Devarim 45 (ano 17 - agosto de 2022)

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Revista da Associação Cultural – ATID Ano 17, n° 45, julho de 2022 Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI DEVARIM Torá: Luz e Cor Rabino Sérgio R. Margulies Três irmãs, um desafio Andrea Kulikovsky O Estudo: Alimento da centelha judaica Kelita Cohen Uma sólida maioria judaica Entrevista com Yoram Ettinger Um (renovado) Rosh haShaná italiano Raul Cesar Gottlieb 80 anos da morte de Stefan Zweig Israel Beloch A poesia de Wislawa SzymborskaAndréSena Cócegas noPauloRaciocínioGeiger E mais: Textos de Alfredo Schechtman, Andrés B. Mosquera, Clementine Pinto, Emanuel Corinaldi e Gizele Bakman. As palavras dos Rabinos do Conselho Rabínico Reformista do Brasil – CRRB Rabino Richard Hirsch, ação social e sionismo reformista Damián Glanz O triunfo e a tragédia de Abba Eban Rick Richman As palavras dos Rabinos do Conselho Rabínico Reformista do Brasil – CRRB Rabino Richard Hirsch, ação social e sionismo reformista Damián Glanz O triunfo e a tragédia de Abba Eban Rick Richman

3 Adaptado de “Introdução Geral à Torá”, página li [em algarismos romanos] no li vro citado.

Os sacrifícios humanos de cunho religioso, tal como as decapitações encontradas em Chiapas, foram amplamen te documentados pelos conquistadores espanhóis do sécu lo 16. E é certo que não apenas os astecas realizavam práticas hoje inaceitáveis. Por exemplo, o costume hindu do “sati”, pelo qual as viúvas eram cremadas vivas na pira fu nerária do marido2, perdurou até ser abolida pela pressão dos colonizadores do ocidente.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 1 EDITORIAL

polícia do estado mexicano de Chiapas ficou ali viada! Os 150 crânios humanos, em sua maioria mulheres, descobertos numa caverna, não tinham origem nas atividades dos atuais cartéis do crime e sim em assassinatos cometidos a cerca de mil anos atrás 1

Com base em seu extraordinário conhecimento do ju daísmo e das culturas do antigo Crescente Fértil, o rabino Plaut nos brinda com o sensacional descortinar da “revi ravolta judaica” que modificou o rumo do caminho mo ral da humanidade.

A

Raul Cesar Gottlieb Diretor da Devarim e, junto com Karin Zingerevitz, co-diretor da tradução do Chumash Plaut. 5 Shemot / Êxodo 1:8.

Sustenta o rabino Wolf Gunther Plaut (1912-2012) em sua magnífica obra A Torá, um Comentário Moderno, cuja tradução para o português foi lançada no ano passa do pelo Movimento Reformista da América Latina, que a Torá teve origem no coração e nas mentes do antigo Israel em sua busca por Deus, e que ela busca registrar os gran des momentos do encontro entre o humano e o Divino.3 Os crânios de Chiapas e outras práticas culturais que atentam contra a atual percepção do que constituem os di reitos universais dos humanos demonstram a revolucioná ria natureza do encontro do antigo Israel com seu Deus.

4 Ensaio “A Akedá”, página 141 do livro citado. Existem muitas semelhanças entre o código bíblico e os demais códigos da época (como o de Hamurabi e dos rei nos de Eshuna). Existem também semelhanças entre par tes do relato bíblico e alguns relatos dos povos do Cres cente Fértil (tal como entre a saga bíblica de Noé e o épi co acadiano de Gilgamesh). Contudo, a Torá difere destes códigos e destes relatos naquilo que o rabino Plaut denomina “a reviravolta judai ca” (the Jewish twist). Esta reviravolta consiste num olhar radical do mundo, no qual Deus estabelece leis imutáveis a partir das quais os humanos devem derivar seu compor tamento cotidiano a cada momento da história.

A Reviravolta Judaica

As leis fundamentais da Torá são imutáveis porque não são determinadas por governantes humanos, que, mesmo quando bem intencionados, podem ser sucedidos por go vernantes abomináveis. E os antigos Israelitas, tendo teste munhado a subida ao poder de um rei que, nas palavras da Torá, “não conhecera José”5 (ou seja, que não reconheceu a legislação benevolente para com os imigrantes estabele cida por um predecessor), encontraram o Divino ao perceber que nenhuma legislação humana jamais terá a força de garantir vida e liberdade.

A Torá, um Comentário Moderno é um livro que mere ce iluminar todas as bibliotecas e ser saboreado com a de licadeza com que se tratam os grandes clássicos.

Afirma Plaut: “A prática do sacrifício humano era cen tral para os cultos dos vizinhos de Israel … [assim que] no âmbito de seu tempo e de sua experiência, Abraão pode ter considerado a ordem de sacrificar seu filho inteiramen te legítima. … no início do teste, a ordem é emitida por Elohim – o termo genérico para Deus ou deuses … Mas quando o sacrifício está prestes a ser realizado é o Deus de Abraão, Adonai, que segura sua mão. Elohim poderia lhe pedir para continuar, mas Adonai diz ‘não’.”4

2 Dentre outras fontes: Wikipedia, palavra-chave “Sati”.

1 Dentre outras fontes: www.livescience.com/mexico-crime-scene-skulls-actually -sacrificial-victims e man-sacrifice-ad-900/www.cbsnews.com/news/mexico-skulls-not-crime-scene-hu

Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI. Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

A revista Devarim é editada pela Associação Cultural – ATID Rua General Severiano 170 – Botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro-RJ CNPJ aAwww.devarimonline.com33.388.059/0001-71|devarim@aririo.org.brdistribuiçãodeDevarimégratuita,sendoproibidasuacomercialização.devarim[hebraico]Pluraldedavar,sm.1Coisas,todasascoisas,oualgumascoisas,ouas que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então milim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos.

MINISTÉRIO DO TURISMO APRESENTA:

3 O quinto e último livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coisas. 4 Revista da Atid e do judaísmo liberal, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

2 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI As palavras dos Rabinos do Conselho Rabínico Reformista do Brasil – CRRB ...... 3 Torá: Luz e Cor – Rabino Sérgio R. Margulies ......................................... 9 Uma liderança judaica orientada para a ação social –Damián Glanz ........... 12 Três irmãs, um desafio – Andrea Kulikovsky .......................................... 19 O Estudo: Alimento da centelha judaica – Kelita Cohen ............................. 27 Uma sólida maioria judaica – Entrevista com Yoram Ettinger .................. 35 O triunfo e a tragédia de Abba Eban – Rick Richman 41 Como que em Voz Alta – Emanuel Corinaldi 49 Um (renovado) Rosh haShaná italiano – Raul Cesar Gottlieb 55 Lembranças de um País que não existe mais – Clementine Pinto 61 Tak-to-Tak: o poema Primeira Foto de Hitler, de Wislawa Szymborska – André Sena ...................................................................................... 69 Há 80 anos tombava um gigante – Israel Beloch ....................................... 76 Os 30 milhões de judeus de Bergman – Andrés B. Mosquera ..................... 83 Rituais em famílias judias com laços por adoção – Gizele Bakman ............. 87 Memórias da infância na Bessarábia e no Rio de Janeiro – Alfredo Schechtman 95 Resenha de Livros 98 Em Poucas Palavras ............................................................................. 100 Cócegas no Raciocínio – Paulo Geiger .................................................. 104 SUMÁRIO Revista Devarim Associação Cultural – ATID Ano 17, nº 45, julho de 2022 PRESIDENTE DA ATID Gilberto Lamm RABINO CONSULTOR Sérgio R. Margulies ASSISTENTE DO RABINATO Andrea S. Z. Kulikovsky DIRETOR DA REVISTA Raul Cesar Gottlieb CONSELHO EDITORIAL Breno Casiuch, Germano Fraifeld, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Moacir Amancio, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies. EDIÇÃO Editora Narrativa Um EDIÇÃO DE ARTE Negrito Produção Editorial REVISÃO DE TEXTOS Mariangela Paganini (Libra Edição de Textos) TRADUÇÃO Michel e Sheila Ventura FOTOGRAFIA DE CAPA Bernotto/iStockphoto FOTOGRAFIAS iStockphoto.com

COLABORARAM NESTE NÚMERO Alfredo Schechtman, André Sena, Andrea Kulikovsky, Andrés B. Mosquera, Clementine Pinto, Damián Glanz, Gizele Bakman, Emanuel Corinaldi, Rabino Guershon Kwasniewski, Israel Beloch, Rabino Joseph Edelheit, Kelita Cohen, Rabino Lucca Myara, Paulo Geiger, Rabino Sérgio R. Margulies, Raul Cesar Gottlieb, Rick Richman, Rabino Rogério Cukierman, Rabino Ruben Sternschein, Rabina Tati Chagas e Rabino Uri Lam.

O CRRB, formalmente criado em 2020, é o espaço que alimenta os rabi nos reformistas atuantes no Brasil com os nutrientes do apoio singular que co legas podem dar. A consequência da atuação do CRRB impacta – pela força re cebida – nossas comunidades. Em acréscimo, num mundo de galopantes mudanças, no qual o Judaísmo Reformista abraça a missão de compreender as necessidades contemporâneas de cada lugar, a existência do CRRB baliza as referências dos caminhos que busca mos seguir entre os sonhos e as frustrações e é de vital importância na determi nação dos rumos da vida judaica em nosso país. O CRRB, que cada vez ama durece mais, esperançosamente também crescerá com novos e futuros colegas.

“O Judaísmo Reformista abraça a missão de compreender as necessidades contemporâneas de cada lugar.”

Rabino Sérgio Margulies – Presidente do CRRB Serve na Associação Religiosa Israelita ‒ ARI ‒ Rio de Janeiro, RJ C omo rabinos, temos inúmeras responsabilidades, lidamos com uma va riedade de situações, estamos expostos a dilemas e temos que responder ao que nós próprios nos perguntamos. São desafios repletos de bênção ao se conectarem com a sacralidade da vida e, justamente em função disto, a atua ção rabínica, para ser efetiva, requer uma constante troca com colegas. Esta tro ca transita pelo compartilhar do conhecimento adquirido por meio do estudo e através da vivência. A base desta troca é a confiança de colegas que se ajudam.

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AS PALAVRAS DOS RABINOS DO CONSELHO RABÍNICO REFORMISTA DO BRASIL

Por fim, estes primeiros passos do CRRB, formado por rabinos desta geração, prepara o terreno, pela primeira vez, para uma geração de rabinos e rabinas re formistas formados/as no Brasil, que te rão na geração fundadora uma referên cia em diversos campos da atuação ra

Serve na Congregação Israelit Beth-El ‒ São Paulo, SP O Conselho Rabínico, ainda nos seus primeiros anos de vida, já tem se mostrado bastante relevante. Em primeiro lugar, por aproximar regularmente rabi nos em atuação no Brasil que antes mal se falavam, a não ser em congressos e em eventuais encontros nacionais.

Suksrirattanawichai/iStockphotoThanakorn

Rabino Uri Lam – Vice-presidente do CRRB

Das reuniões semanais ou quinzenais entre os rabinos começou a surgir um espaço de criação coletiva que não existia antes – é difícil, hoje, pensar como isso era possí vel. Aos poucos, nossas comunidades começaram a se in teirar de que podem buscar o Conselho Rabínico Refor mista para lidar com questões que beneficiam não somente uma congregação de uma cidade, mas diversas sinagogas, comunidades e famílias no Brasil inteiro.

bínica: comunitário, educacional, cultural, profissional, mas, sobretudo, no campo de uma atuação ética, que ga ranta a colegas e comunidades práticas regulamentadoras, transparentes e corretas, segundo os mais elevados parâ metros judaicos.

O que me motivou a impulsionar a criação deste Conselho junto aos meus colegas rabinos foi a fal ta de um espaço para dialogar entre pares que res pondem a uma mesma visão judaica religiosa. Quando era necessário intercambiar opiniões ou perguntar sobre algum assunto haláchi co específico, tinha que contatar rabinos do exterior. Com desafios semelhantes conseguimos compreender que existem soluções que podem ser aplicadas, que já foram testadas com respostas de sucesso em outras instituições.

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Serve na Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência ‒ SIBRA ‒ Porto Alegre, RS

Rabino Guershon Kwasniewski

“Rabinos e rabinas reformistas formados/as no Brasil terão na geração fundadora uma referência em diversos campos da atuação rabínica.”

Rabino Rogério Cukierman Serve na Congregação Israelita Paulista ‒ CIP ‒ São Paulo, SP A pós muitos anos e inúmeras tentativas sem grande êxito, foi durante a pandemia que rabinos reformis tas em diferentes partes do Brasil finalmente tiveram sucesso na criação de um conselho rabínico reformista. Nestes pouco mais de dois anos de atividades, consegui mos, acima de tudo, criar um ambiente de camaradagem pessoal e coleguismo profissional.São em nossas conversas sinceras, em clima de confidencialidade e respeito mútu os, que crescemos e nos fortalecemos. Essa união permitiu que desenvolvêssemos projetos conjuntos (como os Ticún de Shavuot online de 2020 e 2021), políticas comuns (como um protocolo para práti cas de guiur) e estratégias de apoio às comunidades que servimos e às comunidades reformistas que não têm ain da liderança rabínica. Nos próximos anos, esperamos fortalecer nossa parce ria e desenvolver ainda mais iniciativas para fortalecermos o Judaísmo Reformista no Brasil.

A pandemia nos fez olhar para dentro, transformou as nossas comunidades em espaços virtuais. Com a tecnologia percebemos quão perto e fácil podemos estar uns dos outros. Nestes últimos dois anos, conseguimos avançar mais que em uma década. As congregações nas quais trabalhamos respondem a um número elevado de judeus que se identificam com a nossaEntreideologia.olaborrealizado está o apoio à tradução ao português da Torá Plaut e o incentivo a seu es tudo. Realizamos duas edições virtuais do Tikun Leil Sha vuot, que considero históricas pela variedade e riqueza da proposta, que contou com todo o apoio tecnológico da CIP. Foi e continua sendo criado material para cada uma das festividades judaicas, com a difusão da UJR. O espa ço de parashat hashavuá ganhou vida com vídeos dos co mentários semanais. Uma página de Facebook foi criada pelo CRRB, onde podem ser acompanhadas suas atividades e materiais ge rados. Conseguimos ordenar e organizar o processo de guiur [conversão]; tivemos reuniões com representantes da Agência Judaica para o reconhecimento das nossas con versões. Participamos de Batei Din [Tribunal Rabínico]; prestamos serviços ao Instituto Rabínico Reformista, al guns em forma regular, outros em caráter de convidados. A América Latina era a única região do planeta onde os rabi nos reformistas não estavam organizados. A tarefa é árdua, mas podemos dizer com satisfação: começamos! Rabino Lucca Myara Serve na Congregação Israelita Mineira - CIMBelo Horizonte, MG. O Conselho Rabínico é um espaço de cooperação e trocas entre pares que trabalham numa mesma direção. As comunidades progressistas, apesar de espalhadas num território nacional continental, frequen temente compartilham desafios semelhantes. Nesse fó rum temos a oportunidade de refletir e oferecer respostas colegiadas às questões judaicas do nosso tempo e da nossa realidade geográfica. Para mim, que sou o rabino mais jovem em atuação no Brasil, é uma oportunidade única de aprender com colegas que já construíram belos projetos comunitários e que, gene rosamente, compartilham suas experiências e sua Torá com nosso grupo.

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“A América Latina era a única região do planeta onde os rabinos reformistas não estavam organizados. A tarefa é árdua, mas podemos dizer com começamos!”satisfação:

Rabino Joseph Edelheit Rabino fundador da comunidade Beit Tikvá ‒ Maringá, PR O CRRB é uma experiência única de diferenças criado para ser uma plataforma para o Judaísmo Re formista no Brasil. Corremos o risco de construir um novo grupo profissional de rabinos formados em diferentes seminários servindo a diferentes comunidades e vindos de diferentes gerações. O CRRB é mais do que nossas diferenças, encontrando oportunidades para re presentar tanto as instituições do Judaísmo Reformista quanto os muitos judeus em todo o Brasil que não têm representação.

Rabina Tati Chagas Serve na Congregação Israelita Paulista ‒

CIP ‒ São Paulo, SP S endo a mais nova integrante deste grupo, havendo chegado ao Brasil faz pouco mais de um ano, a me lhor forma para mim de descrever a importância e o tra balho do CRRB é uma Mishná: “Asse lechá rav, ukne lecha chaver; ve-hevei dan et kol há-adam lechaf zechut” (escolha um rabino e ganhe um amigo e julgue a todos com pre sunção de inocência). Somos um grupo de profissionais, colegas e parceiros que trabalham juntos e separadamente para trazer o me lhor de nós a nossas comunidades e acrescentar uma visão judaica reformista no Brasil. O CRRB é um espaço de troca de ideias e experiências, de crescimento profissional e pessoal e de criatividade onde os participantes se sen tem tanto engajados quanto apoiados, entendidos e com prometidos.Comoúnica mulher neste grupo, sinto minha voz sem pre recebida, respeitada e fortalecida por meus colegas.

Rabino Ruben Sternschein Serve na Congregação Israelita Paulista ‒CIP ‒ São Paulo, SP O CRRB é o espaço de troca, apoio e elaboração de atividades e po líticas comuns dos Rabinos Re formistas do Brasil. Nele, trazemos dúvidas e conselhos para suas resoluções; trazemos visões, sonhos e frustrações para compartilhar e nos enriquecer, bem como projetos e ações para desenvolver conjuntamente. Entre estas úl timas, contam-se aulas, debates, reflexões e atos que re alizamos nas semanas que lembram a destruição entre o 17 de Tamuz e Tisha beAv (Bein hametsarim), o mês de preparo para a introspecção das Grandes Festas (Elul) e os ticunim (viradas de estudos judaicos) de Shavuot. O manual do guiur é o primeiro e principal material de polí ticas comuns elaborado pelo Conselho Rabínico que per mite alinhar valores e colaborar com regiões sem rabinos e inclusive sem comunidades organizadas.

“Como única mulher neste grupo, sinto minha voz sempre recebida, respeitada e fortalecida por meus colegas.”

O CRRB, acima de tudo, nos garante a força de saber que estamos juntos e que podemos enfrentar desafios de grande porte para perguntas como benei anussim, patrili nearidade e relacionamentos multiculturais, e produzir so luções criteriosas e responsáveis.

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A Torá é a luz. Uma luz com múltiplas luzes. Uma luz com várias cores.

A mensagem espiritual do Talmud encontra paralelo na Física.

Deus criou o Jardim do Éden. De lá o ser humano saiu e, fora de lá, cria vários jardins. As rosas destes jardins têm espinhos, pois são jardins que se defrontam com a realidade. Os espinhos nas hastes não impedem as variedades das pétalas, ao contrário, esta diversidade ajuda a enfrentar os espinhos da vida.

Possibilidades que florescem na valorização das infindáveis singularidades, que amadurecem para responder às esperadas e inesperadas situações da vida. * * * D eus é Iotser, o Criador. Nós, humanos, somos a essência da imagem divina. Somos, portanto, também criadores.

“A Torá é a luz” são palavras atribuídas ao Rei Salomão no livro bíblico Mishlê [Provérbios].

Rabino Sérgio R. Margulies

A Torá é a vida judaica: iluminada e colorida, ampla e aberta.

Como criadores, dispomos das cores da Torá numa espiritualidade que con vida a mesclar as cores para dar à vida sempre uma nova e inaudita cor.

Amplitude para distintas visões. Todas conectadas com a mesma Torá e to das, a partir da mesma Torá, se abrem para diversas possibilidades.

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A luz, quando refratada, demonstra ser constituída por várias cores.

Quantas cores podem ser criadas? Inimagináveis! Inimagináveis desde que o potencial humano de transformar, criar, pensar, refletir, seja preservado. Desde que nos autorizemos a aprender não somente das cores favoritas – as que referendam as opiniões já estabelecidas –, como tam bém de tantas outras cores, inclusive das que não gostamos, pois trazem uma nova perspectiva.

TORÁ: LUZ E COR

O Talmud [Tratado das Bênçãos] ensina: “Há várias luzes numa luz”.

A Torá é a luz atrás dos olhos que aponta para vários caminhos. A Torá não é a luz na frente dos olhos que ofusca a vi são. Não é o convite para se enxergar em autorreferência. Por isso, Torá é convivên cia com as diversas vivências. As múltiplas vivências de cada um somam-se às tantas vivências que outros têm. * * * “E u a [flor] rosa” são também palavras atribuídas ao Rei Salomão no livro bíblico Shir haShirim [Cântico dos Cânticos]. Quem é esta rosa? A interpretação rabínica conclui: a Torá. No livro de Ester – lido em Purim – está escrito: “A lei foi dada em Shushan”. A palavra lei é entendida, numa interpretação meta fórica, como Torá. Shushan, ainda que literalmente re fira-se à capital da antiga Pérsia, é alegoricamente lido como shoshan, dado que as vogais são secundárias na lín gua hebraica. Shoshan que forma a palavra shoshan[a] é a flor rosa. Assim, conclui a exegese rabínica: “A Torá foi dada em rosas”.

O Rabino Sérgio R. Margulies serve na ARI – Rio de Janeiro.

Uma vez que a Torá é a flor rosa e dado que esta flor pode ser de várias cores, a Torá tem várias cores. Da luz e da flor.

Qual é a cor da flor rosa? Não é uma pergunta capciosa, pois há flores chamadas rosa que são, por exemplo, bran cas, amarelas, azuis. Uma vez que a Torá é a flor rosa e dado que esta flor pode ser de várias cores, a Torá tem várias cores. Da luz e da flor. Várias cores no jardim do aprendizado. Diversas cores para que os ensinamentos floresçam com mais encantamento e beleza. Deus criou o Jardim do Éden. De lá o ser humano saiu e, fora de lá, cria vários jardins. As rosas destes jardins têm espi nhos, pois são jardins que se defrontam com a realidade. Os espinhos nas hastes não impedem as variedades das pétalas, ao contrário, esta diversidade ajuda a enfrentar os espinhos da vida preser vando a capacidade de sorver a beleza de cada flor. * * * A s rosas também exalam sua fragrância. Tal como a visão se encanta com as cores, o olfato se deixa levar pela fragrância. Inspiramos o aroma de seus ensinamentos para expirar novas ideias que enriquecem a capacidade de agir. Há uma fragrância para cada ocasião, atestam os perfu mistas. A Torá, em sua fragrância, se abre para cada tem po de nossas vidas e são muitos os tempos, como o livro bíblico Kohelet [Eclesiastes], cuja autoria também é atri buída a Salomão, ensina: “Para tudo existe uma época de terminada e para cada acontecimento há um tempo apro priado sob os céus”. O tempo segue seu curso inexoravelmente. No intuito de lidarmos com o tempo, que as rosas, com suas fragrân cias e cores, brotem e floresçam no jardim de nossos cora ções, espíritos e mentes.

