, a ACSP elaborou, em 2010, um amplo estudo das questões que afetam o desenvolvimento brasileiro, e apresentou propostas visando superar os obstáculos que têm impedido o crescimento sustentável do País de acordo com sua potencialidade. O documento “Propostas para o Próximo Presidente: Contribuições para o debate de um programa de governo”, foi elaborado com base em 35 trabalhos preparados por especialistas de cada área, coordenados pelo professor Roberto Macedo, que analisaram os problemas brasileiros dos diversos setores, a partir de uma visão comum, a da necessidade de aumento dos investimentos, para garantir a retomada do crescimento da economia. Passados quatro anos, e às vésperas de nova eleição para presidente, a ACSP decidiu atualizar o documento de 2010. Constata-se da leitura dos novos textos, elaborados pelos mesmos especialistas, que a maior parte das análises e das propostas apresentadas naquela ocasião continuam válidas, embora em algumas áreas tenham se verificado avanços, enquanto em outras constata-se significativo agravamento dos problemas apontados, que tornam agora mais urgente e necessária a adoção das medidas sugeridas. Entre os avanços ocorridos no período pode-se destacar a simplificação do processo de abertura de empresas e a aprovação da nova Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas que, com a significativa ampliação dos setores contemplados, e a limitação ao uso da Substituição Tributária, representa um “embrião” da tão esperada reforma tributária, embora limitada ao extrato das empresas de menor porte. No tocante à linha central do documento de 2010, a da necessidade da expansão expressiva dos investimentos, o avanço obtido foi bastante modesto e neutralizado em grande parte pela deterioração da infraestrutura, embora no período mais recente tenha se constatado algum progresso nas tentativas de interessar os investidores em assumir concessões de serviços públicos e de participar em parcerias público-privadas. Persiste, no entanto, a baixa capacidade de investir do governo, apesar do crescimento constante da receita, que tem sido consumida pela forte expansão dos gastos de custeio. A implementação das propostas apresentadas pelas associações comerciais é agora mais difícil, pois o País se depara com problemas conjunturais que exigem solução urgente, sem o que não se terá condições para atacar as questões estruturais. A inflação acha-se em patamar elevado apesar do baixo crescimento da economia e do atraso nos preços administrados. O câmbio valorizado aumenta o nível da dependência externa, mas sua correção tem impacto sobre a inflação. Os juros elevados inibem os investimentos, mas atraem recursos externos para cobrir o déficit do balanço de pagamentos. O superávit primário necessário para manter estável a dívida interna não tem sido obtido, apesar de manobras contábeis e de receitas extraordinárias que vêm sendo utilizadas para obter o resultado dessa meta fiscal. Não havendo mais espaço para aumento da carga tributária, parece claro que o novo governo terá que fazer logo no início um forte ajuste nas finanças públicas, e paralelamente procurar o setor privado para viabilizar mais concessões e parcerias públicoprivadas para atacar os gargalos que vêm onerando o setor produtivo e os cidadãos. Para isso será fundamental restabelecer a confiança de empresários e consumidores, com um programa de ajuste fiscal crível e com uma agenda de reformas que, mesmo implementados gradativamente, sinalizem para os agentes privados perspectivas de retomada do crescimento. Com esta contribuição ao novo governo, a ACSP, mantém sua tradição de trabalhar pelo desenvolvimento político, econômico e social do Brasil, sem prejuízo de sua missão de defender a livre iniciativa como condição necessária para preservar a liberdade de escolha dos cidadãos e a maior eficiência da economia. Boa leitura.


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ISSN 0101-4218 Diretor de Redação Moisés Rabinovici Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna Editor de Fotografia Agliberto Lima Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico Evana Clicia Lisbôa Sutilo Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo Artes Jair Soares e Ricardo Alves de Souza Gerente Executiva de Publicidade Sonia Oliveira (soliveira@acsp.com.br) 3180-3029 Gerente de Operações Valter Pereira de Souza Impressão Log & Print Gráfica e Logística S.A.

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REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3180-3737 REDAÇÃO (011) 3180-3055 FAX (011) 3180-3046

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Capa Arte de Max

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Introdução ao PPP (2015-2018) — Roberto Macedo Simplificação tributária — Roberto Mateus Ordine Educação revisitada, diagnóstico estacionado — Claudio de Moura Castro Mudanças na área trabalhista: copo meio cheio — José Pastore Previdência Social: vamos perder o bonde? — Hélio Zylberstajn Câmbio, juros e spreads – propostas de política econômica — Joaquim Elói Cirne de Toledo Tudo que ainda precisa ser feito nas Telecomunicações — Ethevaldo Siqueira Black blocs do sistema tributário — Clóvis Panzarini O Futuro do Agronegócio: de 2010 a 2014 — José Roberto Mendonça de Barros e Alexandre Mendonça de Barros SUS: Tempos de Renovação versus Tempos de Conflito — Geraldo Biasoto Investimento público, um nó que não se desata! — José Roberto Afonso O diagnóstico da política de recursos humanos do Governo Público Federal: uma atualização — Nelson Marconi Propostas de Política Industrial — Patrícia Marrone Economia criativa — Lídia Goldenstein Logistica e Transporte no Brasil - Desafios para o novo governo federal — Renato Casali Pavan e Josef Barat Financiamento da economia brasileira - Evolução recente, desafios e oportunidades. — Carlos A. Rocca Os impactos subversivos da questão ambiental — Gustavo Krause A reforma política e a reforma da política — Carlos Melo A trajetória do Brasil na inserção internacional – desafios e oportunidades — Maria Teresa Bustamante O setor de seguros privados como instrumento do desenvolvimento nacional — Nilton Molina Pré-sal: análise e propostas — Vinicius Carrasco e João Manoel Pinho de Mello O Poder Judiciário nos últimos quatro anos — Jairo Saddi A custosa burocracia de outras obrigações fiscais — José Maria Chapina Alcazar Questões quilombolas, indígenas e o MST — Denis Lerrer Rosenfield Propostas para o turismo brasileiro — Wilson Abrahão Rabahy Desenvolvimento regional, com especial referência ao Nordeste. E agora, José? — Gustavo Maia Gomes Segurança pública: prioridade nacional — José Vicente da Silva Filho Segurança e defesa nacionais no Brasil — Gunther Rudzit Habitação, mobilidade urbana e saneamento nos últimos quatro anos — Vladimir Fernandes Maciel Energia Elétrica: Reflexões para uma Reforma Setorial — Virginia Parente A diplomacia de Dilma: uma reconstrução inacabada e imperfeita — Rubens Ricupero Fundamentos para reformulação da política macroeconômica — Roberto Macedo Mercado de crédito e o novo governo: dez propostas para reduzir o spread bancário — Ulisses Ruiz de Gamboa Considerações sobre os rumos do sistema tributário — Luís Eduardo Schoueri Inserção de Produtores de Pequeno Porte em Mercados Externos — José Cândido Senna A necessidade de fortalecimento das competências dos estados-membros da federação brasileira — Alexandre de Moraes Lições e Desafios do Bolsa Família - Uma agenda para frente — André Portela Souza


Introdução ao PPP (2015-2018) Roberto Macedo

Luludi / LUZ

Coordenador do Conselho de Economia da Associação Comercial de São Paulo

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ntre 2009 e 2010, coordenei para a ACSP o projeto Propostas para o Próximo Presidente (PPP) na sua versão 2011-2014. Ele reuniu 35 artigos voltados para questões de interesse nacional, elaborados por especialistas. Em cada uma delas, eles apresentaram um diagnóstico de problemas e propostas de políticas públicas para resolvê-los. Esses artigos foram publicados em seis edições da revista Digesto Econômico (CD em anexo), as quais foram encadernadas num único volume entregue em 2010 aos então candidatos à Presidência da República. Um guia de leitura foi apensado a esse volume, com resumos dos artigos e da maioria de suas propostas, agrupados mediante referência a 19 ministérios federais a que diziam respeito. Dois temas (Reforma Política e Fortalecimento das Competências dos Estados Membros da Federação) foram atribuídos à Presidência da República. Essa referência a 19 ministérios foi também uma proposta de redução dos 37 então existentes, número que abrangia 24 ministérios mais oito secretarias e cinco órgãos com status ministerial. Assim estruturado, o PPP anterior tinha também um traço unificador, que procurava relacionar os temas abordados e as propostas com a imperiosa necessidade, já então diagnosticada, de ampliar investimentos privados e públicos, de forma a alcançar taxas maiores de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. No guia de leitura foi explicitada a relação de cada tema com essa necessidade, e também houve referência à necessidade de aumentar a poupança nacional para financiar investimentos. Ao discutir em 2013 a oportunidade de um novo PPP, a ACSP optou por um novo formato. Ele veio da percepção de que a grande maioria dos problemas apontados em 2010 estão por resolver, alguns de forma agravada, como o ainda menor crescimento do PIB, que sintetiza a fragilidade de várias das suas forças determinantes. Assim, a opção foi voltar aos mesmos 35 autores das análises e propostas apresentadas em 2010, solicitando-lhes uma nova avaliação do status atual dos temas abordados, identificando os avanços e retrocessos, a pertinência das propostas anteriores e a conveniência de acrescentar novas. O resultado é apresentado a seguir em artigos que em face do seu tamanho por si mesmos constituem resumos das avaliações individuais dos seus autores, que gentilmente se dispuseram a colaborar com esta nova iniciativa da ACSP. A eles, a nossa profunda gratidão.

Alencar Burti, presidente da ACSP na época, entrega ao candidato José Serra a série Propostas para o Próximo Presidente (PPP)

Não nos parece necessário fazer um sumário desses resumos. Nem justo destacar um ou outro, pois todos se credenciam nesta perspectiva. Abordam muitas das inúmeras questões de interesse deste imenso País, multifacetado, complexo e diante de enormes desafios a enfrentar. Recomendamos a leitura de todos, pois fornecem um retrato atual de como anda o Brasil neste estágio da sua história, e sugerem passos por caminhos que se apresentam como mais gratificantes para o futuro do País. Olhando o conjunto em termos da linha mestra que orientou o primeiro PPP, o que se percebe é que houve um grave retrocesso, tanto na poupança, como no investimento em porcentagem do PIB, e a queda veio a partir de taxas já cronicamente insuficientes. Contudo, só em 2012 o governo federal acordou para a necessidade de ampliar investimentos. Sem recursos para investir mais, apesar da enorme carga tributária que impõe, optou pela privatização na forma de concessões de serviços públicos, e começou a fazê-la no caso de rodovias e aeroportos, mas a passos muito lentos. Essas concessões, como as Parcerias Público Privadas, se apresentam como um caminho a seguir com muito maior ímpeto, pois, junto com a necessidade de ampliar a poupança pública e privada, definem um rumo para a política econômica de médio e longo prazos. Em torno desse rumo, junto com a estabilidade econômica de horizonte mais imediato, deve gravitar a busca de soluções para os muitos e graves problemas apontados nos artigos que se seguem, além de outros não abordados. Entre eles, as dificuldades enfrentadas pela gestão governamental, lenta e frequentemente ineficaz. Voltando ao número de ministérios enfatizado pelo guia de leitura do PPP anterior, ele passou de 37 para 39. É um caso em que diminuir não significaria um retrocesso. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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SIMPLIFICAÇÃO TRIBUTÁRIA Roberto Mateus Ordine

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ma das questões mais importantes para o desenvolvimento do Brasil é a tributária. Com essa preocupação, a Associação Comercial de São Paulo, a FACESP, a FECOMÉRCIO e o SESCON, entre outras entidades, uniram-se para elaborar um estudo que libertasse o contribuinte destas amarras burocráticas, resultando em uma proposta de Simplificação e Racionalização do Sistema Tributário Brasileiro. Tudo começou quando a equipe técnica da PricewaterhouseCoopers (PwC), liderada pela sua diretora Elidie Bifano, apresentou estudo levantando um número incrível de obrigações fiscais acessórias existentes e seus respectivos custos, as quais os contribuintes estão obrigados a informar periodicamente ao fisco. O número de formulários fiscais e informações a serem preenchidos e entregues aos vários entes fiscais é excessivo. Só para o ICMS e o IPI, o número de obrigações acessórias apresentados passa de setenta para cada um dos referidos impostos. Diante deste quadro assustador, formouse um grupo de trabalho reunindo tributaristas e técnicos de renomadas universidades paulistas, dentre as quais se destacam a USP, FGV, PUC e Mackenzie de um lado da mesa. E de outro lado, os representantes dos três entes fiscais: União, Estado e Município.

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Para coordenar os trabalhos foi convidado o renomado consultor tributário Everardo Maciel, que além de seu reconhecido saber nessa área, acumula importantes experiências da administração pública e privada. Durante todo ano de 2012, o grupo de especialistas reuniu-se para debater a forma legal pela qual se poderia eliminar o excesso de obrigações formais, dentro do atual sistema tributário, sem envolver a necessária reforma tributária, pelas dificuldades já conhecidas. Foi dessa forma que, no início de 2013, o grupo de trabalho entregou suas conclusões reunidas num estudo que abrange as principais questões: redução da quantidade de informações e formulários fiscais; prazos mais adequados ao contribuinte e isenção ou redução das multas previstas pela falta dessas obrigações fiscais. Ao lado da diminuição da burocracia, a proposta busca maior segurança jurídica e previsibilidade, maior agilidade, redução dos abusos, maior competitividade e tratamento isonômico. Além da publicação do estudo, escrito em linguagem técnica, necessária para o devido enquadramento legal, o grupo apresentou também o trabalho traduzido em linguagem visual mais simples, para compreensão geral, por meio de CD (em anexo), contendo quadros explicativos, conforme apresentado na Figura 1.


L.C.Leite/LUZ

Everardo Maciel coordenou um grupo de especialistas, que debateu formas legais para promover a simplificação tributária.

Figura 1 – Quadro indicando Benefícios, Instrumento e Beneficiários das Propostas

Esse quadro é utilizado para a apresentação de cada proposta, a qual é colocada no seu centro, no espaço em branco mostrado pela mesma figura. Isto feito, o quadro destaca, na sua parte de cima, qual o benefício ou quais os benefícios esperados da proposta. Do lado esquerdo é apontado se ele beneficia a pessoa física e/ou a jurídica. E, na parte de baixo, destaca-se o instrumento a ser utilizado para institucionalizar legalmente a proposta.

Pelo simples exame do material visual disponível, verifica-se o cuidado que o grupo de trabalho teve ao demonstrar a solução das questões examinadas, tendo por base a previsão legal existente e a nova solução encontrada; e transcrevendo no mesmo quadro visual, a base legal da exigência anterior e a solução encontrada para simplificar o sistema fiscal burocrático, sem que o princípio da legalidade seja violado. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Educação revisitada, diagnóstico estacionado Masao Goto Filho / e-SIM

Claudio de Moura Castro

Formado em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais com mestrado na Yale University e doutoramento na Vanderbilt University.

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ntes da última eleição presidencial, um número especial desta revista incluiu propostas minhas para mudar a Educação. Passados quase quatro anos, decidiu-se que não era o caso de reescrever as propostas. Bastava adicionar duas páginas. Se tão pouco há a dizer, que melhor epitáfio para o triste estado da nossa Educação? No que se pode medir, pouco mudou. Os números não mostram um empuxo vigoroso para cima, seja na quantidade, seja na qualidade. Continuamos oscilando entre o péssimo e o medíocre. O lado positivo é a presença da educação na mídia, cada vez mais forte. Infelizmente, a cobertura tende a ser algo trôpega e inexata, mesmo nas melhores publicações. Uma notícia boa é que, pouco a pouco, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) mostra ser uma arma poderosa para estimular a qualidade e denunciar os retardatários. Isso tende a ser uma iniciativa espontânea da sociedade, mais do que política de Estado. Um grande desapontamento é o Ensino Médio que continua capenga e murchando. Pior, permanecem vigentes todos os problemas de excesso de conteúdos e disciplinas, bem como a solução única para um ensino intrinsecamente plural. Em que pesem ministros concordando com o diagnóstico, nada acontece. Dentro dos muros de um Ministério da Educação (MEC) barroco e pouco iluminado, há mais palavras do que lucidez, realismo e ação. Outro desastre que se revela inconsertável é a formação de professores. Não aprendem

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os conteúdos que vão ensinar e tampouco são preparados para dar aula. Em vez disso, consomem os anos decorando teorias rarefeitas e mergulhando em um esquerdismo requentado e obsoleto. Com adjetivação mais branda, a cúpula do MEC reconhece o problema. Mas nada acontece. A novidade é a quase aprovação de um Plano Nacional de Educação (PNE) intelectualmente caótico e desestruturado, pouco mais do que a coleção desconexa de reivindicações de sindicatos e grupos de interesse. Apesar disso, perdido no meio da entropia verbal, há metas que fazem sentido, inspiradas no Todos Pela Educação. Somente chega às manchetes a meta de dez por cento do PIB, sem que se diga quem pagará, quem usará e como assegurar que serão bem usados os recursos. De resto, em meio a um grau exacerbado de ineficiência e desequilíbrios, não encontramos uma só palavra no PNE acerca da necessidade de direcionar os recursos para aqueles gastos que podem melhorar a qualidade. Municípios e estados, cada um anda para o seu lado. Há pérolas e enclaves de avanço célere, em meio à maioria que permanece no limbo. Há também hecatombes educativas. No ensino superior, a ausência de boa governabilidade nas instituições públicas, progressivamente abre espaço para a emergência do sistema privado. O nicho do ensino de massa foi facilmente conquistado, apesar da sua qualidade vacilante. Ainda meio invisíveis, consolidam-se mais boutiques de qualidade, espalhadas pelo terri-


Paulo Pampolin/Hype

tório nacional – e não apenas nas grandes capitais. Certas instituições começam a beliscar o tradicional repositório de alunos bem formados no Ensino Médio privado. As greves e o descaso nas salas de aula das universidades públicas provocam esse início de migração. Um avanço a ser registrado é a liberdade de abrir cursos, concedida às instituições mais bem avaliadas. Mas isso não compensa a ferocidade das guerrilhas burocráticas contra as demais. A administração do MEC cria ou mantém barreiras surrealistas à abertura de novos cursos. Recentemente, uma das instituições privadas mais admiradas do país teve seu novo curso de Engenharia negado, porque o mezanino da biblioteca não dá acesso a cadeirantes e por discordâncias com a forma escolhida para organizar a disciplina de estudos afro-brasileiros. E isso, apesar de ser um projeto alinhado ao curso de Engenharia que se tornou o modelo para as melhores universidades do mundo. Ao que consta, um dos visitadores contribui regularmente para o jornal Pravda. Podemos daí concluir que o ranço ideológico ainda faz seus estragos? A expansão do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e do Programa Universidade

para Todos (PROUNI) é, ao mesmo tempo, um sinal alvissareiro de pragmatismo do MEC e um atestado de incapacidade para consertar seu próprio sistema, mirrado, caro e ineficiente. O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), algo embaralhado, caminha na mesma direção de reforçar a iniciativa privada no Ensino Técnico. Em meio a esse quadro confuso, o grande contraste é o Ciências Sem Fronteiras, um programa que caminha na contramão da xenofobia rançosa do passado. Quase cem mil alunos de instituições públicas e privadas poderão experimentar a Educação de países de primeira linha. No todo, está na direção certa e mostra bons resultados. Mas, na velocidade alucinada em que cresce, são inevitáveis os enganos e confusões, como o excesso de bolsas para instituições menos qualificadas. Infelizmente, a imprensa pinça equívocos e desencontros, em vez de louvar a internacionalização bem vinda que está trazendo. Em suma, olhando o quadro da evolução do nosso ensino nos últimos quatro anos, não vemos grandes avanços. Nem parece que Educação é importante.

Um avanço a ser registrado é a liberdade de abrir cursos, concedida às instituições mais bem avaliadas.

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Mudanças na área trabalhista: copo meio cheio

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lgumas das recomendações sugeridas no artigo publicado em 2010 foram implementadas pelo governo. Houve um crescimento salutar da formalização do trabalho, tanto via emprego, com estímulo da desoneração da folha de salários, como via trabalho por conta própria, com apoio do MEI (Microempreendedor individual). O lançamento do PRONATEC, em parceria com as entidades do setor privado, trouxe a esperança de se contar com uma maior oferta de mão de obra qualificada no final desta década e início da próxima. As demais sugestões apresentadas naquele artigo foram ignoradas pelo governo, como é o caso do Simples Trabalhista, do contrato de formação para jovens, a terceirização, o trabalho por pessoa jurídica e os estímulos para a aprendizagem e os estágios. Estas medidas tornaram-se ainda mais realistas para os dias atuais. Apesar da taxa de desemprego se manter abaixo dos 5%, o mercado de trabalho do Brasil apresenta sinais preocupantes. O exame acurado dessa taxa, em si, é motivo de apreensão, pois a queda da desocupação se deve muito mais à redução dos que procuram trabalho do que a uma forte geração de empregos. Ao contrário, os dados do CAGED indicam uma grave retração na criação de novos postos de trabalho, iniciada em 2012, e que se aprofunda a cada mês que passa. A referida retração reflete em grande parte o fraco desempenho da economia que, no primeiro trimestre de 2014, ficou praticamente estagnada em relação ao trimestre anterior. E, mais grave, o investimento continua anêmico. Sem isso,

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Paulo Pampolin/Hype

José Pastore

Professor de Relações do Trabalho da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e da Fundação Instituto de Administração. Membro do Conselho Político e Social (COPS) da Associação Comercial de São Paulo.

não há como pensar em dias melhores no mercado de trabalho. Afinal, o investimento de hoje é que garante o emprego de amanhã. O que acontece hoje é desanimador. Na primeira metade de 2014, as vendas no setor imobiliário despencaram mais de 50%, o que compromete a geração de empregos da construção civil. A queda de vendas no setor de veículos também preocupa, pois se refere a uma longa cadeia produtiva. As montadoras e as autopeças já começaram a suspender turnos de trabalho, dar férias coletivas, usar o layoff e demitir empregados. Da mesma forma, a queda das vendas no comércio prenuncia problemas de emprego nesse setor, que até aqui foi uma das principais fontes de novos postos de trabalho. Com exceção dos bons ventos da agricultura, o clima geral é de incerteza e apreensão. Se levarmos em conta que 2015 pode ser inaugurado com um "tarifaço" dos preços até aqui contidos e um racionamento de água e de energia, o quadro para o emprego pode virar por completo, com a volta do desemprego acima de 6% ou 7% e até mais. Por cima de tudo, a legislação trabalhista e a rigidez dos órgãos de fiscalização e da Justiça do Trabalho potencializam ainda mais a insegurança jurídica, que é crônica no País. Realisticamente, nenhuma empresa sabe qual é o seu passivo trabalhista porque, por força de leis e de sentenças judiciais, os custos do trabalho sobem de forma imprevisível. Se a simplificação da legislação trabalhista é necessária em clima de crescimento acelerado, ela é mais urgente em ambiente de recessão e incerteza. Até mesmo os países da Europa, que têm tradição de rigidez, vêm adotando formas mais flexíveis para a


Arquivo/ABr

contratação do trabalho. Esse seria o propósito do Simples Trabalhista sugerido em 2010 ao permitir às pequenas e microempresas a contratação de trabalhadores com menos burocracia e mais facilidade, completando a simplificação já existente no Programa do Simples nas áreas previdenciária, tributária e administrativa. Esse seria também o propósito dos contratos de formação sugeridos em 2010 e até hoje desconsiderados pelo governo. Por meio dele, as empresas contratariam jovens recém formados com menos encargos sociais por um período de 12 ou 18 meses. Isso seria bom para os jovens, para as empresas e para o governo (que recolheria contribuições previdenciárias). A terceirização continua sendo um tema de resistência injustificável por parte do governo, pois esse tipo de divisão do trabalho é uma realidade irreversível e próprio da economia globalizada. Os estudos mostram que a terceirização reduz os custos das empresas, melhora a qualidade dos serviços,

aumenta a lucratividade, eleva os investimentos e estimula a geração de empregos. Sem ela, tudo se torna mais difícil e mais caro para os consumidores. Da mesma forma, o Brasil precisa regularizar e estimular o trabalho atípico exercido primordialmente por pessoas jurídicas que não se adaptam à situação de vínculo empregatício devido à natureza especializada e intermitente dos serviços que prestam. A aprendizagem e o estágio continuam a exigir simplificações burocráticas e estímulos para a sua contratação. Por meio desses expedientes, os jovens adquirem a experiência cuja falta os afasta da contratação por empresas que buscam pessoas familiarizadas com suas profissões. Enfim, a área trabalhista está na situação do copo meio cheio e meio vazio e, realisticamente, mais vazio do que cheio. A modernização de nossas leis nesse campo é uma necessidade urgente para criar um bom ambiente de negócios, estimular investimentos e criar empregos de boa qualidade.

