Diário do Comércio - 22/08/2011

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DIÁRIO DO COMÉRCIO

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CONCRETO ARMADO Edifício Guinle, na rua Direita, foi o primeiro a ser construído em concreto armado no País, o que o torna uma referência no Centro Histórico. Recentemente, ele passou por uma nova restauração.

idades

Nos primeiros anos do século 20, imigrantes armênios chegaram a São Paulo fugindo da perseguição turca. Aqui, se viraram como podiam para ganhar a vida e logo entraram no ramo de calçados. Em todos estes anos, as famílias se dedicaram à produção artesanal, à industrialização e ao comércio de calçados na Capital e diversas partes do Estado de São Paulo.

sábado, domingo e segunda-feira, 20, 21 e 22 de agosto de 2011

Paulo Pampolin/Hype

Newton Santos/Hype

Sérgio Semerdjian: família conseguiu uma patente para a fabricação de máquinas para calçados nos EUA

História dos armênios e dos calçados caminham juntas

Edifício Guinle: prédio na rua Direita foi o primeiro construído em concreto armado em São Paulo. Hoje abriga a Mundial Calçados. Abaixo, operários dão os últimos retoques na restauração do prédio, no Centro.

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Valdir Sanches

Reprodução

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primeiro prédio de concreto armado de São Paulo (e do País) ainda causava admiração para quem o via, com seus sete andares, na Rua D i re i t a , n o C e n t ro Ve l h o , quando Choucri Kachvartanian chegou à cidade. Choucri era um dos imigrantes armênios que haviam escapado do massacre praticado pela Turquia, entre 1915 e 1917. O Edifício Guinle, como é batizado, foi construído nessa mesma época, de 1913 a 1916. Choucri chegou em 1928, como outros tantos de seus conterrâneos. Tratou de ganhar a vida como pudesse. A colônia acabou se dedicando à indústria de calçados. Mais tarde, passou à comercialização dos produtos. Hoje, os armênios são donos de grandes redes de lojas de calçados. Entre elas, a Mundial, Clóvis, Besni, Bigkalan, Zapata e Econômica. Dois netos de Chouri, Ricardo e Eduardo Kachvartanian, são donos de quinze lojas Mundial Calçados na Grande São Paulo e São Vicente, na Baixada Santista. A mais central fica no número 49 da Rua Direita. Exatamente no Edifício Guinle, o pioneiro em concreto armado. O prédio todo pertence aos irmãos. Eles o compraram para instalar a loja. "Gostamos dele, por ser um prédio histórico e bonito", diz Ricardo. Por estes dias, a beleza original da construção voltou à cena. O Guinle, no coração do Centro Velho, acaba de ser restaurado. Char rete – Choucri Kachvartanian acabou montando, com seu filho, Ohannes, uma pequena fábrica de calçados na Vila Guilherme. A produção era posta em uma charrete, e lá iam eles para bairros vizinhos, até mesmo à Penha, oferecer seu produto. Outro dos imigrantes armênios que tratava de ganhar o pão era Ohannes (João) Semerdjian. Descera do cargueiro francês Valdívia, em Santos, em dezembro de 1928. Naqueles primeiros tempos, vendia amendoim torrado e suco de limão pelas ruas da São Paulo. Ocorre que o imigrante era filho de um respeitável seleiro, fabricante de selas de couro para burros. Tanto que Semerdjian quer dizer filho do (ian) seleiro (semerdj). Um ano depois de sua chegada, no cômodo em que morava, começou a fabricar chinelos de lã para casa. Ele costurava e montava as peças; sua mulher, Haiganuck, costurava. Uma dúzia por dia.

calçados em SP ros no ramo de ei on pi n, ia dj Família Semer Newton Santos/Hype

Interior da loja Semer, no Brás, zona leste da Capital: história armênia

Logo, Ohannes alugou um sobrado na Rua Pajé, na região do Mercado Central. Nascia aí a Chinelos Sarkis. Em quinze anos, construía a sede própria de sua fábrica, no Brás. Sarkis era o nome de seu filho mais novo, que seguiu a vocação familiar. Em 1948, o velho imigrante aposentou-se. Sarkis, com 25 anos, assumiu com o irmão Armando a fábrica de calçados, então chamada Irmãos Semerdjian. O outro imigrante do qual falávamos, Choucri, também logo abandonou a charrete. Os negócios se expandiram, e seus três filhos montaram uma fábrica de calçados. Depois, um deles, Ohannes, comprou a parte dos irmãos. Em 1969, Ohannes abriu sua loja, no Jardim São Paulo, zona norte da Capital. Mundial – O filho Ricardo Kachvartanian, com treze anos, cuidava da loja. Era, afinal, filho (ian) de um forte