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Damián Glanz R ecordar o rabino Richard Hirsch, Dick, um ano depois de seu fale cimento, nos oferece uma oportunidade para pensar o papel rabínico e a construção de novas lideranças para o judaísmo reformista na América Latina. E, através do repasse de sua vida, problematizar os ideais do movimento na região é também um modo de render homenagem ao chamado “Arquiteto do sionismo reformista”.

PARAJUDAICALIDERANÇAORIENTADAAAÇÃOSOCIAL

Rav Hirsch, que faleceu em 17 de agosto de 2021, nasceu em Cleveland, Es tados Unidos, em 1926. Foi um líder liberal e sionista e ocupou posições des tacadas tanto dentro do movimento reformista como em instituições sionistas.

UMA

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Um ano do falecimento do rabino Richard Hirsch, o “Arquiteto do sionismo reformista”

Nós, que nos amargamenteressentimosdosilêncio da maioria das igrejas da Alemanha nazista, permaneceremos em silêncio frente à injustiça e à desigualdade em nossa sociedade?

Foi o diretor fundador do Centro de Ação Religiosa em Washington, diretor executivo da WUPJ (União Mundial para o Judaísmo Progressista) e artífice do traslado de sua sede internacional para Jerusalém. Como dirigente sionista, foi membro do Comitê Executivo da Organização Sionista Mundial e da Agência Judaica para Israel. Ocupou a Presidência do Conselho Geral Sionista (19871992) e também presidiu o 33º Congresso Sionista Mundial.

Hirsch não recebeu a vocação rabínica como herança familiar, diferentemente do que ocorria com muitos de seus companheiros do Hebrew Union College na metade da década de 1940, quando começou sua formação. Os ou tros estudantes, e sem dúvida a maioria de seus mestres, como Abba Hillel Sil ver ou Solomon Freehof, ou eram sucessores de linhagens rabínicas ou, no mí nimo, tinham se formado em alguma yeshivá. Ele era filho de comerciantes e

Deve haver um ponto de vista judaico reformista sobre quebrar o copo num casamento e não um ponto de vista judaico reformista sobre romper o padrão de preconceito racial?

Há outra característica que, sem dúvida, distinguiu não só Hirsch, como também a sua geração da de seus mestres, que em sua maioria tinham chegado nos Estados Unidos como imigrantes. Os estudantes rabínicos daquela época tinham os Estados Unidos como ponto de partida, e não de chegada. O lugar de origem e a proximidade ou dis tância das ideias sionistas começou a ser, já desde aque la época, um tema de atenção para Hirsch. Em suas pala vras: “Muitos dos professores tinham nascido no exterior. Alguns haviam sido resgatados da Europa antes da guerra [...]. Me assombrou que o trauma da Shoá não havia trans formado todo o corpo docente, e inclusive todo o corpo discente, em sionistas” (Hirsch, 2000, p. 20). Desde jo vem, inclusive desde a adolescência, Hirsch já tinha posto seus olhos em Israel. Antes de concluir seus estudos rabínicos, em 1949, no meio da Guerra de Independência, viajou a Israel para experimentar o que chamou de “o sionismo em ação”. Ins talou sistemas de alarme em kibutsim, lavou pratos, serviu mesas, limpou galinheiros e estudou hebraico. Em espe cial, estudou hebraico. Primeiramente, em seu tempo li vre e mais tarde na Universidade Hebraica onde teve au Rabino Richard Hirsch, primeiro à esquerda, com o presidente dos EUA, Lindon Johnson, 1964.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 13 seu contato com o judaísmo passava por alguns rituais ca seiros e a presença numa sinagoga conservadora. Foi na escola vespertina deste beit knesset, nas aulas de hebraico, que nasceu sua curiosidade pela cultura judaica e onde se conectou com a Young Judea, uma organização norte-a mericana cuja meta era educar os jovens para o sionismo.

De regresso aos Estados Unidos, e como parte de sua obrigatória prédica de shabat prévia à ordenação rabíni ca, em novembro de 1950 expôs aquelas ideias na sinago ga do Hebrew Union College. A seguir, alguns parágrafos daquela drashá:

A intervenção de Hirsch provocou, ademais, críticas entre seus pares e professores, entre eles Leo Baeck. Assim descreveu Hirsch aquele episódio: “Me resultava inconce bível que ele [Baeck], que havia sofrido o trauma da Shoá e que, de fato, se havia convertido em um símbolo vivo da perseverança, não fosse um firme defensor do estabele cimento do Estado judeu” (Hirsch, 2000, p. 28). Hirsch incomodava com suas ideias, e as ideias que sustentavam o movimento, seus líderes e intelectuais, incomodavam a Hirsch. O incômodo foi, precisamente, aquilo que o mo tivou à crítica, à perseverança para perseguir seus ideais.

las com professores como Martin Buber, Hugo Bergmann e Ernst Simon.

À esquerda: Rabino Richard Hirsch com um grupo de sacerdotes em Washington a caminho de uma marcha pelos direitos de voto dos negros nos EUA, 1965. À direita: Rabino Hirsch e família, década de 1960.

Daquela experiência trouxe ao menos dois aprendizados que o marcariam: por um lado, a necessidade de impregnar na queles pioneiros kibutsianos o olhar re formista como um viés para que adotas sem uma atitude construtiva em relação ao judaísmo; e, por outro lado, a centrali dade do hebraico, não apenas como meio de acesso à cultura judaica, mas também como um capital que permitiria ao mo vimento rechaçar a acusação, realizada por conservadores e ortodoxos, de que o reformismo avançava em direção à assimilação. Mas apenas o hebraico não funcionaria para tal. Para Hirsch, isso poderia ocorrer em função dos ideais sionistas, que elevariam o reformismo norte-americano ao grau de movimento mundial com chances de influenciar de forma decisiva no destino do nascente Estado de Israel.

Antes de concluir seus estudos rabínicos, em 1949, no meio da Guerra de chamouexperimentarviajouIndependência,aIsraelparaoquede“osionismoemação”.Emespecial,estudouhebraico.

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O judaísmo reformista não nos legou a visão, nem teve a coragem de admitir que já não existe uma dicotomia entre o sionismo e o judaísmo [...] O judaísmo reformista prega que é uma religião universal com uma mensagem para toda a hu manidade; entretanto se contenta em cumprir seu conceito de missão e satisfazer sua consciência pregando uma mensagem a Israel, aprovando resoluções [...] Quando o judaísmo reformista articular com fatos a estreita relação entre Israel e os judeus norte -americanos, descobrirá que aquilo que ori ginalmente pretendia ser um serviço a Is rael terá, por sua vez, aumentado a força e a relevância da reforma. (Hirsch, 2000, pp. Com26-27.)aquela prédica ele se confron tou com os patriarcas fundadores da re forma americana, como Kaufman Kohler ou Isaac M. Wise, que haviam promovi do em 1885 a Plataforma de Pittsburgh, que deu origem formal ao movimento, em que se rechaçava toda a moti vação sionista: “Já não nos consideramos uma nação, mas sim uma comunidade religiosa, e portanto não esperamos nem um regresso à Palestina [...], nem a restauração de nenhuma das leis relativas ao estado judeu” (Declaration of Principles, 1885).

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Os questionamentos de Hirsch não se limitavam ao desapego frente ao sionismo, senão também à falta de abertu ra da sinagoga. Depois de uma breve experiência em uma congregação em Chicago, Hirsch se aproximou do rabi no Maurice Eisendrath, um ardoroso defensor da justi ça social, que naquela época presidia a União de Congre gações Hebraicas Americanas, o braço congregacional do Movimento Reformista norte-americano. Eisendrath ha via desenvolvido uma plataforma onde se recomendavam diversos caminhos para que as sinagogas se envolvessem em preocupações sociais. Dali surgiu a ideia de estabelecer um centro de ação social que cumprisse a função de braço social e político do movimento. A proposta foi apresentada na conferência bienal do movimento reformista de 1959, mas foi rejeitada com argumentos que insistiam em separar (e manter separada) a religião da política. A proposta voltou a ser considerada em 1961, quando foi aprovada. Assim nascia o Religious Ac tion Center (RAC), no qual Hirsch foi nomeado seu pri meiro diretor-executivo. Se o judaísmo reformista centrava seus ideais na ética profética, estava chamado a se ocupar dos temais centrais que naqueles anos dominavam a cena pública dos Estados Unidos: a pobreza, a desigualdade, a Guerra do Vietnã, os direitos civis dos afrodescendentes. Segundo Hirsch, a res posta que o judaísmo progressista oferecia a estes conflitos se limitava a certas menções no púlpito ou a alguma repa raçãoValeindividual.repassar, como exemplo, uma responsa da confe rência rabínica (CCAR) da década de 1950 para enten der de que modo as preocupações sociais faziam parte do debate rabínico. Em algum momento de 1954, um ra bino consulta o comitê de responsas sobre “se o judaís mo sanciona” a união entre uma mulher judia e um “ho mem negro, escritor e graduado universitário, que quer se converter ao judaísmo”. O rabino antecipa que a família

A ação social no centro do judaísmo reformista. E tam bém o sionismo. Para Hirsch, ambas as coisas eram ines capáveis. O sentido ético, humanista e universal era, pre cisamente, o que unificava a experiência e o olhar judaico.

16 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI da noiva “se opõe violentamente ao matrimônio” e que o insta para que não o celebre. A resposta o lembra de que não há impedimento para tal união: “Não há razão válida, que tenha sua base na ha lachá, que impeça o casal de ser unido em matrimônio por um rabino” (CCAR Responsa, 1954). Assim sendo, reco menda que, se ele não quer criar atrito com a família da mulher, que delegue a tarefa a outra pessoa. Um ato de compro misso ético em respeito à dignidade do outro poderia ser delegado. Hirsch não duvidava que a ativida de rabínica deveria sair dos limites da sinagoga, e que não se concluía com a saí da da mechitzá, a divisão entre as pessoas que assistem ao culto. Mas que, sim, tinha que eliminar a mechitzá que separava a atividade sinagogal da realidade política e so cial. Tinha que mover a bimá do púlpito para a rua. Em seu discurso de instalação como diretor do Centro de Ação Religiosa em Washington, em novembro de 1962, Hirsch expressou este incômodo: Ao estabelecer nosso Centro de Ação Religiosa, afirmamos o pacto feito pelo Judaísmo Reformista. Os fundadores de nos so movimento declararam que as leis morais do judaísmo eram eternas enquanto que as leis rituais eram passageiras. Que trá gico seria se nós, que pretendemos perpetuar seu espírito, ex cluamos a mensagem profética do judaísmo profético. Conti nuaremos debatendo um guia para a observância ritual sem debater ao mesmo tempo guias para o comportamento mo ral e normas para a sociedade? Deve haver um ponto de vis ta judaico reformista sobre quebrar o copo num casamento e não um ponto de vista judaico reformista sobre romper o pa drão de preconceito racial? Deverão nossas congregações dedi car suas energias para aumentar sua arrecadação e não para aumentar a preocupação com a paz mundial? Buscaremos novos meios de atrair para a sinagoga aos que não assistem, e não buscaremos novos meios de ter um impacto nas vidas dos que, sim, assistem? Nós, que nos ressentimos amargamente do silêncio da maioria das igrejas da Alemanha nazista, perma neceremos em silêncio frente à injustiça e à desigualdade em nossa sociedade? (Hirsch, 1962, p. 3). Durante os anos seguintes, o RAC concentraria sua ati vidade no Movimento dos Direitos Civis, na luta que de sembocou no “Civil Rights Act”, a lei que assentou as bases para avançar na igualda de de direitos de toda a população, em es pecial, a comunidade afro-americana. Hirsch participou ativamente na or ganização e no processo de preparação das propostas legislativas para o Congresso dos Estados Unidos, e o comitê lidera do por Martin Luther King foi convida do a funcionar no Centro de Ação Religiosa, onde se discutiram muitas das nor mas que finalmente foram aprovadas. O rabino Hirsch entendeu que uma teolo gia reformista devia partir da ação social: A ética só tem sentido quando está rela cionada com a experiência humana. Se não fosse pela experiência da escravidão e do Êxodo do Egito, nun ca teríamos desenvolvido o conceito de liberdade. A teologia e a vida interatuam. Assim como se deve motivar as ações de uma pessoa, as ações dão forma à fé de uma pessoa. O impe rativo “pratiques o que pregas” se faz mais significativo, não menos, pelo conhecimento do que os seres humanos tendem a pregar o que praticam. Esse é o significado de mitzvá goreret miztvá [Avot 4:2], “uma obra justa produz outra obra justa” [...] Na tradição judaica, a salvação do indivíduo é insepa rável da salvação de toda a humanidade, a ética pessoal é in separável da ética social, e em nossos dias a ética social é inse parável da ação social (Hirsch, 2000, p. 106).

Rav Hirsch defendia que a integração de sionismo e ju daísmo e o compromisso do movimento reformista norte -americano com o Estado de Israel era o caminho para estabelecer um judaísmo baseado na ética social em todo o mundo. Não se tratava de expandir a influência das insti tuições norte-americanas, mas, sim, de retirar da ortodoxia o monopólio da interpretação que guia as políticas pú blicas em Israel, como, por exemplo, ocorre com o matri mônio, o divórcio ou a educação. Hirsch acreditava que, sem esse compromisso, o judaísmo do israelense laico ter minaria desaparecendo para se converter em uma identi dade israelense sem judaísmo.

Este olhar gerou uma profunda controvérsia dentro da Se o judaísmo reformista centrava seus ideais na ética profética, estava chamado a se ocupar dos temais centrais que naqueles anos dominavam a cena pública dos Estados Unidos: a pobreza, a desigualdade, a Guerra do Vietnã, os direitos civis dos afrodescendentes.

União para o Judaísmo Reformista, em especial com aque les que através da criação do Estado de Israel interpretavam o mapa judaico de um modo diferente. No dizer de San tiago Kovadloff, a transformação da diáspora em eleição, em vez de imposição (o castigo divino), provocava, nes te ato de vontade, a própria extinção do conceito de diás pora judaica. Para Hirsch, entretanto, Israel seguia sendo “Broadway, e a diáspora o off-Broadway” (Rosove, 2021). Hirsch concentrou seus esforços em sustentar essa cen tralidade de Israel e aproximar a reforma desta direção. Neste sentido, foi um dos impulsores da mudança de visão da União do Judaísmo Reformista que, em 1976, na Plataforma de San Francisco, expressou um novo paradig ma, que alterou as definições de Pittsburgh: “Temos tan to um interesse como uma responsabilidade na constru ção do Estado de Israel, assegurando sua segurança e defi nindo seu caráter judaico” (Reform Judaism: A Centenary Perspective, 1976). Essa mudança não apenas foi uma re definição teórica, mas também um impulso ao desenvol vimento do judaísmo progressista em Israel.

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Indubitavelmente, a controvérsia sobre o lugar de Israel na construção da identidade judaica continua presente. E, sem medo de errar, é um debate ainda pendente na Amé rica Latina. Tão pendente como uma discussão sobre o pa pel das lideranças judaicas da região, que podem concentrar seus esforços nas preocupações comunitárias ou sina gogais, ou em aproveitar estas instituições para dirigir seus esforços para a ação social. Não se trata aqui de oferecer respostas para estes deba tes, mas sim de destacar a fortaleza da vocação que exer ceu o rabino Richard G. Hirsch, falecido há um ano. Uma vocação que nasceu do incômodo, do debate, inclusive do enfrentamento, com ideais e lideranças consideradas imovíveis e intocáveis. Uma vocação que pode se apresentar como um modelo para a liderança judaica reformista na América Latina. Damián Glanz é jornalista, nascido na Patagônia argentina. Desde 1998 trabalha em jornais, revistas, rádio e televisão. Se especiali zou em análises do discurso político. É responsável pelas cadeiras de Argumentação e Expressão oral e escrita do Instituto Iberoame ricano de Formação Rabínica Reformista. Gentilmente traduzido do espanhol por Michel Ventura. Referências CCAR Responsa (1954), Marriage of a Negro Man to a Jewish Woman, https://www.ccarnet.org/ccar-responsa/arr-440-441/ Declaration of Principles (1885), Pittsburgh Conference, Hirsch,ccarnet.org/rabbinic-voice/platforms/article-declaration-principles/https://www.Richard(1962),

The purpose and program of the UAHC Reli gious Action Center, discurso oferecido na inauguração da institui ção. https://www.rac.org/sites/default/files/hirschRAC.pdf Hirsch, Richard (2000), From the Hill to the Mount: A Reform Zionist Quest (1ª ed.), Gefen Books. Reform Judaism: A Centenary Perspective (1976), San Francisco Con ference, Rosove,-reform-judaism-centenary-perspective/https://www.ccarnet.org/rabbinic-voice/platforms/articleJ.L.(18deagostode2021).‘ Israel is Broadway; the Diaspo ra is Off-Broadway’ – Rabbi Richard Hirsch z”l The Times of Israel -off-broadway-rabbi-richard-hirsch-zl/https://blogs.timesofisrael.com/israel-is-broadway-the-diaspora-is À esquerda: O Rabino Hirsch, primeiro à direita, e ativistas judeus em Marcha pelos direitos civis dos negros, 1963. À direita: Rabino Hirsch, 2011.

Cúpula da nova sinagoga de Berlim. Bessy/iStockphoto

SIBRA – Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência1

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Irmã mais velha, fundada em 29 de agosto de 1936, nasceu tradicionalis ta, quase ortodoxa. Contava com uma mescla de alemães imigrados do campo e alemães imigrados da cidade, o que já garantia uma kehilá (congregação) di versa desde seu início. Como aconteceu com suas irmãs, suas primeiras ativi

Hoje, as três irmãs são gloriosas octogenárias, cada uma protagonista de sua própria história, colhendo frutos de suas iniciativas, de seus esforços, de seus trabalhos.

rês comunidades irmãs nasceram e cresceram interligadas. Sua missão era trazer ao Brasil o ambiente cultural, intelectual, social e religioso vivenciado na Alemanha por seus fundadores. Todas nascidas de projetos sociais de beneficência e amparo aos imigrantes, acabaram por se desenvolver e se tornar ícones da intelectualidade e do judaísmo liberal ale mão em terras brasileiras. Durante décadas estas três irmãs colaboraram entre si, construíram projetos de juventude, cultura e religião juntas, e assumiram diante da comunidade judaica brasileira como um todo a função de serem as precursoras de questionamentos e mudanças no judaísmo brasileiro, e da co munidade judaica na sociedade brasileira.

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Andrea Kulikovsky

Hoje, afastadas, sofrem, cada uma a sua maneira, a falta das irmãs. O po tencial de construção conjunta e fortalecimento mútuo, comprovado pela his tória, pode e deve ser retomado, baseado na responsabilidade de pioneirismo que estas comunidades de origem germânica assumiram para si mesmas nos primórdios de suas histórias.

TRÊS IRMÃS, UM DESAFIO

CIP – Congregação Israelita Paulista2

Poucos meses após a fundação da SIBRA, um grupo de ativistas paulistas, liderados pelo rabino Prof. Dr. Fritz Pinkuss fundou oficialmente a CIP em 4 de outubro de 1936. Da mesma forma que sua irmã mais velha, a CIP se originou do trabalho beneficente dos judeus alemães pau Ensaio de coro na sinagoga da SIBRA, em Porto Alegre.

20 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI dades foram de apoio aos imigrantes alemães, o que acon tecia na casa de um de seus fundadores. Serviços religio sos começaram a ser celebrados, e rapidamente se estabe lecia o centro de convivência, beneficência e religiosidade que gerou a SIBRA. No início, dado o perfil tradicionalista da comunidade, além de mulheres e homens estarem separados para os ser viços religiosos, não havia órgão ou coro litúrgico misto. O sidurim eram em hebraico, trazidos por membros da co munidade desde a Europa. A primeira Torá chegou antes do estabelecimento formal da comunidade, e a Comissão de Damas foi estabelecida um ano após a fundação da co munidade, apesar de um de seus fundadores ser uma mu lher, Dra. Nina Caro, ativista importante, que foi também a primeira conselheira da SIBRA. Estabelecer um cemitério é uma das primeiras priori dades para uma nova comunidade judaica. No caso da SI BRA, estabelecer uma Chevra Kadisha era um passo im portante, conquistado em 1940.

Educação e juventude foram pilares essenciais desde o início da SIBRA, mas somente em 1955 foi estabelecido formalmente o departamento de juventude, chamado SIBRA Juvenil. Também foi em 1955 que foi celebrado o primeiro Bat Mitsvá na SIBRA, um marco de pioneiris mo, que levou a diversas mudanças posteriores, como o estabelecimento do coro composto por homens e mulhe res, em 1971; a adoção do órgão para os serviços religiosos em 1974, e finalmente a adoção de sidurim com tradução e transliteração, e o final da segregação por gênero nos as sentos da sinagoga em 1980.

Lar das Crianças da Congregação Israelita Paulista, década de 1950.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 21 listas, que havia criado a CARIA – Comissão de Assistência aos Refugiados Is raelitas da Alemanha ‒, junto com a So ciedade Israelita Paulista – SIP ‒, fundada por jovens imigrantes alemães, preocupa dos em criar um ambiente cultural e inte lectual para outros jovens imigrantes ale mães. Assim como a irmã gaúcha, a CIP desde o início se coloca como objetivos a religião, a assistência social e a cultura, adicionando em seus estatutos ensino re ligioso e juventude. Nasce já movida pela ideologia Libe ral Alemã e com um rabino como fundador e guia para a comunidade, características bastante diferentes da gaúcha SIBRA, que viriam a ser importantes no desenvolvimento da CIP enquanto comunidade. Se, por um lado, a Chevra Kadisha foi criada no mes mo ano da fundação da CIP, a Comissão de Damas foi estabelecida ainda antes da fundação formal da CIP, em 1936, tendo sido uma das maiores forças motoras para o trabalho beneficente desde os princípios desta comunida de. O mesmo pioneirismo é visto com re lação à educação, cujo departamento foi oficialmente estabelecido na fundação da CIP, e juventude, com a criação do movimento escoteiro que originou a Avanhan dava, em 1938, e a primeira colônia de fé rias em 1940. No campo religioso, a CIP também mostrou desde cedo sua ligação com o movimento Liberal Alemão, através da adoção do órgão e do coro litúrgico mis to desde sua fundação. A adoção de sidurim com tradu ções livres das rezas em hebraico para o português aconte ceu em 1947, um dos projetos conjuntos da CIP com sua irmã carioca, a ARI. ARI Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro3 “A história da ARI remonta a meados dos anos de 1930, com a chegada dos primeiros refugiados judeus oriundos da Alemanha ao Rio de Janeiro e a São Paulo. Eles são Assim como a irmã gaúcha, a CIP desde o início se coloca como objetivos a religião, a assistência social e a cultura, adicionando em seus estatutos ensino religioso e juventude.