A terceirização continua sendo um tema de resistência injustificável por parte do governo.

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PREVIDÊNCIA SOCIAL:

VAMOS PERDER O BONDE?

Leonardo Rodrigues / e-SIM

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o começar este artigo, experimento duas sensações contraditórias e simultâneas: pessimismo e esperança. Explico. O pessimismo vem da constatação de mais quatro anos desperdiçados. Muito pouco foi feito e a situação da Previdência Social continua a se agravar. Em duas ou três décadas o País terá completado a transição demográfica e o número de idosos superará rapidamente o de jovens. Como sustentaremos os idosos? Com as regras do atual sistema, seguramente não será possível enfrentar o envelhecimento da população. A reforma é cada vez mais dramaticamente urgente e a proposta de 2010 continua muito válida e atual. Mas os políticos se calam e se omitem. Já a esperança aflorou da observação de que, mesmo sem terem a intenção, os formuladores da política previdenciária deram alguns passos na direção da reforma que propusemos. Destaco três elementos da proposta de 2010: unificação e universalização da Previdência, desvinculação do valor dos benefícios do Salário Mínimo e criação de um pilar universal não contributivo – a Renda Básica do Idoso. Lentamente estão sendo criadas condições para a adoção destes elementos. A proposta sugeriu a unificação do sistema previdenciário para eliminar o tratamento diferenciado que os funcionários públicos recebem. A criação da Aposentadoria Complementar para os funcionários públicos foi um avanço importante nesta direção. Os servidores federais contratados a partir de 2013 não mais se aposentarão com benefício igual ao último salário. Existe agora um teto, de igual valor ao do INSS. Haverá para eles um plano voluntário de aposentadoria complementar, com contas individuais no regime de capitalização. O mesmo ocorrerá para os servidores dos estados e municípios, mas somente depois que cada um destes entes criar o seu plano de aposentadoria complementar. Aí mora um grande perigo, pois a tendência é a de criação de programas geridos pelo setor público, com os riscos inerentes de governança politizada dos recursos. De qualquer forma, foi um grande avanço, mas ainda insuficiente. Há muito a fazer na questão da aposentadoria complementar dos servidores públicos, problema que nossa proposta de 2010 contemplou com muita objetividade ao sugerir a extensão do FGTS para os funcionários dos três níveis da administração. Estamos, portanto hoje mais próximos da unificação dos diversos sistemas de previdência e não seria difícil tomar algumas medidas para completar este movimento.

No setor privado, o caixa do INSS continuou pressionado pela política de reajustes do Salário Mínimo, ao qual o benefício mínimo está vinculado. Nada menos que 2/3 dos benefícios do INSS são iguais ao Salário Mínimo e correspondem a aproximadamente metade da despesa com benefícios. Para não comprometer ainda mais as contas da Previdência, o próximo presidente terá que, ou desvincular os benefícios da Previdência do Salário Mínimo, ou rever a política do Salário Mínimo. A necessidade de aliviar as contas do INSS das prefeituras e dos governos estaduais poderá nos levar à desvinculação, que é também uma das sugestões da proposta de reforma de 2010. A proposta de 2010 sugeria uma espécie de compensação à desvinculação dos benefícios do Salário Mínimo: a Renda Básica do Idoso, benefício com cobertura universal, de natureza não contributiva e que formaria o primeiro pilar do novo sistema. Curiosamente, estamos inconscientemente caminhando para este cenário, levados por duas políticas. A primeira é a assim chamada aposentadoria especial por idade dos trabalhadores rurais – um regime não contributivo de aposentadoria. Nada menos que seis milhões de brasileiros desfrutam deste benefício. A segunda são os regimes especiais praticamente não contributivos, como o SIMPLES e o MEI. Seus participantes contribuem com valores ínfimos e adquirem o direito à aposentadoria mínima. Com o tempo, milhões de brasileiros receberão o valor mínimo de aposentadoria sem terem contribuído. Nossa proposta reconhecia a baixa capacidade contributiva da base da pirâmide e sugeria que o primeiro pilar do novo sistema fosse de natureza universal e explicitamente não contributiva. Com aposentadoria rural, o SIMPLES e o MEI, vamos nos movendo nessa direção. Por linhas tortas estamos moldando um novo sistema e em algum momento, a gravidade do problema nos obrigará a explicitá-lo. Mas é importante lembrar que o grande passo para equacionar o problema seria adotar a idade mínima para se aposentar. Nesta direção, ainda não houve nenhum movimento. Pelo contrário, há ensaios de retrocesso, como a ideia de extinguir o fator previdenciário que induz o adiamento de aposentadorias e a esdrúxula prática da “desaposentação”. Convido o leitor a ler (ou reler) nossa proposta, avaliar a distância que ainda nos separa de um sistema viável e justo de Previdência Social e verificar se há razões para alimentar alguma esperança ou se vamos perder o bonde.

Andrei Bonamin/LUZ

Hélio Zylberstajn

Doutor em Economia pela Universidade de Wisconsin-Madison, professor adjunto da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, exsecretário de Emprego do Ministério do Trabalho e Emprego e membro do Conselho de Economia da Associação Comercial de São Paulo.

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Câmbio, juros e spreads – propostas de política econômica Danilo Ramos / e-SIM

Joaquim Elói Cirne de Toledo

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o meu artigo de 2010, sugeri um conjunto de medidas de política econômica para depreciar a taxa real de câmbio e reduzir a taxa básica de juros e os spreads de crédito. O objetivo último era o desenvolvimento econômico equilibrado, isto é, com crescimento, melhor distribuição de renda e riqueza, e estabilidade de preços. Argumentei que uma taxa real de câmbio (relativamente) depreciada, e menores custos de capital, induziriam não apenas ao crescimento do estoque de capital, mas também ao progresso técnico, especialmente pela emulação e difusão de técnicas e tecnologias já conhecidas noutros países. Entre as medidas propostas, destacavam-se: políticas fiscais restritivas; redução, ao longo do tempo, do estoque da dívida pública líquida, por meio da maximização dos superávits primários; redução dos encargos fiscais sobre a folha de pagamento; instituição de royalties significativamente mais elevados sobre toda a produção mineral; instituição de impostos (como a CIDE) sobre a produção de minerais brutos, com alíquotas decrescentes ao longo do tempo; maior liberalização da legislação cambial, viabilizando maiores investimentos de brasileiros no exterior; reforço nas estruturas legais de defesa da

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Ph.D em Economia pela Massachusetts Institute of Technology (MIT), foi professor da FEA-USP e diretor executivo do Banco Nossa Caixa.

concorrência; implantação de sistemas de cadastro positivo; imposição de limites legais (razoáveis) para taxas de juros para consumidores; ação do Banco Central (BC) para coibir, através de persuasão, spreads excessivos; e forte atuação de bancos públicos na concessão de crédito a micro e pequenas empresas, sem a imposição de restrições individualmente estabelecidas sobre os potenciais demandantes de crédito, agindo como verdadeiros garantidores da liquidez desse segmento empresarial. Decorridos quatro anos, constata-se que algumas poucas dessas medidas foram efetivamente adotadas, mas os objetivos estão longe de serem alcançados. Para decepção deste autor, em vários casos as políticas adotadas foram diametralmente opostas às recomendadas, como é o caso conspícuo das políticas fiscal, monetária e cambial: ao invés de políticas fiscais restritivas, adotaram-se políticas de expansão da demanda doméstica; em lugar de maximizados, os superávits primários foram minimizados e são cadentes; ao invés de estímulos à poupança e ao investimento, foram concedidos inúmeros estímulos ao consumo privado e houve algum aumento do consumo público (gastos correntes); em consequência, o BC acabou aumentando as taxas de juros e controlando a taxa de câmbio, como


Pablo de Sousa/LUZ

No ritmo atual, a taxa de crescimento do período 2011-2014 será uma das mais baixas desde a proclamação da República. instrumentos de controle da inflação (que não foi reduzida, apesar da administração arbitrária de preços, causadora de múltiplas distorções, como no caso dos setores energéticos); assim, tanto a política fiscal como a monetária e a cambial foram aplicadas na direção contrária ao que sugeri em 2010. Quanto aos objetivos finais, vieram resultados decepcionantes: o crescimento econômico se desacelerou; no ritmo atual, a taxa de crescimento do período 2011-2014 será uma das mais baixas desde a proclamação da República; a taxa de investimento (Formação Bruta de Capital Fixo) caiu e permanece em queda; tanto os investimentos privados como os públicos (incluindo as empresas estatais) se reduziram; a taxa de poupança interna caiu ao menor patamar deste século, equivalendo a apenas cerca de um terço da média verificada entre os emergentes e à metade do padrão global (Folha de S. Paulo, 6/6/14); a produtividade está estagnada e o ritmo de adoção de inovações é decepcionante; a dívida pública líquida não se reduziu, enquanto a dívida bruta atinge níveis elevados. Assim, as medidas anteriormente propostas permanecem atuais para atingir os objetivos desejados. Adicionalmente, sugere-se: negociação de acordos comerciais bilaterais com grandes blocos econômicos, para aumentar

significativamente a inserção da economia brasileira nas estruturas globais de produção, de inovação e de fluxos de investimentos; adoção de políticas tributárias mais neutras, minimizando distorções de preços relativos; regras tributárias uniformes entre os diversos entes federativos, eliminando-se a “guerra fiscal” como forma de concessão de vantagens de localização; aumentos nos preços de combustíveis, inclusive com o restabelecimento da CIDE, de forma a refletir não apenas seus preços internacionais, como também para reduzir as deseconomias externas (custos de poluição e congestionamento) geradas por seu consumo; revisão da política de preços de energia elétrica, para que reflitam plenamente os custos marginais de sua produção (evitando-se eventuais lucros abusivos através de tributação, como pela CIDE). O desempenho insatisfatório da economia brasileira nos últimos anos poderia ter levado a mudanças nas ideias que têm orientado as políticas econômicas; não é motivo de surpresa, porém, que não o tenha feito. Afinal, já se disse que “fatos não destroem ideias; ideias destroem ideias”. Pode ser muita pretensão deste autor que as ideias apresentadas em 2010 e agora levem a mudanças, mas, afinal, a esperança é a última que morre. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Alan Marques/Folhapress

Folhapress/Stuart Westmorland

Tudo que ainda precisa ser feito nas Telecomunicações

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uase nada do que foi sugerido em nosso artigo de 2010 foi reconhecido como prioridade na gestão da Presidente Dilma Rousseff, ao longo dos últimos quatro anos. Façamos, então, a revisão de cada uma daquelas demandas com o objetivo de atualizá-las e oferecê-las à consideração do novo Presidente da República. 1. Revisão do modelo institucional. Essa ainda é a primeira entre as medidas sugeridas ao novo Presidente da República. Aliás, já em 2010 esse o aspecto era, de longe, o mais relevante entre os 11 pontos sugeridos. Esse aspecto, entretanto, não recebeu praticamente nenhuma atenção do governo Dilma Rousseff. Por isso, esperamos que o novo governo reveja e aprimore“ a legislação e o modelo institucional privatizado das Comunicações como um todo, harmonizando-o e promovendo seu ordenamento jurídico, sem desfigurá-lo”. A rigor, ainda persiste um abismo legislativo entre telecomunicações e comunicação de massa – em especial a Radiodifusão, que abrange as emissoras de rádio e de TV aberta, até porque a legislação que rege a Radiodifusão brasileira se resume a um capítulo da Lei 4.117, de 1962 (mais do que cinquentenária), conhecida pelo nome de Código Brasileiro de Telecomunicações. Até a lei relativamente mais recente e moderna, que rege a

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telefonia e as telecomunicações – Lei Geral de Telecomunicações (LGT), de nº 9.472, de 16 de julho de 1997– necessita de atualização em diversos pontos, em especial depois do advento da internet e do impacto e das implicações das Redes Sociais, da mobilidade, da Computação em Nuvem e de fenômenos como o Big Data na vida econômica, social e cultural do País. 2. Estimular o investimento privado. Como fizemos em 2010, reiteramos a sugestão de que o novo governo confira maior estímulo, tanto ao investimento privado no setor, bem como à atração de novas operadoras de modo a ampliar a competição na área de serviços. 3. Desoneração tributária. Há quatro anos, sugerimos ao novo governo que reduzisse significativamente a absurda carga tributária de 43% (média nacional) que onera diretamente todos os serviços de telecomunicações, inclusive os novos serviços, como os de acesso à internet em banda larga. Embora o governo Dilma Rousseff tenha reconhecido o problema, a única medida concreta foi a redução dos tributos federais (PIS/PASEP) incidentes sobre os serviços de banda larga, que representam menos de 10% do total de tributos que oneram os serviços). Nada foi feito na área dos tributos estaduais, como ICMS, maior parcela da tributação, com a alíquota de 33% sobre o valor dos serviços.


Ethevaldo Siqueira

Folhapress

Alexandre Moreira/AE

Jornalista, escritor e consultor nas áreas de Telecomunicações, Tecnologia da Informação e Economia Digital.

4. Profissionalizar e fortalecer a Anatel. Eis aí um aspecto positivo do governo que se encerra. Sugerimos, entretanto, que seja aprofundado nos próximos quatro anos. Além disso, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) precisa ser preservada de interferências político-partidárias. 5. Acelerar a inclusão digital. Ao longo dos últimos quatro o anos, quase nada foi feito em âmbito governamental nessa área. Sugerimos, portanto, que o novo governo formule políticas públicas e crie condições para a inclusão digital, a começar da elaboração de um novo Plano Nacional de Banda Larga muito mais ambicioso e baseado em parcerias público-privadas (PPP). 6. Fortalecer a indústria nacional. A indústria brasileira vive um longo período de total retrocesso, inclusive na produção de celulares para exportação, em decorrência da queda contínua de competitividade de nossa economia. Reiteramos a necessidade desse fortalecimento sem qualquer protecionismo ou reserva de mercado, mas, a partir de estímulos de ordem fiscal e forte incentivo à pesquisa e à formação de recursos humanos altamente qualificados. 7. Aprimorar a qualidade dos serviços. Embora esse ponto tenha merecido boa atenção do Ministério das Comunicações e

da Anatel, julgamos que deva ser aprimorado ainda mais, com maior atenção aos padrões de atendimento do usuário. Ao longo dos últimos quatro anos, o País iniciou o processo de avaliação da qualidade dos serviços. Os cortes radicais do orçamento da agência reguladora, entretanto, impediram sua ampliação, além de não permitirem maior fiscalização da ação das prestadoras de serviço. 8. A escolha de ministro competente. No período 2010-2014, o governo escolheu, sem dúvida, um ministro das Comunicações competente e comprometido com o desenvolvimento setorial. Seu trabalho, no entanto, não obteve os melhores resultados porque as demais condições e pontos sugeridos em 2010 não se concretizaram, diante da baixa prioridade das Comunicações nas políticas do governo federal. 9. A inutilidade da Telebrás. Como o fizemos em 2010, reiteramos que o novo Presidente da República reveja a anacrônica reativação da Telebrás – que, praticamente, nada tem feito em favor da democratização da banda larga no País. 10. Papel regulador e fiscalizador do Estado. Reiteremos, por fim, esta última sugestão oferecida em 2010 que não mereceu a devida a atenção do governo federal nos últimos quatro anos. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Black blocs do sistema tributário Evandro Monteiro / Hype

Clóvis Panzarini

Economista formado pela USP, ex-coordenador tributário da Secretaria da Fazenda paulista, é sóciodiretor da CP Consultores Associados.

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pontei no artigo de 2010 as decantadas mazelas do sistema tributário brasileiro, sua ineficiência, complexidade, iniquidades e inconcebíveis irracionalidades, e sugeri caminhos para, pelo menos, mitigá-las. Passados quatro anos, a qualidade do sistema não é mais a mesma. Piorou. E sua reforma parece cada vez mais distante, tangida por um debate tosco, focado somente na arrecadação e na divisão federativa do bolo tributário. A busca da eficiência econômica passa ao largo do debate e esse olhar de curtíssimo prazo obscurece o desastre econômico que se avizinha. Os custos que o sistema tributário impõe à competitividade da economia empurram inexoravelmente o País para a armadilha do baixo crescimento, da desindustrialização, do comprometimento das contas externas e, por decorrência, do próprio equilíbrio fiscal. Não é levado em conta que a boa arrecadação decorre do bom crescimento econômico e que o foco exclusivo na busca de mais receita a qualquer custo compromete a base de cálculo dos impostos, o PIB. Os impostos indiretos, predominantes na formação da carga tributária e regressivos por natureza, são os principais vilões do “sistema”, se é que assim pode ser considerado esse amontoado de obscenidades tributárias. A profusão de tributos sobre o consumo e produção coloca

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o Brasil em vergonhosa posição no ranking mundial de custos de conformidade tributária, enlouquece os contribuintes e empobrece o consumidor, vítima última dessa exação fiscal ensandecida. Meia dúzia está na (in)competência federal. Os mais notórios, o esquisitão Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o PIS e a COFINS, estas duas “contribuições” permeando a cadeia produtiva de forma cumulativa em alguns setores e não cumulativa em outros. Haja esquisitice! Acresça-se a esses o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido(CSLL) que, para contribuintes optantes pelo regime de lucro presumido (cerca de 80% deles), cascateiam-se sobre o faturamento. Mais recentemente, para empresas que compõem 56 setores de atividade, escolhidos sabe-se lá por qual critério, foi criada mais uma contribuição de 1% ou 2% sobre o faturamento em substituição à contribuição previdenciária sobre a folha salarial. E não é demais citar o sistema SIMPLES, que acomoda pequenas e médias empresas sobre cujo faturamento incide um conjunto de alíquotas representativas dos tributos das três esferas de governo. À exceção das empresas optantes pelo SIMPLES, as demais se submetem a até seis(!) tributos federais sobre o consumo, conforme já citados. Esse indigesto vatapá tri-


Fernando Salgado / ACSP

butário é ainda apimentado por um sem número de taxas e outras contribuições federais, especialmente aquelas incidentes sobre insumos fundamentais, como combustíveis, energia elétrica e telecomunicações, que ardem no custo das empresas e no bolso dos consumidores. Nessa incrível corrida rumo ao caos, os Estados são fortemente competitivos. Com o interesse arrecadatório sempre se sobrepondo à busca de eficiência, transformaram o seu imposto sobre consumo, o ICMS, em arremedo do bom imposto sobre valor agregado (IVA), como fora concebido originalmente. Espancado ao longo do tempo pela ensandecida busca de arrecadação a qualquer preço, o ICMS é hoje um poço de ineficiências. A adoção abusiva e sem qualquer critério da substituição tributária, que o transformou em exótico “imposto monofásico sobre valor agregado” – uma contradição em termos – somada à guerra fiscal, à guerra dos portos, à incidência sobre os bens de uso e consumo e de capital e até, por vias obscuras (não devolução de créditos acumulados), sobre as exportações, transformaram-no em indecifrável monstro cumulativo, ineficiente e complexo, que faz a alegria do competidor estrangeiro. Não é demais lembrar os municípios, que com seu cumulativo Imposto Sobre Serviços (ISS), também contribuem para o caos reinante

na tributação do consumo, que erode não só a competitividade das empresas, mas também o bolso do cidadão. Em 2013, enquanto a generosa mão direita do Programa Bolsa Família distribuía R$ 24,5 bilhões às famílias de baixa (ou nenhuma) renda, a insensível mão esquerda do Fisco, delas subtraía R$ 12 bilhões, ou 48,8% do total distribuído, que segundo a insuspeita Fundação de Pesquisas Econômicas (FIPE) da USP é a carga tributária que onera as famílias com renda mensal de até dois salários mínimos. Tramitam no Congresso Nacional várias propostas de emenda constitucional (PEC 197A/2012; PEC 71/2011 e PEC 103 2011), projetos de lei complementar (PLS 106/2013; PLC 99/2013; PLS 95/2014 e PLS 40/2014 ), e um projeto de resolução do Senado Federal (PRS 1/2013), que tratam do sistema tributário e dão boa medida da péssima qualidade do debate que ocupou o último quadriênio. Nenhuma delas tem qualquer aderência com os anseios do setor produtivo ou dos cidadãos-consumidores brasileiros. Refletem, sim, e só, a exacerbada luta federativa por mais receita fiscal. A busca da eficiência, simplicidade, transparência e isonomia passam longe dessas propostas. Assim, concluo que o artigo “Conceitos para uma reforma tributária”, que escrevi há quatro anos, continua atual. E muito!

Os impostos indiretos, predominantes na formação da carga tributária, são os principais vilões do sistema.

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O Futuro do Agronegócio: de 2010 a 2014 Newton Santos / Hype

José Roberto Mendonça de Barros

Formado em Economia pela USP, doutor em Economia pela mesma universidade e pósdoutorado no Economic Growth Center, da Yale University (EUA).

Alexandre Mendonça de Barros

Engenheiro agrônomo e doutor em Economia Aplicada pela ESALQ/USP.

