Diário do Comércio - 08, 09 e 10/07/2013

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DIÁRIO DO COMÉRCIO

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Pegue o ônibus, vá para o pronto-socorro. Está tudo ruim, com atendimento péssimo, até perigoso. André Tamandaré

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ndré Tamandaré, 33 anos , não deveria estar tão zangado. Ao longo da última década, ele – que abandonou os estudos – mudou-se para uma casa própria, conseguiu um emprego estável e ganhou dinheiro suficiente com sua namorada de longa data, Rosimeire de Souza, para levar suas duas crianças para a classe média no Brasil. Agora, como trabalhador da área de saúde pública em um imenso bairro de periferia no Rio de Janeiro, Tamandaré é o tipo de cidadão que o governo do Brasil pensa estar realizado. Em vez disso, ele é um dos mais de um milhão de pessoas no maior país da América Latina que foi às ruas em uma onda de protestos em massa. Os brasileiros estão protestando contra a má qualidade de escolas, hospitais e transporte público. Eles estão protestando contra o aumento dos preços, o crime e a corrupção. Estão criticando a classe política que não conseguiu ver a insatisfação crescente que levou às manifestações. Combinadas, as preocupações refletem o crescente mal-estar no Brasil de quase 200 milhões de pessoas de que o muito prometido salto do País para o mundo desenvolvido tenha caído por terra, mais uma vez. "Você só precisa passear um pouco para ver o desenvolvimento que falta", disse Tamandaré, fumando um cigarro em um banquinho de plástico ao lado de uma mesa em sua pequena cozinha. "Pegue o ônibus, vá para o pronto-socorro. Está tudo ruim, com atendimento péssimo, até perigoso. Fico muito chateado." As manifestações, provocadas inicialmente contra um aumento nas tarifas de transporte público, no primeiro momento atraíram a juventude em sua maioria, educada da classe média tradicional do Brasil – uma minoria que, historicamente, tem tido mais em comum com a elite rica do que as dezenas de milhões de brasileiros que, até recentemente, estavam na pobreza. As manifestações decolaram, porém, quando a nova classe média do Brasil juntouse à briga. "Isso é a raiva das pessoas que já não ficam contentes só por ter um feijão e arroz na mesa", disse Rodrigo Dutra, um documentarista em Duque de Caxias, outro bairro trabalhador do subúrbio do Rio que está estudando as diferenças entre os recentes protestos e os tumultos que se seguiram a uma escassez de alimentos em 1962. Muito tem sido falado nos últimos anos sobre a classe média emergente do Brasil – acima de tudo pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que está no poder desde 2003. Exportações de commodities em expansão, um consumidor ansioso e programas sociais ambiciosos alimentaram uma década de crescimento econômico estável, que alçou 35 milhões brasileiros da pobreza. Mas agora, com a economia mais fraca, muitos na nova classe média dizem que sua ascensão tão apregoada deixa muito a desejar. Aula - "É relativo", disse Dione Brandão, uma professora, depois de uma recente marcha ao longo da avenida Atlântica, no bairro de Copacabana, no Rio. "Não adianta o governo aumentar o meu consumo e ao mesmo tempo diminuir segurança, educação." Os brasileiros da classe média estão expressando algumas das mesmas frustrações que alimentam conflitos na Turquia, no Egito e em outros lugares. As demandas variam em cada país, mas refletem em comum lutar para que os governos de países em desenvolvimento atendam às crescentes expectativas. A própria noção de classe média no Brasil é bastante diferente dos padrões da América do Norte e Europa Ociden-

sábado, domingo e segunda-feira, 6, 7 e 8 de julho de 2013

Marcelo Fonseca/Brazil Photo Press/EC

Milhares de pessoas nas ruas contra o aumento da passagem de ônibus, no centro do Rio de Janeiro. Tanto no Rio como em São Paulo as manifestações fizeram baixar as tarifas.

Nova classe média engrossa protestos Manifestações de rua registradas nas últimas semanas contam com a presença da nova classe C. Depois dos eletrodomésticos, brasileiro quer saúde e educação. Diego Assis/Agência O Dia/ EC

Grupo reúne-se por mais segurança e educação em frente a casa do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, na semana passada.