Já em relação ao sidur, conforme men cionado no livro Desafio e Resposta, ao falar da decisão da CIP em manter a linha liberal, “o rabino [Pinkuss] foi muito fe liz e hábil na seleção das preces, manten do as que eram mais valiosas. Neste perío do, já se anuncia para os anos seguintes a edição de livros de oração no vernáculo, cujo preparo vem sendo cuidado por ele, com a colaboração do Rabino Lemle, do Rio. Com sua efetiva publicação, cristali zou-se um rito liberal próprio”.

A redação da tradução do Aleinu ela borada para este sidur, em minha opi nião, é uma das mais bonitas, refletin do perfeitamente o ideal Liberal Alemão, que não via o povo judeu como escolhido, nem separado das outras na ções do mundo: Os rabinos Pinkuss e Lemle assumiram a empreitada conjunta de fazer um sidur e um machzor em hebraico e português, com traduções livres que refletissem o ideal Liberal Alemão, e com a inserção somente das rezas que seriam utilizadas pelas comunidades.

Também foi a ARI, em 1989, a primeira a decidir oficialmente pelo igualitarismo entre homens e mulheres em termos religiosos, quando também foi deci dido que homens e mulheres se sentariam juntos na sina goga. Outro projeto de absoluta vanguar da foi o Kindergarten ARI, escola para crianças pequenas, fundada em 1955. Liturgia – o primeiro grande projeto Por incentivo de Lady Lilly Monta gu, e por uma necessidade intelectual e ideológica percebidas em suas comunida des, os rabinos Pinkuss e Lemle assumi ram a empreitada conjunta de fazer um sidur e um machzor em hebraico e por tuguês, com traduções livres que refletis sem o ideal Liberal Alemão, e com a in serção somente das rezas que seriam utilizadas pelas comunidades. De acordo com a Revista ARI 70, o machzor conjunto foi lançado em 1949: “No Boletim de 15 de outubro de 1949 foi noticiado o lançamento, com coque tel e presença de membros expoentes da ARI, da CIP e da comunidade carioca, do novo machzor, uma edição conjunta da CIP e da ARI. Na ocasião, o rabino decla rou: ‘Aqui na ARI reina um ambiente fa miliar e cordial que nos lembra das nossas antigas comunidades europeias’”.

22 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI assistidos e albergados por um grupo de emigrantes de várias origens já estabeleci dos no Brasil, na velha sede do Relief-So ciedade Beneficente Israelita”.4 A partir das reuniões do grupo de imigrantes ale mães que foram ao Rio de Janeiro nasce a célula beneficente que dará origem à ARI. Em 1940 chega ao Rio de Janeiro o ra bino Dr. Henrique Lemle, com sua espo sa, Margot, e seu filho, Alfred, enviados pela World Union for Progressive Judaism (WUPJ) para colaborar na formação de uma comunidade religiosa de cunho li beral, por pedido do rabino Pinkuss, de São Paulo. Vinham, com o apoio de Lady Lilly Montagu, presidente da WUPJ em Londres, que o resgatara do campo de concentração de Buchenwald. A fundação oficial da ARI aconteceu em 13 de janeiro de 1942, com objeti vos similares aos de suas irmãs, mas com uma ideologia desde o princípio alinha da com a da WUPJ. Assim, havia coro, mas homens e mulheres sentavam-se se parados. A comissão de mulheres, assim como na sua irmã paulista, foi estabeleci da ainda antes da sua fundação, como pi lar básico dos trabalhos beneficentes que norteiam os trabalhos voluntários da ARI até os dias de hoje. O órgão, marca regis trada da musicalidade da ARI até hoje, foi inaugurado na nova sede em novem bro de 1962. A irmã carioca foi a mais vanguardista desde cedo. Celebrou a primeira cerimô nia de Bat Mitsvá em 1946, antes de suas irmãs, e contratou a primeira rabina em 2003, quando a CIP contratou somente em 2014 e a SIBRA ainda não chegou a este momento, apesar de ter uma Baalat Tefilá (mulher líder de reza) desde 1998.

O caráter progressivo e de intensa participação comunitá ria da ARI se mostrava com força nessa iniciativa.

Entre os momentos em que estas comunidades se ce lebraram estão as inaugurações de sedes próprias das dife rentes comunidades, como relata o livro que conta a his tória da SIBRA, Em Terras Gaúchas: “A sagração da sinago ga decorreu de modo sumamente solene com os ritos reli giosos adequados à ocasião... encontravam-se presentes os Rabinos Dr. Fritz Pinkuss, da CIP de São Paulo, e o Grão -Rabino Henrique Lemle, da ARI do Rio de Janeiro, além do representante da NCI, de Montevidéu, Dr. Hirschlaff”.

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Já em 1963, a ARI lança seu próprio sidur, buscan do um material que facilitasse a participação ativa dos fre quentadores do Shabat e “estabelecer o contato mais ínti mo possível entre os fiéis e as belas tradições do Shabat”, conforme palavras do próprio rabino Dr. Henrique Lemle.

Searagen/iStockphoto

Em contraste, o novo sidur de Cabalat Shabat da ARI, alinhado com a ideologia reformista atual de que devemos conhecer literalmente o que estamos falando em hebrai co, traduz: “Devemos louvar ao Senhor de todas as coisas, e outorgar grandeza ao Criador do universo. Que não nos fez como os demais povos, e não nos dispôs como as fa mílias da Terra”.

Celebrando umas às outras Algumas das grandes conquistas das sinagogas irmãs aconteceram por esforços conjuntos, outras por esforços dos congregantes, mas também houve apoio financeiro da Claims Conference, através da CENTRA – Associación de Comunidades y Organizaciones em America Latina. Fun dada em Montevidéu, pretendia congregar todos os gru pos de imigrantes judeus de fala alemã da América Latina. Assim, as comunidades da Argentina, do Chile, Uruguai e Brasil trabalharam juntas, se ajudaram e se celebraram.

Desde sua fundação, as três irmãs demonstram sua in tenção de serem pontos de convergência social, intelectual

Os relatos se repetem nos livros de memórias das três irmãs, em diferentes ocasiões em que rabinos trabalharam juntos, se visitaram, se celebraram nas conquistas de suas comunidades. Juventude como ponto de convergência

“Cumpre-nos pronunciar o louvor ao Senhor do mun do, a grandeza do Criador do universo. Foi Ele quem nos confiou seu sagrado serviço como missão Eterna”. Esta tra dução é mantida no sidur da CIP até os dias de hoje.

Um futuro conjunto “A história exige que a sociedade assim como o indivíduo se esforcem por novas compreensões e façam novas decisões.” (FritzHoje,Pinkuss)astrês irmãs são gloriosas oc togenárias, cada uma protagonista de sua própria história, colhendo frutos de suas iniciativas, de seus esforços, de seus traba lhos. Três irmãs que no decorrer de suas histórias já estiveram mais perto e mais distantes, mas nunca mais foram tão par ceiras como no início de suas trajetórias.

Três comunidades formadas por imigrantes alemães, cujos objetivos eram cui dar uns dos outros, criar espaços de con vivência e estudo, lugares onde queriam ver brilhar a cultura e a produção intelec tual, sem, no entanto, deixar de criar es paços para crianças e jovens. Três irmãs que mudaram a história da comunidade judaica brasileira com seu pioneirismo, sem medo de serem a vanguarda do judaísmo em sua nova terra. O presente exige que estas três irmãs continuem a ocu par este espaço de produção intelectual, questionamento, posicionamento social, ativismo e beneficência. O judaís mo brasileiro, mais do que nunca, necessita da coragem destas irmãs. Para tanto, é preciso que as irmãs se deem as mãos novamente, trabalhem juntas e se fortaleçam, umas às outras, para seu próprio bem, e para o bem de nossa co munidade como um todo.

A ARI foi a mais vanguardista desde cedo. Celebrou a primeira cerimônia de Bat Mitsvá em 1946 e contratou a primeira rabina em 2003. Também foi a ARI, em 1989, a primeira a decidir oficialmente pelo igualitarismo entre homens e mulheres em termos religiosos, quando também foi decidido que homens e mulheres se sentariam juntos na sinagoga.

24 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI e cultural para imigrantes alemães, característica bastante peculiar dos grupos ur banos que imigraram desde a Alemanha no início da guerra. A CIP, especialmente, teve, entre seus grupos fundadores, um grupo juvenil, trazendo a preocupação fundante com a juventude desde seu primeiro estatuto. A irmã paulista não somente teve seu de partamento da juventude estabelecido em sua fundação, mas também iniciou, um ano mais tarde, a primeira tnuá (movi mento juvenil), afiliada ao movimento es coteiro do Brasil. Também a primeira co lônia de férias da CIP foi logo de sua fundação, em 1940.

Andrea Steuer Zago Kulikovsky é assistente de rabinato na ARI e aluna do Instituto Iberoamericano de Formación Rabínica Reformista. Foi diretora voluntária de educação e juventude da CIP por 10 anos. Notas 1 Em Terras Gaúchas – A história da imigração judaico-alemã; Blumenthal, Gladis Wiener; Sibra. 2 Desafio e Resposta – A história da Congregação Israelita Paulista; Hirschberg, Alice Irene; CIP. 3 Revista ARI 70 Anos; Comissão ARI 70; ARI 4 Revista ARI 70 Anos 5 “Jazit” e “Chazit” se referem à mesma palavra hebraica. A diferença na notação existe por conta da diferente forma de transliterar a letra hebraica “chet” em espa nhol e em português.

De acordo com o livro Em Terras Gaú chas, o primeiro Campo de Estudos da SIBRA aconteceu no verão de 1956, e “o monitor Roberto Mainrath, um jovem madrich de juventude da Associação Re ligiosa Israelita, ARI, do Rio de Janeiro, foi um dos primei ros convidados da SIBRA. Sua vinda visava demonstrar a organização e os métodos da educação informal, da for mação do jovem pelo jovem numa comunidade judaica”. A integração das juventudes das três irmãs se torna mais patente na criação da Chazit Hanoach Brazilait, como des creve a Revista ARI 70: No “seminário nacional em Cam pos do Jordão, com participantes de São Paulo, Rio de Janeiro (jovens da ARI), Rio Grande do Sul (jovens da Si bra), com o intuito de filiarem-se a um movimento juvenil sionista apartidário, das diversas comunidades de origem centro-europeia da América do Sul (Central). Já na Argen tina, no Uruguai e Chile existia a ‘Jazit ha Noar’. Agora no Brasil, após longos e acalorados debates sobre sua filia ção, simbologia, linha ideológica e modo de atuação, cria -se a Chazit Hanoar”.5 Relatos posteriores contam sobre a colaboração de jo vens da CIP com a juventude da ARI, e outras colabora ções entre as juventudes das três comunidades irmãs, pro vando que é possível manter a construção conjunta e a co laboração, de modo a fortalecer e criar novas iniciativas, que mantenham vivas e vibrantes as três comunidades.

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JUDAICASegundoosnúmerosdapesquisadoIBGEnocensode2010,osjudeusnoBrasilsomariam107milindivíduos.Apenasumterçodosjudeusbrasileirosmantémalgumaformaderelacionamentocomojudaísmo.

Kelita Cohen

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s dados censitários sobre o número de judeus no Brasil coletados pelo IBGE nos censos decenais são imprecisos e, segundo DellaPergola (2011), a complexidade das discrepâncias numéricas decorrem de determinantes externas e internas. No caso específico do censo, um dos fatores se deve ao fato de estar a categoria “judeus” justamente incluída no campo religião, na qual os entrevistados são convidados a responder qual a religião de cada um dos membros do seu domicílio. No contexto de uma sociedade em processo intenso de secularização como a brasileira, um número cada vez maior se diz sem religião. É possível que mui tos se definiriam como judeus por outras características (sociais, étnicas, cultu rais ou históricas) se a pergunta tivesse sido de outra natureza.

OIntrodução

O ESTUDO: ALIMENTO DA CENTELHA

De fato, mesmo sem poder expressar com exatidão o número de judeus no País, a análise histórica do número de pessoas que se identificaram como judeus diminuiu entre 1980 e 1991, provavelmente pela primeira vez desde que mem bros desse grupo começaram a imigrar em maior número para o Brasil, a partir da década de 1920. A se manter essa tendência, judeus poderão estar cada vez mais expostos às poderosas forças de assimilação e de secularização da socieda de brasileira. No limite, correm o risco de perder sua identidade como um gru po social específico, com uma história e uma cultura distintas (Decol, 2001).

Mesmo com essas dificuldades metodológicas para a obtenção de dados demográficos confiáveis, segundo os números da pesquisa do IBGE no censo

Por isso, já se tornou quase um clichê a narrativa de que o ciclo da vida judaica envolve um período de aprendizagem até a idade de bat/ bar mitsvá, seguido pela participação e ativismo em algum movimento juvenil, e logo um desligamento dos vínculos comunitários para dedicar-se à carreira e, em uma parcela dessas trajetórias recorrentes, o retorno à sinagoga quando os filhos nascem. Outra parte desses indivíduos vai se so mar àquela maioria dos dois terços nos quais o judaísmo já não encontra espaço em suas rotinas. Antecedentes Um fenômeno semelhante é relatado na história do ju daísmo alemão um século atrás. Como resultado do pro cesso de Emancipação da Europa Ocidental concomitan te à saída dos judeus dos guetos, vê-se um movimento de alienação em relação ao judaísmo, do qual Franz Rosenz weig era parte. No entanto, logo que viu claro seu caminho para permanecer judeu e dedicar sua vida à causa do ju Martin Buber: A questão não é mais equipar com conhecimento, mas mobilizar para a existência.

O segundo, que em certa medida pode ser consequên cia do primeiro motivo, diz respeito à pouca relevância dos conteúdos judaicos ensinados nos púlpitos e nas sa las de aula frente às necessidades da vida contemporânea.

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de 2010, os judeus no Brasil somariam 107 mil indivíduos. Quando comparado ao número de pessoas que participam da vida judaica religiosa ou comunitária ain da que uma única vez ao ano, um dado chama a atenção: apenas um terço dos ju deus brasileiros mantêm alguma forma de relacionamento com o judaísmo. Os motivos para tal desengajamento judaico por parte de dois terços da população judaica se devem a pelo me nos três fatores, que me parecem importantes para esta discussão.Oprimeiro deles tem a ver com a orientação da instru ção judaica atual, fortemente centrada no público infan to-juvenil, quer no âmbito da educação formal, quer nos programas de educação suplementar ou informal ofertados pelas diversas instituições. Essa orientação termina por de finir contornos de um judaísmo pediátrico.

E por último, as crescentes demandas de profissiona lização e investimento de tempo e recursos na constru ção de uma carreira para fazer frente à competitividade do mercado de trabalho têm deixado pouco espaço nas agendas pessoais para um en volvimento comprometido dos dois ter ços dessa população com os judaísmos ofertados na rua judaica.

Para esse mesmo período, a comunidade judaica pas sou a ter o direito de indicar um candidato para uma dis ciplina (Lehrebeauftrag) em Estudos Judaicos, especifica mente em Jüdische Religionswissenschaft und Ethik (Estu dos Religiosos e Ética Judaica). Martin Buber vem a ocu par assim a posição de diretor do Escritório Central para a Educação Judaica Adulta na Representação Nacional de Judeus Alemães (Reichsvertretung der deutschen Juden) na Alemanha, responsável por treinar professores voluntários e líderes para os movimentos juvenis judaicos (tais como o Betar e o Hashomer Hatzair), bem como por oferecer apoio às diversas Lehrhäuser. A mais famosa delas foi a Frank furt Freies Jüdisches Lehrhaus, onde Buber havia trabalhado anteriormente com Franz Rosenzweig, mas outras foram abertas também em Berlim, Breslau, Stuttgart, Munique e outros locais. Depois da morte precoce de Rosenzweig, Buber assumiu a direção da Lehrhaus, em 1930. O compromisso de Buber com a educação sempre se concentrou nas ideias de comunidade e de diálogo. Esse compromisso foi resumido na Primeira Carta Circular do Centro de Educação Judaica para Adultos, em maio de 1934 – uma carta aberta de Buber à comunidade judaica sob o jugo nazista: O conceito de “educação judaica para adultos” poderia ser

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 29 daísmo, Rosenzweig percebeu a necessidade de uma reor ganização radical da instrução judaica em todos os níveis e de um repensar a função da educação judaica na Europa.

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Segundo Glatzer (1956), diante da falta de preocupa ção da pesquisa acadêmica com as necessidades da vida judaica contemporânea, a degradação da instrução religiosa nas escolas, o baixo nível de engajamento dos grupos cul turais e sociais, Rosenzweig se deu conta de que pequenas melhorias seriam insuficientes; apenas uma reorientação geral da vida cultural poderia reverter a situação.

Tal constatação, aliada ao fato de os judeus terem sido excluídos das instituições formais de educação na Alema nha, teve como resposta de Rosenzweig a criação da Frank furt Freies Jüdisches Lehrhaus (Casa Aberta do Saber Judai co de Frankfurt, em tradução livre), que abriu suas portas em 17 de outubro de 1920, sob sua direção. Graças à qua lidade de seus participantes e de suas práticas pedagógicas, foi uma das experiências de ensino mais interessantes da história moderna do judaísmo alemão. Como resultado da longa reflexão de Franz Rosenzweig sobre como estimular uma vida judaica intensa diante da diluição assimiladora, do liberalismo religioso e da neo-ortodoxia, a Lehrhaus foi concebida para renovar o estudo do judaísmo, coração da vida e do mundo judeu. (Hanus, 2017)

O êxito da Lehrhaus foi ter conseguido atrair estudio sos como Martin Buber, S. Y. Agnon, A. J. Heschel, Ger shom Scholem e Erich Fromm que, em diálogo com o público maior, puderam promover o renascimento inte lectual judeu no período entre-guerras, até seu fechamen to pelos nazistas. Lições aprendidas Como exposto, guardadas as devidas proporções, esta mos hoje no Brasil diante de um fenômeno semelhante ao ocorrido no século passado na Alemanha, em termos de desengajamento do judaísmo por parte de uma parcela sig nificativa da população judaica. E assim como pudemos encontrar um paralelismo nos sintomas apresentados aqui e lá, também podemos apren der com as estratégias judaico-alemãs adotadas, as quais ti veram sua implementação e eficácia validadas. A constitui ção de um organismo dedicado à educação judaica adul ta fez renovar o estudo do judaísmo e revitalizar a vida ju daica naquele momento.

Ao focalizar a iniciativa de Rosenzweig e Buber como uma possível fonte de inspiração, duas iniciativas se desta cam como respostas ao problema brasileiro aqui mencio nado. A primeira delas é a criação de uma entidade de for mação rabínica ibero-americana1, que tem na sua gêne se uma busca constante por manter a centelha judaica na região. Ao preparar rabinas e rabinos que educam indiví duos para construir uma comunidade que, além de conhe cer o seu passado, dialoga com a realidade, cria as condições para uma renovação das práticas rabínicas com vistas à continuidade judaica. A segunda e mais recente iniciativa é a criação da Aca demia Judaica.2 Ao criar as condições para a dissemina ção do conhecimento produzido na atualidade por pes quisadores dedicados a investigar temas judaicos, para que, em diálogo com rabinos e educadores, tais conhecimentos inovadores possam ser traduzidos e aplicados às suas prá ticas profissionais, abre-se caminho para uma renovação e revitalização do pensamento judaico. Em sua estratégia de amalgamar tradição e inovação, utiliza ferramentas tecnológicas modernas, que permitem que o estudo seja incor porado às dinâmicas correntes da vida, ao mesmo tempo em que preserva os fundamentos dos métodos judaicos talmúdicos de construir conhecimento, a saber, o Pilpul3 e a Havruta 4 E, finalmente, a questão das dinâmicas da vida pro fissional que têm ocupado todos os espaços nas agendas de judias e judeus da contemporaneidade, sem deixar lu gar ao engajamento comunitário e à espiritualidade judai ca, pode ser solucionada colocando o judaísmo não como um concorrente, mas um aliado na formação profissional. Assim, ao formar comunidades de pares para o estudo das suas áreas de conhecimento em diálogo com o judaís mo, cria-se a possibilidade de uma dupla iluminação, na qual a centelha judaica mencionada por Buber é alimen tada, ao mesmo tempo em que participa na formação de profissionais mobilizados para a existência e com um re novado sentido de pertencimento a uma tradição milenar. O fundamento do método foi muito bem explicado por

Essa perspectiva de uma educação continuada que focaliza o indivíduo ao longo de todo o seu ciclo vital, por si só, já é um contraponto ao problema brasileiro identifica do anteriormente, de uma orientação instrucional centra da no público infanto-juvenil. Assim mesmo, a preocupação pela qualidade do conhe cimento produzido pela pesquisa acadêmica, aliada a prá ticas pedagógicas inovadoras e sensíveis às necessidades da vida judaica contemporânea, podem levar aos púlpitos e às salas de aula a relevância que atualmente se encontra pouco disponível, ao ponto de encontrar um espaço na vida da maioria de judias e judeus.

30 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI entendido, até há pouco tempo, como “elementos de educa ção” ou “valores culturais” que deveriam ser transmitidos aos indivíduos em crescimento e já crescidos – por exemplo, dan do uma ideia de “educação superior” àqueles que não eram privilegiados o suficiente para obtê-la ou de iniciação àque les não familiarizados com temas judaicos em conhecimentos gerais dessa comunidade [...]. A questão não é mais equipar com conhecimento, mas mobilizar para a existência. Pessoas, pessoas judias, devem ser formadas, pessoas que não mais ape nas “resistirão”, mas defenderão alguma substância na vida, que não terão apenas a moral, mas a força moral e que assim conseguirão transmitir a força moral aos outros; pessoas que vivem dessa maneira de tal modo que a centelha não morre rá. Como nossa preocupação é pela centelha, trabalhamos pela “educação”. O que ambicionamos fazer ao educar indivíduos é construir uma comunidade que se manterá firme, prevale cerá e preservará a centelha. (Buber, 1999, p. 51-52, apud Guilherme & Morgan, 2020, p. 19-19).