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o início de 2010, esboçamos o que nos parecia ser o futuro do agronegócio: muito bom, mas cheio de desafios para o setor e para as políticas públicas. Quatro anos depois, parecenos ser útil uma revisão do que foi sugerido e do que efetivamente aconteceu com o setor e a política agrícola. É o que tentamos fazer agora, seguindo a mesma estrutura do artigo original. I - Falsas dicotomias: “Criou-se um conflito permanente entre o agronegócio e a pequena produção, atribuindo a cada um destes segmentos políticas econômicas específicas... Ora, o conceito do agronegócio não tem relação alguma com escala de produção ou tipo de pr od uto r”. Lamentavelmente, nada disso mudou nestes anos. O governo continua tendo dois ministérios distintos, o que reduz a potência da política agrícola, exclusivamente por razões ideológicas. “Outra falsa dicotomia diz respeito ao conflito entre o meio ambiente e a agricultura”. Aqui existiram avanços: havíamos colocado que “é possível ampliar a produção sem aumentar o desmatamento”, e em boa medida isto aconteceu, tanto em decorrência de esforços oficiais, quanto de ações privadas (como o programa Soja Legal). Número recente da revista The Economist reconhece o fato ao escrever: “O País mostrou que é possível ter uma grande elevação na produção de alimentos, sem destruir a floresta” (07/07/2014, tradução nossa). Ao mesmo tempo, a resistência à pesquisa, desenvolvimento e uso de transgênicos claramente se reduziu. Outra área na qual houve avanço foi na de defensivos, com o Programa Nacional de Controle de Resíduos, que hoje é o maior do mundo. O item mais relevante nesta questão que en-

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volve agricultura e meio ambiente é o da implantação do Código Florestal, finalmente aprovado há dois anos. O texto é bastante razoável, especialmente por garantir que a mata ciliar recomposta possa ser contada como reserva, nos desmatamentos realizados até 2008. Permite também, a compensação entre o déficit de reserva de uma dada propriedade com excesso em outras. A questão mais difícil está na implantação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que foi finalmente regulamentado através de uma Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambiente, em maio deste ano. É a partir do CAR que as propriedades com passivos ambientais farão seus programas de recomposição, recuperação, regeneração ou compensação de áreas. Ainda existem dúvidas e teremos muitas discussões, mas é certo que a questão está avançando. II - Grandes oportunidades no mercado internacional: o País se aproveitou delas como bem ilustra a evolução do saldo comercial agrícola e sua importância no saldo global. Em 2010, a balança comercial foi de 20 bilhões de dólares e a do agronegócio de 63 bilhões, três vezes maior. Em 2013, o saldo da primeira foi de 2,6 bilhões de dólares, enquanto que a do agronegócio foi de 83 bilhões, 32 vezes maior! O setor continua como único importante da economia do País a ter na mudança técnica e na elevação da produtividade o centro de seu modelo de negócios. Com isto, é capaz de “pagar” por muitas ineficiências da política econômica, como por exemplo, a precariedade da infraestrutura que eleva os custos de transporte. O que destoou deste quadro positivo foi a evolução do setor de sucroenergético, que entrou numa grande crise, como consequência da


Dirceu Portugal/AE

O País mostrou que é possível aumentar a produção de alimentos sem destruir a floresta.

lamentável política de controle artificial de preços de combustíveis decidida pelo governo nos últimos anos, e que deve continuar sem alterações até o ano que vem. III - Principais riscos e desafios da agropecuária brasileira: sugestões. Risco de produtividade: o seguro agrícola e o fundo de catástrofe pouco avançaram. Risco de variação de preços: o mercado de opções não aconteceu. Risco de variação da taxa de câmbio: permanece sem novidades. Crédito rural: cresceu o volume, sem modificações estruturais do tipo Simples Agrícola, da operação propriedades na pessoa jurídica, uma Central de Riscos etc.. Com isto, os riscos cresceram e aparecerão caso ocorra frustração generalizada de safra. Risco sanitário: controle da febre aftosa avançou e melhorou a percepção externa quanto ao baixo risco da chamada “vaca louca”. Riscos institucionais: certamente se elevaram, com o suporte semi-oficial a invasões e os constantes aumentos nos pedidos de áreas para reservas indígenas, quilombolas e outras. Adicionalmente, e este não é um risco apenas agrícola, o aumento da complexidade e imprecisões na legislação trabalhista é um problema. Finalmente, muito pouco foi feito na crítica área da infraestrutura. Além disso, a política comercial externa pouco trabalhou na abertura de novos mercados ou na redução do protecionismo, como o da Política Agrícola Comum da Europa. Em resumo, o setor do agronegócio avançou muito neste período. Entretanto, o mesmo não aconteceu com as políticas públicas para o setor. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Luciano Claudino/Ag. O globo

O governo federal participa cada vez menos do financiamento da saúde pública.

SUS: Tempos de Renovação versus Tempos de Conflito

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m nosso artigo de 2010 defendemos que o SUS era um sistema vitorioso, mas que precisava ser renovado. Vitorioso, porque conseguiu transformar o acesso a saúde em direito do cidadão. Vitorioso porque em poucos países do mundo uma pessoa de baixa renda que precise de um transplante tem a possibilidade real de chegar à sua realização. Vitorioso porque em poucas políticas é identificável uma relação tão estreita entre o profissional e a ação pública. Renovação porque o conceito de universalidade ainda

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aparece de forma distorcida na política pública de saúde. Renovação porque não há como tapar os olhos para um sistema suplementar que movimenta bilhões de reais estabelecendo laços pouco claros com as unidades de saúde, os segurados/cidadãos e as políticas de prevenção. As disparidades do desenvolvimento brasileiro refletem-se no setor saúde com a abertura de um leque de desafios que vai desde a manutenção das campanhas de vacinação, onde o País foi tão competente, até a demanda por equipamentos e medicamentos de última geração, aspecto onde o Brasil detém


Zé Carlos Barretta / Hype

capacidade de atendimento muito mais que a desejável. Montar estratégias de gestão e financiamento adequados em situações de fragmentação administrativa também não é uma tarefa das mais fáceis. A vocação brasileira pela municipalização das políticas conflita com a questão da escala de atendimento. Não é desejável que haja um hospital em cada cidade, mas os hospitais de uma cidade polo têm que estar abertos aos munícipes das cidades vizinhas. Geraldo Biasoto As grandes bandeiras levantadas nos últimos quatro anos Economista formado na não condizem com as necessidades de reformas que o Sistema Unicamp, com mestrado Único de Saúde poderia promover para atingir um patamar e doutorado na mesma mais elevado em termos de acesso à saúde. A grande universidade. proposta da administração Dilma foi a expansão das Unidades de Pronto Atendimento (UPA). As UPAs foram uma criação do governo do Rio de Janeiro, interessantes por sua alta resolutividade e uma da Emenda Complementar n. 29, frequentou o debate de boa estratégia num sistema de saúde em estado crítico. maneira singular, dado que não se apostou na estabilidade Infelizmente, significam pouco do ponto de vista da do financiamento, mas na ampliação dos graus de organização do sistema de alta e média complexidade em liberdade governamentais para reduzir os recursos da sua interação com a atenção básica, muito menos para a saúde. Pior, o governo federal participa cada vez menos do regionalização do atendimento. A política acabou se financiamento da saúde pública. confundindo com uma estratégia de repassar dinheiro No campo da saúde suplementar, ao contrário do para os aliados políticos, tanto os velhos como os novos. estabelecimento de pontes de conexão entre o mundo da Na área da assistência saúde pública e os planos André Lessa/AE os avanços foram e seguros de saúde, o que tímidos e vacilantes. acabou ocorrendo foi um Algumas inclusões de processo de captura do procedimentos de grande agente regulador por repercussão na tabela parte do mercado. SUS e nenhum grande Conquanto intervenções ajuste estrutural nos e suspensões de valores. No caso dos funcionamento tenham hospitais filantrópicos, ocorrido, isso não algumas benesses depois significa regulação e a que os mesmos ficaram a ANS jamais conseguiu um passo da falência, o caminhar no sentido do que realmente não se fortalecimento das pode apelidar de uma instituições e da política de assistência. melhoria das condições No campo dos de atenção aos insumos, segurados. A grande proposta da administração Dilma foi a medicamentos, A falta de um projeto expansão das Unidades de Pronto Atendimento (UPA). biológicos e materiais, a para a saúde ficou tão política de parcerias evidente, para o próprio para o desenvolvimento produtivo (PDP) acabou governo, que ele se conscientizou que algo tinha que ser demonstrando como se pode demolir uma boa ideia. feito. O Mais Médicos, então, nasceu, não como política de A transferência de tecnologia seria possível, se os saúde, mas como um grande fato para afogar a percepção laboratórios oficiais fossem preparados para isso, o que de inércia. A crítica ao Mais Médicos não é uma crítica a não foram. A produção nacional poderia dar um salto, se a pessoas que vieram exercer sua profissão e que podem ser escolha de produtos e parceiros não parecesse um tiroteio, importantes para cobrir deficiências em termos de número onde os produtores e governo querem fazer de tudo, e tipo de especialidade da formação brasileira. A crítica é, mesmo aquilo que depende de escalas “ch inesas” para ser ao contrário, a falta de um projeto para a gestão de recursos técnica e economicamente viável. humanos e para a formação do profissional de saúde. Pior, a política dos medicamentos genéricos, de grande As últimas pesquisas de opinião são impiedosas com importância em países desenvolvidos, foi relegada ao terceiro governo Dilma, focando a saúde como maior problema, plano das preocupações do Ministério da Saúde e da ANVISA. justamente pela percepção do que falta: um projeto. Na A questão do financiamento, ou seja, da regulamentação ausência do novo, restou a potencialização dos conflitos. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Investimento público, um nó que não se desata! Newton Santos/ Hype

José Roberto Afonso

Economista de carreira do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), mestre pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e doutorando do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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á quatro anos argumentamos que um nó segurava os investimentos públicos no País, e que havia um forte ativismo do governo federal no combate à crise que surgiu de 2008 para 2009. Dívida e crédito governamentais dispararam. Mas, o investimento público praticamente não saiu do lugar. O pior é que oportunidades para desatar o nó podem ter sido perdidas quando se elevou o financiamento para investimento e não para ampliá-lo, confundindo mudança de fontes com o aumento dele. Há anos há um consenso de que um dos desafios fundamentais para a economia brasileira é elevar os investimentos públicos e a formação total de capital fixo relativamente ao PIB. Em taxas fecharam 2013 em 2,4% e 18,4% do PIB, respectivamente. A primeira foi exatamente o mesmo índice registrado em 2009, ainda que a segunda fosse então de 16,5% do PIB. Não há o que comemorar porque este último ano era o auge da crise global. O IPEA é a fonte de dados sobre investimentos deste artigo. A pretexto de dar prioridade máxima aos investimentos, o governo federal criou o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) em meados da década passada. A publicidade funcionou melhor que suas realizações, pois o investimento fixo executado pelo mesmo governo foi

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de apenas 0,7% do PIB no ano passado, apenas um décimo acima do registrado em 2009. Não é prioritário um gasto no qual o governo federal dispende apenas cerca de 3% dos tributos que arrecada. Keynes foi ressuscitado para justificar o recurso ao endividamento público. Passados cinco anos, a economia saiu da crise, mas segue estagnada, com o PIB mal crescendo 2% ao ano, a inflação furando o teto da meta de 6% e a taxa nacional de investimento recuando 0,7 ponto percentual do produto. Ao lado desse endividamento, veio o fomento ao crédito. A dívida pública bruta (o conceito mais usado internacionalmente) aumentou em seis pontos do PIB entre agosto de 2008 e dezembro de 2013 (quando chegou a 65,7% do PIB). A concessão de crédito pelo Tesouro a seus bancos aumentou em 7,7 pontos do PIB no mesmo período (fechando em 16,2% do PIB em 2013). A receita keynesiana foi mal aplicada porque, mesmo com forte endividamento público, o investimento nacional não cresceu, e o governamental mal saiu do lugar. A descentralização é característica histórica e crucial dos investimentos públicos no Brasil. Do total de 2,4% do PIB em 2013, 29% eram federais, 31% municipais e 40% estaduais. No âmbito estadual, o Tesouro Nacional promo-


Paulo Pampolin / Hype

veu um rápido e intenso endividamento ao garanti-lo em organismos multilaterais e bancos federais. Porém, no ano passado o investimento fixo dos estados foi de 0,94% do PIB quando há três anos era 1,04%. De novo houve mais mudança nas fontes do que aumento dos investimentos. O mesmo padrão deve ter ocorrido nas empresas privadas que buscaram crescentemente o BNDES, para financiar com recursos oficiais os mesmos projetos, ou parcela deles, que custeariam com recursos próprios. Uma diferença crucial, porém, é que, enquanto as empresas aproveitaram para aumentar sua liquidez, os governos estaduais destinaram poupança antes aplicada em obras para aumentar despesas correntes, inclusive maior folha salarial, e assim reduzir seu superávit primário de forma permanente, comprometendo ainda mais o futuro de suas finanças. A política econômica dos últimos anos sepultou o princípio de que, ao reduzir os juros básicos, seria feita uma economia e aberto um espaço fiscal para mais investimentos. Ao acúmulo custoso de reservas internacionais, se agregou um enorme volume de crédito a juros subsidiados, de modo que a queda da Selic não reduziu os gastos com juros do governo. A taxa implícita da dívida líquida foi mantida na casa de 15% ao

longo dos últimos anos pelo descasamento entre as taxas do crédito a receber e da dívida a pagar. Nada autoriza a supor que aquela taxa agora venha a cair diante da crescente Selic. Como se vê, ficou ainda mais difícil desatar o nó do investimento público. Antes de tudo, será inevitável estimular ao máximo as concessões e as parcerias com o setor privado para que ele financie e gerencie o máximo possível de obras de interesse público. Na mesma direção, cabe rever incentivos fiscais e finalmente desonerar de forma efetiva a aquisição de bens de capital, dando crédito a quem os adquire, em lugar de apenas reduzir impostos sobre sua produção. Será preciso reconhecer que a descentralização dos investimentos uma marca histórica desse gasto e traçar um programa adequado para induzir um efetivo aumento dele nas esferas estadual e municipal. Uma alternativa ousada, mas eficiente, seria aceitar que pagassem parte das prestações da sua dívida rolada pelo Tesouro em obras que efetivamente comprovassem um aumento em relação às inversões passadas. Enfim, cabe uma nova política fiscal e econômica e o manejo de novos instrumentos fiscais, incluindo a desestatização e a descentralização, para finalmente começar a desatar o nó que comprime a taxa de investimento, público e nacional.

A pretexto de dar prioridade máxima aos investimentos, o governo federal criou o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

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O Diagnóstico da Política do Governo Público Fed Marcos Mendes / e-SIM

Nelson Marconi

Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas.

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ssa política avançou muito pouco desde 2009, ano de nossa análise anterior. Nesse pouco, os avanços mais significativos da foram a aprovação do regime de previdência complementar dos servidores públicos federais e o arrefecimento das contratações, bem como dos reajustes de salários, que continuaram, porém em magnitude menor. A nova regra previdenciária só se aplica aos contratados após sua implementação; logo, não reduz as despesas com aposentadorias no presente, mas é fundamental para amenizá-las no futuro. Esse será o maior ganho, em termos fiscais. A despesa federal com pessoal evoluiu de R$ 167 bilhões em 2009 para R$ 222 bilhões em 2013 (segundo o Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento), ou 7,4% ao ano, demonstrando que estes gastos continuam evoluindo em termos reais. Apenas em 2012 isto não aconteceu. Desta vez o Judiciário apresentou variação bem inferior à dos demais Poderes (média de 3,3% no mesmo período), pois seu plano de carreiras que previa aumentos significativos de salários já tinha sido anteriormente implementado. Os demais Poderes tiveram variações semelhantes às observadas para o resultado geral. As despesas com inativos evoluíram praticamente na mesma proporção que as dos ativos. Chama atenção que mesmo sem conceder reajustes lineares no período essa despesa evoluiu acima da inflação. É um sinal de que problemas diagnosticados anteriormente permanecem. Um é a própria evolução das despesas com aposentadorias já citada; vamos discutir os demais. Para identificar outras fontes de crescimento das despesas, vale ressaltar que a evolução do quantitativo de servidores não foi acentuada entre 2009 e 2013, ao contrário do que ocorria nos anos anteriores; a variação média anual desse indicador foi de 1,9%, sendo que entre os civis do Poder Executivo, que emprega mais

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pessoas, atingiu 2,5%. Variação análoga ocorreu entre os militares. A forte tendência de crescimento de contratações parece ter sido revertida. O número de aposentados e servidores que faleceram e geraram pensões também aumentou pouco, 0,9 % na média anual. Porém, como a despesa aumentou proporcionalmente bem mais que o quantitativo de servidores ativos, a remuneração média tanto desses últimos como dos inativos se elevou. Assim, esta continua uma tendência que pressiona fortemente as despesas com pessoal. As remunerações continuam bastante superiores às pagas no setor privado, mesmo que estas últimas tenham se elevado em proporção maior nos últimos anos. Ainda que os aumentos lineares de salários tenham sido praticamente eliminados, recomposições salariais específicas continuaram a ocorrer sem um planejamento prévio e um estudo das distorções salariais de cada grupo de servidores e a análise de sua premência. Acabam ocorrendo como resposta a pressões das associações e sindicatos mais organizados. Um exemplo foi o reajuste dos policiais federais, categoria com histórico poder de barganha, antes da Copa de 2014. Na verdade, continua faltando ao governo federal um planejamento de sua força de trabalho que identifique suas necessidades em termos quantitativos e de perfil, bem como dos níveis remuneratórios justos e passíveis de serem financiados pela sociedade. A título de exemplo das consequências dessa falta de planejamento, levantamento baseado nos dados integrantes da “Tabela de Remunerações dos Servidores Públicos Federais”, nº 60, possibilitou a identificação de 391 cargos passíveis de identificação de suas atribuições específicas e outros 123 planos de cargos que não possibilitavam essa identificação. Como resultado, há diversos servidores desempenhando atribuições semelhantes recebendo remunerações distintas. Noutro exemplo da falta de planejamento


de Recursos Humanos eral: uma atualização Carlos Humberto/Ag.Pixe

do perfil de contratações, dados do Poder Executivo, oriundos do Boletim Estatístico de Pessoal, indicam que do total de contratados entre 2009 e 2013, 39% eram de servidores com escolaridade de nível intermediário. Para um governo como o federal, mais voltado à elaboração e implementação de políticas públicas que à prestação direta de serviços à população, esse percentual parece excessivo. O número de cargos em comissão (considerando apenas os DAS, que não incluem cargos comissionados de universidades e agências reguladoras, entre outros), aumentou 7% entre 2009 e

2013. Isto é explicado pelo crescente número de ministérios e secretarias especiais, derivado da acomodação de alianças políticas, e não de um diagnóstico que identificasse uma deficiência na quantidade de supervisores e assessores. Assim, infelizmente parece que se gasta bastante nessa área, porém equivocadamente. Alguns poucos avanços importantes vieram, conforme já citados, mas um planejamento mais adequado da gestão de recursos humanos certamente contribuiria para melhorar o perfil da força de trabalho e arrefecer o aumento desse item de despesas no governo federal.

A despesa federal com pessoal evoluiu de R$ 167 bilhões em 2009 para R$ 222 bilhões em 2013.

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Propostas de Política Industrial

Patrícia Marrone

Economista e mestre em Economia pela Universidade de São Paulo, com cursos na Universidade de Chicago e na Wharton School (EUA).

O

ptei por adicionar ao meu artigo de 2010. Uma empresa industrial precisa ter margem de lucro, escala e produtividade. Toda política industrial tem que melhorar um ou mais desses elementos. O ponto de partida para a revigoração da nossa indústria é equacionar, no plano federal, as questões horizontais, ou de temas que impactam toda a estrutura de preços relativos industriais. Assim, a taxa de juros precisa ficar dentro da média dos BRICs, a taxa de câmbio mais competitiva, o governo precisa ter disciplina fiscal e a infraestrutura ser muito aprimorada. E ter as reformas política, tributária, trabalhista e um choque de gestão nas ações governamentais. A educação de qualidade é importantíssima, precisa ser aprimorada logo, mas não terá efeito sobre a produtividade do trabalho no curto prazo. A disciplina fiscal é importante porque vários setores da indústria têm parte da receita dependente de compras e de outras decisões governamentais. Se a gestão das finanças e dos projetos públicos melhorar e houver mais recursos para investimentos em saúde, ferrovias, metrôs, estradas, obras de saneamento e educação profissional, vários setores industriais serão impulsionados. A força do interior é enorme, mas hoje opera em ritmo inferior ao potencial, pois os recursos públicos fede-

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Lalo de Almeida/Folhapress

Luiz Prado / LUZ

rais permanecem concentrados na União. A política de comércio exterior não tem sido usada como efetivo instrumento da política industrial. A integração brasileira às cadeias globais de valor e o consequente aumento do valor adicionado fabricado no Brasil é meta a ser buscada. E há monopólios nos mercados de alguns insumos, com o que a indústria que os usa acaba enfrentando preços acima da média mundial. Cabe reduzir as alíquotas de importação desses produtos para forçar maior concorrência no seu mercado doméstico. O excesso de estímulos ao setor automotivo, o real valorizado e a inefetividade da Petrobrás distorceram a matriz metalmecânica, muito forte no Brasil há 15 anos atrás. Muitas empresas familiares foram vendidas a multinacionais, que desativaram linhas de produtos e hoje os trazem de fora. A desindustrialização do setor seria atenuada se as regras fossem mais claras e estáveis, e os investimentos em infraestrutura destravassem compras de caminhões, vagões, navios e plataformas. São importantes demandantes da cadeia do setor e diversificariam as compras dentro dela. Hoje é excessivamente dependente do setor automobilístico, da renda da população e do crédito, todos de alto risco diante de crises internas ou externas. Inovar em produto ou processo exige margem de lucro. Se


Inovar em produto ou processo exige margem de lucro. Se muito apertada, não há como investir em P&D e laboratórios. muito apertada, não há como investir em P&D, softwares e laboratórios. Os reajustes salariais nos últimos anos têm superado ganhos de produtividade, comprimindo margens. O real valorizado e a concorrência de importados em setores que não têm como repassar esses custos, também têm estreitado margens e impedido investimentos em inovação. A informação é outra importante ferramenta da inovação. O IBGE precisa ser reforçado para gerar mais dados úteis à indústria. Incentivos e pontuação acadêmica a doutores e professores que atendessem consultorias à indústria e a divulgação de guias para apresentar projetos de inovação à FAPESP e ao IPT, além da distribuição de um cadastro dos institutos de pesquisa, com as suas especializações, aproximariam o empresário da produção científica e tecnológica. Quanto mais interligados estiverem os setores industrial e de serviços, menos vulneráveis estarão às oscilações do câmbio e à concorrência dos importados. Quem detém o mercado é quem conhece o cliente. Atividades de manutenção absorvem engenheiros, contribuem para as compras de produtos industriais e fornecem informações úteis ao processo de inovação. São colchões nas épocas de crises, pois retêm o emprego de profissionais qualificados e devem ser estimuladas.

Para mais investimentos ligados ao setor de energia é necessário dar sinais claros sobre tarifas que serão praticadas e os estímulos que serão dados, para definir composição das compras entre produtos substitutos no Brasil. E entender estratégias de países que os importam do Brasil. O mesmo ocorre com as leis aplicáveis à exploração e comercialização de insumos importantes para a indústria como borracha natural e sintética, tungstênio, cobalto, molibdênio, zinco, níquel e alumínio, entre outros. O Brasil não é mais o país dos recursos naturais ilimitados. O aquecimento global e os aglomerados urbanos gigantescos como São Paulo submetem o meio ambiente a um enorme estresse, pondo em risco a própria população. Na política regional, é necessário estimular a dispersão da população em cidades de porte médio-grande. Na política de construção civil, punir o excesso de consumo de água, de energia e de produção de lixo e premiar soluções e construções novas e sustentáveis. Por fim, os estímulos de uma política industrial não devem ser vistos como favores a grupos, famílias ou classes sociais, mas como instrumentos para gerar externalidades positivas, cujo benefício se dissemine por toda a sociedade. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Danilo Verpa/Folhapress

N Lídia Goldenstein

Zé Carlos Barretta/Hype

Formada em Economia pela USP e doutora na mesma área pela Unicamp.