Você só precisa passear um pouco para ver o desenvolvimento que falta. SAÚDE PÚBLICA DA PERIFERIA DO

Adotamos um modelo que gasta muito em transferências a pessoas físicas, mas fica faltando para o público.

Não adianta o governo aumentar o meu consumo e ao mesmo tempo diminuir segurança, educação.

As condições de vida dos brasileiros melhoraram, mas talvez, as aspirações dos brasileiros aumentaram.

RIO DE JANEIRO

SAMUEL PESSOA, DA FGV

DIONE BRANDÃO, PROFESSORA

MARCELO NERI, DO IPEA

ANDRÉ TAMANDARÉ, AGENTE DE

tal. Não há subúrbios arborizados e Volvos para a nova classe média aqui. Em vez disso, o termo classe média é usado de forma ampla para incluir quase qualquer um capaz de pagar o aluguel, colocar comida na mesa e talvez pagar as parcelas da geladeira, microondas ou televisor que o governo do Brasil apregoa como um sinal de seu surgimento. A chamada "Classe C", o degrau mais baixo de classe média do Brasil, tem renda de

R$ 1.730 por mês, cerca de US$ 790, e, diferentemente da classe média um degrau acima, depende muito de serviços públicos de transporte, educação e saúde. Atrasos – O problema é que o Brasil investe muito menos em serviços públicos do que qualquer outra grande economia. Quando a democracia surgiu após duas décadas de regime militar, a Constituição do Brasil de 1988 consagrou o estilo europeu de aposenta-

doria e outros benefícios sociais, apesar das limitações da economia em desenvolvimento do país. "Adotamos um modelo que gasta muito em transferências a pessoas físicas, mas fica faltando para o público", disse o economista Samuel Pessoa, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio. Assim, mesmo com uma carga tributária sobre a população em níveis semelhantes aos de Suíça, Canadá e Austrália, chegando a cerca de 35%

da economia, o Brasil gasta a maioria de seus recursos em despesas de pessoal e programas sociais. Em vez de melhorar estradas, ferrovias ou escolas, o dinheiro vai para o pagamento de aposentadorias, salários e transferências do setor público aos governos estaduais e municipais, que usam os recursos para seus próprios gastos elevados de uma espécie similar. Menos de 5% das despesas do governo em 2012 foram em direção

a investimentos, de acordo com um estudo recente da Credit Suisse. Mas o desemprego permanece perto da mínima histórica no País, o legado de uma década que, para muitos, foi notável. Uma demanda voraz por minério de ferro, soja e outras commodities para a China e o rápido crescimento de outros emergentes impulsionou a arrecadação do governo e estimulou o crescimento em setores multiplicadores da economia do Brasil. Mas o crescimento do Brasil também está esgotado. A demanda por matérias-primas da China abrandou. Consumidores brasileiros, entretanto, nunca estiveram tão endividados como agora. G o v er n o - O governo tem suas explicações para as manifestações. O ministro interino da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcelo Neri, avalia que os protestos podem estar refletindo mais uma insatisfação da “velha nova classe média” do que dos pobres com os serviços públicos. “Uma possibilidade é que essa nova classe média seja a 'velha nova classe média'. Ela vem ascendendo há dez anos, são 40 milhões de pessoas que, talvez, queiram outras coisas além de mais renda e do trabalho, como educação de qualidade e de saúde”, disse. Segundo Neri, os avanços da última década aceleraram a queda da desigualdade. A renda dos brasileiros 10% mais pobres, por exemplo, cresceu 550% mais rápido que a dos 10% mais ricos. Já o rendimento de uma família chefiada por analfabeto subiu 88,6% no período. “Não está claro quem são os manifestantes, mas suspeito que não seja mulher negra de periferia”, disse. Na avaliação dele, a melhora das condições de vida da parcela mais pobre “pode ter gerado certo inconformismo em pessoas que se sentiram ficando para trás”. Porém, para ele, a insatisfação é contra os serviços públicos de educação e de saúde, públicos e privados, de maneira geral, pois, na última década, houve ganhos reais em todas as classes. “As condições objetivas de vida dos brasileiros melhoraram, mas talvez, as aspirações dos brasileiros aumentaram mais do que o que foi entregue, gerando uma insatisfação com o sistema”, disse Neri. (Agências)


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