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4 Havruta (Heb. חַבְרוּתָא to de “chavruta” tornou-se um dos principais aspectos do Rabi Isaac Abravanel (1437-1508) ao interpretar a mishná “Faça para si um ra bino e adquira para si um amigo” (Pir kei Avot 1:6), significando que se deve aprender tanto com os professores quan to com seus pares. Como enfatizou Emmanuel Levinas, grande filósofo judeu da modernidade, sem educação ju daica não pode ter lugar a existência judaica (Kovadloff, 2013). Portanto, o estudo da Torá, em sua ampla acepção, não deve ser algo desconectado da vida cotidiana, mas deve permitir o aprimoramento do indivíduo como ser atuan te na sociedade, tanto quanto deve favorecer a sua recone xão e o fortalecimento dos vínculos com sua matriz iden titáriaAssim,judaica.além de sinalizar a importância de organizar o ensino no campo da educação judaica continuada de for mas diversificadas, esta reflexão é também um convite a cada indivíduo que se reconhece parte dessa tradição mi lenar e pertencente ao vínculo intergeneracional judaico a se engajar em algum dos programas disponíveis no Brasil, quer pela Academia Judaica, quer pelo IIFRR, ou ainda através de qualquer atividade de estudo judaico para adul tos. Com o foco não mais posto na transmissão passiva da tradição e do conhecimento, mas na construção ativa de um saber que faz sentido face à realidade à nossa volta, a continuidade judaica estará assegurada para as próximas gerações, livre do medo da assimilação. Kelita Cohen é psicóloga, com Doutorado em Psicologia na área do Humano e Educação; está no 5º ano de estu dos rabínicos no IIFRR-Instituto Ibero-americano de Formação Rabínica Reformista e atua como diretora executiva da Academia Judaica na Con gregação Israelita Paulista. Referência bibliográfica Abravanel, Isaac. Disponível em Decol,Avot.1.6.6?lang=en&with=About&lang2=enSefaria:RenéDaniel.

A continuidade judaica estará assegurada através da construção ativa de um saber que faz sentido face à realidade à nossa volta.

3 Pilpul (Heb. פִּלְפּוּל), termo derivado de pilpel (“pimenta”), denota um conjunto de métodos de estudo utilizado pelos sábios do Talmud, nos quais os argumentos e as opiniões próprias encontram espaço em harmonia com a tradição.

Desenvolvimento

2 Organismo de educação adulta e continuada criado pela Congregação Israelita Paulista voltado à comunidade judaica lusófona.

Notas

1 Instituto Ibero-americano de Formação Rabínica Reformista (IIFRR), instituído em 2017 na Argentina.

Judeus no Brasil: explorando os dados censitários Rev. Bras. Ci. Soc. 16 (46), Jun 2001 Dellapergola, Sergio. Cuántos somos hoy? Investigación y narrativa sobre población judía en América Latina dith Bokser. Pertenencia y Alteridad: judíos en/de Amé años de cambios. México: Templo Emulado, 2011, p. 305. Glatzer, Nahum. The Frankfort Lehrhaus Book, Volume 1, Issue 1, January 1956, pp. 105-122. Guilherme, Alexandre; Morgan, W. John. ção: nove filósofos europeus modernos ca de Brasília, 2020. Hanus, Gilles. The “Jewish House of Free Study” (freies jüdisches Lehrhaus) of Franz Rosenzweig. In: pp. Kovadloff,55-66.Santiago. La extinción de la diáspora judía nos Aires: Emecê, 2013, p. 49. Citando a Levinas, Emmanuel. ficil Libertad.

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Ainda no tema das relações com os EUA, Ettinger defendeu a posição que a ajuda que Israel recebe reverte em benefícios tecnológicos muito expressivos para os Estados Unidos, de forma que ela é mais um investimento que uma despesa. E, diz ele, muitos membros do Congresso norte-americano enxergam a questão sob essa ótica. Um exemplo impressionante fundamenta esta afirma ção: o caça F-16 incorpora hoje mais de 700 aprimoramentos oriundos da ex 1 Itschak Shamir (1915-2012) serviu como primeiro-ministro de Israel entre 1983-84 e 1986-92.

Entrevista com Yoram Ettinger

Ele foi gentilíssimo, se prontificando imediatamente a receber a Devarim em seu apartamento em Jerusalém. A entrevista de aproximadamente três ho ras centrou em dois eixos: As relações entre Israel e EUA, sobre a qual Ettinger relatou principalmente os resultados benéficos da postura intransigente, mas bem-fundamentada, do ex-primeiro-ministro Itschak Shamir1 e também so bre as diversas pressões que os governos norte-americanos exerceram sobre Is rael desde 1948, ressaltando que o governo Trump foi o único até hoje a não exercer esta pressão.

MAIORIASÓLIDAJUDAICA

UMA

S eguindo a indicação de uma amiga da ARI, a Devarim entrou em con tato com o diplomata israelense Yoram Ettinger, nascido em 1945, em busca de uma entrevista sobre suas percepções a respeito das relações entre os governos dos EUA e de Israel. Tendo servido na delegação diplomática israelense nos EUA entre 1985 e 1992 e mantendo, com cargo de embaixador, a posição de consultor do governo israelense em seu contato com o Congresso norte-americano, Ettinger está numa posição privilegiada para compartilhar sua visão com os leitores de Devarim.

O interesse de Ettinger foi despertado pela insistência com que o argumento da “bomba demográfica” que ameaçaria Israel pelo crescimento da população palestina e árabe israelense é usado para pressionar Israel a se retirar para as linhas de armistício de 1949.

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36 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI periência de uso israelense. Além disso, há a questão da inteligência. Segundo Ettin ger o falecido senador Daniel Inouye, que serviu como chairman do Comitê de Se gurança do Senado norte-americano, afir mou que o volume de informações de in teligência recebidas de Israel excede o re cebido de todos os países da OTAN em conjunto.Osegundo eixo da entrevista foi a questão da demografia judaica e árabe em Israel e nos territórios ocupados pós-guer ra de 1967, aos quais ele refere pela de nominação bíblica “Yehudá e Shomron”, normalmente expressos em português como “Judéia e Samaria”. Há anos Ettin ger se interessa muito por este assunto e o acompanha co letando e organizando todas as informações possíveis. Seu interesse foi despertado pela insistência com que o argumento da “bomba demográfica” que ameaçaria Israel pelo crescimento da população palestina e árabe israelen se é usado para pressionar Israel a se retirar para as linhas de armistício de 1949. Sem nem concordar nem discordar dos números apre sentados pelos formuladores da ameaça demográfica, Et tinger resolveu estudar a fundo o assunto. E suas conclu sões são muito interessantes! Em 24 de março de 2022, antes que Devarim pudesse compor um texto com a entrevista, Ettinger publicou em seu blog “The Ettinger Report” (theettingerreport.com) todas as informações demográficas que ele transmitiu na entrevista (a propósito, recomendamos a todos os interes sados nas relações EUA-Israel a assinarem o blog, que é se manal e Resolvemosgratuito).então publicar uma tradução do texto do blog de Ettinger em vez de um relato da entrevista, man tendo assim estrita fidelidade com as informações que ele transmitiu. Segue o texto do blog:

Em 2022, pela primeira vez – desafiando as projeções feitas pelo establishment demográfico de Israel desde o co meço da década de 1940 – a taxa de fertilidade judaico-is raelense excede a taxa de fertilidade muçulmano-israelen se. E, sobretudo, a taxa de fertilidade judaica de Israel é mais alta que a de todos os países árabes, exceto Iêmen, Iraque e Egito.

Em 2022, o momentum judaico demográfico (desde 1995) persiste com o setor judaico-secular fazendo a dife rença, enquanto o ultraortodoxo atravessa um ligeiro de clínio na taxa de fertilidade. Momentum Demográfico Judaico O número de nascimentos judaico-israelenses em 2021 (141.250) foi 76% maior que em 1995 (80.400), enquan to o número de nascimentos árabe-israelenses em 2020 (43.806) foi 20% maior que em 1995 (36.500), confor me reportado pelo Boletim Mensal de março de 2022 do Escritório Central de Estatística de Israel (ICBS).

Em 2022, Israel enfrenta uma potencial onda de aliá (imigração judaica) de algo em torno de 500.000 olim [imigrantes] da Ucrânia, Rússia, de outros países da ex -URSS, França, Grã-Bretanha, Alemanha, etc. Em 2022, a ocidentalização da demografia árabe persiste como uma consequência da modernidade, urbaniza ção, aumento do status social das mulheres, adesão das mu lheres ao ensino superior e maior uso de contraceptivos.

Em 2022, ao contrário da percepção convencional, Is rael não enfrenta uma potencial bomba demográfica ára be nas áreas combinadas da Judéia, Samaria e Israel pré1967. De fato, o Estado judeu se beneficia de um “vento em popa” demográfi co judaico.Em2022, o establishment político e demográfico em Israel e no Ocidente in siste em reverberar os números oficiais palestinos sem uma due-dilligence (au ditoria), ignorando uma inflação artifi cial de 50% nos números da população.

Existe um potencial de pelo menos 500.000 olim (imigrantes judeus) nos próximos 5 anos, quando se considera as comunidades judaicas na Ucrânia, em outras repúblicas da ex-URSS, França, Argentina,Grã-Bretanha,assimcomonosEUA,noCanadáenaAustrália.

ATUALIZAÇÃO DEMOGRÁFICA EM 2022 UMA SÓLIDA MAIORIA JUDAICA

Em 2022, Israel é a única democracia ocidental provida de uma taxa de fertili dade relativamente alta, que facilita um crescimento econômico adicional, sem dependência do trabalho de imigrantes. Além disso, a pujante demografia propicia segurança nacional (turmas maiores de recrutas) e uma política externa mais confiante.

Em 1969, a taxa de fertilidade árabe-israelense era 6 nascimentos mais alta que a taxa de fertilidade judaica. Em 2015, ambas as taxas de fertilidade eram 3,13 nascimen tos por mulher, refletindo a dramática ocidentalização da demografia árabe, desencadeada pelo status social superior da mulher, idade de casamento mais avançada, expansão da participação da mulher no mercado de trabalho e ciclo mais curto de tempo reprodutivo. Em 2020, a taxa de fer tilidade judaica era de 3 (e 3,27 com um pai judeu nasci do em Israel), enquanto que a taxa de fertilidade árabe ge ral era de 2,82 e a taxa de fertilidade muçulmana era de 2,99. A média da taxa de fertilidade da OCDE é de 1,61 nascimento por mulher.

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A expectativa de vida de árabes israelenses (78 para homens e 82 para mulheres) é similar à expectativa de vida dos EUA e mais alta que em qualquer país árabe -muçulmano.Em2021,o número de mortes de judeus israelenses foi 31% dos nascimentos judaicos, comparados com 40% em 1995 – um sintoma de uma sociedade cada vez mais jo vem. Em 2021, o número de mortes de árabes israelenses foi 15% dos nascimentos árabes, comparado com 8% em 1995 – um sintoma de uma sociedade cada vez mais idosa. Desde 1995, a tendência demográfica expandiu o seg

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Em 2021, houve 43.879 mortes de judeus israelenses comparada a 31.575 em 1996, um aumento de 39%, o que reflete uma sociedade cada vez mais jovem. Em 2021, houve 6.751 mortes árabes, comparado a 3.089 em 1996, um aumento de 119% que reflete uma sociedade cada vez mais idosa.

Em 2021, nascimentos judaicos foram 76% do total de nascimentos, comparados a 69% em 1995. A taxa de fertilidade (número de nascimentos por mu lher) de mulheres israelenses seculares subiu durante os úl timos 25 anos, enquanto que mulheres ultraortodoxas experimentaram leve declínio.

Mulheres judias israelenses – superadas apenas pela Is lândia em entrada no mercado de trabalho – são únicas em experimentar um incremento na taxa de fertilidade, em paralelo ao aumento da urbanização, educação, pa drão de vida, integração ao mercado de trabalho e aumen to da idade de casamento, enquanto que esses fenômenos reduziram a taxa de fertilidade em todos os outros países.

O crescimento único da taxa de fertilidade judaico-is raelense é atribuída ao otimismo, patriotismo, à ligação às raízes judaicas, solidariedade comunitária, valorização ju daica por criar filhos, mentalidade moderna e número de clinante de abortos.

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mento mais jovem da população judaica de Israel, o que propicia uma fundação sólida para uma expansão da maio ria judaica na próxima geração. A tendência positiva da demografia judaica é adicional mente amparada pela imigração líquida de Israel, que con siste de uma aliá (imigração judaica) anual, reforçada pelo encolhimento da emigração israelense: de 14.200 emigra ção líquida em 1990 para 6.000-7.000 emigração líquida em anos recentes. Além disso, existe um potencial de pelo menos 500.000 olim (imigrantes judeus) nos próximos 5 anos – aguardan do o governo israelense alavancar este potencial – quan do se considera as comunidades judaicas na Ucrânia, em outras repúblicas da ex-URSS, França, Grã-Bretanha, Ar gentina, assim como nos EUA, no Canadá e na Austrália. Ocidentalização da demografia árabe 500.000 residentes no exterior, que estão fora há mais de um ano, estão incluídos no censo de população pa lestina, em violação às regras aceitas internacionalmen te que estipulam somente uma contagem de-facto. Eram 325.000 no primeiro censo palestino de 1997, como do cumentado pelo chefe do Bureau Central Palestino de Es tatísticas; e aumentado para 400.000 em 2005, como do cumentado pela Comissão de Eleição Palestina. O número cresce diariamente em função dos nascimentos no exterior. 350.000 árabes do leste de Jerusalém, que possuem cé dulas de identidade israelenses são contados em duplicida de. Eles estão incluídos no censo israelense, enquanto tam bém incluídos no censo Palestino. O número cresce diariamente em função dos nascimentos. Mais de 150.000 árabes de Gaza e (a maioria) da Ju déia e Samaria, que se casaram com árabes israelenses e receberam cédulas de identidade israelense são contados em duplicidade: por Israel, assim como pela Autoridade Pa lestina. O número cresce diariamente em função dos nas cimentos.378.000 árabes emigrantes da Judéia e Samaria não são excluídos do censo de população da Autoridade Palestina que ignora a emigração líquida anual de árabes majorita riamente jovens da Judéia e Samaria (20.000 anualmente em anos recentes). Emigração líquida tem sido uma carac terística sistêmica dessa área, pelo menos desde a ocupa ção jordaniana em 1950. Por exemplo, 28.000 em 2021, 26.357 em 2019, 15.173 em 2017 e 16.393 em 2015, como documentado pela Autoridade Israelense de Imigra ção e População, que registra todas as saídas e entradas de judeus e árabes por via terrestre, aérea e marítima de ter ritório israelense.

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Uma inflação artificial de 32% nos nascimentos palestinos foi documentada pelo Banco Mundial (página 8, item 6) em uma auditoria de 2006. Enquanto a Autori dade Palestina reivindicava um aumento de 8% no núme ro de nascimentos, o Banco Mundial detectou uma redu ção de Um24%.declínio dramático na taxa de fertilidade de 9 nas cimentos por mulher nos anos 1960 para 3,02 nascimen tos em 2021 está documentado pelo CIA World Factbook, que geralmente ecoa os números oficiais palestinos. Isto re flete a ocidentalização da demografia árabe na Judéia e Sa maria, que foi acelerada pela rápida urbanização (de 70% de população rural em 1967 para 77% de população ur bana em 2021), assim como uma elevação da idade de ca samento das mulheres (de 15 anos para 22), o uso substancial de contraceptivos (70% das mulheres) e o enco lhimento do período reprodutivo (de 16-55 para 23-45).

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A idade média entre os árabes da Judéia e Samaria é de 22 anos, comparado com 18 anos de idade em 2005. A ocidentalização das taxas de fertilidade caracterizou todos os países muçulmanos, exceto a região sub-Saaria na: Jordânia (muito similar aos árabes da Judéia e Samaria)

O número de mortes de árabes na Judéia e Samaria tem sido sistematicamente sub-relatado (por poder políti co e razões financeiras), como documentado por vários es tudos desde o Mandato Britânico. Por exemplo, um censo de população palestina recente incluiu árabes nascidos em Os1845...dados mencionados acima indicam 1,5 milhão de árabes em Judéia e Samaria, quando deduzidos dos dados documentados do número oficial palestino (3 milhões).

– 3 nascimentos por mulher, Irã – 1,93, Arábia Saudita –1,95, Marrocos – 2,29, Iraque – 3,32, Egito – 3,23, Iêmen – 3,1, Emirados Árabes Unidos – 1,65, etc.

Conclusão Em 1897, havia uma minoria judaica de 9% nas áreas combinadas de Israel pré-1967 mais Judéia e Samaria. Em 1947 isto foi expandido para uma minoria de 39%. Em 2021 há uma maioria judaica de 68% (7,5 milhões de ju deus, 2 milhões de árabes israelenses e 1,5 milhão de ára bes em Judéia e Samaria) se beneficiando de um cresci mento demográfico robusto de nascimentos e migração. Em contraste com a percepção convencional, não há bomba-relógio demográfica árabe. Há, entretanto, um crescimento demográfico judaico sem precedentes. O texto do blog foi gentilmente traduzido do inglês por Michel e Sheila Ventura.

Retrato de Abba Eban quando era embaixador de Israel na ONU, 1951.

DE ABBA EBANAbba

E

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Eban acrescentou que seria desonesto da parte dele “esconder o fato de que governo e povo de Israel ficaram desconcertados com o papel das Nações Unidas. Para que serve a ONU se na verdade ela é um guarda-chuva que é retirado assim que começa a chover?”

No outono de 1948, o Jewish Chronicle de Londres afirmou que Eban havia impressionado “igualmente a amigos e inimigos com sua calma e hábil condu ção do caso de Israel”, e a revista Commentary, que ele “ganhou respeito em to dos os quadrantes por sua habilidade intelectual e pela clareza nas formulações”.

Rick Richman

Publicado em 20 de maio de 2021 na revista Mosaic (mosaicmagazine.com) e adaptado para a Devarim sob gentil permissão da Mosaic m 21 de maio de 1948, uma semana após a sua Declaração de In dependência, enquanto lutava contra uma invasão de cinco exércitos árabes, Israel designou um especialista em literatura hebraica, árabe e persa de 33 anos chamado Aubrey (Abba) Eban como seu representan te na ONU. Ele era o mais jovem representante na ONU. Cinco dias depois Eban compareceu perante o Conselho de Segurança para responder à rejeição árabe da resolução de cessar-fogo da ONU. Proferiu pa lavras históricas: “A soberania recuperada por um povo antigo, após sua longa marcha pela noite escura do exílio não será subjugada à mão armada”. E, portanto: “É meu dever tornar clara a nossa atitude, sem ambiguidade ou dúvida. Se os Estados árabes querem a paz com Israel, eles a terão. Se eles que rem a guerra, também a terão. Mas, quer queiram a paz ou a guerra, só podem tê-la com o Estado de Israel”.

O TRIUNFO E A

O Conselho de Segurança havia endossado o pedido de admissão de Israel por maioria de nove a um (abstenção da Grã-Bretanha). Contudo, antes do TRAGÉDIA

42 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI voto de confirmação da Assembleia Geral, os sete membros árabes da ONU ha viam conseguido que a questão fosse dele gada a um comitê ad hoc, onde eles conti nuaram a lutar diplomaticamente contra o que haviam perdido militarmente. Em sua autobiografia, Eban descreveu o fardo que caiu sobre seus ombros: Agora eu dirigia pessoalmente uma ope ração política sem precedentes na história internacional. Nenhum outro Estado ja mais havia sido chamado a garantir sua participação na comunidade internacional por meio de um processo de interro gatório, defesa de direitos e refutações.

Na conclusão de sua apresentação declarou que a can didatura de Israel à ONU era um momento histórico, ten do em vista a contribuição do antigo Israel para com os va lores fundamentais da civilização: Um grande ciclo histórico se completa quando Israel, re novado e reestabelecido, se oferece, com todas as suas imper feições, mas talvez com algumas virtudes, à defesa do espírito humano contra o niilismo, o conflito e o desespero.

Diante do Comitê, Eban expressou sua raiva pelo espetáculo dos árabes julgando o Estado que eles tentaram destruir: Nos assemelhamos àquele que, tendo sido atacado numa rua escura por sete homens com pesados porretes, se vê arras tado ao tribunal para enfrentar os discursos solenes de seus agressores afetando ar de pacífica virtude. Aqui estão os re presentantes dos únicos estados que usaram deliberadamen te a força contra uma resolução da Assembleia Geral [a reso lução da partilha de 1947] ... posando como juízes isentos de sua própria vítima. É uma manobra cínica. Em nome daqueles que foram mortos, mutilados, exilados ou enlutados por esse cinismo, ex presso nosso mais contundente ressentimento.

Eban colocou o fardo da guerra sobre os ombros das nações árabes que decidiram travá-la: eles eram “responsá veis por cada morte, pelo luto, pelo pânico e exílio que re sultaram desse conflito fútil e desnecessário”.