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o meu artigo de 2010 tentei mostrar a relevância, para qualquer estratégia de crescimento sustentado, do que vinha sendo chamado de Economia Criativa. Tratava-se de um conceito relativamente novo, cunhado na Austrália, mas usado como estratégia de política pública já a partir de 1997 pelo Reino Unido. No Brasil era algo quase desconhecido ou utilizado apenas por militantes na área de políticas culturais e/ou ligados ao artesanato, festas populares e/ou atividades voltadas para a inserção social de grupos de baixa renda. Completamente ignorada ou até motivo de sarcasmo por analistas e economistas que pautam o debate e conduzem a política econômica do País, a Economia Criativa foi apropriada por defensores de causas nobres, porém em geral marginalizadas, consideradas de menor importância frente às questões macroeconômicas tidas como mais relevantes: PIB, câmbio, juros, inflação e déficit público, entre outras. Curiosamente, mesmo entre economistas considerados desenvolvimentistas, que em geral fazem uma defesa de políticas industriais mais próativas, o tema era ignorado ou desqualificado. Entre eles, continuam como referência básica as velhas políticas industriais formatadas para a estrutura industrial da década de cinquenta, cuja

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precária estrutura de financiamento e a inexistência de um mercado de capitais ativo a tornavam muito dependente de subsídios estatais. Tivemos alguns avanços nos últimos quatro anos. A Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura, criada pelo Decreto 7743, de 1º de junho de 2012, ampliou a compreensão do tema, afastando-se da visão inicial, caricatural na sua forma de entendê-lo como “cultura popular”, dos pequenos, fracos, oprimidos e marginalizados. O BNDES ampliou o financiamento aos setores ligados à Economia Criativa, contratou estudos importantes sobre novas indústrias tais como a de games, mas ainda assim de forma muito limitada e absurdamente desproporcional ao que investe em setores da velha matriz industrial brasileira. Infelizmente, mesmo com essa Secretaria os avanços foram poucos, apesar da relevância do assunto e da aceleração do processo de perda de competitividade e desindustrialização do País. Sob o rótulo de Economia Criativa, talvez equivocado pelas confusões que causa, o que se faz é analisar a indústria no mundo atual, a sua nova dinâmica determinada pela intensificação do processo de globalização, por uma nova geografia econômica internacional e por novas tecnologias que obrigam a repensar não só as formas de produção, distribuição e compe-


tição, como os próprios setores que podem determinar o dinamismo de uma economia. Trata-se de discussão absolutamente essencial diante das condições de competitividade da indústria brasileira, e que precisa ir muito além do óbvio e pertinente foco em infraestrutura, tributos e dinâmica salarial. Trata-se da discussão sobre novos setores industriais e sobre sua interdependência e interação com um setor de serviços sofisticado, setores esses que se sobressaem no cenário internacional, gerando valor e empregos diferenciados, mas essa discussão o Brasil continua ignorando. Qualquer que seja o presidente que venha a assumir em 2015 já se sabe o que esperar em muitas áreas: entre outras, correção de preços defasados, ajustes importantes nas contas públicas, ampliação dos investimentos em infraestrutura com retomada das concessões e melhoria do desempenho das agencias reguladoras. O que não sabemos é como requalificar a economia brasileira, diminuindo sua dependência da exportação de commodities (que não deve ser desprezada), e garantindo um novo dinamismo do setor industrial acoplado ao de serviços sofisticados. Isto passa, necessariamente, por investimentos nos setores que vem sendo chamados de Economia Criativa. Em retrospecto, nossas propostas de 2010 con-

tinuam 100% válidas. O que mudou é a urgência com que temos de considerá-las. Perdemos mais quatro anos e o mundo não nos espera. A China, por exemplo, colocou a Economia Criativa como uma das principais metas do seu último Plano Quinquenal, junto com novas energias limpas. Depois de começar copiando e produzindo grandes quantidades a custo baixo, ela vem investindo em desenvolver capacidade de pesquisa para ampliar sua competência tecnológica para produtos e serviços de maior valor adicionado. Vem também realizando um esforço enorme para criar uma capacidade endógena de design. A Inglaterra, percebendo a ameaça do avanço chinês nessa área, vem desenvolvendo, por meio do seu Design Council e de outras agências, programas específicos para ajudar empresas a identificar como a criatividade e o design podem melhorar seu desempenho . A Coreia criou o Korea Design Center, um complexo que serve de hub ao Korean Institute of Design Promotion’s, e trabalha para desenvolver a competitividade nacional por meio do design. Taiwan tem um National Design Center e Cingapura tem o Fusionopolis Creative. Os mais diferentes países já descobriram que Economia Criativa é muito mais do que políticas culturais e/ou de inserção social. Tratase da política industrial do século 21.

Apesar da criação da Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura, houve pouco avanço neste setor.

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Paulo Pampolin / Hype

As infraestruturas de energia, comunicação e em especial as de logística e transporte são decisivas na determinação da competitividade.

LOGÍSTICA E TRANSPORTE NO BRASIL Desafios para o novo governo federal

Zé Carlos Barretta/Hype

Renato Casali Pavan Engenheiro Civil formado pela Universidade Mackenzie.

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N

osso artigo de 2010 enfatizou a necessidade de aumentar substancialmente os investimentos em logística e transporte com uma visão sistêmica. Sem o investimento adequado não seremos competitivos e muito menos aumentaremos a nossa produtividade. Passados quatro anos, nada mudou, a não ser avanços proporcionados pela iniciativa privada. No seu atual estágio de desenvolvimento, a questão crucial da economia brasileira diz respeito aos seus baixos índices de produtividade e investimento, comparativamente a países mais desenvolvidos, ou mesmo alguns emergentes. A produtividade média dos fatores de produção no Brasil é muito baixa, com exceção daquelas do agronegócio e da mineração. Várias são as razões para isto: qualificação precária dos recursos humanos; escassez ou alocação deficiente do capital;

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uso predatório dos recursos naturais; assim como a baixa capacidade de inovação por meio da geração de conhecimento e novas tecnologias, tornando o País pouco competitivo, com baixa produtividade. As infraestruturas de energia, informação, comunicação e em especial as de logística e transporte, são decisivas na determinação da competitividade. Sabe-se que produtividade, inovação, qualificação do fator humano e alto desempenho das infraestruturas fazem parte do perfil competitivo de um país. No Brasil, todavia, são muito baixas a taxa de investimento em relação ao PIB, e particularmente a taxa de investimentos, também relativamente ao PIB, na recuperação, ampliação e modernização das infraestruturas de logística e transporte. Como parte da Formação Bruta de Capital Fixo, investir nessas infraestruturas (portos, aeroportos, ferrovias, rodovias e centros logísti-


cos) é um poderoso fator de indução do crescimento econômico sustentável e continuado. As duas tabelas que acompanham este artigo mostram a má posição do Brasil relativamente a outros países quanto às taxas citadas no parágrafo anterior. Acrescente-se que nos últimos 14 anos, a taxa de investimento em relação ao PIB oscilou entre o mínimo de 15,3% (em 2003) e o máximo de 19,5% (em 2010). Nos últimos 45 anos, a de investimentos em logística e transporte em relação ao PIB oscilou entre o mínimo de 0,12% (em 1990) e o máximo de 2,16% (em 1975) mostrando um enorme declínio persistente em proporção do PIB. Mesmo se computados os investimentos privados por meio de concessões que proporcionaram uma recuperação dos investimentos, porém em escala ainda pouco significativa em relação à magnitude das carências e gargalos nas infraestruturas.

Newton Santos / Hype

Apesar das restrições impostas pelas baixas taxas de investimento e a estagnação econômica prolongada que assolaram o Brasil por quase três décadas, houve avanços extraordinários na incorporação de novos padrões de gestão e novas tecnologias ao processo produtivo no agronegócio, mineração e serviços. Isto resultou de um esforço continuo de empresários e trabalhadores, que não dependeu, via de regra, de planos ou iniciativas governamentais. As infraestruturas de apoio, porém, não acompanharam este crescimento e diversificação da economia. Assim, as atividades de produzir, armazenar, escoar e distribuir ou embarcar a produção implicaram em redução da competitividade das nossas exportações e encarecimento desnecessário do consumo interno (principalmente de alimentos e insumos industriais e agrícolas). Não há dúvida, portanto, que é inadiável a provisão de um complexo de infraestruturas integradas, com os objetivos de aumentar os níveis de competitividade em geral e melhorar as condições de movimentação da produção. Mas como atingir tal objetivo, se a disponibilidade de recursos públicos é restrita e se as políticas públicas continuam a contemplar visões fragmentadas, com ênfase nas ações voltadas para o curto prazo? É importante ressaltar, como mostra a segunda tabela, que países como a China, Índia, Rússia investem de 3 a 5% do PIB nas infraestruturas de logística e transporte, enquanto o Brasil vem investindo sistematicamente menos de 1% do PIB.

Zé Carlos Barretta / Hype

Josef Barat

Economista e Doutor Livre-Docente pela UFRJ, é consultor de entidades e empresas públicas e privadas.

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Financiamento da economia brasileira Evolução recente, desafios e oportunidades.

Paulo Pampolin / Hype

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osso artigo de 2010 procurou identificar as ações de política econômica que apresentassem o maior impacto na elevação das taxas de crescimento da economia brasileira, atuando sobre os fatores mais limitantes a esse processo. Nesse contexto, trabalhou-se com a hipótese de Hausmann, de que a poupança interna é o fator mais limitante ao crescimento (1). Ao se defrontar com a demanda de investimentos, essa deficiência de poupança mantém elevado o custo de capital, o que por sua vez restringe o numero de projetos viáveis, levando à redução da taxa de investimento e do ritmo de crescimento da economia. As evidencias apresentadas naquele trabalho mostravam a ocorrência de uma estreita correlação entre a perda de dinamismo da economia brasileira e a queda da taxa de poupança nas ultimas décadas. Comparações internacionais mostravam correlação entre taxa de poupança e de crescimento e que a taxa de poupança no Brasil havia caído para índices muito inferiores aos observados nas economias de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a relação entre taxas de investimento e taxas de crescimento mostravam que a relação produto/capital da economia brasileira era superior à média, indicando a existência de projetos de investimento rentáveis, mas cuja execução era limitada pelo alto custo de capital. Nesse contexto, as propostas tinham por foco a elevação da taxa de poupança interna e a redução do custo de capital. Constatou-se que a taxa média de poupança da década de 2000 a 2009, de 16,2% do PIB, era 3 pontos percentuais inferior à da década de 1970 (19,2%), refletindo forte queda da poupança do setor publico. Nesse período, essa poupança do setor publico em relação à arrecadação bruta de impostos caiu 24,9 pontos porcentuais, de um valor positivo de 17,4% para um valor negativo de 7,5%, ao mesmo tempo em que a poupança do setor privado elevou-se 8,1 pontos percentuais, de 19,8% para 27,9%, em relação ao PIB menos carga tributária bruta. Com esse diagnóstico, as propostas apresentadas em 2010 incluíam medidas para a elevação da taxa de poupança doméstica, com a adoção de programa de ajuste fiscal de longo prazo,

: Patrícia Cruz/LUZ

que permitiria redução sustentável da taxa de juros. A redução do custo de capital deveria ser obtida com a redução do custo do crédito bancário e a criação de condições regulatórias, tributárias e cambiais para o desenvolvimento do mercado de dívida privada, para atuar em sinergia com o BNDES. A atualização desses números para o período de 2010 a 2013 mostra um agravamento do quadro: uma queda adicional da taxa interna de poupança, da média de 16,4%, na década de 2000 a 2009, para 15,9% de 2010 a 2014, sendo 13,9% do PIB em 2013 e apenas 12,7% do PIB no primeiro trimestre de 2014. A taxa da poupança externa elevou-se de 1,09% de 2000 a 2009 para 3,04% do PIB de 2010 a 2013 e taxa de investimento continua baixa (16,3%). A taxa média de poupança do setor público continua negativa e relativamente estável. Desta vez ocorreu queda da taxa de poupança do setor privado: estimativas preliminares mostram que essa redução teve origem na a queda da poupança das empresas (lucros retidos) como resultado da redução do lucro liquido (2). Em conclusão, verifica-se que as limitações ao crescimento apontadas naquele trabalho se agravaram. Não houve qualquer avanço no sentido de promover ajuste fiscal do setor público, ao mesmo tempo em que o uso de contabilidade criativa comprometeu a credibilidade dos números fiscais e da própria politica econômica. Pelo contrário, isenções tributarias pontuais, forte crescimento de crédito subsidiado nos bancos oficiais financiado por divida publica, controle de preços e outras intervenções criaram impactos adicionais sobre as contas fiscais. Frustrou-se a tentativa de redução de juros sem suporte da politica fiscal, do que resulta a manutenção de inflação elevada e a maior dificuldade de gestão das expectativas por parte do Banco Central. Os avanços do mercado de dívida corporativa limitaram-se à criação de instrumentos de dívida incentivados. Nesse contexto, acredita-se que as propostas apresentadas em 2010 são ainda mais prioritárias nos dias atuais. Investimento em infraestrutura financiado de modo predominante pelo mercado de capitais em sinergia com o BNDES parece ser a estratégia mais eficaz para iniciar uma retomada do crescimento brasileiro.

Carlos A. Rocca

Economista e Doutor em Economia pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP.

(1) Hausmann, Ricardo(2009). Um diagnóstico do crescimento econômico brasileiro. CLP Papers – Center

for International Development , nº.1, julho. Harvard University. (2) Cfe. Estudo Especial do CEMEC: Rocca, Carlos A. e Santos Jr., Lauro M., Redução da taxa de poupança

e o financiamento dos investimentos no Brasil – Novembro de 2013 – www.cemec.ibmec.org.br

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Os impactos subversivos da questão ambiental

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dos os caminhos entrelaçados da razão (cérebro) e da emoção (coração), virem o jogo: meio ambiente dá voto. Difícil, mas dá. Com o talento quase mágico de comunicar, a maestria do marqueteiro faria o cidadão comum entender o “ambientalês”: meio ambiente é um tema transversal, ou seja, tema que atravessa as políticas públicas setoriais. É uma tarefa urgente até porque, em pesquisa recente do Datafolha (21 e 22 maio deste ano), o meio ambiente não aparece (espontânea) entre os principais problemas do País. Quando estimulada a pergunta, as pessoas manifestam muita preocupação. Ora, a percepção social do meio ambiente, a despeito de significativos avanços, continua aferrada aos resquícios do préconceito, como se fora coisa de bicho-grilo e do mito da ararinha azul. Um lamentável preconceito. A questão ambiental permeia problemas que afetam o cotidiano do cidadão. Neste sentido, ao se falar de saúde não custa lembrar que a tragédia do saneamento é uma tragédia ambiental (beneficia, apenas, 38,7% da população, havendo sido registradas, em 2013, 340 mil internações de infecções gastrointestinais das quais 171 mil de pessoas com até 14 anos), considerando que, no Plano Nacional de Saneamento Básico (PAC/2007) com recursos na ordem 304 bilhões de reais, cerca de 219 obras não atingiram o nível adequado de execução. Com efeito, a mesma linha de raciocínio se aplica à epidemia de dengue e às doenças respiratórias em decorrência da poluição, que é considerada o maior problema ambiental do País (32%) que, somado ao lixo (13%) e ao saneamento básico (10%), totalizam 55% da percepção da população brasileira em relação ao meio ambiente urbano. Adicione-se o fato de que ao falar em poluição, o cidadão reverbera sua insatisfação com a primazia do transporte privado frente ao transporte público, o que agrava seriamente a qualidade de vida e a produtividade da economia. Rogério Cassimiro/Folhapress

V

ai eleição. Vem eleição. A cada dois anos, o Brasil cumpre o calendário eleitoral; a democracia representativa assume uma saudável rotina com defeitos e virtudes de um regime que, segundo Rousseau, “Se houvesse um povo de deuses, ele seria governado democraticamente. Um governo tão perfeito não convém aos homens”. A rigor, o que convém à humanidade é conviver da melhor forma com as imperfeições; organizar a sociedade de modo a solucionar pacificamente os conflitos; e buscar o aperfeiçoamento das relações pela repetição da tentativa e erro de forma a alcançar a paz social mediada por instituições sólidas. O artigo escrito em 2010 adotou o título “Os impactos subversivos da questão ambiental”, que revela o mais profundo e complexo conflito contemporâneo e o consequente desafio de enfrentá-lo: a guerra entre preservação e desenvolvimento, natureza e cultura, dentro de um paradigma adverso ao equilíbrio entre o máximo do ter e a possibilidade de ser. Além de proposições legais que avançaram e que devem seguir sendo aperfeiçoadas, busquei enfatizar uma constatação nada original, porém, dramática: a natureza tornou-se ameaçadoramente escassa. Dito o que, volto à abertura do texto, vai eleição e vem eleição e a triste conclusão a que, nós eleitores, chegamos é que, na cabeça dos estrategistas de campanha, meio ambiente não dá voto. É um assunto estranho à agenda dos candidatos e, quando mencionado, dá a ideia de que é para cumprir tabela (propício para os tempos da Copa). Mas, contestariam os formuladores dos programas presidenciais: “ora, para os candidatos, a prioridade é o desenvolvimento sustentável”. Sustentabilidade é um polissílabo que enche a boca dos oradores; encanta os ouvidos dos incautos; parece uma arca de Noé de bugigangas onde cabe tudo; e, na prática, perde de goleada para o modelo prevalecente da insustentabilidade. Sem pessimismo agourento, devidamente acompanhado por ato de contrição diante dos nossos pecados ambientais, dá para acreditar que os magos do marketing político, percorri-


Masao Goto Filho / e-SIM

Cabe, ainda, destacar que a crise hídrica é um efeito da contaminação dos corpos d’água, do desperdício (gestão) e da agressão à cobertura das nascentes pelas matas ciliares. Observa-se, ao longo das ultimas décadas, um deslocamento das preocupações dos brasileiros da agenda verde para a agenda do meio ambiente urbano. Este deslocamento se explica pelos resultados positivos na luta contra o desmatamento assim como pela ampliação da consciência ambiental do brasileiro que, entre outras atitudes, se mostra disposto, segundo pesquisas, a pagar mais por uma energia mais limpa. O meio ambiente pode, sim, dar voto desde que o eleitor perceba que é parte do mundo natural; que o voto pode unir responsabilidade política da eleição com o destino das gerações e que cuidar da vida planetária é o imperativo ético que liga o presente ao futuro. Aliás, o futuro já chegou.

Gustavo Krause

Graduado em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito do Recife. Exerceu vários cargos públicos, entre eles os de Secretário da Fazenda, vice-governador e governador do Estado de Pernambuco.

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A reforma política e a reforma da política Newton Santos / Hype

Carlos Melo

Cientista Político, mestre e doutor em pela PUCSP. É professor do Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa (ex-Ibmec).

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H

á quatro anos, o Brasil era outro; crescia 7,5% ao ano, o presidente da República tinha enorme popularidade, e a percepção de bem-estar era tão grande quanto o otimismo e a confiança no futuro. Não foi difícil ao PT se manter no poder, elegendo Dilma Rousseff. Também era grande, no entanto, o desafio de prosseguir o processo cheio de virtudes que se mantinha havia, pelo menos, 16 anos. A agenda do desenvolvimento exigia medidas voltadas para melhorar o ambiente de negócios, para desatar os nós de infraestrutura e logística e para o aperfeiçoamento institucional. Nada disto, evidentemente, se faria sem o auxílio do sistema político. Ilusão, aliás, acreditar que qualquer coisa possa ser feita sem ele. Toda sociedade que pretende avançar precisa discutir a si mesma; considerar os múltiplos grupos e seus interesses; e a fragmentação natural que busca a unidade por meio do debate e da construção de consensos e pactos. Não há mal algum que seja multifacetada, na diversidade de seu povo, classes e regiões. Numa democracia, não se deve esperar por outra coisa. Decisões autocráticas e desprezo aos movimentos sociais e aos parlamentos não combinam com o mundo moderno, complexo e de enorme capacidade de comunicação e mobilização sociais. Assim, em 2010, já havia preocupação com a saúde do sistema político e com a possibilidade de, por meio dele, dar sequência às transformações na economia e na diminuição da desigualdade social, pois dava sinais de alguma exaustão. Por razões consistentes, avaliou-se que estaríamos às portas de uma reforma política, menos pelo desejo de partidos e políticos do que pelas

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exigências da continuidade do processo. Ademais, se sabia que mudanças profundas na tecnologia, na economia e na sociedade não foram acompanhadas pela política. Anacrônico o sistema se tornara, baseado ainda em métodos de escolha, organização e representação anteriores, por exemplo, à queda do Muro de Berlim, à abertura econômica, ao processo de privatização e à reconfiguração do Estado, e ao advento da Internet e sua extraordinária dinâmica social. Notava-se também que no País as elites – no sentido mais amplo da palavra – se afastavam da política, se eximiam de participar. Pressentia-se, ainda, não tão explicitamente quanto hoje, que a política perdia qualidade e isso afetaria a qualidade do desenvolvimento. Se nada fosse feito, não tardaria a afetar igualmente a qualidade da democracia custosamente conquistada. Propus, então, um rol de medidas. Deliberadamente, optou-se por uma pauta ampla, com vários pontos para análise e discussão, ainda que sabendo, é claro, que uma reforma política só poderia ser mesmo parcelada e incremental; melhorando gradativamente o sistema e aumentando, paulatinamente, sua eficiência e a satisfação social. O que escolher e priorizar do cardápio seria de responsabilidade de atores políticos eleitos para isso. Todavia, sabia-se igualmente que o futuro Presidente nada poderia fazer sozinho: necessitaria de um conjunto de forças políticas para que pudesse animar e induzir uma reforma, sempre difícil e de complexa engenharia política. Mas, acreditava-se também que não seria de todo impossível se à liderança política do futuro Presidente e dos partidos não faltassem vontade, ambição de fazê-la, e o engenho e a arte de conduzi-la não apenas por “políticos profissionais”, mas com o envolvimento da sociedade ou, pelo me-


Marcello Casal Jr./ABr

nos, de parte preponderante e decisiva dela. Vontade, persuasão, habilidade, articulação, engenho e arte: as virtudes do Político. Hoje, seria impróprio dizer que tudo permanece como estava. Infelizmente, a funcionalidade, a credibilidade e a representação do sistema pioraram. A crença nas instituições políticas é baixíssima; o clima, ao contrário de 2010, é de malestar. E isto se observa não apenas pelas pesquisas; estão na memória as cenas das “jornadas de junho”, de 2013, como que a gritar pela urgente discussão e aperfeiçoamento do sistema, com seu bordão “não nos representa”. Culpa do partido incumbente e da atual Presidente? Simplismo pensar assim, o caso é mais complexo e não demanda respostas rasas, nem a simples troca de guarda. Antes de tudo, é preciso admitir que chegamos a um ponto que exige – muito mais do em 2010 – que algo seja feito;

que mudanças sejam encaminhadas, que o sistema se aperfeiçoe. Mas, que não haja ilusões. Em paralelo, têmse também a percepção de que, de 2010 para cá, as condições de diálogo entre os mais diversos grupos também se deterioraram, e muito. À direita e à esquerda, o radicalismo e o sectarismo recrudesceram; a disposição para sentar-se em torno de uma mesma mesa parece ter-se esgotado. O centro político que o País sempre possuiu – moderado e conciliador – jaz anulado, refém da lógica da ocupação de espaços em todas as esferas da máquina pública, apequenado pelo fisiologismo, apartado do debate. Há um longo desafio ao próximo Presidente: promover o bem-comum, a liberdade, a igualdade e a paz social. Não o fará sem a coragem de conduzir, antes, a reforma da política nacional.

A crença nas instituições políticas é baixíssima e o clima é de mal-estar.

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A trajetória do Brasil na inserção internacional – desafios e oportunidades

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ste artigo examina o quadro atual da inserção internacional do Brasil à luz das propostas elencadas em artigo publicado em 2010 para o programa de governo dos então candidatos à Presidência da República, reapresentadas a seguir, a saber: (1) Dentro do governo, uma reformulação interna do enquadramento hierárquico do comércio exterior com ênfase na mudança de papel da CAMEX. Para ser um player internacional relevante, um país necessita contar com uma estrutura operacional de comércio exterior com grande autonomia, e que tenha como função precípua discutir e deliberar, em conjunto com os Ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, de Relações Exteriores, e com os representantes da classe empresarial e da sociedade civil, a estratégia de atuação internacional do País nos próximos cinquenta anos. Isto, para fixar metas e objetivos, estabelecer prioridades e abrir novas fontes de diálogo e de parcerias, entre outras atividades. O comércio exterior continua, entretanto, sem um comando unificado, sem voz e sem “norte”. (2) A aprovação de uma efetiva Política Industrial com foco na desoneração de investimentos, e muita inovação e pesquisa para descoberta de novos nichos de mercado. O desempenho medíocre da economia brasileira em 2014 vem ocorrendo paulatinamente desde 2012, e acentuado por medidas governamentais míopes, pontuais e discriminatórias voltadas a remediar nichos de produção específicos com foco no aumento do consumo. Não priorizam a cadeia produtiva e o setor industrial como um todo. Continuamos com decisões protecionistas segmentadas, antiquadas e sem nenhuma perspectiva. Ao contrário de países como a China,

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Lucas Baptista/Futura Press


O Brasil continua mal no comércio exterior, patina cada vez mais na rampa da política em “compadrio” com o protecionismo exacerbado de um país vizinho, a Argentina.