(kach) deus heróico (vartan). Uma década depois, Ricardo, em sociedade com o irmão Eduardo, comprava a Mundial, uma tradicional loja de calçados de São Miguel Paulista, na zona leste. "Naquela época não era fácil vir à cidade", diz Ricardo. "As pessoas compravam no bairro, e havia pouca concorrência no nosso ramo." De São Miguel, saíram para abrir as outras quatorze lojas e comprar o Edifício Guinle. Voltemos a família de Ohannes Semerdjian, que começou fabricando pares de chinelos. Os filhos Sarkis e Armando obtiveram, de um meio irmão de Boston, nos Estados Unidos, uma patente para a fabricação de máquinas para calçados. É isso o que conta Sérgio Semerdjian, filho de Sarkis. "Meu pai e meu tio montaram a Indústria de Máquinas Paulista para Calçados", recorda-se. "Foi a primeira do

gênero na América Latina. Ficava no Largo do Pari e funcionou durante trinta anos, de 1948 a 1978." E xp or ta ç ão – Nesse meio tempo (julho de 1968), os irm ã o s c o n s e g u i r a m o u t ro marco. Inauguraram a exportação de calçados do Brasil para os Estados Unidos. "Foram vinte mil pares de sandálias femininas, de salto baixo, com tiras coloridas." No mesmo ano, a Samello, indústria de Franca, no interior de São Paulo, exportou um milhão de calçados de couro (com o forro também desse material). E logo veio a terceira exportação, feita pela paulistana Makerli. Outro exportador foi a Arcoflex, fabricante de botas militares. Por que, afinal, os armênios deixaram a produção e passaram para o comércio? Sérgio, que se preocupa em estudar a história dos armênios calçadistas, resume os fatos. A crise de 1973 aumentou em 400% o preço do petróleo, com sérios reflexos para a economia mundial e as exportações brasileiras. Isso coincidiu com o fim do "milagre brasileiro", do regime militar, que alcançara altos índices de crescimento durante anos. Os fabricantes armênios começaram a fazer diversas parcerias com produtores do interior paulista. Os de Jaú era especializados em calçados femininos. Os de Birigui, em modelos infantis. Sérgio conta que a empresa paulistana Calçados Levon iniciou a parceria com a cidade de Jaú. "Eles indicavam modelo, fôrma, salto e pediam mil, dez mil pares." Sérgio tem uma fábrica, a Semer Indústria e Comércio de Calçados, no Brás. Nos dias de inverno, em respeito à tradição do avô, faz uma pequena produção do pioneiro chinelo de lã Sarkis, para casa.

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Operários trabalham na restauração do Edifício Guinle

Edifício Guinle passa pela segunda restauração

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Edifício Guinle recebeu um primeiro restauro em 1997, quando os irmãos Ricardo e Eduardo Kachvartanian o compraram. Agora, diz Ricardo, foi feita uma reforma "mais pesada". O resultado está visível, desde que os andaimes foram retirados, há poucos dias. Os arquitetos Ana Lúcia Pimenta e Paulo Danilo Machado, da Companhia de Restauro, responsáveis pelo trabalho, encontraram uma situação exótica. Os elementos (como adornos) da fachada estavam pintados com esmalte sintético bege escuro. O restante, em bege claro. A fachada foi jateada com água, sob pressão adequada para não estragar os elementos. Dessa forma, retirou-se a tinta. Em seu lugar não foi aplicada outra tinta, mas um tipo de massa "que deixa respirar", como diz Ana Lúcia. Ela retém menos umidade, o que favorece a conservação. Por último, passou-se uma velatura. "Uma massa

mais líquida, para igualar as cores." O resultado é que agora a fachada é lavável. Com uso de jatos, ou pela própria chuva. Isso impede a criação de fungos. Nos gradis, adiante das portas-balcão, faltavam pequenos pedaços. Peças de ferro correspondentes foram fundidas e colocadas no lugar das que faltavam. A cor também voltou a ser a original, cinza. A loja da Mundial Calçados ocupa o térreo. O primeiro e o segundo andares são usados para estoque e o terceiro para cursos destinados a vendedores. Os quatro andares restantes estão vazios. Museu – Com suas janelas, inúmeras e altas, que proporcionam bela iluminação, esses andares formam espaços agradáveis. Mas continuarão vazios. Ricardo Kachvartanian diz que tentou criar ali um museu do calçado, mas teve muita dificuldade em construir um acervo. Mas infelizmente desistiu: "Não quero mais." (V.S.)


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