O discurso eletrizou a opinião pública israelense. Uma semana depois, Israel tornou-se o 59º membro da ONU. Na década seguinte, Eban serviu simultaneamente como embaixador do novo país na ONU e seu embai xador em Washington (1950-1959). Em seguida, foi mi nistro da Educação por três anos (19601963), vice-primeiro-ministro por três anos (1963-1966) e, finalmente, minis tro das Relações Exteriores por quase uma década (1966-1974). Os discursos de Eban na ONU – des de o de 1949 sobre a admissão de Israel na ONU até o de 1973 após a Guerra do Yom Kipur – tiveram a eloquência insupe rada por qualquer diplomata durante esse período. O historiador irlandês Conor Cruise O’Brien qualificou Eban como “o diplomata mais brilhante da segunda metade do século 20”. E Alfred Frien dly escreveu no Washington Post que ninguém na história de Israel “projetou ao mundo sua essência e sua angústia, sua visão e seu espírito, em termos mais nobres e exaltados”. Mas, logo após seu discurso sobre a Guerra do Yom Ki pur, Eban perdeu a posição ministerial e nunca mais ocu pou um cargo influente. Humilhado, ele se aposentou da vida política, mudou-se para Nova York e se dedicou a en sinar, escrever e discursar. Sua ascensão meteórica e queda dramática pressagia ram uma tragédia que se estendeu além de sua carreira po lítica pessoal, e guarda uma lição para hoje. Em 10 de maio de 1951, junto com David Ben-Gu rion, Eban discursou num comício no Madison Square Garden. O evento atraiu um público de 20.000 pessoas, com milhares do lado de fora. Em um único parágrafo, ele resumiu o que havia acontecido nos três anos anteriores: Aqui está um povo que defendeu sua vida e seu lar contra a fúria de um inimigo poderoso; estabeleceu um oásis de de mocracia, liberdade e progresso em um deserto de despotismo e miséria; ... abrigou 600.000 membros de sua família vin dos das profundezas da insegurança; ... começou a explorar os recursos ocultos em seu solo que permaneciam negligenciados por longos séculos; fez a água jorrar no deserto; ampliou as bases de seu progresso industrial; embarcou numa das maio res aventuras culturais da história, criando a partir de pes soas dispersas e afastadas uma sociedade unificada na língua e no espírito do passado de Israel; estabeleceu sua bandeira na família das nações e deu expressão ao anseio imemorial de Is rael pela paz mundial. A extraordinária eloquência e inteligência de Eban fi cavam evidentes não apenas em suas apresentações prepa radas, mas também em aparições não ensaiadas. Em 12 de “Nenhum outro Estado jamais havia sido chamado a garantir sua participação na comunidade internacional por meio de um processo de interrogatório, defesa de direitos e refutações”.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 43 abril de 1958, Mike Wallace o entrevistou por quase meia hora no horário nobre da televisão. Ele apresentou Eban como “um erudito, um linguista, ... e um estadista vetera no aos 43 anos de idade” e então prosseguiu, no estilo de promotor que mais tarde aperfeiçoou no programa 60 Mi nutes, sugerindo que a paz exigia a resolução das questões subjacentes com os árabes: Wallace: “Estima-se que 700.000 árabes palestinos fi caram desabrigados durante a guerra árabe-israelense de 1948. Israel se recusa a admiti-los novamente. Eles vivem em amargura, e o historiador Arnold Toynbee disse o se guinte: ‘As más ações cometidas pelos judeus contra os árabes são comparáveis aos crimes cometidos contra os judeus pelos nazistas’. Como você se sente a este respeito?”

Eban começou evocando “o ponto em que Israel esta va” no dia anterior, quando um enorme exército se reuniu na fronteira sul. Ele disse à ONU: Nasser deslocou provocativamente cinco divisões de infan taria e duas divisões blindadas até as nossas portas. . . . A rota Harry Truman, presidente dos EUA, Abba Eban, embaixador de Israel nos EUA, e David Ben-Gurion, primeiro-ministro de Israel, 1951.

Eban: “Isto é uma monstruosa blasfêmia. Ele compa ra o massacre de milhões de nossos homens, mulheres e crianças com a situação dos refugiados árabes [que estão] vivos, em seu solo familiar – sofrendo certa angústia, mas claramente possuindo o dom supremo da vida. ... O pro blema dos refugiados, Sr. Wallace, não é a causa da tensão. O problema dos refugiados é resultado de uma polí tica árabe ... que criou o problema pela invasão de Israel e que o perpetua recusando-se a a resolver algo que eles têm plena capacidade de resolver”.

O próximo grande momento de Eban veio com a Guerra dos Seis Dias de 1967. No segundo dia de comba tes, ele fez um discurso na ONU que foi considerado um dos grandes discursos diplomáticos de todos os tempos. Eban deixou Jerusalém no dia em que a guerra começou – 5 de junho de 1967 – e falou ao Conselho de Seguran ça da ONU em Nova York no dia seguinte.

44 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI internacional através do Estreito de Tiran foi repentina e ar bitrariamente bloqueada. Israel estava e está respirando ape nas com um único pulmão. Toda casa e rua em Jerusalém ... está ao alcance de tiros. ... O mesmo acontece com a dramaticamente estreita faixa litorâ nea na qual se concentra grande parte da população de Israel. Tropas iraquianas reforçam unidades jordanianas em áreas voltadas para os vitais centros de comunicação de Israel. For ças expedicionárias da Argélia e do Kuwait estão em território egípcio. ... A artilharia síria espreita as aldeias israelenses no vale do Jordão. ... Em suma, há perigo onde quer que se olhe. Eban descreveu o “ar apocalíptico” em Israel quando constatou o cerco, sem nenhuma resposta da comunidade internacional, e ouviu o discurso de Nasser em 26 de maio: “Pretendemos iniciar um ataque geral contra Israel. Nosso objetivo é o de destruir Israel”. Citando o direito inerente de autodefesa de Israel, Eban disse que “nunca na história das nações uma força armada foi usada numa causa mais justa” do que na ação israelense de resposta.

Eban também argumentou que a Jordânia não tinha le gitimidade para exigir a retirada de Israel às fronteiras pré -guerra, porque ela “tem total responsabilidade por uma guerra não provocada”. Mas havia uma razão ainda mais convincente para rejeitar a retirada porque seria “reviver a mesma situação a partir da qual surgiu o conflito”: As mesmas fronteiras e, portanto, a mesma insegurança, o mesmo bloqueio das vias marítimas, a mesma doutrina be ligerante, o mesmo confronto de exércitos unidos, os mesmos canhões nas colinas sírias, e, sobretudo, a mesma ausência de tratados de paz. Tais propostas são prescrições para a renova ção do conflito.

Eban acrescentou que seria desonesto da parte dele “es conder o fato de que governo e povo de Israel ficaram des concertados com o papel das Nações Unidas. Para que ser ve a ONU se na verdade ela é um guarda-chuva que é retirado assim que começa a chover?”

Quanto ao que deveria acontecer depois da guerra, Eban observou que “nossos vizinhos gostariam de voltar o Abba Eban, segundo à esquerda, e a delegação de Israel na ONU, década de 1950.

Em abril de 1974 Golda Meir anunciou sua renúncia como primeira-ministra. Eban acreditava que ele seria o mais adequado para sucedê-la. Ele tinha uma extraordi nária reputação internacional; tinha mais experiência diplomática do que qualquer israelense; era brilhante e talentoso, fluen te em árabe (assim como em várias outras línguas), e tinha apenas 59 anos de idade. Mas as próprias qualidades que o le varam ao sucesso na arena diplomática ‒sua formação britânica, seus discursos ele gantes, seus longos períodos nos Estados Unidos ‒ eram desvantagens políticas em Israel. Para muitos israelenses ele era qua se um estrangeiro, fluente num hebraico perfeito mas não coloquial; seus colegas trabalhistas o denegriram como preten sioso. Como sucessor de Meir o partido escolheu quase exatamente o seu oposto: um sabra nascido em Jerusalém que pro jetava uma força silenciosa, um herói mi litar da guerra de 1967: Itzhak Rabin. Rabin formou um gabinete com 19 ministros e excluiu Eban. Foi uma demissão humilhante: ele soube dela através de uma notícia no rádio. Em seu discurso de despedida no Ministério das Rela ções Exteriores, Eban disse que “importa muito não apenas quais são as políticas de Israel, mas também como elas são expressas”. Políticas apresentadas sem “acuidade moral e elevação intelectual” não teriam sucesso.

Nos anos que se seguiram ele ocupou vários cargos de professor visitante, escreveu livros e artigos e trabalhou numa série de televisão pública, Heritage: Civilization and the Jews. Escreveu artigos de opinião nos quais criticava o curso de Israel na guerra do Líbano e insistiu para que Is rael adotasse uma postura conciliatória com os palestinos.

Eban foi, nas palavras de seu biógrafo, Assaf Siniver, “um dos maiores comunicadores de seu século”. Em 1979, Kissinger escreveu em suas memórias que: Nunca encontrei ninguém que se comparasse ao seu do mínio da língua inglesa. Frases expressas em construções har

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 45 relógio para 1947”. Mas o relógio da paz no Oriente Médio, disse ele, deve se mo ver “não para trás, para a beligerância, e, sim, adiante, para a paz”. O Jewish Chronicle publicou uma ho menagem à atuação de Eban na ONU, dizendo que seu esforço diplomático foi tão importante quanto o militar de Israel. Em 1973, a Guerra do Yom Kipur co meçou com um ataque maciço e não pro vocado pelo Egito e pela Síria no sába do, 6 de outubro de 1973 – que era tan to Shabat quanto Yom Kipur. Na ONU, Eban acusou a imoralida de do Egito e da Síria, sua posição legal e sua falsidade com relação à nova guerra: O ataque premeditado e não provocado ... no Dia da Expiação ... certamente será classificado ... como um dos atos mais vis e odiosos pelos quais governos foram responsabilizados. [O cessar-fogo de 1967] é um acordo internacional ... aceito pelo Egito, Síria e Israel, em resposta a uma decisão do Conselho de Segurança. Eban explicou que está “profundamente gravado em nossas mentes o tipo de adversário que enfrentamos”, que ataca um inimigo no dia mais sagrado do ano. E, exata mente por esse motivo, continuou ele, “nenhuma preo cupação com a segurança é exagerada”. Ele tirou daquela guerra uma lição que ainda é instrutiva: Imagine que, num clima de estupidez suicida, tivéssemos voltado às linhas anteriores do armistício [de 1967]; ... en tão os ataques de 6 de outubro teriam causado tamanha des truição que talvez Israel e todo o seu povo, esperanças e vi sões teriam se perdido.... Como estávamos certos em insistir em negociar com a máxima precisão os limites de um acor do de paz! Quão errados estavam aqueles que nos aconselha ram de outra forma! O discurso de Eban articulou os princípios que guia riam Israel pelo próximo meio século: (1) não poderia haver recuo para as fronteiras de antes de 1967, que ele apelidou de “fronteiras de Auschwitz”; (2) declarações de hostilida de árabe seriam tomadas pelo seu valor de face, e (3) a paz só seria alcançada em negociações diretas entre as partes.

O historiador irlandês Conor Cruise O’Brien qualificou Eban como “o diplomata mais brilhante da segunda metade do século 20”. E Alfred Friendly escreveu no Washington Post que ninguém na história de Israel “projetou ao mundo sua essência e sua angústia, sua visão e seu espírito, em termos mais nobres e exaltados”.

Em 2000, aos 84 anos, Eban sofria tanto de Mal de Parkinson quanto de afasia grave, uma condição horrível que o impedia de se comunicar. Ele recebeu o Prêmio Is rael, a maior honraria do Estado, em 2001, 27 anos depois de deixar o Ministério das Relações Exteriores. Mas estava doente demais para comparecer à cerimônia e sua esposa, Suzy, recebeu o prêmio em seu nome.

Em setembro de 1948, Eban publicou um ensaio na Commentary intitulado “O futuro das relações árabe-ju daicas: a chave é a cooperação de estados iguais e separados”.1 Nele, ele estabeleceu a base intelectual para a divisão da Palestina em dois estados: “Há dois povos na Palestina, cada um com aspirações nacionais distintas”. O fato, continuou Eban, de que a partilha “ofereceu algo infinitamente precioso aos judeus” não deve obscure cer os enormes “presentes que concedeu aos árabes” – que poderiam ter sido obtidos sem guerra: A novecentos mil árabes [palestinos] ... foi oferecida a oportunidade de viver em dois estados puramente árabes –a Transjordânia e a Palestina –, que seriam estabelecidos em sete oitavos do território originalmente reservado [para] um lar nacional judaico. ... Os árabes palestinos devem compa rar essa perspectiva, que estava disponível pacificamente, com 1 tionsthe-key-is-the-cooperation-of-equal-and-separate-states/https://www.commentary.org/articles/aubrey-eban/the-future-of-arab-jewish-rela Abba Eban (sentado na primeira fileira, de camisa branca) em Eilat, 1950.

46 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI moniosas, complicadas o suficiente para testar a inteligência do ouvinte e ao mesmo tempo deixá-lo paralisado pelo vir tuosismo do orador. Depois de perder a reeleição para o Knesset, em 1988, Eban contou numa entrevista a um jornalista israelense que: O partido me aposentou contra minha vontade e achei mentalmente difícil não ter motivo para acordar de manhã. Nada me foi oferecido. Eles pensaram que eu deveria me apo sentar, e é isso. Eban faleceu pobre, auxiliado financeiramente por um pequeno grupo de admiradores generosos. Suas extraordi nárias realizações diplomáticas ‒ tão importantes para Is rael quanto as militares ‒ foram reconhecidas com um prê mio concedido tão tardiamente que ele teve de recebê-lo em total silêncio. Sua tragédia política foi que os mesmos talentos que levaram ao seu sucesso diplomático no exte rior contribuíram para seu fracasso político em casa. Mas sua tragédia se estende além de sua vida, ela atinge o cer ne da história do Oriente Médio.

Em seu discurso de despedida no Ministério das Relações Exteriores, Eban disse que “importa muito não apenas quais são as políticas de Israel, mas também como elas são expressas”. Políticas apresentadas sem “acuidade moral e elevação intelectual” não teriam sucesso.

os resultados de sua “guerra santa”, que in cluem: a invasão e destruição da Palestina árabe; a fuga em pânico de sua população; a ocupação por exércitos árabes rivais com ob jetivos de anexação, e o colapso da vida cor porativa árabe. Foi desta forma que os ára bes palestinos foram “salvos” por seus “ami gos” árabes de seus “inimigos” judeus. Três décadas e três guerras depois, en cerrada sua carreira, Eban publicou um livro de memórias no qual afirmava que a questão palestina era a chave para resol ver a disputa árabe-israelense. “Os territó rios são a Judéia e Samaria”, escreveu ele, “mas isso não torna seus habitantes árabes samaritanos ou judeus”. Assim, ele se tornou um defensor do “processo de paz”, pressionando Israel a iniciá-lo. Em 1998, em seu último livro, Diplomacy for the Next Century, ele afirmou que “o Oriente Médio havia sido irreversivelmente trans formado” pelo processo de paz, pois ele permitia aos pa lestinos “tomar posse de seu destino e seguir em frente comDadaesperança”.suacondição médica em 2000 não sabemos o que Eban teria dito sobre a rejeição de Arafat a um Esta do palestino em Camp David e o lançamento de uma se gunda intifada e sobre a grande série de recusas da lide rança palestina em se engajar num processo de reconci liação com os israelenses, inclusive as repetidas promessas de Mahmoud Abbas, durante os oito anos de Obama, de “nunca” reconhecer um Estado judeu. Mas, ao considerar essas coisas, talvez Eban se lembra ria do que Azzam Pashá, secretário-geral da Liga Árabe lhe disse em 1947 a respeito de um Estado judeu numa par te da Palestina: Pela lógica da nossa história vamos combatê-lo. Já tive mos a Espanha e a Pérsia. Se alguém tivesse vindo e nos pe disse para entregar a Espanha ou a Pérsia, ele teria recebido a mesma resposta negativa que agora lhe dou.

Num momento posterior, Pashá confessou que os ára bes haviam se acostumado a não ter a Espanha e a Pérsia. Assim, que eles poderão também acostumar-se a não ter parte da Palestina, mas enquanto isto não acontece tentarão um irredentismo centenário.

A batalha de cem anos que Pashá previu já tem três quartos de século. Do ponto de vista pa lestino a tentativa de retornar a 1947 é feita pressionando por duas demandas interconectadas: (1) a retirada israelense para as linhas pré-1967 (para reverter a guerra de 1967), e (2) o “direito de re torno” a Israel (para reverter a de 1948). Eles procuram voltar a história para um mundo antes de Israel existir e não avan çar para um mundo com dois Estados.

A tragédia final de Eban – e a dos 24.000 judeus e 91.000 árabes mortos nas guerras – foi que, embora ele falasse eloquentemente sobre paz em inglês, hebraico e árabe, ele não teve ninguém com quem conversar do outro lado. Nunca surgiu um colega palestino que compar tilhasse a visão que ele expôs em seu discurso inaugural na ONU. Talvez no próximo quarto de século, se um sé culo de irredentismo autodestrutivo chegar ao fim, os pa lestinos produzirão um Eban próprio, disposto a endos sar sua visão de 1948, e fazê-lo em três línguas – falando as mesmas palavras para os palestinos, para os israelenses e para o Entãomundo.oprocesso Pashá poderá ser substituído por um processo de paz; a paz que Eban buscou tão articulada mente em sua excepcional carreira diplomática de 26 anos pode se tornar possível; e a tragédia de Abba Eban pode começar a terminar.

Traduzido do inglês e adaptado ao formato da Devarim por Raul Cesar Gottlieb.

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Rick Richman é scholar residente da American Jewish University e colaborador frequente da revista Mosaic. É o autor de Racing Against History: The 1940 Campaign for a Jewish Army to Fight Hitler (Encounter Books, 2018).

A observação mais famosa de Eban –a de que os palestinos nunca perdem a oportunidade de perder oportunidades – perdeu o sentido: um Estado palesti no numa parte do território não é a opor tunidade que seus líderes buscam. Eles veem a resolução da ONU de 1947, de partilha entre um Estado judaico e um árabe, como sua catástrofe contínua (nakba) e não como a oportunidade perdida de criar seu próprio Estado.

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O artigo a seguir, de autoria do falecido Emanuel Corinaldi, foi escrito há mais de 40 anos, assinalando o que eram então 14 anos passados desde a Guerra dos Seis Dias. Ele registra as situações de ansiedade e euforia que, em Israel e na Diáspora, acompanharam aquela Guerra; e os sentimen tos de medo e depressão que a subsequente Guerra do Yom Kipur trouxe à tona a despeito do desfecho vitorioso, e em contraste com a retórica de uma era de pretensa nova glória judaica que proliferou depois da campanha de 1967.

Embora os desenvolvimentos posteriores tenham desencadeado tendências total mente inesperadas na vida pública israelense e no relacionamento com o mundo ju deu, o artigo deixa margem a um requestionamento que não perdeu em atualida de na busca de uma imagem presente e autêntica desse binômio.

O artigo também nos dá uma dimensão, muitas vezes esquecida na distân cia de 40 anos de sua escrita, de que a não negociação árabe é um instrumento de chantagem; da inversão da culpa pela ocupação de 1967 provocada pela fadiga do mundo; da grande diferença entre os motivos para a aliá nos anos 1980 e 2020 e ‒principalmente ‒ da enorme distância entre a realidade social e o governo de plan tão que a administra.

Junho de 1967 viu o mundo judeu passar, em poucos dias, da ansiedade mais grave à maior euforia. Hoje já se ouvem as vozes que, na sabedoria depois dos fatos, proclamam que ambas – a euforia e a ansiedade – foram desmesuradas.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 49 Emanuel Corinaldi 9 de junho de 1981

Emanuel Corinaldi (1935-1995) nasceu em Milão, Itália. Em 1939 a famí lia emigrou para o Brasil, em consequência das leis raciais antissemitas do regime fascista.

O falecimento prematuro de Emanuel em 1995 poupou-lhe o choque do assas sinato de Itschak Rabin e dos amargos conflitos internos com que Israel vem se de frontando desde então, com um progressivo solapar de sua estrutura democrática.

COMO QUE EM VOZ ALTA

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Depois, foi a euforia. Superman deslocado na mitologia contemporânea pelo Superjew. Todos, promovidos à categoria de heróis. Todos, descobrindo que ser judeu era coisa boa, de moda, admirada e invejada. E tudo passou a ser possível. O limite, deslocado para além do céu, mui to além: bombasticismo, kitsch, mau gosto, aventurismo. Mas também o alívio que só entenderá quem, no singu lar ou no coletivo, passou pelos momentos longos e géli dos da solidão que isola – porque a vítima é algo como o leproso, do qual todos se afastam… no máximo pronun ciando pias palavras de conforto…

Havia então uma sensação de isolamento completo, associada às indecisões da liderança governamental. Essa indeci são não chegou, a meu ver, a desandar no pânico. Mas se abriu num nervosismo a todos os níveis; numa irrealidade que co loria tudo e se estendia a reações corriqueiras de todos os dias. Era difícil assimilar racionalmente que os paredões de concreto de Mamila não eram o sinal do fim do mundo, marcando o término não apenas do setor judeu da cidade, mas, quem sabe, o fim, o fim mesmo que precedia o abis mo negro de uma confusão bíblica pré-criação – não, pois, claro, algumas centenas de metros adiante, passada a terra de ninguém (?!), estava o setor árabe da cidade! Era difícil assimilar racionalmente que subir ao Monte Tsion era estar debaixo do olhar nu da guarnição jorda niana, como o era passar por Abu Tor, como o era circular pela Estrada que leva a Tel Aviv. Quando se destampou, de repente, a válvula de segurança; quando soaram os pri meiros tiros, com o cacarejar rouco das armas automáticas; quando, como que do nada, apareceram na Rehov Yafo os primeiros tanques de barulho enorme rangendo para as partes da Cidade Velha –, nesse instante tudo entrou em foco, ficou nítido e definitivo. Talvez ainda fora do alcan ce de uma compreensão racional, mas já não esfumado e sem contornos. Era, na violência, na ameaça de destruição e morte, a tradução tangível do requisito essencial da inde pendência: agir e suportar as consequências.