Alemanha ou Estados Unidos que têm “projetos de país”, continuamos com solavancos na economia, investindo em inovação apenas 1,2% contra 2,3% da média mundial. E, no campo da pesquisa, como recentemente apontado pela Frente Parlamentar de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação da Câmara dos Deputados (junho/2014), não há ainda mecanismos regulatórios e de amparo jurídico para desenvolver pesquisas que alavanquem o desenvolvimento da ciência, limitando-se quase que somente a buscar linhas de financiamento. As medidas tomadas e divulgadas entusiasticamente pelo atual Governo, com base no programa intitulado “Brasil Maior”, estão longe de sinalizar um engajamento oficial na discussão e elaboração de uma política industrial, eficiente e eficaz, para atender indistintamente a toda cadeia industrial do País. A constatação, que corrobora essa falta de iniciativa oficial, está na drástica redução do crescimento do PIB, na alta da taxa dos juros; na oscilação com valorização da taxa de câmbio, na persistência da alta da inflação, no balanço negativo das operações de comércio exterior, com redução significativa das exportações, entre outros aspectos. (3) Investimento em educação e treinamento para desenvolver a visão política exigida do empresário para atuar globalmente. Na mesma linha é preciso: (4) reformular o MERCOSUL; (5) retomar a mesa de negociação de acordos de comércio; e (6) participar no diálogo Transnacional (Estados Unidos e Europa) buscando ser reconhecido como “parceiro preferencial” pelos países que nos interessam como mercados alvo de novos nichos de comércio. O Brasil continua mal no comércio exterior, patina cada vez mais na rampa da política em “compadrio” com o protecionismo exacerbado de um país sócio e vizinho, a Argentina, que

persiste em reduzir drasticamente seu volume de compras do nosso País. Ao mesmo tempo, a Argentina aumenta significativamente as compras dos países asiáticos enquanto, nós, brasileiros, compactuamos com as manipulações feitas pelo governo argentino para evitar a concretização de um acordo de comércio, com pauta mínima, entre o MERCOSUL e a UNIÃO EUROPEIA. Nesse quadro, as autoridades brasileiras mostram-se mais paralisadas do que o próprio MERCOSUL na sua lenta agonia, o que nos posiciona como assistentes de camarote às novas iniciativas de agregação de valor nas cadeias produtivas mundiais, as quais, no momento, negociam sua ampliação para incluir normativas ambientais e sociais. Nesta última questão, estamos alheios à negociação que vem ocorrendo de um acordo plurilateral, fora do âmbito da Organização Mundial de Comércio, para desonerar todo e qualquer equipamento destinado a preservar o meio ambiente (exemplo: equipamentos eólicos e centrais solares). Continuamos isolados e sequer somos observadores das negociações em curso e quase irreversíveis entre Estados Unidos e Europa e entre Estados Unidos e Ásia. O mundo industrial está em permanente transformação e nós continuamos olhando, vendo o trem passar sem agir e sem reagir. Dessa forma, em 2014, a pauta de recomendações, por incrível que pareça é a mesma de quatro anos atrás, as quais permanecem válidas pelo imobilismo do governo. Reafirma-se que caso essas ações e iniciativas não sejam buscadas e realizadas, continuaremos escorregando no gelo da incerteza e da ideologia, perdendo oportunidades e crescendo menos. Ninguém vai nos esperar e o preço da omissão será alto.

Divulgação

Maria Teresa Bustamante

Economista formada pela Universidade J. Tadeu Lozano (Colômbia), Mestre em Administração pela Universidade Positivo, de Curitiba (PR), e Doutoranda pela mesma universidade.

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O setor de seg como instrumento do de Zé Carlos Barretta / Hype

Nilton Molina

Diretor da Associação Comercial de São Paulo e da CNSeg – Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização.

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m 2010, a ACSP publicou no Digesto Econômico um conjunto de 35 artigos de especialistas em matérias de interesse nacional, rico material de apoio ao plano de governo dos candidatos a Presidente da República na eleição daquele ano. Passados quatro anos, somos convocados a rever esses artigos para uma avaliar o que ocorreu em relação a essas variadas proposições nesse meio tempo. No meu caso, desenvolvi um documento que tinha como título “O SETOR DE SEGUROS E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL”. O tema permitiu evidenciar a interação do mercado de seguros com os diversos setores da economia, sempre com o propósito de ressaltar a pertinência e o significado dos seguros como proteção de pessoas, bens, direitos e propriedades e, mais do que isso, como instrumento de formação de poupança. O artigo focou em diversos segmentos da economia, pautando um conjunto grande de providências que os setores público e privado deveriam adotar para acelerar o crescimento do mercado de seguros para que este cumprisse bem seu papel de instrumento da economia. No geral, pode-se afirmar que avançamos, mesmo que timidamente, em alguns setores como o seguro rural, os microsseguros, os seguros populares e o seguro de vida, entre outros. Creio que os normativos legais se tornaram mais eficientes, mesmo que na maioria das vezes atropelando o mercado desnecessariamente. Crescemos sempre mais do que dois dígitos ao ano, sem dúvida um desempenho expressivo, totalizando 64% no período de quatro anos. O total de ativos sob gestão do mercado segurador passou de R$ 230 bilhões para R$ 510 bilhões, um aumento de 18,6% ao ano. Enfim, crescemos e contribuímos para o desenvolvimento nacional. Afinal, é nossa missão. Mas, há um conjunto de problemas que preocupa cada vez mais os estudiosos do futuro da nossa sociedade, sem que os formadores de opinião, como jornalistas economistas, sociólogos e,

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principalmente, os políticos, pareçam se aperceber ou tomar consciência do que está ocorrendo. Refiro-me às alterações demográficas pelas quais passam o Brasil e o mundo, cujas consequências já estão presentes na sociedade moderna. É sobre a sustentação dos programas de saúde e previdência pública que repousam os grandes questionamentos do mundo moderno. Como serão financiadas as despesas com saúde e aposentadoria numa sociedade longeva como a que já vivemos? Certamente que o modelo atual de financiamento não será capaz de sustentar o aumento da longevidade. É importante recordar que o modelo de financiamento dos programas de saúde, aposentadoria e pensão das idades mais avançadas são financiados através de um sistema que as mudanças demográficas trataram de dizimar; refirome ao pacto intergeracional em que os jovens produzem renda para si próprios e para os inativos, já que estes últimos não são mais capazes de produzir renda para o próprio sustento. O pacto intergeracional foi eficiente até meados do século 20, em torno dos anos 50, época em que o mundo ainda convivia com outra realidade demográfica: muitas crianças e poucos idosos, muitos ativos trabalhando ou procurando emprego, e futuros ativos (as muitas crianças). Esse cenário mudou radicalmente. O problema já é presente, não se trata mais de futurologia. Vejamos o caso brasileiro: considerado o arco amplo da Seguridade Social, aí incluídas as rendas e os auxílios aos carentes, a previdência social pública e privada e os gastos com a saúde, fazem com que o Brasil consuma algo como 23% do PIB, ou cerca de 60% do total de impostos, taxas e contribuições recolhidas pelo setor público Federal, Estadual e Municipal. Sabemos todos que a carga de impostos não suportará acréscimos capazes de financiar os inevitáveis aumentos de despesas. Se tudo isso faz sentido, a sociedade tem que enfrentar esse desafio o que deve começar pelo reconhecimento de que TEMOS UM PROBLE-


uros privados senvolvimento nacional MA, cuja solução passa obrigatoriamente por uma importante reforma de todo o sistema de seguridade social e o aumento significativo dos estímulos às poupanças, que serão os instrumentos do financiamento dessas demandas individuais. O mercado segurador tem procurado ser um agente de mudança. Para as eleições presidenciais de 1998, elaboramos, em parceria com a FIPE da USP, um alentado estudo propondo um novo modelo de financiamento dos seguros sociais. Novamente, em 2002, em conjunto com o Comitê Executivo do Mercado de Capitais, novo estudo com os mesmos objetivos foi elaborado.

Esses estudos foram entregues aos candidatos à Presidência da República desde as eleições de 1998 até as de 2010. Os Ministros da Fazenda e da Previdência Social dos governos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma receberam essas colaborações. Porém, e esse é o ponto, a execução de soluções politicamente possíveis tem que passar por uma ação vigorosa dos formadores de opinião para mobilizar a sociedade para o entendimento de que não podemos marchar impunimente para a insolvência dos sistemas públicos de seguridade social. Caso contrário, todos pagaremos essa conta.

Como serão financiadas as despesas com saúde e aposentadoria numa sociedade longeva?

Paulo Pampolin/Hype

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osso artigo de 2010 enfatizou diferenças, especialmente em termos de receitas, dos modelos de partilha e concessão. Mas não discutimos algo que é de primeira ordem para qualquer desenho bem feito de mercado: induzir substancial participação de interessados. O único teste do modelo de partilha mostra que nosso artigo ignorou algo de vital importância. Assim, neste avaliaremos as implicações, quanto a essa participação, do modelo de partilha desenhado pelo governo Lula, tendo o campo de Libra como exemplo. Leilões são mecanismos que podem ser bastante úteis para alocar bens (ou ativos) àqueles que mais os valoram (ou mais aptos a operá-los). Não menos importante é o papel dos leilões como mecanismo de descoberta de preço em situações para quais não haja mercados organizados. Não há um mercado desse tipo para vender direitos de explorar blocos de petróleo. A heterogeneidade de poços e o fato de que há relativamente poucos agentes aptos a retirar deles o petróleo são duas entre várias razões. Mas, num leilão a competição entre os relativamente poucos agentes aptos a operá-lo, ela pode induzir a descoberta do valor do que é leiloado. Contudo, o desenho escolhido pelo governo para leiloar Libra não satisfez esse dictum: um único consórcio fez lance pelo direito de exploração. Não surpreendentemente, o leilão saiu pelo lance mínimo exigido pelo governo (41,65% de óleo para o governo). Como enfatizado no artigo de 2010, a escolha de um modelo de partilha não é necessariamente a culpada. O exemplo apresenta-

do anteriormente ajuda a esclarecer este aspecto. Suponhamos que num leilão de um bloco de petróleo haja duas empresas. A empresa A retira 4 de receita do bloco; a empresa B retira 3. O custo de exploração é 1 para ambas. O valor econômico do bloco é 3 (o montante líquido que a empresa A pode gerar operando o bloco). Tomemos um leilão aberto ascendente, também conhecido como leilão inglês. Nesse leilão, a empresa de maior valoração faz o maior lance, que será igual (na verdade, um pouco maior) que a valoração da empresa que tenha a segunda maior valoração. Comparemos o modelo de concessão, não adotado no pré-sal, com o modelo de partilha (sem bônus de assinatura). Na concessão, a empresa A ganha e paga o valor da firma B (2 = 3 - 1). A renda do governo é 2. Agora, supondo lances na forma de porcentagem da receita (partilha), a empresa com maior valoração (A) ainda vence com lance igual à valoração dada por B, que é agora 2/3 [pois (1-2/3) x 3 = 1]. A renda do governo é 2,67 = 2/3 x 4 (receita de A), portanto maior que 2 na concessão e, mais importante, mais próxima do valor do bloco. Um leilão de partilha pode, assim, ter um bom papel na descoberta de preços. Mas, este exemplo ignora um ponto importante. A receita do bloco pode depender da participação que o explorador venha a ter, pois quanto maior ela for, maiores serão os esforços para retirar petróleo. Ora, o leilão de Libra impunha lance na forma de uma participação mínima a ser cedida ao Estado. Caso tenha sido mal calibrada (e nos parece que ela foi alta), esse lance pode ter reduzido a percepção dos agentes sobre o quanto receberiam dos ganhos gerados por seus esforços de exploração. Isto, adicionado

PRÉ-SAL: ANÁLISE E PROPOSTAS

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Wilton Júnior/AE

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a um bônus de assinatura fixo (o gasto a ser feito independentemente dos resultados da exploração), não contribui para maior participação dos agentes. Portanto, há um primeiro candidato a culpado pela falta de maior participação no leilão de Libra: o efeito de uma elevada participação mínima do Estado, mais o de um bônus de assinatura fixo. Um segundo candidato a culpado é a obrigação de ter a Petrobras como principal operadora do bloco, estando no consórcio vencedor ou não. O desalinho de interesses (ou mesmo a incerteza quanto à capacidade de a Petrobras ter bom desempenho), reduz o valor do ativo para a outra parte. Portanto, os incentivos a participar serão menores do que se o próprio explorador fosse o agente a fazer o lance. E ser parceiro minoritário do governo brasileiro carrega riscos. Principalmente quando ele mostra certa inclinação para renegociar contratos, explícita ou implicitamente. O terceiro candidato é a chamada maldição do vencedor. Ela pode ser especialmente importante para agentes que não estejam no mesmo consórcio da Petrobras. De fato, por ter descoberto Libra, é provável que ela tenha mais informação sobre características relevantes para um explorador. Vencer um consórcio que a inclua pode ser péssima notícia, pois o valor do bloco foi sobrestimado em relação a um player com melhor informação. As empresas tentam se proteger da possibilidade da maldição. Mas, a participação mínima a ser cedida ao Estado (e a operação pela Petrobras) coloca(m) limites nessa proteção.. Não participar pode ter sido a única saída. Um modelo de concessão não tem espaço para essa inibição e é melhor ao ensejar maior número de participantes. Mais importante: na prática, participação é a mais importante característica que um leilão deve ter. Menosprezamos isto em 2010. O futuro governo não pode fazê-lo.

Fotos: Divulgação

Vinicius Carrasco e João Manoel Pinho de Mello Ambos os autores são doutores em Economia pela Universidade de Stanford (EUA) e professores assistentes do Departamento de Economia da PUC-Rio.

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O Poder Judiciário nos últimos quatro anos

A

tribui-se ao Ministro Delfim Neto o brocardo “não há risco de melhorar”. Em retrospecto, o Judiciário de 2010 e o atual panorama de 2014 parecem seguir esta regra com rigor impressionante. Até dados de avaliação do Poder Judiciário, uma vez coletados pelo CNJ, deixaram de ser disponibilizados em 2012. Tudo indica que o Poder Judiciário cresceu nos últimos quatro anos sem nenhuma nova perspectiva de desafogá-lo. Segundo o relatório de 2012 do CNJ, esse Poder se mede pelos “dois extremos envolvidos na prestação jurisdicional: a resolução dos processos (baixa) e o ingresso de novos processos (casos novos). A resolução dos processos judiciais, seu julgamento definitivo e sua baixa, é responsabilidade constitucional do Poder Judiciário e de todo o sistema de Justiça. O aumento da litigância (...) é fenômeno mais complexo.” E continua: “A quantidade de processos que ingressam cresce mais (...) que o quantitativo de sentenças e o de baixas. Tal desempenho ocasionou a queda de 4,3 pontos percentuais (p.p.) no índice de baixados por caso novo no quadriênio, o qual tem registrado, desde 2011, índices abaixo de 100%, o que indica que não se consegue baixar nem mesmo o quantitativo de processos novos que ingressaram. O crescimento da demanda não tem possibilitado que os esforços para julgar e baixar processos sejam suficientes. (...) ao se analisar o crescimento do quantitativo dos casos novos junto com os indicadores de magistrados e servidores, observa-se que a grande maioria dos tribunais, com exceção da Justiça Federal, não

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consegue dar vazão aos processos em relação ao estoque existente. A análise da série histórica traz à tona, novamente, o peso exercido pelos processos de execução fiscal, que representam 40% do estoque de (...) pendentes e apenas 13% dos casos novos. A principal dificuldade consiste na redução do estoque dos processos de execução fiscal, visto que, mesmo com esforços (...) para aumentar o número de processos baixados, o quantitativo de processos em tramitação permanece subindo. A taxa de congestionamento na execução fiscal é de 89%, ou seja, de cada 100 processos em tramitação, 11 são baixados no decorrer do ano. Além disso, 8% dos processos de execução fiscal em tramitação foram sentenciados em 2012.” O quadro de 2013 não deve diferir muito. É claro que também é necessário mudar a lei objetiva. Entre nós, a quase tudo é possível invocar o direito de ação, mesmo que a matéria já tenha sido pacificada nos Tribunais Superiores. Cada caso é tratado por seu mérito próprio, e mesmo temas conhecidamente rejeitados são reapreciados (...). O problema não se circunscreve ao crédito; o próprio Estado é parte em quase 60% das ações judiciais e é réu em ações em que


A média dos Tribunais que conseguem baixar mais processos e reduzir suas taxas de congestionamento se reduziu.

Evelson de Freitas/AE

sua derrota é certa. O Judiciário só deveria ser acionado em questões relacionadas ao crédito, se houvesse dúvidas ou incertezas em relação ao montante do débito, se ocorresse imprecisão a respeito de quem se devesse pagar ou eventualmente situações extraordinárias. Em nenhum outro caso poderia haver uma discussão. Não há evidência concreta de que um sistema de recursos como o brasileiro garanta procedimento melhor e que erros sejam eventualmente reparados ao longo do processo. É uma visão comum, e geralmente aceita, que todos os devedores são pobres e desafortunados; o credor, ganancioso e comumente poderoso. Nada mais equivocado, já que, primeiro, como sabemos, os recursos não são do banco, mas do cliente; segundo não se advoga sem Judiciário – por exemplo, quando há fraudes ou danos, ele sempre deve agir. Nos demais casos, uma solução simples e rápida em favor do credor é o melhor caminho. Por fim, uma das formas de combater o ativismo judicial veio com a Emenda Constitucional n.º 45, de 8/12/04, que instituiu a súmula vinculante, dispondo que o STF poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços

dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma da lei. O efeito da súmula vinculante pode não trazer a normalidade imediata, mas certamente é sinal positivo do ponto de vista institucional de que decisões politizadas deverão ser revistas por uma ordem jurídica superior. O Juiz não poderá assim, sob pena de responsabilidade, decidir o caso concreto com aquilo que sua consciência considera como justo. Ele deve decidir de acordo com a lei. Reduzir o desvio da anomalia significa tomar decisões que respeitem às leis e aos contratos. Ponderado o volume de processos, força de trabalho e despesas para aprimorar a produtividade, os resultados d nos últimos quatro anos foram pífios. A média dos Tribunais que conseguem baixar mais processos e reduzir suas taxas de congestionamento se reduziu, com menores percentuais de eficiência.

L.C.Leite/Luz

Jairo Saddi

Advogado em São Paulo, Doutor em Direito Econômico (USP), pós-doutor pela Universidade de Oxford, professor e coordenador geral do curso de Direito do Insper.

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A custosa burocracia de outras obrigações fiscais Mario Miranda/LUZ

José Maria Chapina Alcazar Contador, empresário, foi presidente do SESCON-SP e da AESCON-SP, é vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo.

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epois de 2010, novidades como o Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) e, mais recentemente, o eSocial, seu subprojeto mais amplo até aqui, com foco nos aspectos trabalhistas e previdenciários, muito têm a ver com a intenção do governo de aumentar seus controles eletrônicos para coibir sonegação e demais irregularidades. Mas, por mais que iniciativas assim contribuam para um ambiente de negócios mais justo e equilibrado, é inevitável esperar a devida contrapartida sob a forma da tão almejada simplificação, única maneira de tirar o Brasil da incômoda posição de destaque há muito ocupada no ranking mundial dos países mais burocráticos. Permanece lenta, porém, a eliminação de obrigações acessórias, muitas redundantes, além de surgirem novas como o Siscoserv, que impôs às empresas uma série de rotinas para detalhar a tomada de serviços em âmbito internacional. São inúmeros decretos, portarias e instruções normativas publicadas diariamente, o que torna praticamente impossível ao contribuinte colocar em prática todas as mudanças anunciadas. Mesmo tentando cumprir à risca a legislação, sempre é surpreendido por alguma lacuna ou contradição, numa situação também agravada pelos remendos e disparates muitas vezes trazidos por emendas constitucionais. Nos Estados a substituição tributária teve seu leque de abrangência ampliado, submetendo o comerciante ao ônus de pagar o ICMS

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antes mesmo de a mercadoria ser comercializada, uma prática surreal levando as empresas a financiar a máquina pública, como se fossem instituições financeiras. Recentemente, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), sob a égide do combate à lavagem de dinheiro, transformou todos os empreendimentos em delatores potenciais, dando erroneamente a entender que fiscalizar e punir seja mais eficaz do que investir na educação de cidadãos menos suscetíveis à corrupção e à sonegação. Já ao contribuinte, pressionado por todos os lados, resta apenas investir cada vez mais em hardware, software e recursos humanos para evitar rígidas punições mediante o simples envio extemporâneo ou falho de algum arquivo digital ao fisco. Possíveis alentos pela chamada desoneração da folha, que já se aplica a 56 atividades econômicas, são no mínimo questionáveis frente à intenção recém-anunciada pelo governo de generalizá-la. Se isto realmente acontecer, será agravada a situação das pequenas e médias empresas com reduzido volume de mão de obra em seus quadros, que aprenderam a produzir mais com menos, e agora podem ser penalizadas em virtude de sua produtividade e de sua eficiência. Por fim, eis que surge uma nova amplitude para o sistema conhecido como Simples, que de “Nacional” volta a ser chamado oficialmente de “Super”. Mas será que finalmente ele vai combinar carga tributária menor e uma verda-


Evelson de Freitas/AE

deira simplificação de processos burocráticos? Projeto de Lei recém-aprovado pelo Congresso Nacional ainda deixa dúvidas quanto a isso, o que torna mais recomendável do que nunca o hábito saudável de fazer contas, ao invés de decidir por impulso ou mero modismo por este regime, em detrimento dos demais. Contas, aliás, é o que fazem as pessoas físicas, na tentativa de entender porque vêm pagando mais Imposto de Renda a cada ano, pois a tabela de retenção na fonte permanece altamente defasada, mesmo após o reajuste de 4,5% divulgado efusivamente pelo governo no último 1º de maio, uma correção que sequer cobre a inflação prevista para 2014. Outra pendência histórica é a da flexibilização dos prazos de pagamentos dos impostos e contribuições, para aliviar o desequilíbrio no fluxo de caixa do empreendedor, que certamente seria bem mais competitivo se quitasse seus tributos após receber pelo seu faturamento, e não mais pela data de emissão da nota fiscal. Ao invés de avanços dessa natureza, todavia,

identificamos muito mais a mera informatização da burocracia, com um sistema tributário complexo, verdadeira colcha de retalhos, exigindo informações eletrônicas complexas e redundantes, sob a ameaça constante de elevadas multas por qualquer inconsistência ou simples erro administrativo, muitas vezes colocando o empreendedor na condição de um criminoso em tese, cercado por insegurança jurídica e instabilidade na condução do seu negócio. Tudo isso nos leva a concluir o quanto é urgente a necessidade de reformas política, tributária, trabalhista e da própria gestão pública, para que se administrem melhor os recursos públicos e, finalmente, eles possam retornar à sociedade sob a forma de mais saúde, educação, moradia, segurança e infraestrutura. Mudanças assim não só reduziriam o custo Brasil, como também desestimulariam a informalidade e a igualmente danosa migração de plantas e negócios inteiros para países vizinhos, em detrimento da geração de empregos e do crescimento econômico entre nós.

São inúmeros decretos, portarias e instruções normativas publicadas diariamente, o que torna impossível ao contribuinte colocar em prática todas as mudanças.