Apesar de não ter adquirido qualquer título acadêmico, possuía uma cultura plu ralista e multiforme, que ele punha a servi ço de atividades variadas exercidas com ta lento exuberante: Teatro (Foi ator do Teatro Sérgio Cardoso/Nydia Licia em São Paulo); Jornalismo (no qual se distinguiu em espe cial como responsável no fim dos anos 1950 pelas transmissões para o Brasil da BBC de Londres, onde residiu por certo tempo); tra balho de divulgação e esclarecimento sionis ta (por exemplo, como adido à Embaixada de Israel em Roma para o esforço de liberação da aliá dos ju deus da União Soviética); Presidente da Sede de Israel da As sociação Dante Alighieri para promoção da língua e cultu ra italianas.Chegoua Israel em 1963, residindo em Jerusalém até seu falecimento. Era irmão de Vittorio Corinaldi, conhecido dos leitores de Devarim. * * * De repente, me dei conta. Passaram 14 anos. 14 anos des de a Guerra dos Seis Dias. Que, para muitos, hoje pare ce tão remota como as lutas de Guilherme o Conquista dorE,(quem?...).noentanto, essa mesma distância de 14 anos, que para muitos dilui, apaga e justifica esquecer, essa mesma distância de 14 anos é o fator que convida a um novo de bruçar sobre aqueles dias tão únicos. Junho de 1967 viu o mundo judeu passar, em poucos dias, da ansiedade mais grave à maior euforia. Hoje já se ouvem as vozes que, na sabedoria depois dos fatos, procla mam que ambas – a euforia e a ansiedade – foram desme suradas. Que o perigo das forças egípcias foi enormemen te exagerado. Que a vitória militar não resolveu nada. Vo zes que às vezes prosseguem a ladainha sapiente para reco mendar a Israel sabe lá quais medidas de modéstia, conten ção, flexibilidade – não tanto pelo valor dessas qualidades, mas mais pelo repetir, ainda que camuflado, de um velho sintoma da condição judaica no Galut: medo. Não que vozes desse tipo não se ouçam também em Israel. O que então prova apenas que sintomas da con dição judaica no Galut podem estar transplantados aqui também.Porque a meu ver – e, enquanto não estiverem ao al cance do historiador todos os documentos relevantes (to dos?! – alguma vez se poderá sobre algo compilar todos os documentos?) ‒, não poderemos nos furtar a aceitar e com preender seja a ansiedade de então, an tes da Guerra dos Seis Dias, seja a euforia que se lhe seguiu.

Efraim Kishon, que de vez em quando se aventura em

políticospronunciamentostremendamentereacionários,terátalvezditoumaverdadeaointitularumdeseusescritos“Perdãoquevencemos”.

14 anos ainda não são a medida do tempo que dá o re cuo ideal para a análise histórica. Mas, ao lado disso, essa análise histórica não deve, inevitavelmente, fazer-se quan do todos os protagonistas dos fatos já são poeira ou está tua em praça pública. É lícito estudar já agora o fenôme no, quando heróis e vilões ainda ocupam a cena ou dela saíram há pouco. No caso em questão, o maior vilão descansa no seu Nirvana – qualquer que ele seja, variável de acordo com a opinião do observador. Os heróis principais, houve dois pelo menos, parecem ter desandado numa trajetória polí tica discutível e discutida. Aquilo que permanece, a cons tante do problema, é a verdade sionista do Estado dos ju deus, que não quer ser destruído pela intolerância. É a afirmação, tão incômoda hoje para alguns (tantos, dema siados…), que o disparo do primeiro tiro ou o lançar do primeiro jato em seu itinerário de surpresa e destruição foram atos justos e inevitáveis, porque reagiam frente a uma agressão calculada, metódica, já em curso, que tanto ameaçava a existência de Israel quanto colocava debaixo de chantagem o Ocidente – e quem sabe, também a máquina política e militar da URSS. Efraim Kishon, que de vez em quando se aventura em pronunciamentos políticos tremendamente reacionários, terá talvez dito uma verdade ao intitular um de seus es critos “Perdão que vencemos”. A neurose da vitória pas sou da euforia sem limites para a autoflagelação maso quista. E o judeu – aquele que 14 anos atrás gritava que sua cabeça estava erguida – parece hoje achar mais conveniente um silêncio abafado, um mimetismo assustado, para não entornar o caldo, que, sem petróleo, nem caldo não haverá mais…

1. Como no passado, também em 1967 Israel foi agre dido.

3. Criou-se então uma situação sem precedentes: a da so berania judaica respaldada também sobre força mili tar, sobre um “império” de medidas assombrosas no confronto com o anterior claustro em que o país esta va contido.

Observações “definitivas”, então, no relativo de uma perspectiva que pode se alterar, mas que neste mo mento dado parece bastante completa e pode ser vista do seguinte modo:

5. Na recusa árabe de negociar, havia desde então todo

2. À diferença de outras vezes anteriores, Israel em 1967 desfechou golpes enérgicos, relâmpagos, na raiz, que desmantelaram os inimigos.

4. Essa soberania se fazia junto com a mais tradicional ju risprudência internacional, que reconhece o direito de usar a força para repelir agressão, e o direito de man ter, até que haja paz formal e negociada, aquilo que se obteve territorialmente na decorrência da vitória.

Waismann/iStockphotoMarcio

Talvez a distância de 14 anos permite algumas obser vações em tom quase definitivo, que serão, se quisermos, relativas, válidas historicamente apenas à espera da confir mação final, aquela que darão ou negarão todos os docu mentos.

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6. Na recusa árabe de negociar se inse riu mais tarde a conveniente arma do petróleo. O agressor derrotado perce beu que, à margem de Israel, sem liga ção com Israel, podia fazer o Ociden te tremer, porque sem petróleo não há gasolina, diesel, lubrificantes, aquecimento, plásticos, energia elétrica, fertilizantes, perfumes etc. Isto é, o Ocidente foi levado a acreditar no mais sinistro non sequitur. Como se, concordando em redimensionar Is rael, isso havia de assegurar ao Ocidente tranquilidade econômica e política.

7. Em paralelo, o Ocidente se acovardou diante do terror organizado. Olimpíadas de Munique a gritar ao mun do que uma nova onda de barbárie estava a desenca dear-se, e o Ocidente a dizer, “a culpa é das vítimas, a culpa é das vítimas”! Houve mais, tanto mais, nesses 14 anos. O trauma de outra guerra, na qual não só o aniquilamento parecia imi nente, mas onde também se criou o mito da derrota de Is rael. Mito que envenenou tanto e tantos. Porque, diante da vitória de 1967, indiscutível e indiscutida, a hostilida de ou a indiferença de terceiros se podiam ignorar com um dar de ombros seguro e desdenhoso. Ao passo que diante da vitória de 1973, alardeada como derrota, a indiferença e hostilidade de terceiros solaparam um humor já abalado pelas listas de vítimas, e o dar de ombros seguro e desde nhoso em muitos se converteu em curvar de ombros, em falar baixo, em deslizar pelas sombras…

O que, num balanço, torna tudo tão complicado: o pe ríodo destes 14 anos se abriu com ansiedade e euforia; passou por bravatas, nova ansiedade, pessimismo, retomada, sacolejos sociais e políticos. No finito que é a carreira ter restre de cada um de nós, 14 anos ricos, densos, talvez até demasiadamente carregados; talvez cruéis, não só nos fatos mas nas obrigações. Porque se constituíram em filtro, cadi nho, caldeirão, retendo ou eliminando, como que para nos colocar diante da inevitável autoidentificação.

Escrevo antes das eleições de 30 de junho.1 O resulta do delas pode ter enorme influência no traçado dos anos próximos. Acima delas, porém, há outra realidade: qual quer governo é transiente. Rico de qualidades ou de defei tos, não representa mais do que uma parcela da realidade social. A nação e o povo, a concentração territorial, a lín gua, a renovação das práticas religiosas, a legislação – con tam muito mais que os gabinetes. Com a diferença que os gabinetes são mensuráveis, visíveis, imediatos, terra-a-terra. O resto são – ou parecem ser – ideais longínquos. Tão longínquos que bastam 14 anos para os amortecer. * * * Para esclarecer, continuo sendo otimista naquilo que diz respeito ao povo judeu.

Reflexões amargas, que derivam de uma constatação: o inimigo mais temível não é o terror, não é a chantagem do petróleo, não é o isolamento diplomático. Tudo isso não é bom, claro. Mas o inimigo que deve preocupar é a indife rença judaica. Se a Diáspora se distanciar de Israel, não será a existência física de Israel que estará em cheque, mas sim o valor de Israel como nação de todo um povo. Quando me dizem que a “Aliá” é reduzida hoje, ou porque o atual gover no é um desastre, ou porque “não há con dições materiais”, ou porque – sei lá – cada razão é válida para quem a enuncia – sorrio a custo. Israel nunca ofereceu condições.

A Aliá sempre foi um processo de ir contra a maré. Emigrar – e imigrar – são geralmente fenômenos de busca de melhores condições materiais. Nós, o que te mos a oferecer não é a concorrência com os níveis de vida de Estados Unidos ou Canadá ou Austrália (para aqueles que, nesses países, se enquadram nas catego rias “certas” de imigrantes). O que temos a oferecer é o regresso ao judeu-homem -normal; a uma sociedade nossa, na qual não seremos nem hóspedes, nem tolerados, nem parasitas, nem refugiados, mas, sim, membros na totalidade dos direitos e das obriga ções. Com um sonho: o de não copiarmos servilmente os erros de outras sociedades.

1 As eleições de 30 de junho de 1981, para a 10ª Knesset, estabeleceram uma ínfi ma maioria para o partido Likud de Menachem Begin, em confronto com o Par tido Trabalhista. Reflexões amargas, que derivam de uma constatação: o inimigo mais temível não é o terror, não é a chantagem do petróleo, não é o isolamento diplomático. Tudo isso não é bom, claro. Mas o inimigo que deve preocupar é a indiferença judaica.

52 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI o câncer da chantagem, porque, politicamente, o passar dos anos iria en durecer posições, iria radicalizar anta gonismos, iria perpetuar a ocupação, que se prestaria a ser deturpada, no uso conveniente e mentiroso de acu sações de semelhança ou identidade com a ocupação nazista na Europa.

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Detalhe da fachada de sinagoga em Veneza, Itália.

Bernotto/iStockphoto

Um antepassado italiano –Angelo Forli – nos legou uma pequena biblioteca religiosa impressa nos séculos 18 e 19 nas cidades italianas de Livorno e Veneza e costumamos trazer estes livros para as nossas mesas festivas.

Eu sou filho de um casamento multicultural judaico. Meu pai tem origem numa família austríaca e minha mãe numa família italiana, com um ramo gre

A situação geográfica e o intercâmbio cultural das regiões do Mediterrâneo fazem com que os minhaguim italianos tenham uma raiz comum com os espa nhóis (sefaradim). Ainda assim, os italianos os consideram únicos, o que é constatado pela orgulhosa frase estampada nas folhas de rosto de seus livros de reza: “KeMinhag Kehilot Kodesh Italiani” (segunda linha da figura 1), que se traduz “Conforme o ritual das sagradas comunidades italianas”.

O

UM (RENOVADO)

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Raul Cesar Gottlieb

Esta etimologia aparenta ser apenas uma curiosa coincidência. A internet traz uma série de prováveis origens para o nome e nenhuma delas coincide com a “Ilha do orvalho divino”. Contudo, seguramente a Itália é uma terra de aben çoada fertilidade e beleza, onde os judeus mantêm uma ininterrupta presença de aproximadamente 25 séculos. Neste largo período eles fizeram o que fazem todas as comunidades judai cas do mundo: desenvolveram seus próprios minhaguim1 (costumes religiosos) que, como quase todos os demais, seguem a linha central do judaísmo talmú dico, mas que também incluem especificidades oriundas da criatividade e do gosto da comunidade local.

ROSH HASHANÁ ITALIANO

s judeus têm presença na Itália desde a Antiguidade. Há, inclusive, uma engenhosa formulação que atribui origem hebraica ao nome “Itália”, que seria assim composta: I (ilha em hebraico) + tal (orvalho) + Iá (Deus).

56 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI ”, que, quando lida com a fonética do italiano, repro duz o som em hebraico original, apesar de parecer estra nho para nós, brasileiros. Assim que nosso costume para o jantar festivo da noiRosh haShaná, depois do regresso da sinagoga liberal ashkenazi, sempre foi solidamente italiano.

É um costume que se aproxima muito – mas não é idêntico – ao minhag sefaradi com o qual eu travei co nhecimento pelo lindo suplemento anual de Rosh haSha da revista Morashá, no qual uma série de oito petis cos são consumidos antes da refeição, cada um antecedi do por uma fórmula hebraica que começa com as palavras Iêhi Ratson (significa “Que seja [Tua] vontade”), seguidas de uma petição ao Eterno. Cada uma destas frases con tém um jogo de palavras ligando o petisco ao verbo cen Iêhi Ratson.

Três dos oito Iêhi Ratson contêm uma repetida mensa gem negativa. Eles pedem para que nossos inimigos sejam (i) dizimados, (ii) eliminados e (iii) mortos. Apesar da jus tificativa histórica que situa a origem destas frases em mo mentos onde o antissemitismo era política de Estado em que os judeus viviam confinados em guetos, sem direitos e sob ameaça constante de pogroms, raptos e conversões for çadas, elas já não fazem sentido numa festa alegre do sécu Figura 1. Folha de rosto de livro de reza impresso em Livorno, no qual o dono do livro anotou a mão o ano 5592 (1832), indicando o ano de sua impressão.

E aí temos um problema!

O jantar é uma festiva reunião de família e de amigos, no qual a alegria pelo encontro e pela renovação do calendário é reforçada tanto pelo ritual italiano como pelos sa bores e cores da criativa disposição artística com que a nos sa mesa é vestida a cada ano. A série de petiscos dá um certo ar de Seder (a refeição festiva da noite de Pessach) ao encontro. Tanto no Seder como no ritual italiano de Rosh haShaná a festa é estru turada em passos, cada um deles convidando aos partici pantes a conversar a respeito do tema em foco. Os jogos de palavra no Iêhi Ratson de Rosh haShaná são os dispara dores para a troca de ideias, tal como acontece nos passos Seder de Pessach Após cada Iêhi Ratson recitado em hebraico, lemos sua tradução para o português, pois sem ela fica impossível dis parar uma troca de ideias no Brasil. Encher ouvidos e bocas com fórmulas incompreensíveis para a maioria reduz em muito o significado da reunião.

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Logo após o título “Iêhi Ratson para Rosh haShaná”, em letras grandes, há um parágrafo em letras pequenas (figura 3) que explica como realizar aquela cerimônia. Ele termina com uma frase que explica o uso dos trocadilhos: “O nome de cada petisco evidencia a essência do pedido”.

Curiosamente esta é a fórmula tradicional ashkenazi para a maçã com mel. Claro que tanto o costume com o figo quanto o com a maçã com mel remetem à doçura, en tão não há desvio de finalidade na diversidade da simbo logia. Há mais uma curiosidade neste item. O texto ita liano traz o verbo “renovar” na forma reflexiva do hebrai

Então não bastava modificar as frases, era necessário manter os trocadilhos, para propiciar a conversa a respei to de cada frase. Minha filha – professora de Hebraico – e eu nos lançamos à tarefa de ressignificar as três frases pro blemáticas, alinhando-as aos anseios que expressamos no ano novo, mas mantendo a palavra-chave em hebraico de cada uma delas. E o nosso “Míni-Seder” para Rosh haShaná ficou assim:

lo XXI, quando os judeus não sofrem nem uma pequena fração do que já sofreram, além de contarem com o braço forte dos Estados democráticos para sua defesa. Num certo ano a família expressou o sentimento a res peito destas frases problemáticas: “Não queremos que as crianças cresçam escutando isto, temos outros chaguim que focam nas tentativas de destruir os judeus. O que podemos fazer para preservar a memória familiar e ao mesmo tem po modificar a mensagem?” A pergunta já implicava a resposta. Era preciso mudar o texto das frases. E o mesmo livrinho que trazia os Iêhi Ratson problemáticos parecia indicar a resposta.

A forma reflexiva é aquela onde a ação executada pelo sujeito é refletida nele mesmo. O agente executa e sofre a ação. Ou seja, no minhag italiano pedimos que o Eterno nos dê forças para que sejamos capazes de nos renovar. Nos outros minhaguim, pedimos para que o Eterno assuma a responsabilidade de renovar. Julgamos que a fórmula italiana reflete melhor nossa visão do divino.

Começamos com a maçã com mel. Este passo não consta do livro com o minhag italiano, mas resolvemos in troduzi-lo por ser este o símbolo de Rosh haShaná usado em todo o mundo. Recitamos a benção “borê pri haaets” (usada quando se come algo que cresce em árvores) antes de molhar a maçã no mel. Em seguida vem o figo, o primeiro passo do ritual ita liano, que tal como a maçã com mel simboliza a doçura que queremos para o novo ano. O texto do Iêhi Ratson diz: Que seja Tua vontade, Adonai nosso Deus e Deus de nossos antepassados, que seja renovado um ano bom e doce, desde o seu início até o seu final.

O próximo passo é a abóbora e não mudamos nada neste texto que é positivo: ele pede que nossos méritos prevaleçam (literalmente: “Que eles chamem a atenção do Eterno”) diante das adversidades. O ritual promove a abó Figura 2. Folha de capa da Agadá de Pessach de Angelo Forli, na qual ele anotou que o livro foi impresso em Veneza no ano 1740.

No minhag italiano pedimos que o Eterno nos dê forças para que sejamos capazes de nos renovar. Nos outros minhaguim, pedimos para que o Eterno assuma a responsabilidade de renovar. Julgamos que a fórmula italiana reflete melhor nossa visão do divino.

Figura 3. Página do livro onde inicia o “Iêhi Ratson” de Rosh haShaná bora neste passo porque em hebraico há um tipo de abóbora, denominado “kará”, que tem sonoridade similar à conjugação do verbo “chamar” no texto – “ikrehú”. Partimos em seguida para o funcho (ou erva-doce) e aqui também não mu damos o texto. Ele pede para que nossos méritos se multipliquem, o que é um pe dido bonito. O livro italiano diz que fun cho (“finocchio” em italiano) em hebraico é “rubiá”, que tem as mesmas letras de “irbú” (crescer, multiplicar). O curio so é que em hebraico moderno “rubiá” é uma espécie de vagem comprida e em al guns livros (inclusive no folheto da Mo rashá) se usa feijão fradinho. Vejam que até agora não mudamos nada, continua mos usando as antigas fórmulas italianas. Apenas reforçamos o anseio de doçura com a maçã com mel. Mas a partir daqui a coisa muda!

O quinto passo do ritual italiano é o alho-poró (“kreshá” em hebraico) e o pe dido do Iêhi Ratson italiano é dramático: “Que sejam dizimados os que nos querem mal”3, no qual o verbo hebraico utiliza do é “lekaret” (literalmente “cortar” e que tem a mesma raiz que “karet” a palavra para a condenação à morte). Quebramos a cabeça para mudar esse texto. Como fa

3 Literalmente “os inimigos, os que nos odeiam e os que pedem pelo nosso mal”. Abreviamos este trecho para “os que nos querem mal” para não tornar o texto des te artigo muito pesado.

Asas para voar no presente em direção ao futuro sem abandonar as raízes do passado.

4 Em inglês se usa a expressão “to cut a deal”, que usa a mesma figura de expressão que o hebraico.

Então, associando esta mesma metáfora com o principal anseio de todas as mães e pais do universo, a frase do Iêhi Ratson ficou assim: “Que nossos filhos cresçam retos como a tamareira”. Que é, sem dúvida, a melhor forma de derrotar o nosso maior inimigo – o afastamento dos parâ metros morais do judaísmo.

O salmo 92 usa uma metáfora na qual os troncos re tos da tamareira são comparados à atitude moral dos jus tos. Quem frequenta o Kabalat Shabat não terá dificulda de em reconhecer a frase “Tsadik katamar ifrach”, “Os justos florescem como as tamareiras”, visto que o cantar do salmo 92 é uma das partes mais bonitas de nossa liturgia.

Não modificamos os dois últimos passos. Tanto a romã, que pede para que tenhamos tantos méritos quan to as sementes da romã, e a cabeça de peixe, que pede para que nos multipliquemos como os peixes e que sejamos ca beça e não cauda, passaram incólumes pelo olhar crítico da minha família. Assim, utilizando expressões mais adequadas aos nos sos sentimentos, mantivemos a beleza, a alegria e os fun damentos do ritual antigo. Prestamos a devida homenagem às antigas gerações que nos legaram seus rituais e seus livros, ao mesmo tempo em que transmitimos uma ceri mônia significativa para as gerações futuras. Uma cerimônia que manteve os significados do for mato original, porém adequando-os ao nosso momento.

Achamos a solução numa expressão da Torá, na qual “fazer um acordo” é expresso como “cortar um acordo”4, no sentido de que cada parte de um acordo corta um pou co de suas demandas em favor da harmonia entre as partes. Então nosso Iêhi Ratson ficou assim: “Que possamos fazer acordos para a paz”, ou seja, um pedido que advoga pelo fim da inimizade através do entendimento e da harmonia. Superamos o primeiro obstáculo! Mas ainda faltavam dois. O sexto passo é a beterraba ou a acelga (respectiva mente selek e selek alim5) e o pedido do Iêhi Ratson é: “Que os que nos querem mal sejam eliminados”, no qual o verbo hebraico utilizado é “leistalek” (literalmente “desaparecer”). Aqui nós apenas suavizamos a frase. Trocamos “os que nos querem mal” por “aflições” e ficamos com uma fórmu la mais branda: “Que nossas aflições se dissipem”.

O sétimo e último passo problemático é a tâmara. As letras da palavra para esta deliciosa e muito doce fruta (ta mar) combinam com o verbo hebraico “leiatem”, que sig nifica literalmente “tornar alguém órfão”6 (ou seja, matar a mãe e/ou o pai da pessoa) e o pedido do Iêhi Ratson é dire to: “Que os que nos querem mal sejam mortos”. Mais uma vez resolvemos esta frase com a ajuda do Tanach.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 59 zer uma frase positiva e de significado semelhante com o verbo “cortar” ou com a pena capital?

Shaná Tová! Raul Cesar Gottlieb é engenheiro, diretor da revista Devarim, chair person da União do Judaísmo Reformista para a América Latina e presidente do Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Re formista. Notas 1 Lê-se min-ha-guim, separando o “n” do “h”. Singular “minhag”: min-hag.

Num pequeno microcosmo familiar fizemos o que o movimento reformista se esforça para propiciar a todo o povoRaízesjudeu:easas.

2 Este dito advoga por direitos cívicos iguais aos judeus e não, como dizem alguns detratores, incentiva a sua assimilação.

5 A acelga e a beterraba são plantas da mesma espécie: “Beta vulgaris”.

6 Uma curiosidade para os que frequentam sinagogas: o “Kadish Iatom”, que é nor malmente traduzido como “Kadish dos Enlutados” significa literalmente “Kadish dos Órfãos”.

Heckepics/iStockphoto

A presença judaica continuou significativa após a conquista muçulmana do Egito no século VII ec. Maimônides passou seus últimos anos de vida no Cairo e o mais importante repositório de documentos sobre a vida judaica na Idade Média foi encontrado na Guenizá daquela cidade. Pode-se dizer que tanto os judeus como os coptas, cristãos cuja língua litúrgica descende do egípcio anti go (a língua dos hieróglifos), representam uma presença no Egito bem anterior à conversão do país ao Islã.

LEMBRANÇAS DEUM PAÍS QUE NÃO EXISTE MAIS

As fotos que ilustram este texto são da cidade de Alexandria, Egito.

Eu nasci em Alexandria na primeira metade do século XX, quando praticamente não se fazia diferença entre os judeus – vários deles instalados havia várias gerações – e os outros estrangeiros.

[O passado nunca morre. Nem passado é.]

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 61

Clementine Pinto

Eu nasci em Alexandria na primeira metade do século XX, quando prati camente não se fazia diferença entre os judeus – vários deles instalados havia várias gerações – e os outros estrangeiros. Um judeu, por exemplo, ganhou do Rei um título de nobreza; eles prosperaram, apreciando sua liberdade de cul to, várias escolas e sinagogas foram construídas. O Hospital Israelita era famo so pelo alto nível de sua equipe, suas instalações e equipamentos ultramoder nos. Essa prosperidade não impedia que houvesse também judeus pobres, al guns dos quais contavam fortemente com a assistência caridosa da comunidade.

A presença dos judeus no Egito data dos tempos dos Patriarcas. Séculos após o Êxodo, voltou a formar-se uma comunidade no país que cresceu a partir da fundação de Alexandria no século IV aec. Essa comunidade legou monumentos de sabedoria, como a tradução do Tanach para o grego, a famosa Septuaginta e as obras de Fílon de Alexandria.

“The past is never dead. It’s not even past.”

William Faulkner, 1897-1962

A situação, paradoxalmente, acabou empurrando al guns judeus para a militância sionista. Porém, a imensa maioria dos judeus no Egito tinha profundo apego pelo seu país, alguns chegando até mesmo a militar em movi mentos comunistas, movidos pelas desigualdades sociais.

Famílias foram forçadas a partir e as que permaneceram eram vigiadas e questionadas regularmente. Algumas pessoas foram confinadas em campos de internamento de onde saíam diretamente para um navio que os conduziria Deus sabe aonde...

62 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI Os judeus podiam manter emprego público, e vários tinham seus próprios negócios, alguns grandes. Nas escolas não judias não se marcavam provas nos dias de chag para não prejudicar alunos judeus. Muçulmanos, católicos, or todoxos, protestantes, armênios e judeus viviam em har monia. Éramos convidados para o Natal pelos católicos, pelos muçulmanos para o Sham el Nessim; convidávamos os não judeus para o Seder, etc. Evidentemente, depen dendo dos diferentes governos, haviam períodos melhores e outros piores. Não foi sempre um mar de rosas, mas, em geral, a vida era agradável. A população do Egito não ator mentava os judeus... até um certo momento. O início da deterioração Os momentos piores começaram com a partilha da Palestina e com os países árabes declarando guerra ao novo Estado de Israel. Os primeiros sinais de discrimina ção começaram com a vitória de Israel nesta guerra. Vá rios judeus perderam seu emprego; no Cairo, cidade me nos ocidentalizada que Alexandria, houve até tiroteios na rua e incêndios criminosos. Prenderam inúmeros jovens com a “vaga suspeita” de que eram sionistas. Eles sofre ram nas prisões egípcias: maus tratos, cuspe na comida, humilhações, etc.

Pouco a pouco a situação se acalmou, mas o Rei Fa rouk era fútil e egoísta a ponto de ser derrubado pelo exér cito em 1952, praticamente sem derramamento de san gue. A situação para os judeus parecia dar sinais de me lhora, mas o medo nos acompanhava sempre. Agora era o exército que comandava, primeiro sob o comando do mo derado Mohamed Naguib, pouco depois deposto por Ga mal Abdel Nasser. Eram ambos ocidentalizados, inimigos ferrenhos da irmandade muçulmana. Nasser era impulsi vo e ambicioso, queria ser o líder de todo o mundo árabe. Houve tumulto e, também desta vez, judeus foram presos e permaneceram detidos durante vários anos, sendo troca dos posteriormente por Israel. Em seguida a uma série de desentendimentos diplomá ticos com os EUA e os países ocidentais sobre aquisição de armamentos e financiamento da construção da gran de represa de Aswan, Nasser acabou nacionalizando o Canal de Suez, em 1956. Nasser contava com o faturamento do canal para financiar a construção das obras da represa. Evidentemente, essa situação prejudicava os ingleses e os franceses (antigos sócios do Canal), bem como os is raelenses, a quem foi negado o acesso ao Canal. Os três se uniram e aconteceu a chamada Guerra de Suez. O Egi to estava perdendo a guerra, mas como, simultaneamente, a URSS estava invadindo Budapeste, os americanos con cordaram que, desde que cessassem as hostilidades de um lado, o armistício seria conseguido do outro. E, assim, as hostilidades foram interrompidas e o período negro come çou, principalmente por causa da indescritível humilhação sofrida por Nasser. Quem tivesse passaporte francês ou inglês foi intimado a partir, alguns em 48 horas, outros em uma semana, não havia critério; podiam levar pertences pessoais, mas sem valores, e somente 20 libras egípcias por adulto e 10 por criança. Os que partiram deixaram para trás apartamen tos, móveis, contas bancárias, joias, lojas, escritórios, uma vida inteira. Imaginem o desespero. Era isso ou a morte. Ou um campo de concentração. Conheço pessoas que fo ram parar num desses campos e os descreveram como um verdadeiro inferno. Os judeus que se encontravam numa famosa lista ne gra, que ninguém sabe como foi elaborada, também tiveram o mesmo tratamento. Expulsão, morte ou campo de concentração. E o pior é que as famílias eram divididas.

Todos tinham o coração partido. Não havia uma pessoa que se encontrasse na rua e que não contasse sua dor, a se paração da família, o confisco dos bens.

Ninguém podia retirar mais do que uma pequena quantia do banco. Houve quem conseguisse esconder joias ou dinheiro dentro de suas roupas; mas as que eram pegas eram embarcadas sem um tostão. Os judeus viviam numa insegurança total. Ninguém sabia se estava na lista negra ou não. Meu pai, que tinha negócios próprios, nunca se meteu em política; nós, suas filhas, tampouco, mas nin guém sabia de nada. Em que é que os egípcios se basea

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 63 vam? Durante vários meses, meu pai continuou indo ao escritório, mas minha mãe havia preparado uma malinha com roupa de inverno caso batessem à nossa porta no meio da noite. Imagine se alguém conseguia dormir! Nesse meio tempo, eu me inscrevi num curso de se cretária executiva, com correspondência comercial em in glês e francês, datilografia e estenografia, para poder traba lhar no país onde iríamos parar... se é que sobreviveríamos.

A maioria dos judeus foi expulsa. Quem não foi expul so diretamente, sofreu tantos vexames que se viu obrigado a partir. Filas se formavam diante das embaixadas e con sulados estrangeiros para obter visto de entrada. O Brasil de Juscelino Kubitschek foi particularmente generoso. Só foi exigido um exame de vista (o tracoma, comum no Egito, era altamente contagioso) e um certificado garantindo que seu titular trabalharia com determinada firma, desem penhando determinada função. Enquanto isso, minha família se encontrava sem prote ção nenhuma. O consulado suíço tomava conta dos fran ceses e ingleses, e os defendia, caso necessário. De uma hora para outra, sem direito à nacionalidade egípcia ou a qualquer outra, nossa vida pacata se transformou. E assim durou dois anos, pois, durante este tempo, meu pai, des cendente de judeus marroquinos, tentava – em vão – con seguir a nacionalidade francesa. Por fim, decidimos partir. Meu pai tinha várias ofertas de trabalho na Suíça, Itália, França e Espanha, das firmas que ele representava. Deci diu tirar o visto para o Brasil, que estava no auge naque la época (São Paulo era a metrópole que mais crescia no mundo), e ficar alguns meses na Europa tentando obter o famoso permis de séjour indispensável para conseguir a car teiraHaviaprofissional.judeusem todas as classes sociais. Os mais carentes foram talvez os menos prejudicados com a saída força da de sua terra natal pois, acolhidos por Israel, ganharam uma educação para os filhos e um modo de vida decente. Mesmo assim, não se deve romantizar sua trajetória: eram geralmente pouco educados e sofreram discriminações e Keladawy/iStockphoto

dificuldades em sua inserção na sociedade israelense, além, claro, dos sofrimentos com as guerras. Os mais abastados, por sua vez, sofreram, além dos prejuízos materiais, a per da de sua identidade. Ouvimos falar de muitos chefes de família que morreram de enfarte fulminante ou de derra me. Outros perderam o juízo. Nunca se cogitou dar qualquer indenização ou com pensação pelos danos materiais sofridos pelos judeus egíp cios. Quanto aos danos morais, infelizmente, estes não po dem ser compensados. Viagem e chegada ao Brasil Uma judia egípcia italiana, Carolina Delburgo, escre veu o livro: Come Ladri nella Notte (Como ladrões na noi te). Este título descreve perfeitamente o que aconteceu com a maioria de nós. Em 1957, aconteceu o Grande Êxo do, nas piores circunstâncias possíveis. Ao final de 1959, a situação era ligeiramente diferente, mas bastava que al guém acusasse um judeu, com ou sem fundamento, de al gum desvio ou contravenção, e o chefe de família era preso, maltratado até confessar (confessar o quê? ninguém sa bia). Por esse motivo, três meses antes de partirmos, colo camos o nosso apartamento em leilão: meu querido piano, móveis antigos, estatuetas, itens comprados em lojas de an tiguidades, etc. Aos nossos vizinhos árabes, sinceramente consternados, que perguntavam o motivo da venda, nos sa versão era que meu pai havia decidido mudar-se para o interior, pois os negócios em Alexandria iam periclitando.

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64 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI

Fomos morar num apartamento mobiliado, e, de lá, como ninguém nos conhecia, meu pai deixou todas as contas pagas, fechou a porta do apartamento, entregou a chave do escritório ao seu empregado árabe, egípcio, leal até a última hora, e disse: “Tudo isso é seu. Só lhe peço esperar dez dias até desembarcarmos na Itália”. Partimos, portanto, come ladri nella notte...

Apátridas que éramos, partimos sem passaporte, muni dos apenas de um laissez-passer com a inscrição “aller dé finitif sans retour” (partida definitiva, sem direito a retor no). Além de nos sentirmos muito vulneráveis, sem qual

Felizmente, dois irmãos de minha mãe já haviam se estabelecido no Rio de Ja neiro e lhe proporcionaram um pouco do aconchego familiar que havia perdido quando da emigração.

A HIAS antecipava-se a todas as nossas dificuldades e meu pai fez a si mesmo a promessa de que, assim que fosse possível, não somente reembolsaria integralmente toda a generosidade recebida como continuaria colaborando para ajudar outras pessoas. Promessa cumprida.

Nos seis primeiros meses, meu pai e eu nos encontrá vamos para almoçar juntos. Almoço? Um salgadinho e um suco de laranja. Aos poucos nosso almoço foi melhoran do: dois salgadinhos e um suco de laranja! Não havia vale-refeição nos anos 1960.

Eu tive a sorte de achar um emprego imediatamente. Isto é, chegamos numa segunda-feira e na quinta-feira já estava trabalhando no escritório da Mesbla, a grande loja de departamentos que marcou gerações de cariocas. Porém, mal eu abria a boca um auxiliar de escritório co meçava a rir. Fazer o quê? Levar na espor tiva! As outras colegas, gentilíssimas, me corrigiam e devo a elas ter aprendido a conjugar os verbos e a formular frases corretas. Era muito difícil para meus pais, ambos com 50 anos de idade, manter o bom humor e a esperança, apesar de terem encontrado aqui alguns conhecidos. Meu pai le vou um mês para achar um trabalho, muito abaixo de suas qualificações, num escritório onde o chefe era arrogante e inexperiente. No entanto, um ano após a nossa chegada, havíamos conseguido juntar algum dinheiro para reem bolsar a HIAS. Acomodamo-nos como pudemos. O bom era ter saído do hotel. As humilhações que o chefe impunha ao meu pai pou co a pouco foram cedendo lugar ao respeito e à considera ção. O propósito dele era trabalhar representando no Bra sil as mesmas firmas com que já trabalhara no Egito; mas ele buscava primeiro, porém, entender as peculiaridades do mercado brasileiro, o que acabou acontecendo com su cesso alguns anos mais tarde.

Eu, com 20 anos de idade, tive bem menos dificulda des que meus pais para me adaptar à nova vida: encon trei alguns amigos de Alexandria com quem, no sábado à noite, ia ao cinema e na saída saboreávamos um cachorro

Após a Guerra do Suez, durante vários meses, meu pai continuou indo ao escritório, mas minha mãe havia preparado uma malinha com roupa de inverno caso batessem à nossa porta no meio da noite. Imagine se alguém conseguia dormir!

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 65 quer proteção diplomática, ainda passamos por várias humilhações: cada vez que uma autoridade europeia examinava nos sos documentos levantava os olhos, olha va feio e perguntava: “O que foi que vo cês fizeram para seu país não lhes permitir o retorno?” Como explicar? Era mais um vexame naquela época tão difícil. Desembarcamos em Gênova e viaja mos até Paris. Lá morava o irmão do meu pai, ainda alojado, dois anos depois de sua chegada, num hotel modesto. Instalamo -nos no mesmo hotel, enquanto meu pai ia de prefeitura em prefeitura, em Paris, Milão, Bruxe las, Madri, Zurique, tentar conseguir o permis de séjour. Enquanto esperava pela resposta, trabalhava em empresas cujos donos tinham certeza de que as suas providências se riam bem sucedidas. Infelizmente, não foi aceito em ne nhum lugar. Acumulou decepção atrás de decepção. Meu pai tinha um cliente kuaitiano, dono de vários grandes ma gazines em seu país e na Arábia Saudita, que, falando ape nas árabe, precisava de meu pai para ajudá-lo a adquirir mercadorias para suas lojas. Foi com esse dinheiro ganho na Europa que conseguimos nos manter em Paris. Finalmente, uma semana antes do nosso visto brasi leiro vencer, retornamos a Gênova, de onde embarcamos – com a valiosa assistência da Hebrew Immigrant Aid So ciety, a famosa HIAS – para nossa terra prometida: Bra sil, País do Futuro, e Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Tentávamos continuamente substituir o desânimo pelo entusiasmo! Durante esse tempo, quem conseguia nos dar força foi minha mãe que sempre repetia: “Tivemos a vida salva, estamos vivos, vejam o que aconteceu aos nossos ir mãosAoeuropeus!”chegarao

Brasil, em janeiro de 1960, percebemos que o idioma que havíamos aprendido nos livros, em sua variante de Portugal, de pouco nos servia. A HIAS nos le vou, como a outras famílias egípcias, a um hotelzinho da Rua Correia Dutra, no bairro do Catete. A grande emi gração egípcia ocorreu em 1957 e estes refugiados haviam sido abrigados num hotel da Praça Onze; agora, dois anos depois, já moravam em apartamentos, haviam encontrado trabalho, e falavam razoavelmente o português. O Grande Desespero deles tinha dado lugar à Grande Esperança, mas para nós, tudo começava.

Para nós, judeus egípcios, o passado continua sempre vivo, como escreveu tão bem William Faulkner. Que esse e tantos outros depoimentos contribuam para trazer ao co nhecimento das novas gerações uma bonita época da his tória judaica moderna, assim como os egiptólogos, com suas escavações, ressuscitaram uma civilização que havia sido quase esquecida sob as areias do deserto.

Se não fossem esses transtornos, po deria dizer, sem exagero algum, que, de todos os países para onde os judeus egíp cios emigraram, o Brasil foi o mais acolhedor. O povo, longe de ser ressentido com os recém-chegados, nos ajudava em nossaEmintegração.1989,trinta anos após minha partida, meu marido e eu, acompanha dos do nosso filho mais velho, visitamos Alexandria e o Cairo. Apesar da gentile za das pessoas, e da oportunidade de rever tantos pontos turísticos, o retorno deixou claro para mim que, como o título do li vro de memórias de Albert Oudiz, Je viens d’un pays qui n’existe plus, venho de um país que não existe mais. Tivemos o alívio de ver sinagogas em excelente estado, e conhecer os últimos judeus, todos bem idosos, que ainda lá viviam. Mas o país estava quase que irreconhecível. Naquele momento, dei-me conta que nossa partida, por dolorosa que fosse, acabou poupando -nos de contrariedades e amarguras ainda maiores. Conti nuo, no entanto, a sentir um carinho profundo e a dese jar o melhor ao Egito, que foi terra de oportunidades para a família do meu marido e de refúgio para a minha. Que venha a paz plena, e que todo o Oriente Médio realize seu potencial na harmonia e na prosperidade.

Agora, podemos dar um grande “Muito obrigado” a Nasser. Só lamento profundamente o sofrimento dos mais velhos, mas, sabendo do sucesso de seus filhos e netos, pos so assegurar que diriam “valeu a pena”. (Rio de Janeiro, junho de 2014)

O texto, gentilmente cedido à Devarim, é uma redução e adap tação das memórias completas de Clementine Pinto. Quem se interessar por receber o texto completo deve encaminhar um mail com o pedido para danielpintobrazil@gmail.com.

A HIAS antecipavase a todas as nossas dificuldades e meu pai fez a si mesmo a promessa de que, assim que fosse possível, não somente colaborandogenerosidadeintegralmentereembolsariatodaarecebidacomocontinuariaparaajudaroutraspessoas.

66 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI quente e um milk shake no Bob’s. Meus colegas de trabalho me apreciavam e meu chefe me valorizava. Seis meses mais tar de, tendo adaptado minha estenografia para o português, consegui um emprego melhor. Quem muito sofreu foi minha irmã que chegou ao Rio com 11 anos, no início da adolescência. As escolas ju daicas tinham oferecido um ano de bolsa aos filhos dos imigrantes e refugiados ju deus egípcios (diga-se de passagem que o colégio Max Nordau não aceitou o reem bolso que meu pai ofereceu um ano mais tarde). As roupas dela ficaram pequenas, e cadê dinheiro para comprar outras? Por outro lado, acostumada a ser excelente aluna, tropeçava com algumas palavras. Nunca é fácil a integração, e talvez menos ainda nesse período já difícil da adolescência. Contratempos Minha família sofreu bastante no que diz respeito à saúde. Depois de todo mundo estabelecido, eu e meu pai ganhando razoavelmente bem, minha mãe, que no meio tempo havia perdido 15 quilos, teve o que hoje é chamado “depressão pós-traumática”, algo meio desconhecido na época. Não conseguia sair da cama. Não conseguia le vantar o braço para se alimentar. Nenhum médico des cobria a doença que a afligia, até que conhecemos um jovem psiquiatra, recém-formado, que nem consultório ainda tinha e, maravilha das maravilhas, entendia o fran cês. Foi depois dessas sessões de terapia que minha mãe começou a melhorar e retornar a uma vida praticamente normal, cumprindo todas as suas obrigações e até levan do uma vida social modesta.

No meio tempo eu me casei e, no início de meu casa mento, meu marido foi vítima de um erro médico que lhe custou a vista de um olho. Alguns anos mais tarde, víti ma de outro erro médico, meu pai teve parte da face mutilada! E para encerrar, minha mãe foi atropelada por um ônibus. Sobreviveu, conseguia caminhar, mas nunca mais meus pais tornaram a sorrir, a não ser para os netos. Minha mãe acabou falecendo de uma infecção hospitalar.

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TAK -TO -TAK

m 1970, o célebre cineasta japonês Akira Kurossawa presenteava o mundo com o filme Dodeskaden. A trama, desprovida de heróis, retra tava a vida de pessoas comuns, habitantes de um subúrbio de Tóquio e seus desafios para sobreviver. Há um tom radicalmente alegórico e surrealista no filme, especialmente em um de seus personagens, Rokkuchan, um menino mentalmente instável, que insiste em imitar o barulho de um trenzinho, ao dirigi-lo imaginariamente. O som do trem nos trilhos, expresso pela fantasia de Rokkuchan, aparece na forma da onomatopeia dodeskadén -dodeskadén-dodeskadén, e confere o título à obra. Em um outro universo estético, cultural e poético, encontramos outra ten tativa de captar na sonoridade das palavras o ritmo, dessa vez tão real quanto macabro de outro trem: Wislawa Szymborska, ao escrever o poema Jeszcze, nos apresenta o ritmo ferroviário tak-to-tak, tak-to-tak, tak-to-tak. O trem trans porta como passageiros pessoas comuns como Natan (que esmurra a parede), Isaque (que canta louco de fome), Sara (que pede água), Arão (que morre de sede), David (que pensa em pular do trem) e tantos outros judeus, retratados por Szymborska no poema. Seu destino final: Auschwitz, onde tudo termina. Não existe em Jeszcze a ingenuidade mental de Rokkuchan, personagem do fil me de Kurossawa. Aqui, no poema, a musicalidade rítmica e os nomes que a poeta verbaliza, denunciam a cumplicidade e a conivência de uma maioria po lonesa ocupada, silenciosa diante de uma minoria alemã ocupante, orientada pelo ritmo de extermínio do Holocausto.

Primeira Foto de Hitler, de Wislawa Szymborska

Entre dúvidas, provocações e o óbvio no poema

Suas palavras na Academia Sueca, em 1996, talvez consistam no mais curto e econômico discurso proferido por alguém agraciado com o Prêmio Nobel. Naquela ocasião, Szymborska fez um elogio entusiasmado e ao mesmo tempo despretensioso da Dúvida como elemento central de qualquer artista, e do perigo das certezas, seu calcanhar de Aquiles.

André Sena E

Todos os tipos de torturadores, ditadores, fanáticos e dema gogos em busca de poder, cheios de slogans de combate em seus pulmões, também podem desfrutar de seu trabalho, e execu tá-lo com fervor inventivo. Eles sabem o que sabem e isso lhes é suficiente. Não desejam descobrir mais nada porque isso po deria diminuir a força de seus argumentos. E qualquer co nhecimento que não leve a novas questões expira rapidamen te. Não consegue manter a temperatura necessária para pre servar a vida. E nos casos mais extremos, fatos conhecidos da história moderna e antiga, tornam-se uma ameaça letal à so ciedade. É por isso que valorizo altamente este breve não sei.

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O engajamento político de Wislawa Szymborska nunca desapareceu ou deixou-se atrofiar pelas circunstâncias de controle ideológico que seu país sofreu. Aliás, país que ela nunca pensou em deixar, mesmo nos piores anos de patru lhamento e Entretanto,vigilância.hánasua poesia (até mesmo em um poema doloroso como Vietnã) uma simplicidade que desposa uma dose suficiente de humor e provocação. As perguntas feitas pelo locutor à mãe, em Vietnã, expõem uma certa condição ridícula do inquiridor diante do óbvio.