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Questões quilombolas, indígenas e o MST Bruno Poletti / LUZ

Denis Lerrer Rosenfield

Graduado em Filosofia pela Universidade Nacional Autônoma do México, e “Doutor de Estado” pela Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne. É professor titular de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autor de vários livros e artigos em português, francês e espanhol, além de professor visitante na França, Alemanha, Argentina e Estados Unidos. É articulista dos jornais O Estado de S. Paulo, O Globo e Diário do Comércio, da Associação Comercial de São Paulo.

A questão quilombola

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ode-se dizer que houve um avanço no tratamento da questão no governo Dilma. Embora os mecanismos de decretação de um território enquanto quilombola não tenham sofrido alteração, houve um clima de maior entendimento no que concerne ao modo de atuação do INCRA. Esse órgão de Estado apresenta uma grande mudança ao se apresentar, hoje, como um órgão encarregado da gestão do território e não como aparecia no passado ao ser considerado como uma espécie de braço do MST. Leva, inclusive, em consideração o direito de propriedade. Convém assinalar que os processos de identificação de uma área enquanto quilombola originam-se na Fundação Cultural Palmares, subordinada ao Ministério da Cultura. Aqui não houve nenhuma modificação, todos os processos de autodeclararão sendo liminarmente aceitos. O INCRA, por assim dizer, já recebe o prato feito, não tendo ingerência sobre essa etapa do processo. Este continua muito ideologizado, graças à atuação de antropólogos que não fazem um trabalho científico, mas se tornaram militantes da causa. Todos os seus laudos e relatórios dão sistematicamente ganho de causa aos quilombolas. “Quilombolas” é um termo que veio a significar, para eles, uma comunidade étnica afrodescendente, onde pode estar incluída uma mãe de santo branca

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em área urbana. A Constituição Federal está sendo desrespeitada por esse processo de ressemantização. Observe-se, por último, que as indenizações do INCRA são feitas com pagamento em dinheiro, sobre o qual não incide imposto de renda. Dependendo do valor arbitrado, os direitos podem ser respeitados. A questão indígena Neste caso os processos identificatórios e demarcatórios continuam tão explosivos como antes. Diria até que pioraram, dada a impunidade com a qual os grupos indígenas atuam, apoiados pelo Conselho Indigenista Missionário, por ONGS nacionais e internacionais e pelo Ministério Público. A FUNAI continua um Estado dentro do Estado, legislando, executando e julgando ela mesma qualquer recurso administrativo. Ela atua como um sindicato de militantes, totalmente ideologizado. Todo recurso é simplesmente negado, com os antropólogos, mesmo com laudos fraudulentos, arbitrando sobre o que é ou não território indígena. Permanece um órgão fechado, que simplesmente reafirma ideologicamente suas posições. Não há lá diálogo e negociação. Observe-se que as desapropriações indígenas são verdadeiras expropriações, pois o proprietário, com registro de seu imóvel há décadas, tudo perde, só sendo indenizado por benfeitorias e não pela terra nua. O “jogo” da questão indígena, por as-


Caio Guatelli/Folhapress

sim dizer, é muito pesado ao envolver todo um processo de formação da opinião pública nacional e internacional, interferindo no agronegócio e tornando os indígenas instrumentos de outros interesses que não são os seus. Houve um avanço, contudo, na discussão governamental da questão, uma vez que, ainda ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann suspendeu os processos de demarcação no Paraná e na Bahia. Ademais, digno de nota é o fato de a presidente Dilma ter sido a que, nos últimos anos, menos demarcou terras no País. Eis uma prova de sensatez de seu governo nesta questão. Por último, a discussão avançou, pois está hoje na ordem do dia a modificação no modo de desapropriação. Entrou em pauta o pagamento dessas áreas, em dinheiro, por preço de mercado, o que seria uma forma de dar satisfação aos proprietários rurais. Porém, o Ministro da Justiça está tendo dificuldades de tomar uma decisão final. O Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) Nesta área houve inegáveis avanços, com a mudança da atitude do INCRA, sob a orientação da Presidente. No governo Lula o foco residia na desapropriação de terras ditas improdutivas. No governo Dilma, o foco passou a ser a qualificação dos assentamentos, hoje, em boa parte, favelas rurais. Os investimentos foram voltados, portanto, para melhorar as condições de vida dos assentamentos e a sua produtividade.

O MST transferiu suas atividades principais para os centros urbanos, especialmente São Paulo, por intermédio do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

O MST tem tentado reagir a isto, não tendo conseguido alcançar os seus objetivos. Digno de nota é o fato de a presidente Dilma, também em relação aos governos anteriores, foi a que menos desapropriou. Manteve sua coerência nestes três anos e meio de mandato. O esvaziamento do MST é, atualmente, notório. As invasões de propriedade diminuíram sensivelmente e, pela primeira vez em mais de uma década, o dito abril vermelho foi pífio, sem nenhum eco maior. A única alteração deste quadro, nestes meses de maio e junho de 2014, é o fato de o MST ter transferido suas atividades principais para os centros urbanos, especialmente São Paulo, por intermédio do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Empunhou a bandeira da moradia, aplicou novamente a tática das invasões e, o que é muito ruim para a democracia brasileira, foi reconhecido enquanto interlocutor pelas esferas municipal, estadual e federal. É o prenúncio de novas invasões nas cidades. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Celso Ávila/Xpress/Folhapres

PROPOSTAS PARA O TURISMO BRASILEIRO

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etomo questões tratadas no meu artigo de 2010, pois não houve maiores avanços. No Brasil, as atividades turísticas preponderam nas regiões mais desenvolvidas, mas, em termos relativos, no Nordeste correspondem a 6,5% do seu PIB, enquanto no Sudeste a apenas 1,8%. Assim, também contribuem para a redução das desigualdades regionais. Em relação ao emprego, as elas respondem por 6% do emprego total do País, segundo o IBGE. O turismo pode também contribuir para a geração de divisas. Mas, não é o caso do Brasil, onde o turismo depende do mercado interno. Tal situação decorre da força desse mercado e da localização do País, distante dos principais emis-

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sores mundiais. O Brasil responde por apenas 0,6% dos gastos totais do turismo mundial, segundo a Organização Mundial do Turismo. O turismo doméstico, além dos benefícios que propicia, gera externalidades para a sustentação do turismo internacional. O crescimento do turismo no País requer que sejam estabelecidas estratégias diferenciadas para cada uma de suas regiões. As possibilidades de crescimento do turismo internacional no Brasil dependem, de um lado, do desempenho econômico de seus países fronteiriços, inclusive com o uso de instrumentos do tipo câmbio e preços, e, de outro, para os países localizados mais distantes, da valorização de seus atrativos únicos, da melhoria


Há muito o turismo brasileiro vem se constituindo em desafio para que seja alcançado seu potencial de crescimento.

da infraestrutura, dos serviços de apoio ao turismo e, principalmente, de uma agressiva política de comercialização e promoção. No período recente estes aspectos requeridos não foram muito contemplados pela política do governo federal quanto ao turismo. Variações cambiais acarretam significativos impactos na conta Viagens Internacionais, com mais intensidade no lado das despesas. Dados recentes mostram a gravidade do problema no saldo da conta Turismo como um todo: em 2013 os brasileiros gastaram fora do país U$ 18,0 bilhões a mais do que os estrangeiros aqui, um déficit recorde, conforme o Banco Central. Do lado das receitas, apenas os países limítrofes respondem às variações do câmbio e dos preços relativos. Para os demais emissores, o crescimento de suas receitas exige ações mais agressivas na comercialização e adequadamente programadas para cada tipo de mercado. Estas ações ainda não foram totalmente implementadas pela descontinuidade na gestão deste setor da economia. A concepção reconhecida é a de que a importância do turismo é determinada pelo significado do mercado internacional. No Brasil, o turismo interno é o maior da renda do setor. O valor estimado do turismo interno é cerca de 9 vezes superior ao do internacional. Uma avaliação da baixa participação do turismo internacional pode ser obtida pela relação receitas do turismo /exportação. Na média dos países oscila entre 6% e 7%; no Brasil, é de apenas 2,7%(2013). Seguem-se algumas recomendações. Há muito o turismo brasileiro vem se constituindo em desafio para que seja alcançado seu potencial de crescimento. A ocorrência dos megaeventos –- Copa do Mundo e Olimpíadas – poderia ajudar, mas seus efeitos podem ser apenas momentâneos. Mas, até o momento, as ações não foram bem sucedidas. Um dos problemas é a descontinuidade de gestão. Assim, algumas das propostas a seguir elencadas pre-

cisam dessa continuidade para alcançar os resultados desejados: 1) Instalação de postos de comercialização e pesquisas de avaliação, juntamente com a ampliação das operações e serviços das companhias aéreas: o desconhecido, amplificado pelas distancias e a falta de informações mais realistas, dificultam a escolha do Brasil como destinação, especialmente para viagens de lazer. Tais iniciativas contribuiriam para superar a natural resistência e diminuir o grau de insegurança na decisão, se primeira vez, de escolher o Brasil como destino de uma próxima viagem. 2) Ênfase no mercado interno e em estratégias regionais: em condições naturais do mercado, o turismo brasileiro manteve a base de seu crescimento no mercado interno, sem que tenham sido estabelecidas estratégias específicas por região e para a conquista de maior parcela do mercado externo. 3) Programas para reduzir distorções da sazonalidade: o custo do turismo é agravado pela ociosidade sazonal no uso de seus equipamentos e serviços. As iniciativas para a obtenção de maior regularidade na sua utilização têm sido primordialmente do setor privado, mas, há ainda, muito espaço para isso, em particular ampliando programas turísticos para a população da terceira idade, especialmente pela tendência do aumento significativo da idade média da população brasileira. 4) Taxa de câmbio e ajustes contábeis dos gastos com cartão de crédito: nos últimos anos, a valorização do real vem prejudicando seriamente o turismo no Brasil, porque incentiva a saída de brasileiros para o exterior, tanto pelo menor custo das viagens como das compras no exterior. Além disso, os gastos com cartão de crédito para as compras no exterior, mesmo que não presenciais, são debitadas na conta do turismo. É preciso retomar as discussões de políticas especiais para o dólar turismo e para ajustes na contabilização de gastos com cartão de crédito.

Pablo de Sousa/LUZ

Wilson Abrahão Rabahy

Economista formado pela PUC-SP e mestre, doutor, livre-docente e professor titular do curso de Turismo da Escola de Comunicações e Artes da USP.

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Desenvolvimento regional, referência ao Nordeste. E Divulgação

Gustavo Maia Gomes Doutor em Economia pela Universidade de Illinois, EUA, com pós-doutorado em Cambridge, Inglaterra.

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m 2010, José Raimundo Vergolino e eu escrevemos artigo com o título acima (menos o “E agora, José?”). Quatro anos depois – e, outra vez, com o País às portas de uma eleição presidencial –, que mais reflexões sobre o mesmo tema poderiam ser feitas? Com certeza, muitas, que só é possível esboçar, nos limites fixados para o presente texto. Divido-o em duas seções: (1) o que foi feito para o desenvolvimento do Nordeste, dentro ou fora das propostas apresentadas há quatro anos? e (2) que novas (ou velhas) ideias parecem pertinentes, hoje? As propostas de 2010 Foram seis as nossas sugestões para o que poderia ter sido a política de desenvolvimento regional, no período 2010-14: (1) a recuperação do investimento público, especialmente, em infraestrutura; (2) o reforço às instituições regionais; (3) o levantamento e divulgação das vantagens competitivas potenciais do Nordeste; (4) o apoio à saúde e educação; (5) o aperfeiçoamento dos programas de transferência de renda; e (6) o fomento à ciência e tecnologia na Região. Em relação a essas propostas, muito pouco foi feito. Em alguns casos, andamos na direção oposta. O investimento em infraestrutura aumentou apenas no discurso. Na realidade, praticamente, todos os grandes projetos (as ferrovias Oeste-Leste e Transnordestina, a chamada “Transposição do São Francisco”, a duplicação da BR 101) per-

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manecem em obras, quando já deveriam ter sido inaugurados há três, quatro anos. As instituições regionais, contaminadas por indicações meramente políticas de seus dirigentes, estão hoje em pior estado do que em 2010. A Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) é o exemplo máximo, mas não o único. O Banco do Nordeste, de uma maneira incomum em sua história, tem sido sacudido por escândalos. O DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) é, como tem sido, um morto-vivo. Em um mundo no qual parecia possível obter ganhos rápidos de renda e emprego com base em mera expansão dos gastos públicos, ninguém pensou em “vantagens competitivas”. Consequentemente, o Nordeste se tornou, por larga margem, o líder nacional do Bolsa Família, Bolsa Estiagem, aposentadorias rurais... E só. Os programas de transferência de renda se consolidaram como fábricas de votos, e nada mais do que isso. Transformá-los em políticas de desenvolvimento regional – por exemplo, acoplando-lhes estratégias de capacitação dos trabalhadores ou de expansão de atividades produtivas – jamais esteve em pauta. Na contramão dessa realidade, o Prouni (Programa Universidade para Todos), o “Ciência Sem Fronteiras” e o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), nenhum dos quais é um programa “regional”, vêm dando apoio à ciência, tecnologia e educação no Nordeste, embora sua efetividade jamais tenha sido submetida a uma avaliação mais criteriosa. Paradoxalmente, fora das propostas resenhadas acima e,


Fernando Donasci/Folhapress

com especial agora, José?

Os programas de transferência de renda se consolidaram como fábricas de votos, e nada mais do que isso.

mesmo, dos objetivos explícitos do governo federal, muita coisa aconteceu no Nordeste. Políticas como o aumento geral do gasto público, a intensificação das transferências de renda, a elevação do salário mínimo, a facilitação do crédito ao consumidor, tiveram impactos positivos nesta região. A grande questão é saber se tudo isso poderá ser mantido nos próximos anos. A fragilidade fiscal a que foi levado o País levanta sérias dúvidas a respeito. Novas (velhas) ideias A velha ideia de que recuperar o investimento em infraestrutura constitui necessidade fundamental ao desenvolvimento do Nordeste continua válida, pois nenhum progresso real foi alcançado, neste ponto. Não apenas o governo falhou em realizar diretamente os investimentos, como também foi incapaz de criar mecanismos regulatórios que atraíssem capitais privados para financiar os projetos relevantes. É, claramente, prioritário terminar as obras de infraestrutu-

ra já em construção e pô-las a operar. Dez anos atrás, discutir sobre a aplicação de dinheiro público em obras como as ferrovias e a transposição fazia sentido; hoje, já não faz. Deixar as obras inacabadas representa o pior dos desperdícios. A tarefa importante, daqui para frente, será criar mecanismos que permitam à região extrair o máximo retorno dos empreendimentos já em construção. Também em educação, ciência e tecnologia, as necessidades crescem muito à frente das realizações. Programas como o Prouni e o Pronatec têm beneficiado a região, sobretudo, pelos seus efeitos de criação de renda nos locais em que eles operam. No longo prazo, entretanto, o efeito permanente do Prouni virá (ou não virá) pelo aumento da qualificação e da produtividade da força de trabalho regional. Dada a configuração atual do programa, entretanto, não está garantido que tal efeito exista ou venha a existir. Em síntese: quatro anos depois de 2010, tudo ainda está por fazer na montagem e operação de uma efetiva política regional de desenvolvimento para o Nordeste. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Segurança pública: prioridade nacional Patricia Cruz/Luz

José Vicente da Silva Filho

Ex-secretário nacional de Segurança Pública (2002), coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, e mestre em Psicologia Social pela USP, foi consultor do Banco Mundial.

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s reflexões e recomendações que preparamos em 2010 baseavam–se num quadro de informações após dois mandatos do governo Lula. Apesar dos avanços sociais e econômicos então registrados, a dura realidade da violência não arrefeceu, expondo a necessidade de politicas e programas mais eficientes no setor da segurança pública. Durante a campanha eleitoral de 2010 não havia propostas consistentes dos candidatos José Serra e Dilma Rousseff, com vagas menções ao tema. Ao assumir o governo, a presidente Dilma não contemplou a segurança pública com qualquer prioridade em sua agenda política ou administrativa. O relatório do Tribunal de Contas da União de 23 de abril de 2014 é enfático ao mencionar no ítem 40: “Vale ressaltar a inexistência de Política Nacional de Segurança Pública formalizada, ou seja, não há documento ou normativo que estabeleça princípios, diretrizes, objetivos, metas e estratégias, a exemplo da Política Nacional de Defesa”. O Ministério da Justiça, por meio de sua Secretaria Nacional de Segurança Pública, divulgou que a política do governo federal estava sendo executada por quatro eixos estruturantes, desde o final de 2011, a saber: 1) “Crack, é possível vencer”, para articular ações da união, estados e municípios no combate ao cra ck; 2) “Sistema nacional de informações de Segurança Pública, prisionais e sobre drogas”, para promover a integração nacional de informações; 3) “Programa Brasil mais seguro”, pacto para a redução de crimes violentos, através de enfrentamento da impunidade, controle de armas e combate a grupos de extermínio e organizações criminosas; 4) “Estratégia Nacional de Segurança nas Fronteiras (Enafron)”,

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para garantir a presença permanente das instituições policiais nas fronteiras. Como se percebe, há um conjunto de programas mal formulados e sem estrutura de princípios de política ou de estratégia para o setor. Em nenhum desses programas o governo conseguiu demonstrar resultados significativos que pudessem impactar a segurança, como é exemplo marcante o frustrado esforço do programa “Brasil mais seguro”, executado em Alagoas, onde piorou sua condição de Estado mais violento do País. A falta de prioridade na política do governo para o setor, como constatou o próprio TCU, pode ser ressaltada ainda pela retração dos investimentos nele aplicados, com execução de apenas 35% do orçamento federal para a área da segurança pública nos três primeiros anos do governo, e liberação de apenas 11% dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional, agravando as condições da superlotação dos presídios brasileiros. Os resultados foram dramaticamente negativos. Segundo levantamento da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, com dados do Ministério da Saúde, a taxa de homicídios em 2012 foi a maior dos últimos 32 anos, totalizando 56.337 registros, correspondendo a uma taxa de 29 mortos por 100 mil habitantes (1). Pelos estudos do IPEA sobre dados de mortalidade considerados de causa indeterminada, essa taxa foi 18,65% maior, ou seja, 34,4 mortes por 100 mil habitantes; se excluirmos os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, essa taxa se aproximaria dos 40 mortos por 100 mil. Os dados sobre a mortalidade no trânsito também são aterradores, segundo pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, com


Apu Gomes/Folha Imagem

dados obtidos do DPVAT em 2012 (seguro obrigatório de acidentes de trânsito), com o levantamento de 60.752 mortes e registro de 352.495 casos de invalidez permanente, o maior registro desse tipo no mundo (2). A gravidade dos impactos da violência na população em geral foi medida por extensa pesquisa realizada pelo DataFolha, com apoio técnico do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) da UFMG, ouvindo 78 mil pessoas em 2011 e 2012 em 346 cidades com mais de 15 mil habitantes: 78% evitam sair de casa com objetos de valor; 64% evitam sair de casa à noite ou chegar tarde; 43,9% temem ser assaltados; 21% da população sofreram algum tipo de crime nos últimos 12 meses anteriores à

pesquisa; e 33,2% da população temem ser vítimas de extorsão ou violência policial. Entendo que as dez propostas que apresentamos há quatro anos permanecem tão válidas como na ocasião em que foram formuladas. Todo governo procura estabelecer suas visão e opções estratégicas para cada setor, mas o sucesso na segurança, talvez mais que qualquer outro, deve estar condicionado a uma premissa básica: a prioridade. Se dispuser de alta capacidade de liderança e negociação diante de todos os segmentos políticos envolvidos aumentará substancialmente as chances de mudanças que a sociedade espera nesse setor tão sensível quanto custoso ao País – 5,09% do PIB, segundo o IPEA (3).

Há um conjunto de programas mal formulados e sem estrutura de princípios de política ou de estratégia.

(1) Mapa da Violência 2014, Flacso Brasil, Rio de Janeiro, 2014 (2) Dados publicados na revista Veja nº 2333 de 07/7/2013 (3)Cerqueira, D. (2007). Análise dos custos e consequências da violência no Brasil. Brasília: IPEA 2007

(texto para discussão nº 1284) JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Lalo de Almeida/Folhapress

No que concerne à Segurança Nacional, em sua concepção não houve avanços, uma vez que nada na legislação foi mudado.

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o meu artigo de 2010 foi realçada a necessidade de mudanças, tanto na área da Segurança Nacional, como na do setor de Defesa. Infelizmente, pouco mudou concretamente. É verdade que o governo Dilma Rousseff continuou o financiamento de grandes programas de reaparelhamento das Forças Armadas. Assim, deu continuidade ao antiquíssimo projeto da Marinha de construção do submarino de propulsão nuclear. Houve também investimentos no Sistema Integrado de Monitoramento das Fronteiras (SISFRON), que está sendo desenvolvido pelo Exército, e que vai monitorar nossas fronteiras “secas”. Também foi anunciada a compra do novo veículo terrestre Guarani. Finalmente, em dezembro de 2013, a Presidente definiu o vencedor da concorrência do projeto FX2, de novos caças para a Força Aérea Brasileira (FAB), depois de quatro anos de espera. Estes projetos devem continuar o seu desenvolvimento, mas correm riscos diante de cortes orçamentários e de alongamento de prazos também pelas mais variadas razões. Este ano, o Ministério da Defesa foi o mais atingido pelos cortes, com R$ 11,16 bilhões, equivalentes a 51,1% do valor anunciado, sendo que nos investimentos a restrição foi de R$ 10,3 bilhões, ou 48,2% do total inicialmente divulgado.

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No que concerne à Segurança Nacional, em sua concepção não houve avanços, uma vez que nada na legislação foi mudado. Vale lembrar que na Constituição de 1988 houve a supressão de qualquer referência à Segurança Nacional, e, no seu lugar, estabeleceu-se a Defesa Nacional, criando vários problemas de interpretação e efetivo controle civil sobre os militares. O primeiro exemplo é que a Lei 7.170 de 14 de Dezembro de 1983, a famosa Lei de Segurança Nacional, continua em vigor. Mesmo que alguns juristas afirmem que não pode ser aceita pela Constituição, ela não foi revogada. E houve o caso de um delegado querer prender manifestantes das passeatas de junho de 2013 com base nessa legislação. A ideia de sobreposição da lógica militar à sociedade é resquício da época da Primeira Guerra Mundial, caracterizando a predominância da concepção militar sobre a civil. Isto também se manifesta em legislação recentemente aprovada para a Defesa. Assim, em setembro de 2013 entraram em vigor a Política Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END), e houve a criação do Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN). Nos três casos fica clara a intenção dos seus formuladores, de definir parâmetros de atuação defensiva para toda a sociedade, a fim de que esta esteja pronta


Newton Santos / Hype

Gunther Rudzit

Doutor em Ciência Política pela USP, e mestre em Segurança Nacional pela Georgetown University, EUA. Foi assessor do Ministro da Defesa em 2001-02. É coordenador do curso de Relações Internacionais das Faculdades Integradas Rio Branco.

Segurança e Defesa Nacionais no Brasil para a mobilização nacional frente a uma futura guerra. Na área da Segurança Nacional, e mostrando sua fragilidade, houve também o caso de espionagem denunciado pelo americano Edward Snowden, que revelou que a Presidente e seus assessores mais próximos tiveram suas correspondências eletrônicas interceptadas facilmente, uma vez que usavam e-mail de empresas americanas ou o sistema de SMS das telefônicas nacionais. Nesse contexto, reafirmamos propostas de 2010. Segurança Nacional: (a) A primeira ação do próximo governo deveria ser uma proposta de Emenda Constitucional a fim de modificar o Capítulo II da União, separando a Defesa da Segurança Nacional. (b) Transformação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) em Gabinete de Segurança Nacional (GSN), a quem caberia elaborar a política de Segurança Nacional, como um norteador das outras políticas setoriais, dentre elas a da Defesa. (c) Centralização da direção do setor de Inteligência do governo sob o comando do futuro GSN. É necessário e premente que haja uma coordenação e, principalmente, uma visão civil sobre todas as atividades de Inteligência a fim de assessorar a Presidência da República.

Ministério da Defesa: (a) Também para impor o controle civil sobre a área meios militar, cabe a modificação do Decreto Nº 4.735, de 11 de junho de 2003. Tendo em vista que já há civis com conhecimento necessário e suficiente para a definição das políticas da área de Defesa, faz-se necessário e urgente que nessa lei se modifique o Capítulo V, Das Disposições Gerais, Art. 36, no qual o provimento dos cargos de Secretários (Grupo 0001-A) é restrito a militares. Não se pode ter o efetivo controle civil se somente eles tiverem a autoridade e o controle na elaboração das políticas de Defesa. (b) A fim de que haja, real e efetivamente, um planejamento para ação conjunta entre as Forças Armadas brasileiras é necessário hierarquia clara e bem definida nesse processo. Assim, sem fazer com que o Estado Maior de Defesa (EMD) tenha precedência sobre os Comandantes das Forças, não se conseguirá transformar as Forças Armadas para operar conjuntamente, principalmente no que se refere a Comando, Controle e Comunicação. Assim, é necessário mudar a Lei Complementar 97, de 1999, a fim de dar ao EMD a precedência sobre os Comandos das Forças. (c) Criação da Guarda Costeira, subordinada ao Ministro da Defesa, para aumentar a capacidade de patrulhamento e controle das águas territoriais frente a delitos comuns, como no caso do contrabando. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Habitação, mo saneamento nos Divulgação

Vladimir Fernandes Maciel Economista pela FEAUSP, mestre em Economia pela FGV-SP e doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-SP (com passagem pelo Massachusetts Institute of Technology – MIT).

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m 2010 apresentei um diagnóstico dessas três questões e recomendações de políticas públicas. Este artigo mostra avanços em algumas delas e estagnação em outras. Também aponta o que está por fazer. A grande dificuldade é que os investimentos necessitam ser bem planejados, exigem grandes recursos, o tempo de execução é demorado e a maturação dos projetos é no longo prazo. Isto exige um compromisso de Estado e não de governo, pois o calendário eleitoral impõe a ótica de curto prazo. Em 2010 o diagnóstico foi que o País estava numa transição entre o antigo modelo de políticas urbanas e novas alternativas. Havia um vácuo deixado pelo velho modelo criado durante o regime militar (muito federal e com financiamento altamente concentrado nos recursos do FGTS). Atrair recursos privados e ter uma política clara de subsídios eram medidas consideradas fundamentais. Então recomendamos: (1) compatibilizar e integrar os programas e as ações dos três setores; (2) simplificar e focar os programas existentes; (3) articular os programas e as ações entre as diferentes esferas de governo; (4) priorizar o uso de recursos públicos para subsidiar programas destinados à baixa renda; (5) modernizar mecanismos de gestão e de atração de recursos privados para os investimentos de longo prazo; (6) prestar contas dos recursos públicos utilizados e avaliar resultados alcançados. Nos últimos quatro anos, a área de habitação foi a de resultados mais expressivos. Com o “Minha Casa Minha Vida” (MCMV), recursos federais de fundos (FGTS e FAT) e do Orçamento Geral da União foram reunidos e organizados para ampliar a produção habitacional. A descentralização do MCMV estimulou participação de empreendedores privados e elevado número de habitações. Na primeira fase (20092011) os principais problemas foram: a maior parte destinava-se a famílias com renda acima de R$ 1,6 mil e o valor máximo de cada habita-

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ção dificultava a produção em grandes centros urbanos (em que o preço da terra é mais elevado). Esses problemas foram aliviados na segunda fase (2012-2014), mais focada na baixa renda (com maior subsidio da União) e o valor máximo nos grandes centros foi para R$ 190 mil. Hoje se critica “superoferta” em municípios com menores necessidades, “suboferta” onde essas necessidades são maiores e que boa parte do modelo repete a “Cidade de Deus” carioca: arquitetura massificada, localização periférica, baixa acessibilidade aos locais de emprego e de entretenimento.. O saneamento ambiental, apesar do Plano Nacional de Saneamento Básico, carece de mais investimentos e de um tratamento regional e não local. Para água e esgoto, municípios devem apresentar seus planos. Mas, 34 dos 100 maiores municípios não os têm. Economias de escala e gestão por bacias são desestimuladas, pois se incentiva o “cada um por si”. Resultado: os indicadores de cobertura das redes de água e de esgoto evoluíram pouco. Nos resíduos sólidos, 90% dos municípios brasileiros despejam seus resíduos em lixões e não em aterros sanitários ou incineradores. Os municípios também devem apresentar seus planos de manejo, mas muitos não têm capacidade técnica, nem recursos para elaboração e, muito menos, capacidade de gestão, tornando a política inócua. A mobilidade urbana avançou menos do que esperado. Os incentivos federais foram de crédito para comprar mais carros com menos impostos e rodar bastante com gasolina “su bs i di ad a ”, agravando o problema dos congestionamentos urbanos. E mais: apenas 26% das obras de mobilidade urbana do PAC 2 saíram do papel. Para funding das obras de infraestrutura, passou-se a dispor de um novo instrumento desde 2013: as debêntures de infraestrutura emitidas por Sociedades de Propósitos Específicos (SPE), com incentivos fiscais aos aplicadores. Embora, segundo a CETIP, mais de R$


bilidade urbana e últimos quatro anos L.C. Leite/AE

10 bilhões referentes a esses papéis estejam circulando no mercado, o volume foi aquém do que se esperava. Quanto ao que precisa ser feito, as palavras são efetividade e eficiência. O governo federal não pode abrir mão da liderança no processo. As recomendações continuam as mesmas de quatro anos atrás, porém ressaltamos: (1) é preciso lidar seriamente com as questões regionais e metropolitanas que envolvem os setores aqui mencionados; (2) há que fazer grande esforço e compromissos institucionais para recuperar a credibilidade dos investidores

privados para novos aportes de recursos; (3) a capacitação técnica dos entes federativos deve ser considerada, principalmente na elaboração de projetos; (4) os recursos aplicados e os resultados atingidos devem ser publicamente monitorados e avaliados para evitar desvios e vicissitudes de nosso sistema político-institucional; (5) as ações das três áreas precisam ser coerentemente propostas dentro da mesma concepção de “cidades com qualidade de vida” – o governo federal não pode mais tomar decisões incoerentes e contraditórias à essa concepção, como faz há anos.

Nos últimos quatro anos, a área de habitação foi a que obteve resultados mais expressivos.

JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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É

impossível negar que nos últimos anos o Setor Elétrico brasileiro continuou como fonte de inquietação ao desenvolvimento do País. É injusto não reconhecer importantes conquistas, mas é covardia nos refutarmos a uma análise que possa conduzir a propostas para um futuro mais auspicioso. Imbuídos desse espírito, revisitamos nosso artigo de 2010. Embora suas propostas continuem válidas, usaremos esta ocasião para analisar nova questão que surgiu nos últimos anos. Logramos intensificar a expansão da oferta de energia a significativos segmentos da população, ampliamos as interconexões das várias regiões e a diversificação da matriz elétrica brasileira. Mas tais feitos não são suficientes para garantir um desenvolvimento sustentável do setor no curto, médio e longo prazos. Nossa atenção focará com especial atenção os mercados de energia. Nos países onde funcionam bem, as empresas, que necessitam do insumo energético podem comprá-lo para o mês, a semana, o dia e até a hora seguinte. Conseguem vender com facilidade suas sobras de energia elétrica. Não se espera nem se exige que as indústrias eletrointensivas se verticalizem para prover a eletricidade que consomem. Podem até fazê-lo, mas não constrangidas. O capital flui para a produção de energia não apenas porque vê uma demanda a ser preenchida, mas

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Fernando Donasci/Folhapres

Energia Elétrica: Reflexões para uma Reforma Setorial

porque percebe que há previsibilidade das regras que irão reger os retornos futuros desse capital, o que depende muito dos preços de mercado. Em contraste, o sistema de precificação do setor elétrico vigente no Brasil está longe de captar o dinamismo da realidade e causa graves distorções. Nele cabe à maior parte dos geradores de energia escolher entre vendê-la no Mercado Livre ou no Mercado Regulado. Procurando maximizar resultados, arbitram a venda entre esses dois mercados. Acabam, assim, tendo o incentivo e a prerrogativa de apertar mais ainda os mercados nos momentos em que estão pressionados pela baixa hidrologia. Apesar de essa prerrogativa ter sido exercida, com o que alguns leilões fracassaram nos últimos anos, várias indústrias eletrointensivas mantiveram-se compradoras no Mercado Livre. Assim optaram não porque se recusassem a contribuir para a expansão do sistema, fugindo dos contratos mais longos no Mercado Regulado. Sua decisão orientou-se pela maior imprevisibilidade de suas necessidades, a qual recomenda contratos mais curtos, quando comparadas às estimativas mais previsíveis das distribuidoras, que buscam mais o Mercado Regulado com mais tranquilidade. As indústrias eletrointensivas também optaram por essa estratégia por reconhecerem o simples e real fato de que um sistema energético, especialmente um com forte apoio hídri-


Houve avanços na universalização do atendimento.

Virginia Parente

Divulgação

Economista pela Universidade de Brasília, pós-doutora em energia pela Universidade de São Paulo e professora do Programa de PósGraduação em Energia, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da mesma universidade.

co, cresce em degraus, tendendo à sobreoferta. Assim, participar do Mercado Livre é poder usufruir de preços que estarão relativamente mais baixos na maior parte do tempo, do que os valores na média encontrados no Mercado Regulado. A saída é reconhecer que os consumidores não são todos iguais. Alguns precisam de uma energia menos interruptível Alguns preferem a segurança de estar embaixo do guarda-chuva de alguma distribuidora mais atuante no Mercado Regulado. Outros toleram correr mais riscos, e podem administrar melhor tais volatilidades, desde que esses riscos continuem randômicos como as chuvas e não como o resultado de um sistema computacional centralizado ou mesmo como resultado da intervenção do planejador central. Modernizar os Mercados Livre e Regulado é tarefa possível e necessária, mas complexa. E a saída não é apertar ou fazer desaparecer o Mercado Livre. Entre muitas frentes pode-se recorrer a leilões “mistos”, com participantes dos agentes em ambos os mercados, em que os contratos poderiam ser “fatiados” numa tranche de comercialização nos primeiros anos, e outra referente aos demais anos. Por exemplo, os primeiros 5 anos disputados num leilão que interessaria mais aos compradores do Mercado Livre. É de se esperar que eles se disponham a pagar mais por esses contratos iniciais, especialmente em épocas de

escassez. Em seguida, seria possível concatenar um segundo leilão dos anos sexto até o ano final da concessão de geração, voltado para satisfazer predominantemente as necessidades de carga das distribuidoras. Estas poderiam até pagar menos por esses contratos, sem prejudicar os geradores que teriam seu fluxo de caixa resultante, cujo valor final seria o somatório de contratos vendidos aos preços dos dois leilões. Assim, tal modelagem também poderia ser do interesse do investidor na infraestrutura energética e daqueles que tivessem energia disponível para venda. Em resumo, entre 2010 e 2014 avançamos de forma importante na universalização do atendimento, na quantidade ofertada e na diversificação de fontes. Diferentemente de 2001, o problema que se intensificou recentemente não tem raízes na falta de água, de interconexões, ou de máquinas geradoras. É um problema econômico, diagnosticado como uma modelagem que não responde mais às necessidades atuais, uma vez que não captura corretamente os sinais dos preços nem da interação entre oferta e demanda por energia elétrica. Enfrentar o desafio de aprimorar e reconstruir os mercados de energia, seja por leilões “mistos” e “fatiados”, dentre outros mecanismos, constitui-se no cerne da agenda para a evolução da política energética do País. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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A diplomacia de Dilma: uma reconstrução inacabada e imperfeita

Patrícia Cruz / LUZ

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Rubens Ricupero

Formado em Direito pela Faculdade de Direito da USP, seguiu a carreira diplomática, foi embaixador do Brasil nos EUA, na Itália e junto à ONU e ao Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT) em Genebra. Foi ministro da Fazenda, cabendo-lhe o lançamento do Plano Real, e ministro do Meio Ambiente e da Amazônia.

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omparada às expectativas de mudança, a diplomacia de Dilma deixa a impressão de obra de reconstrução parcial e frustrante: retificou alguns aspectos, mas no essencial, não soube aproveitar as oportunidades para alcançar resultados concretos e duradouros. Embora Dilma não pudesse se dissociar da diplomacia de Lula de modo explícito, parecia claro, no início do governo, que ela buscaria corrigir o que já em 2010 se tornara alvo de crítica geral: o excesso de protagonismo presidencial, a diplomacia de gestos publicitários e vazios de substância, as iniciativas temerárias em áreas distantes das prioridades brasileiras, o silêncio cúmplice em relação a regimes notoriamente ditatoriais e violadores de direitos humanos, a inspiração ideológica e sectária da política externa. Adivinhava-se também a intenção de consertar os estragos no relacionamento com os Estados Unidos e interpretava-se nesse sentido a escolha como novo chanceler de Antonio Patriota, então embaixador em Washington. Dando balanço no quadriênio, reconheça-se que algo foi feito na direção certa. Parte disso não resultou de escolha, mas foi imposição da própria mudança. O exemplo mais claro decorre da retirada de cena de Lula, cujo carisma não tinha como transferir-se à sucessora. Desapareceu o protagonismo, o personalismo exagerado, a diplomacia centrada na figura e na biografia do presidente. O estilo diplomático tor-

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nou-se em geral mais sóbrio. Outra modificação bem-vinda consistiu no retorno (relativo) à defesa dos direitos humanos e no distanciamento de regimes como o do Irã. Esboçaram-se passos positivos para renovar o relacionamento com os EUA na base, entre outras, do programa Ciência Sem Fronteiras e colaboração em ciência e tecnologia. A aproximação com Washington, que deveria constituir o carro-chefe da nova diplomacia e culminar com a visita de Estado da presidente, foi vítima da espionagem da National Security Agency. Não havia condições políticas para a visita e nesse caso não se pode censurar a decisão de suspender o esforço até que se restabeleçam condições mais propícias. A frustração do elemento mais importante da reconstrução diplomática projeta a imagem de projeto inacabado. Dos dois elementos da fórmula de “destruição criativa” de Schumpeter, fica a sensação de que se destruiu bastante, mas não se criou o suficiente. Da obra de demolição, resta ainda parte considerável, em especial na ideologização da política sul-americana. Não só sobrou o entulho do eixo bolivariano; acrescentaram-se monstrengos novos: a suspensão arbitrária do Paraguai do MERCOSUL como pretexto para precipitar o ingresso da Venezuela; o falso “asilo” ao senador boliviano Roger Pinto. O que faltou edificar, porém, supera em muito o que ficou sem demolir. Esperava-se


Timothy A. Clary/AFP

que Dilma, com fama de tecnocrata competente e objetiva, imprimisse pragmatismo a uma diplomacia visando resultados tangíveis. Desse ponto de vista, infelizmente o panorama deixa a desejar. Nada se fez, nem mesmo em termos de tentativa, para renovar o MERCOSUL, abalado por crise de credibilidade terminal. O relacionamento comercial com o principal parceiro dentro do bloco, a Argentina, se não piorou, tampouco apresentou qualquer melhora. Em lugar de esboçar um gesto decisivo em direção a países como o México e seus companheiros da Aliança do Pacífico – a Colômbia, o Chile, o Peru – Dilma impôs aos mexicanos uma limitação da cota automobilística similar à que os argentinos nos obrigam a engolir! É óbvio que se queremos nos integrar às cadeias mundiais de produção, temos de fazê-lo a partir de países que dispõem já de acordos de acesso aos mercados dinâmicos dos EUA e países avançados. Nesse particular, a diplomacia sofre de paralisia e falta de imaginação criativa. Não tem outro horizonte além de uma imperfeita união aduaneira que nada fazemos para aperfeiçoar

e não nos dá acesso desimpedido nem aos parceiros, quanto mais a terceiros. Somente no apagar das luzes do governo, se decidiu a retomada de negociações, iniciadas há mais de 10 anos, para um acordo de livre comércio com a União Europeia. Apesar de anunciada várias vezes, nem se conseguiu definir até agora comum posição negociadora, nem foi possível dar início efetivo às tratativas. É verdade que deixaram de existir as condições econômicas externas e o crescimento interno que haviam criado para o Brasil na era Lula o prestígio ilustrado na famosa capa do “Economist” sobre o Cristo do Corcovado. Parcela da culpa pela destruição da imagem do País cabe ao próprio fracasso da política econômica e à aguda crise de competitividade a que nos conduziu. Para terminar com nota positiva, resta esperar que os BRICS, bloco de companhias às vezes pouco frequentáveis em termos de aventuras militares, se resolvam na reunião de julho em Fortaleza e criar o banco de infraestrutura e o fundo de reservas em estudos. Teríamos afinal algo de pragmático e concreto a comemorar!

Parcela da culpa pela destruição da imagem do País no exterior cabe ao próprio fracasso da política econômica brasileira.

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Fabio Motta/Estadão Conteúdo

Somente alguns poucos aeroportos foram concedidos à gestão da iniciativa privada.

Fundamentos para reformulação da política macroeconômica 66

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osso artigo de 2010 apontou que o Brasil vivia então um “subdesempenho satisfatório”, pois o contentamento popular e a euforia demonstrada e difundida pelo governo federal não condiziam com o frágil status da economia do País segundo vários indicadores apresentados. E argumentava que tal percepção deveria fundamentar a ação política para reverter tal subdesempenho. Propôs-se então uma política macroeconômica em que o esforço fiscal do governo fosse aferido principalmente pelo seu efetivo engajamento em ampliar a poupança e os investimentos públicos, sem aumento da carga tributária. No detalhe, defendeu-se ampliar a poupança nacional e os investimentos públicos e privados como proporção do Produto Interno Bruto (PIB). O desempenho fiscal do governo passaria a ser avaliado também pelo seu déficit nominal e sua dívida. E não pelo enganoso superávit primário, que o alardeado como a “poupança que o governo faz para pagar parte dos juros da dívida”. Ora, o governo não poupa nada, é sempre deficitário, e ao longo dos anos tal superávit veio de um persistente aumento da carga tributária. No governo Dilma, de novo o crescimento do PIB tem sido marcado por taxinhas. As taxas de poupança e investimento relativamente ao PIB também se reduziram, e acendeu-se a luz amarela nas contas externas. Um aspecto positivo foi que o “subdesempenho satisfatório” cedeu espaço à insatisfação e aos protestos que marcaram o País desde junho de 2013. Mas, ao invés de ajustes na direção proposta, a política macroeconômica manteve medidas do período de euforia pré-crise internacional, com essa euforia também se mostrando em 2010. Isto, sem perceber que algumas não mais tinham a mesma eficácia, como a expansão do crédito contida pelo endividamento agravado, e que a ampliação das transferências governamentais em dinheiro (via INSS e outros gastos sociais), havia comprometido seriamente a disponibilidade de recursos para o investimento público. Só em 2012, depois de 10 anos de governos petistas, “caiu a ficha” de que a carência de recursos governamentais tornou indispensáveis as concessões de serviços públicos. Assim, em agosto de 2012 veio ambicioso programa nessa linha, voltado para ferrovias e rodovias, mas que se atrasou e permanece com problemas de implementação, em particular o das ferrovias. Também não avança outro programa voltado para os portos, e só uns poucos aeroportos foram concedidos à gestão privada. Louve-se, entretanto, que o governo tenha

acordado para a realidade de uma infraestrutura muito carente de melhorias. Outra iniciativa meritória foi a de reduzir a taxa básica de juros para níveis civilizados, mas tal iniciativa naufragou por má companhia, a de uma política fiscal expansionista que não deu sustentação à redução da Selic. A gestão Dilma também se marca por forte intervencionismo nos mercados, alimentado por sua desconfiança quanto ao setor privado. Daí vieram sérias distorções em prejuízo dos setores de petróleo e gás, de energia elétrica e o sucroenergético. O governo excedeu-se também na chamada contabilidade criativa, como na cobertura de despesas permanentes com receitas transitórias e nas implicações orçamentárias do enorme orçamento paralelo de crédito ao BNDES. Tal criatividade é destrutiva da indispensável confiança dos agentes econômicos nas políticas governamentais. Em retrospecto, comparando-se a situação atual com a de 2010, percebe-se que às circunstâncias externas agora bem menos favoráveis do que no período Lula somou-se uma ainda mais temerária condução da política econômica. Com a piora do cenário externo, os caminhos da política macroeconômica se estreitaram, e não há o que fazer senão buscar um crescimento mais sustentado pelo esforço interno, para o que nossas propostas de 2010 continuam atuais. Em sua essência, enfatizam o aumento da poupança e do investimento como proporção do PIB a partir principalmente da arregimentação de forças internas, que poderão ser desencadeadas com a adequada reorientação da política macroeconômica. Mas, a carência de recursos para investimentos públicos é enorme. Assim, estendendo o que foi proposto em 2010, as concessões precisam ser fortemente ampliadas, e adotadas inclusive na exploração do Pré-sal. Neste caso, a adoção do modelo de partilha com monopólio operacional da Petrobras exigiu desta uma capacidade que não está em condições de oferecer a médio prazo. E o longo prazo não convém à urgente necessidade que o país tem dos recursos do Pré-sal. Além de concessões, cabem também mais parcerias público-privadas, e forte empenho no aprimoramento da infraestrutura de transporte e logística do País, onde as muitas carências se agravaram. E, ainda, na expansão da construção civil, dadas a enorme dimensão da cadeia produtiva do setor e sua capacidade de transformar poupança em investimento, já que o setor é propício a financiamentos buscados pelos próprios interessados em adquirir imóveis e desenvolver obras de infraestrutura, entre outros casos.

Patrícia Cruz/LUZ

Roberto Macedo

Economista (UFMG, USP e Harvard). Na USP, foi professor titular, chefe do departamento de Economia e diretor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. É coordenador do Conselho de Economia da ACSP.

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Mercado de crédito e o novo governo: dez propostas para reduzir o spread bancário Newton Santos / Hype

Ulisses Ruiz de Gamboa

Economista da Associação Comercial de São Paulo e professor da FIA/USP e FIPE/USP; Doutor em Economia pela FEA/USP; Pós-Doutorando em História Econômica, University of California at Los Angeles (UCLA); ex-Consultor do Banco Mundial. Visiting Scholar da University of California at Los Angeles (UCLA).

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assados quase quatro anos desde a publicação do meu artigo anterior de mesmo título, um período também marcado pela infrutífera tentativa do governo Dilma de reduzir o custo do crédito, o País continua apresentando um dos maiores níveis mundiais, tanto de taxas de juros reais, como dos spreads praticados. Cabe analisar, portanto, se os fatores explicativos mencionados em 2010 ainda se encontram atuantes, e, por conseguinte, se as propostas efetuadas naquela oportunidade mantêm sua atualidade. Com relação aos fatores de ordem microeconômica, em primeiro lugar, encontram-se os custos administrativos do sistema bancário. De acordo com o banco central dos bancos centrais, o Bank for International Settlements – BIS (2014) (1), o sistema bancário brasileiro é o que apresenta o maior custo operacional do mundo, o que, com muita probabilidade, deve incidir no nível dos juros cobrados. Por sua vez, a inadimplência continua sendo um dos principais determinantes do spread, explicando, segundo estudo do Banco Central (2013) (2), cerca de 33,6% do nível observado em 2012. A aprovação do Cadastro Positivo foi um passo importan-

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O autor agradece comentários e sugestões de Marcel Solimeo e Roberto Macedo, responsabilizando-se por qualquer erro ou omissão cometidos.

te para reduzir o risco de inadimplência, dado que a consolidação do endividamento dos tomadores de crédito contribui para evitar alavancagens excessivas. Na prática, contudo, a exigência de autorização prévia por parte do devedor, para que ocorra essa consolidação, posterga os efeitos benéficos do cadastro sobre o risco de inadimplência e, portanto, sobre os juros cobrados. No que tange à recuperação judicial dos créditos inadimplentes, não houve nenhum avanço significativo, colocando o Brasil no 109º lugar no quesito facilidade de obtenção do crédito, de acordo com os dados do relatório “Doing Business” (2014 (3). Em relação aos custos do direcionamento dos recursos, que levam os bancos a aumentar os juros do crédito livre para compensar as perdas com o crédito subsidiado (direcionado), houve apreciável aumento da participação desse tipo de crédito no total das operações, que passou de 36,3% em 2009 para 55,6% em 2013, de acordo com dados do Banco Central. Outro elemento incluído nesses custos se refere aos depósitos compulsórios, onde o Brasil continua apresentando um dos maiores níveis de reservas obrigatórias do mundo (45% para depósitos à vista e 20% para depósitos a prazo), o que reduz a concessão de crédito para


Eduardo Knapp/Folha Imagem

A taxa SELIC continua sendo o piso para o custo de funding do sistema financeiro.

o setor privado, contribuindo para aumentar as taxas de juros. Os encargos fiscais cobrados ao setor bancário aumentaram sua participação na explicação do spread entre 2009 e 2012, passando de 21,5% para 22,86%, de acordo com o Banco Central (Op. Cit.) (4), enquanto a margem líquida de lucro por parte dos bancos se incrementou de 32,3% para 34,3% durante o mesmo período, segundo a mesma fonte. Por último, com relação aos determinantes macroeconômicos do spread bancário, a taxa SELIC continua sendo o piso para o custo de funding do sistema financeiro. A aceleração da inflação desde 2010 terminou por obrigar a autoridade monetária a mantê-la elevada, ampliando os custos de intermediação financeira. Além disso, a política fiscal crescentemente expansionista continua utilizando os depósitos das instituições bancárias junto ao Banco Central, remunerados a essa taxa, como um mercado cativo para a “rolagem” da dívida pública. A pro-

porção desses depósitos em relação aos recursos totais mantidos pelos bancos junto ao Banco Central aumentou de 49,7% em janeiro de 2009 para 84,2% em maio de 2014, de acordo com dados do Banco Central. A situação dos “esqueletos” fiscais não reconhecidos, tais como o valor atualizado das dívidas do Decreto-Lei 6019/43 (5) e os precatórios, tampouco mostrou melhoria satisfatória, contribuindo, assim, para a manutenção de maior risco fiscal e, portanto, maiores taxas de juros dos títulos públicos, aí incluída a taxa SELIC. Como conclusão, pode-se dizer que os mesmos fatores que explicavam o elevado nível do spread bancário em 2010 seguem atuantes. Portanto, continuam válidas nossas recomendações de política, voltadas para reduzi-lo, com exceção da criação do Cadastro Positivo, o qual se encontra em processo de maturação, até que seja possível contabilizar seus efeitos positivos sobre a inadimplência e os juros cobrados.

(1) Bank for International Settlements, 84th Annual Report, 2014, June. (2) Banco Central: “Evolução Recente do Mercado de Crédito e Decomposição do Spread” in Relatório de

Economia Bancária e Crédito 2012, 2013, novembro. (3) Doing Business, International Finance Corporation e World Bank, 2014. (4) Ver nota 2. (5) Títulos de dívidas emitidos pelas três esferas governamentais durante o período 1883-1931, federalizados em 1943 durante o Governo Vargas, de cujo saldo a pagar o Tesouro Nacional somente reconhece o valor de face! JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Considerações sobre os rumos do sistema tributário Leonardo Rodrigues / e-SIM

Permanecem os impostos sobre o consumo, recolhidos de forma quase irrestrita em iníquo mecanismo de substituição tributária.

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necessidade de reforma do sistema tributário brasileiro já encontrava consenso amplo em 2010, quando sugeri medidas que em muito poderiam contribuir para o aprimoramento da tributação no Brasil. Se o consenso pela reforma vinha acompanhado por marcado dissenso quanto ao seu conteúdo, apontaram-se, na ocasião, as dificuldades para a reformulação do sistema tributário brasileiro. Assim, enquanto a esfera particular esperava redução em sua carga tributária, os crescentes gastos estatais demonstravam inexistir qualquer disposição para tanto por parte da esfera pública, para quem a reforma apenas seria discutível caso restasse assegurada a sua arrecadação. Ante a improbabilidade da reforma fiscal, parecia mais factível considerar medidas pontuais que, embora não trouxessem emendas à Constituição, seriam igualmente salutares para o bom ajustamento da tributação no Brasil, notadamente no que dizia respeito ao ICMS e a tributação do consumo, ao PIS/Cofins, aos preços de transferência e aos investimentos brasileiros no exterior. Passados quatro anos, cenário e abordagem ali vislumbrados permanecem. De fato, a opção pelo Estado Social de Direito segue inconteste, tornando desesperançada a expectativa de redução de carga tributária. Tampouco há indício de que os entes federativos estejam preparados para abrir mão de sua arrecadação em prol de acerto estrutural do sistema tributário. Exemplo contundente é o do ICMS. Instigado pela posição firme do STF quanto à inconstitucionalidade da “guerra fiscal”, o Senado Federal fez uso louvável de sua atribuição constitucional ao editar a Resolução 13/12, reduzindo a 4% a alíquota interestadual do imposto no caso de produtos importados. Não obteve igual sucesso, contudo, ao pretender estender o regime a toda e qualquer transação entre Estados, que insistem na infeliz resistência à adoção do princípio de destino. Solução, vale lembrar, eficiente e que sequer exigiria alteração constitucional para a sua implantação. Em verdade, o caso do ICMS é apenas uma das mazelas de que sofre a tributação do consumo no Brasil. Se a Lei 12.741/12 veio a finalmente fazer destacar o valor dos tributos na nota fiscal ao consumidor, a esperada conscientização ainda não levou à rejeição da acentuada regressividade do sistema tributário brasileiro. Permanecem os impostos sobre o consumo, recolhidos de forma quase irrestrita em iníquo mecanismo de substituição tributária, a ignorar o princípio da seletividade que deve orientá-los, tributando-se ou isentando-se produtos indis-

criminadamente, sejam estes essenciais ou supérfluos. Impõe-se menor carga tributária àqueles de maior poder relativo, ao mesmo passo em que se abre espaço a grupos de interesse, atuando em portas fechadas. A par da regressividade, as contribuições PIS/Cofins ainda são triste evidência da complexidade irracional do sistema tributário. Fundada em uma série de exceções e privilégios que não comportam qualquer sistematização, o emaranhado da legislação do PIS/Cofins acirra litigiosidade que nada traz além de custos e insegurança a fisco e contribuintes. Há que se reconhecer o desastre do sistema não cumulativo, pugnando-se pela sua reformulação, por vezes anunciada pelo governo, mas nunca levada a efeito. Em matéria de preços de transferência, editouse a Lei 12.715/12 na esperança de resolver divergências antigas. Embora em algumas hipóteses a solução reste duvidosa –exemplo das despesas de frete e seguros no método PRL (Preço de Revenda menos Lucro) –, noutras a escolha do legislador ficou clara – caso da proporcionalização no cálculo do PRL, até então fruto de interpretação fiscal desamparada de base legal. De toda forma, confirmaram-se as margens predeterminadas de lucro. Espera-se esteja a administração preparada para honrar este relevante compromisso entre o princípio arm’s length e a praticabilidade, admitindo a alteração daquelas margens mediante prova de sua inadequação pelo contribuinte. Ainda no campo da tributação internacional, assistiu-se à conclusão de julgamento que há muito se arrastava no STF: a tributação dos lucros de subsidiárias de empresas brasileiras no exterior. Declarada a inconstitucionalidade da polêmica Medida Provisória 2.158-35/01 para coligadas em jurisdição sem tributação favorecida, assim como sua constitucionalidade para controladas em paraísos fiscais, logo veio a Lei 12.973/14 baixar novo regime ajustado ao entendimento do Tribunal. Fruto de intensa negociação entre governo, parlamento e contribuintes, reconheça-se que o novel regramento comporta a consolidação de resultados, além de conceder prazo de oito anos para o recolhimento do tributo. Peca, entretanto, ao manter a tributação (automática) do lucro estrangeiro pelo imposto brasileiro, em nítido descompasso com a experiência europeia, onde multinacionais recolhem imposto apenas no país em que instaladas. Se o comprometimento à competitividade das empresas brasileiras é evidente, o contencioso que se antevê fará prova da oportunidade que se perdeu para editar legislação condizente com os ditames da Constituição e sintonizada com a realidade dos negócios transnacionais.

Patrícia Cruz /LUZ

Luís Eduardo Schoueri

Professor titular de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo.

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Cesar Diniz / Hype

Inserção de Produtores de Pequeno Porte em Mercados Externos

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o trabalho original de 2010, destacou-se a importância da inserção competitiva de produtores de micro, pequeno e médio portes em mercados externos para o crescimento sustentado das exportações brasileiras. À medida que se amplia a base de exportadores, abrem-se perspectivas de diversificação tanto da pauta de exportações quanto dos países de destino. Condições adversas em alguns mercados são compensadas por mais promissoras em outros, assegurando-se, assim, o tão almejado círculo virtuoso das vendas externas. Em 2012, 14,6 mil exportadores (70% do total) foram de micro, pequeno e médio portes, mas diretamente responsáveis por apenas 4% das exportações totais, da ordem de US$ 243 bilhões.

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É fundamental criar condições de ganhos de competitividade aos exportadores.

É fundamental criar condições de ganhos contínuos de competitividade aos exportadores, buscando-se sempre a redução de seus custos e a agregação de valor aos itens exportados, ações equivalentes a um “câmbio adicional” e maior rentabilidade das exportações. Iniciativas nas áreas de inovação e sustentabilidade, a despeito de esforços governamentais, têm produzido resultados ainda modestos em algumas cadeias produtivas, como a do agronegócios. Em tal contexto, ressaltou-se o papel de empresas comerciais importadoras e exportadoras (CIEs) na alavancagem de vendas externas. Atuando em ambas as pontas, elas podem importar insumos e componentes necessários à redução de custos de produção, bem como oferecer canais de distribuição no exterior para a almejada inserção. Contribuem, portanto, para diminuir despesas de acesso a mercados, tais como a prospecção de compradores e a participação em eventos internacionais, bem como a seleção de representantes, agentes ou distribuidores. Foi proposta a criação de uma categoria especial dessas empresas denominada Export Development Company (EDC), que atuaria na prestação de serviços orientados para o mercado e às atividades produtivas, bem como ao gerenciamento de riscos e ao suporte logístico de importações e exportações. Apesar dos esforços da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos – ApexBrasil, de reconhecimento e fortalecimento daquele papel, suas ações ainda não contemplaram a EDC. Ressalte-se, entretanto, a maior articulação da entidade, a partir de 2011, com o Conselho Brasileiro das Empresas Comerciais Importadoras e Exportadoras – CECIEx, instituído pela ACSP, para a consolidação do Projeto Tradings. Entre outros, os trabalhos abrangem a organização, em diversas regiões do País, de eventos de mobilização e sensibilização de produtores e exportadores, denominados EXPORTAR PARA CRESCER, envolvendo encontros de negócios com dirigentes e representantes de CIEs. Essa iniciativa segue o tradicional e exitoso modelo de aproximação desses atores implementado pelo movimento DOBRANDO AS VENDAS EXTERNAS COM AS COMER-

CIAIS EXPORTADORAS, iniciado pela Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo – FACESP, em 2000, posteriormente absorvido pelo Projeto EXPORTA, SÃO PAULO, ora em andamento. Na logística do comércio internacional por via marítima, em especial a que envolve o uso de contêineres, destacou-se, em 2010, a importância da implementação do Projeto PORTO 24 HORAS no complexo portuário santista, fruto de inúmeras análises e discussões promovidas pelo Comitê de Usuários dos Portos e Aeroportos do Estado de São Paulo – COMUS, da ACSP, desde setembro de 2007. Em abril de 2013, a Secretaria Especial de Portos – SEP, da Presidência da República, lançou o Programa PORTO 24 HORAS, em duas etapas, a primeira voltada aos portos de Santos, Rio de Janeiro e Vitória. A segunda contemplou os portos de Suape, Paranaguá, Rio Grande, Itajaí e Fortaleza. O Programa ainda não deslanchou, em virtude, principalmente, da necessidade de redefinição de quadros de pessoal de órgãos anuentes de importação e exportação, tais como a Receita Federal, a ANVISA e a VIGIAGRO, bem como da baixa demanda em horários noturnos e finais de semana. Em Santos, tais dificuldades deverão ser superadas no período 2015/2022, na medida em que se confirmem as previsões de crescimento de fluxos de cargas pelo mesmo porto, em especial em contêineres, tanto na navegação de longo curso quanto na cabotagem, e a atual oferta de serviços logísticos do complexo portuário mantenha-se praticamente inalterada. Nesse cenário, o Projeto PORTO 24 HORAS será naturalmente implementado, pois é uma alternativa de ganhos efetivos de produtividade de instalações logísticas, por meio da redução dos tempos de permanência (dwell times) de cargas em pátios portuários e retroportuários, proporcionando, dessa forma, o aumento da capacidade de terminais. Simultaneamente, haverá a diminuição dos tempos de trânsito de mercadorias importadas e exportadas, bem como dos custos logísticos associados, fortalecendo, assim, a competitividade de importadores e exportadores, em especial os de micro, pequeno e médio portes, objetivo maior de ambos os projetos.

Patrícia Cruz /LUZ

José Cândido Senna Engenheiro Civil e pósgraduado em Engenharia Industrial pela PUC-RJ, economista pela UERJ e Mestre em Administração Pública pela Kennedy School of Government da Harvard University.

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A necessidade de fortalecimento das competências dos estados-membros da federação brasileira

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principal pilar de sustentação do Estado Federal é o exercício autônomo, pelos entes federativos, das competências legislativas e administrativas constitucionalmente distribuídas. Para atingir essa finalidade, é imprescindível a recuperação do exercício de competências legislativas pelos Estados em matérias importantes e adequadas às peculiaridades locais, afastando nosso federalismo de seu tradicional centralismo. Se teoricamente a Constituição de 1988 adotou a clássica repartição de competências federativas, prevendo rol taxativo de competências legislativas para a União e mantendo os poderes remanescentes dos Estados; na prática não se verifica tal equilíbrio, pois é facilmente perceptível o desequilíbrio federativo no tocante à competência legislativa, uma vez que, há a previsão de quase a totalidade das matérias de maior importância para a União (CF, art. 22). A tradicional interpretação política e jurídica que vem sendo dada ao art. 24 do texto constitucional, no sentido de que nas diversas matérias de competência concorrente entre União e Estados, a União pode discipliná-las quase integralmente, acarreta como resultado uma diminuta competência legislativa dos Estados; gerando a excessiva centralização nos poderes legislativos na União, o que caracteriza um grave desequilíbrio. A consagração do reequilíbrio na distribuição das competências federativas é essencial para o maior desenvolvimento demo-

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: Keiny Andrade/AE

Alexandre de Moraes

Professor Doutor e Livre-docente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; advogado e consultor jurídico.

crático e econômico do País, podendo ser realizado em cinco campos complementares: (1) Alterações constitucionais; (2) Real exercício das competências delegadas (parágrafo único, do art. 22 da CF); (3) Efetivo exercício das competências concorrentes (art. 24 da CF) entre União e Estados-membros; (4) Maior atuação perante o Supremo Tribunal Federal no sentido de evolução jurisprudencial que valorize os poderes remanescentes dos Estadosmembros e reequilibre os entes-federativos e (5) Adoção do princípio da subsidiariedade, em prática na União Europeia. No tocante as alterações constitucionais, há a possibilidade de edição de emenda constitucional com a migração de algumas


Dida Sampaio/AE

É facilmente perceptível o desequilíbrio federativo no tocante à competência legislativa. competências definidas atualmente como privativas da União para o rol de competências remanescentes dos Estados e outras para as competências concorrentes entre União e Estados, para que nesses assuntos, as peculiaridades regionais sejam consideradas. Além disso, sem qualquer necessidade de alteração constitucional, o exercício das competências delegadas poderia encontrar um ponto de equilíbrio federativo entre União e Estados, pois o art. 22, p. único do texto constitucional prevê que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo, desde que não gere discriminação entre os Estados. Esse instrumento seria importantíssimo para que cada Estado, atento às suas peculiaridades, pudesse disciplinar pontos específicos das diversas matérias, como por exemplo, relações comerciais, agrárias, trabalhistas, onde há realidades diversas nos Estados. No âmbito da legislação concorrente, a CF estabeleceu a repartição vertical, pois, dentro de um mesmo campo material, reservase um nível superior a União, que deve somente fixar os princípios e normas gerais, deixando-se ao Estado a complementação, com a edição de regras complementares e específicas. Ocorre, entretanto, que os Estados são extremamente tímidos na edição da legislação complementar, aceitando sem qualquer contestação a legislação federal que – em matéria concorrente – acaba por disciplinar tanto os princípios e regras gerais, quanto as normas específicas.

Medida de reflexos imediatos consistiria em atuação perante o STF no sentido de evolução jurisprudencial que valorizasse a competência concorrente dos Estados e, em pouco tempo, seria possível garantir um maior equilíbrio entre os entes-federativos. Por fim, o texto constitucional oferece mecanismos para que, passe a ser adotado no Brasil, com as devidas adaptações, o princípio da subsidiariedade, já em prática na União Europeia. O Conselho Europeu de Birminghan, em dezembro de 1992, reafirmou que as decisões da União Europeia deveriam ser tomadas o mais próximo possível do cidadão, sempre com a finalidade de prestigiar as comunidades regionais, e maneira que suas propostas legislativas analisem se os objetivos da ação proposta podem ser suficientemente realizados pelos Estados, bem como quais serão seus reflexos e efeitos regionais. A ideia aplicada à federação brasileira seria prestigiar a atuação preponderante do ente federativo em sua esfera de competências na proporção de sua maior capacidade para solucionar a matéria de interesse do cidadão que reside em seu território, levando em conta as peculiaridades locais. A maior autonomia estadual para legislar significará um maior controle social e político sobre o centralismo, garantindo maior respeito às autonomias locais, de maneira a preservar suas peculiaridades e auxiliar na diminuição das desigualdades regionais. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Lições e Desafios do Bolsa Família

Uma agenda para frente

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rogramas com transferências condicionais de renda nasceram com o duplo objetivo de combater a pobreza enquanto insuficiência de renda no curto prazo via transferências de renda às famílias pobres e de reduzir a pobreza no longo prazo via condicionalidades que incentivam a acumulação do capital humano de suas futuras gerações. Vistos por muitos como uma política inovadora em combater o ciclo vicioso da pobreza, eles se proliferaram rapidamente por vários países em desenvolvimento. Imaginava-se que com esse esforço seria possível eliminar definitivamente a pobreza em algumas poucas gerações. No Brasil o programa Bolsa Família foi criado em 2003 pelo governo federal como resultado da fusão de outros programas até então existentes, e se expandiu rapidamente desde então. Com mais de uma década de experiências de programas com transferências condicionais de renda, já podemos tirar algumas lições baseadas em evidências empíricas sistematizadas. O Que Dizem As Evidências De fato, o Bolsa Família contribuiu para a redução da pobreza enquanto insuficiência de renda. Por sua amplitude de número de famílias beneficiadas e por estar predominantemente focalizado nas mais pobres, o Bolsa Família cumpre bem o seu objetivo de reduzir ou ao menos mitigar a pobreza no curto prazo. Já as evidências positivas de impactos sobre a acumulação do capital humano nas novas gerações são muito tênues ou de pouca magnitude. Os impactos sobre a educação das crianças e jovens beneficiados são positivos, mas peque-

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L.C.Leite/LUZ

André Portela Souza

Doutor em Economia pela Universidade de Cornell (EUA) e professor da Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (EESP/FGV).

nos. Observam-se pequenas melhorias na frequência à escola e na progressão escolar. Contudo, não se encontram diferenças favoráveis em proficiência. Também não se encontram efeitos favoráveis em indicadores de saúde, como nutrição e vacinação. Por fim, não há evidências robustas de efeitos de segunda ordem sobre algumas dimensões que não são objetivos diretos do programa, mas que podem ser afetadas por ele. Primeiro, os efeitos sobre trabalho infantil são pequenos. Em algumas situações ocorre uma redução do trabalho infantil, e em outras circunstâncias há um aumento da concomitância entre o trabalho infantil e a frequência a escola. Segundo, os efeitos sobre a oferta de trabalho dos adultos existem, mas são pequenos. A redução da oferta de trabalho de trabalho que se observa sistematicamente é a das mães, o que em si não é necessariamente ruim. Terceiro, não se verifica um aumento na fecundidade das mulheres beneficiárias. O Bolsa Família Daqui Para Frente Com base nessas evidências empíricas dos programas sociais e do Bolsa Família, pode-se concluir que o programa tem sido efetivo em focalizar as transferências de renda para as famílias mais pobres. Mas, por outro lado, não tão efetivo em estimular de maneira significativa a acumulação de capital humano das novas gerações. Talvez o maior mérito do programa até agora tenha sido fazer com que as políticas sociais de transferências cheguem aos mais pobres. Criou-se no Brasil uma tecnologia de políticas públicas que os alcançam. O desafio está em aproveitar essa tecnologia para aumentar a eficácia e a eficiência das políticas sociais de modo a


Andrea Felizolla/LUZ

O Bolsa Família já cobre grande parte das famílias pobres e a expansão no número de famílias deve ocorrer apenas marginalmente.

eliminar consistentemente a pobreza no Brasil. Para tanto, a melhor maneira não seria a mera expansão do programa nos moldes atuais. O Bolsa Família já cobre grande parte das famílias pobres e a expansão no número de famílias deve ocorrer apenas marginalmente. Tampouco a expansão deve se dar por aumento do valor da linha de pobreza ou do valor das transferências. Além de aumentar o risco de provocar efeitos não desejados sobre a fecundidade e a oferta de trabalho, a mera expansão desses valores perderia o que o Bolsa Família tem de mais importante, a focalização nos mais pobres. Com efeito, o fato de os valores serem relativamente mais baixos provoca uma auto-seleção ao programa dos verdadeiramente mais pobres. A agenda, na verdade, é aprimorar os desenhos das políticas sociais. O fato de não se observar impactos sobre a acumulação do capital humano das novas gerações não é necessariamente um demérito do programa. Em parte reflete o sucesso de outras políticas como a expansão e melhoria do sistema educacional, a universalização dos programas de vacinação e acesso à saúde etc.. A busca por sinergias e complementaridades dos diversos programas sociais seria o primeiro passo a ser dado. Por exemplo, associar parte do beneficio do Bolsa Família a indicadores de sucesso educacional, por exemplo, o de completar o ensino médio; associar parte do beneficio ao fato de se estar trabalhando servindo como uma política de subsidio ao trabalho nos moldes dos programas sociais dos EUA etc. Segundo, tornar o uso de avaliações de impactos e sistematização das informações como elemento constitutivo do processo de formulação e reformulação dos programas. JULHO/AGOSTO 2014 DIGESTO ECONÔMICO

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Lula Marques/Folhapress

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