Ou foi só quando um vento me bateu, despenteou o meu cabelo e levantou o meu vestido.

Ele é pequeno, mas voa em asas poderosas e expande nossas vi das para incluir novos espaços em nós mesmos.

Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma e caiam numa risada, uma vez, outra vez. Olhei para trás de raiva. (tradução: Regina Przybycien)

Nenhum poema de Wislawa Szymborska, contudo, parece nos oferecer um traço mais vivo dessa dialética cria tiva entre a dúvida, o óbvio e a provocação embriagada de ingenuidade, do que Primeira Foto de Hitler, poema que faz parte da obra Gente na Ponte, publicada em 1987.

O mesmo ocorre em A Mulher de Ló, um de seus tex tos mais luminosos e comoventes. Famoso personagem bí blico, transformada em uma estátua de sal por ter desobe decido a ordem de não olhar para trás quando da destrui ção de Sodoma, ela ressurge na poesia de Szymborska, nos esclarecendo acerca das razões que a levaram a olhar para trás; dentre elas, o tédio de se ver obrigada a olhar o tempo todo para a “nuca virtuosa de meu marido Ló”, mas também outras razões banais que nos provocam riso e le veza, como a “distração em simplesmente amarrar as tiras das sandálias”, ou “pelo receio de onde eu iria pisar”. Em um equilíbrio quase perfeito entre o riso diante da obvie dade e o peso da existência, a mulher de Ló, aqui recons truída midrashicamente por Szymborska, afirma em certa parte do poema: Olhei para trás de solidão. De vergonha de fugir às escondidas. De vontade de gritar, de voltar.

Muitos dos seus poemas, em uma humilde, porém ex pressiva, obra reunida em 12 volumes em 50 anos de pro dução, com uma variedade de centenas de textos, pode rá deixar absolutamente clara a questão da dúvida como elemento primordial para uma leitura lírica e simultanea mente sofisticada da realidade. Em Vietnã, poema de 1967 por exemplo, a repetição quase litúrgica da expressão “não sei”, por uma mãe desesperada diante do drama de bom bardeios à sua aldeia, só é finalmente detida pela certeza da condição maternal diante do corpo morto de um filho.

Com o Prêmio Nobel de Literatura recebido em 1996, Wislawa Szymborska tornou-se mais conhecida do que em qualquer outro momento de sua carreira literária, sobre tudo a partir dos escritos posteriores a 1957, com a Publi cação de Chamando por Yeti, o que ela considera o verda deiro começo de sua trajetória. As razões para desconside rar tudo ou quase tudo o que escrevera antes disso são fun damentalmente políticas: os estragos, causados pelo esta linismo na Polônia até o final dos anos 1960, amordaça ram poetas e artistas, agrilhoados a um ambiente intoxi cado pela propaganda política, laudatória do Estado e de seus títeres, especialmente a partir do estilo social-realis ta, tão estimulado nas décadas em que o espectro de Stalin era imperativo e implacavelmente contundente, em uma Polônia sequestrada pelos primeiros anos da Guerra Fria. Suas palavras na Academia Sueca, em 1996, talvez con sistam no mais curto e econômico discurso proferido por alguém agraciado com o Prêmio Nobel. Naquela ocasião, Szymborska fez um elogio entusiasmado e ao mesmo tem po despretensioso da Dúvida como elemento central de qualquer artista, e do perigo das certezas, seu calcanhar de Aquiles. Afirma ainda a universalidade da criativida de, atributo potencial até mesmo de tiranos, cujo limi te é apenas o pantanoso terreno das seguranças absolutas. Diante de um seleto público em Estocolmo a poeta pro voca o auditório:

Aqui, Szymborska brinca com as nossas certezas, mas também com o nosso conhecimento a priori sobre de quem se trata o personagem central de seus versos. E desse jogo a poeta extrai não apenas a cadência do próprio poema, como provoca, em nós leitores, uma intrigante combina ção de suspense, frio na espinha e impotência, diante de um incontornável fatalismo da História.

O compositor e poeta brasileiro Arnaldo Antunes es creveu há alguns anos a letra para uma canção interpretada por Adriana Calcanhoto chamada Saiba, que integra seu sexto álbum, o primeiro e até agora único lançado por ela para o público infantil, chamado Adriana Partimpim. To das as vezes que leio o poema de Szymborska recordo-me da composição de Arnaldo Antunes, ainda que fazendo dela uma leitura a contrapelo, tomando aqui emprestado o termo cunhado pelo filósofo Walter Benjamin. A primei ra estrofe da canção dialoga de certa maneira com Primei ra Foto de Hitler, tanto na ideia geral como na sugestão:

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Os contornos dos versos iniciais (e sabemos da impor tância dos começos em obras literárias, sejam poesia ou prosa; Dickens e Proust que o digam!) assumem um tom absolutamente explícito, de um deboche que de inocen te nada tem. Em 1987, a poeta não espera que seus leito res ignorem de quem se tratou Hitler, cujo nome apare ce no título do poema, Pierwsza Foto Hitlera (primeira fo tografia ou foto de Hitler). Personagem dorsal do poema, ele aparece aqui chamado de “Adolfinho”, repaginado na figura de um inocente bebê, preparando-se para sua pri meira “fotinha”. Ao interrogar “quem é essa gracinha de tiptop?” (eu te ria traduzido por cute-cute para o leitor geral brasileiro), Szymborska declara guerra ao velho brocado de que “a primeira impressão é a que fica.” Em quase todos os casos não é, embora insistamos que seja, e aqui muito menos. Adolfi nho, o “anjinho, pimpolho, docinho de coco”, é um “raio zinho de sol” cuja futura ação na História cobrirá o planeta de escuridão, fazendo discípulos que nos assombram ain da nos dias de hoje. E ao deixar claro no poema que fazia apenas um ano de seu nascimento, a poeta torna isso ain da mais concreto e tangível.

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Saiba, todo mundo foi neném. Einstein, Freud e Platão também. Hitler, Bush e Saddam Hussein Quem tem grana e quem não tem.

O que diferencia a letra de Antunes do poema de Szymborska é o grau de investimento semântico de am bos, o que resulta em uma dessemelhança fundamental de propósitos. Enquanto o primeiro nos chama atenção para a dimensão humana como essencial, universal e comum a todos os personagens históricos citados e embalados pela doce melodia de Saiba, nossa poeta polonesa mergulha, com certo grau de sarcasmo, na desilusão de uma tragédia previamente anunciada, exatamente porque já conhecida de todos nós, moradores do futuro. Nesse sentido, o Adol finho symborskiano é o bebê-Hitler, fundamentalmente diferente do Hitler-bebê de Antunes. A biografia em aberto, proposta por Wislawa Szymbor ska no poema, só pode ser contingente, então, no campo da fantasia. Ou ainda no jogo poético, onde tudo pode licenciosamente se apresentar. Mas a poeta sabe que esta mos lendo o poema já sabedores do resultado histórico do biografado. Aqui, curiosamente não é a dúvida que impe ra, confirmando o típico estilo lírico da autora. Ao con trário: são nossas certezas sobre quem Hitler foi que rati ficam a genialidade dos versos em sua dimensão proposi talmente falaciosa. Com a palavra, a tradutora de Szym borska para suas publicações no Brasil, e estudiosa da obra poética da escritora, tanto no Brasil como na Polônia, Re gina Przybycien: Fazer perguntas, colocar como hipótese outras formas de ser, de vestir e de sentir, provoca um estranhamento nas nos sas visões de mundo já consolidadas. Naturalmente toda poe sia, por trabalhar criativamente com a linguagem, faz isso, mas, além desse cuidadoso trabalho com a linguagem, Szym borska o faz apresentando temas e personagens conhecidos sob um ângulo de visão inusitado, que surpreende e desestabili za o convencional. Um bom exemplo desse efeito de estranha mento é o poema “Primeira Foto de Hitler”, no qual o seu eu lírico se dirige ao bebê “Adolfinho” numa linguagem que os adultos utilizam com os bebês, e faz previsões sobre o seu fu turo. É o que o leitor sabe sobre esse futuro que torna a ironia do poema absolutamente corrosiva. (Prefácio a Poemas, lan çado no Brasil pela Cia. das Letras.)

Antes do clique final do fotógrafo, Szymborska nos metralha com toda sorte de perguntas sobre Adolfinho. O que será ele no futuro? Padre? Mercador? Tenor de Ópera em Viena? “Quais caminhos percorrerão essas pernocas?”,

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É o Adolfinho, filho do casal Hitler!

Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau, e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável, firmas sólidas, vizinhos honestos, cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.

Fralda, babador, chupeta, chocalho, o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio, parecido com os pais, com um gatinho no cesto, com os bebês de todos os outros álbuns de família.

O instante do clique fotográfico nos é anunciado por Szymborska como um ponto de inflexão no poe ma, como que a imitar o conceito de moment deci sif, enunciado pelo gênio francês da fotografia Hen ri Cartier-Bresson no livro Images à la Sauvette. Ali, Cartier-Bresson afirma a fotografia como algo inten samente conectado ao ritmo do mundo real. A mãe de Adolfinho o instrui nesse sentido, como o poe ma deixa claro: “Não vai chorar agora”, uma foto está para ser feita e o registro que ela constitui incorpora uma realidade definida, concreta, real.

Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol, quando chegou ao mundo um ano atrás, não faltaram sinais na terra nem no céu: gerânios na janela, um sol primaveril, a música de um realejo no portão, votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa, pouco antes do parto, o sonho profético da mãe: sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas, se for pega - vem uma visita muito esperada.

Será que vai se tornar um doutor em direito?

Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório com a filha do prefeito?

Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino. Um professor de história afrouxa o colarinho e boceja sobre os cadernos.

(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)

O bebê fotografado na poesia de Wislawa Szym borska, no Ateliê Klinger à rua Graben, na pequena “Primeira foto de Hitler” Wislawa Szymborska E quem é essa gracinha de tiptop?

na direção de um futuro cheio de possibilidades, todas abortadas pela figura de um angustiado professor de história, que aparece afrouxando o colarinho e bo cejando ao fim do poema. Se em Vietnã a figura materna se configura como um elemento imanente e decisivo no seu desenlace, em Primeira Foto de Hitler nos deparamos com uma mãe que faz às vezes de profetiza, surgindo de uma dimensão onírica, portadora de bons augúrios, anun ciados a ela em sonho, pouco antes do nascimento de seu filho. A ironia irrompe repentina, nos revelando o objeto do sonho da mãe de Hitler: uma “pomba –sinal de boas-novas.” É exatamente nesse jogo de con trários – onde tudo que não é aparece explicitamen te, já que pré-concebido pelo próprio leitor, e tudo o que poderia ser e jamais será também aparece – que Szymborska nos fideliza na leitura do poema. Adolfi nho é um bebê sadio, o que se confirma no gesto de seus pais de “bater na madeira”, bem como no cora çãozinho batendo forte e cheio de vida do bebê. Aliás, ele se parece com seus pais supersticiosos, o que talvez nos faça perguntar: O que há de singular e incomum no Adolfo do futuro poderá ter raízes comportamen tais ou culturais familiares, comunitárias, nacionais?

Quais caminhos percorrerão essas pernocas, quais?

Não, não vai chorar agora, o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.

De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe; de um tipógrafo, padre, médico, mercador?

Ou um tenor da ópera de Viena?

De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?

Nada mais distante da verdade. A primeira foto de Hitler jamais corresponderia de fato ao imenso uni verso de imagens em foto e vídeo, captadas por gê nios do mal que deram seus cliques ao Führer, como Leni Riefenstahl, que o acompanhou nos congressos do partido nacional socialista dos trabalhadores ale mães, em paradas e desfiles, discursos, alvoroços e ala ridos de toda sorte.

Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.

André Sena é doutor em História Política pela Universidade do Rio de Janeiro. Atualmente reside no Canadá onde é colunista do Jor nal de Toronto, e coordena o Grupo de Estudos de História do Bra sil da mesma instituição. Referências Szymborska, Wislawa. Poemas. (trad. Regina Przybycien). Companhia das Letras, 2011. Szymborska, Wislawa. Um Amor Feliz. (seleção e tradução, Regina Pr zybycien). Edição bilingue, Companhia das Letras, 2016. Przybycien, Regina A Poesia de Wislawa Szymborska. A História vista das margens. ArtCultura, Uberlândia, vol. 7, n. 10, p. 23-26, jan. -jun. Instituto2005.Ling & Gonzaga, Pedro. Wislawa Szymborska, com Pedro Gonzaga. In: Poesia no Ling. Wislawa Szymborska: da vida reservada ao prêmio Nobel | Instituto Ling. Acesso: 25.05.2022.

e respeitável cidadezinha austríaca de Braunau, com suas “firmas sólidas” e “vizinhos honestos”, só cabe nas risadas nervosas que possivelmente a poeta deseja que esbocemos ao longo da leitura, pois logo após a foto tirada, o bebê re gistrado e a posteridade fantástica garantida, Szymborska anuncia sua cumplicidade conosco. Também ela sabe que os não ditos de seu poema são nosso legado de memória. Os primeiros passos do destino ainda não foram dados, nos revela. O coraçãozinho que bate saudável irá crescer, e então os cães ladrarão. O cheiro de massa de pão e sabão cinzento, descritos pela poeta nos versos finais de Primei ra Foto de Hitler, parecem anunciar pelos sentidos a mar cha da História, algo que anteriormente o sonho da mãe de Adolfinho buscou delicadamente disfarçar. E de súbito tudo fica claro, sem subterfúgios; como que evaporando na fumaça dos versos, vai-se a ironia ge ral do poema, derrotada pela mão da própria Szymborska nas suas três últimas linhas. Diferentemente do inocente e ingênuo dodeskadén, entoado pelo garoto Rokkuchan no filme de Kurossawa, expressão da imaginação infantil, é na verdade o sempre presente perigo do tak-to-tak que nos en trega a poeta, como aviso, como alerta. Aquilo que o filme do cineasta japonês tem de único, se contrasta com o que o poema de nossa genial polonesa tem de potencialmen te repetitivo. E por esta mesma razão, Wislawa Szymborska desperta em nós a mais profunda e interior gratidão.

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Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 75 Nossa missão, aqui no Liessin, é garantir que nossos alunos alcancem voos cada vez mais altos.

Terminava de forma trágica a fulgurante carreira do grande escritor austría co, autor dos maiores best-sellers da primeira metade do século 20 e de sua se gunda mulher, antes sua secretária, a frágil judia alemã Lotte Altmann.

Nas mesas de cabeceira, garrafas de água mineral Salutaris, copos e vestígios de barbitúrico, talvez veronal.

Israel Beloch Em memória de Stefan Zweig, Henrique Lemle e Alberto Dines

Q uando a empregada doméstica chegou naquele bangalô petropolitano da Rua Gonçalves Dias na manhã de 23 de fevereiro de 1942 estra nhou a ausência do casal e a porta do dormitório fechada. Às 4 da tarde, aflita diante da situação inalterada, chegou a pensar em retirar as telhas e verificar do alto o que se passava no interior do quarto, mas antes simplesmente girou a maçaneta e a porta abriu. O casal Stefan e Lotte Zweig, abraçados, jazia na cama sem vida.

No fatídico domingo, 22 de fevereiro, o metódico Zweig põe no correio envelopes com os originais de sua última obra, A partida de xadrez ou O livro do xadrez ou Novela de xadrez, conforme a tradução de abertamenteeditores.endereçadosSchachnovelle,atrêsdeseusÉoseulivromaisantifascista.

Zweig abandonara em 1934 o confortável palacete no Kapuzinerberg, o Monte dos Capuchinhos da paradisíaca cidade alpina de Salzburgo, após a re sidência ter sido varejada pela polícia numa inexplicável busca de armas utili zadas no levante operário daqueles dias, duramente reprimido pelo regime do austrofascista Engelbert Dollfuss. Obviamente Zweig, um pacifista militante e ardoroso, jamais poderia ser suspeito do papel de armeiro socialista. Era uma provocação e assim ele a percebeu. O ar, para ele, ficou irrespirável. Abando nou a casa e o país natal para nunca mais voltar.

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Instalou-se na Inglaterra e começou o longo périplo de refugiado, condição que muito potencializou a sua personalidade melancólica, o seu “fígado negro”, 80 ANOS TOMBAVA UM GIGANTE

Seu editor brasileiro e amigo próximo Abrahão Koo gan aconselhou-o a fugir do calor carioca e encontrou para o casal o bucólico bangalô de Petrópolis. A cidade serrana Casa Stefan Zweig, em Petrópolis.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 77 como apelidara suas crises. A depressão o perseguira por muitos anos. Em Morte no paraíso, a biografia mais com pleta de Zweig, escrita por Alberto Dines, lê-se que, ainda no primeiro casamento, o escritor propusera à mulher, Fri derike Maria von Winternitz, o suicídio a dois, ideia que a enérgica e operosa parceira repeliu, levando-o a recuar do intento. Elisabeth Roudinesco1, psicanalista e historiado ra, aventa que Zweig possa ter herdado da mãe a sensibili dade e a fragilidade psicológica que muitas vezes o deixa ram desarmado diante da depressão. É curioso observar que em Os Buddenbrook2, romance de formação de Thomas Mann, colega literário de Zweig, o jovem Hanno, último da linhagem, tenha herdado da mãe o temperamento sonhador, a sensibilidade à flor da pele que o leva a considerar intolerável a existência.

Zweig, que já havia visitado o Brasil em 1936 e 1940, deixara a Inglaterra com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, já na companhia de Lotte, e se instalara nos Es tados Unidos, para onde fugira também Friderike com as duas filhas de seu primeiro casamento. Talvez por não que rer ficar sob a influência da força e do magnetismo da ex -mulher, acabou vindo em 1941 para o Brasil, que tanto o fascinara nas passagens anteriores. Nesse mesmo ano, lan çou o seu “livro brasileiro”, Brasil, país do futuro3, que tan tos dissabores lhe trariam e cujo título até hoje assombra a nossa difícil realidade. O Brasil vivia em plena ditadura do Estado Novo e Zweig se viu acusado por intelectuais e jornalistas de pro duzir uma visão edulcorada do país em troca de favores de Getulio Vargas: um visto permanente e até mesmo dinhei ro. Impedidos pela censura de atacar abertamente o chefe do governo, desviavam o golpe para a frágil figura do es critor. A campanha foi capitaneada pelo editor do pode roso jornal Correio da Manhã, Costa Rego, em sucessivas e ácidas colunas. Outro que martelou contra ele no mesmo diário foi o grande crítico literário Álvaro Lins: “...viajan tes apressados na travessia de alguns dias pelo nosso país, com pernoites em hotéis de luxo e cassinos, escrevendo em seguida volumes enormes sobre o nosso caráter, os nossos costumes, a nossa vida e o nosso Futuro”4 (grifo do autor, referência direta ao livro de Zweig).

Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o céu sereno Contra um bicho-da-terra tão pequeno?5

Já havia escrito ao amigo Victor Fleischer, “os nazistas não me pegarão vivo”.6 Nesses dias, Zweig e Lotte visitaram outro exilado ilus tre, o grande escritor francês Georges Bernanos, católico de direita, mas revoltado contra o nazismo e o antissemitis mo, que se refugiou em Barbacena, onde vivia desde 1939. O escritor mineiro Geraldo França de Lima, secretário in formal de Bernanos, descreveu o encontro: “Nunca até então eu tinha visto Bernanos receber tão carinhosamente, acolher comovido e fraterno, como recebeu Ste fan Zweig (...) desfigurado, triste, abatido, sem esperança, cheio de pensamentos aziagos. (...) Bernanos (...) convidou-o a acompanhá-lo num protesto ao mundo contra as barbari dades que Hitler praticava contra os judeus e que Bernanos, enfurecido, qualificava como crime contra a Humanidade”.7

Zweig declinou do convite para passar uns dias no sí tio do francês e retornou de trem a Petrópolis. Depois de

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ainda conservava muito da sua herança imperial e do seu pitoresco casario. Da casa, a meia-encosta, o sonhador vie nense via colinas que lhe pareciam Salzburgo. Mas o isola mento a que ficou submetido naquele ambiente provincia no, com uma pobre biblioteca e poucos interlocutores de fala alemã, certamente contribuiu para o “fígado negro”. Lotte, profundamente asmática, sofria com o clima úmi do e se via também dominada pela melancolia.

Nos dois últimos meses de vida de Zweig aconteci mentos ameaçadores se precipitam em avalanche: o ata que japonês a Pearl Harbor em dezembro de 1941 provo ca a entrada dos EUA na Guerra e leva, no mês seguinte, as nações do continente a se reunirem na Conferência do Rio de Janeiro e decidirem pela ruptura coletiva de rela ções diplomáticas com os países do Eixo – Alemanha, Itá lia e Japão. Começa o torpedeamento de navios brasilei ros por submarinos nazistas. O primeiro deles numa lon ga série de 35, o Buarque, foi afundado na costa dos EUA em 15 de fevereiro de 1942. Dois dias depois, Cingapura cai em mãos japonesas enquanto forças alemãs e italianas avançam no norte da África.

O escritor reproduzira no seu cartão de fim de ano de 1940 e também em manuscrito afixado em seu quarto de dormir e de morrer, uma pesarosa estrofe dos Lusíadas, que tão bem retratava o seu estado de ânimo: No mar, tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida; Na terra tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade aborrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano?

Nesses meses, Zweig se embrenhara no estudo da obra do grande pensador francês do século 16, Michel de Mon taigne, cuja biografia planejava escrever. Em seus Pensamentos, o filósofo defende o direito à morte voluntária como alternativa válida a uma vida submissa. A leitura de Montaigne não deve ter-lhe feito bem.

Zweig deve ter tremido: depois de fugir da Áustria em 1934 e da Inglaterra em 1940, eles estão chegando perto.

Assim, em boa hora e cabeça erguida, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem so bre a SaúdoTerra.a todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes.”

As relações de Zweig com sua origem religiosa e étni ca e com o sionismo eram dúbias, como analisei no arti go “O peculiar judaísmo de Stefan Zweig” publicado em O recém-chegado rabino Henrique Lemle se dispôs a encomendar os corpos no cemitério católico da cidade. Na sua grandeza de visão, deixou de lado o preceito de enterrar os suicidas próximo aos muros do campo santo e rezou com o chazan Fleischman o Kadish em pleno território cristão.

A cada dia aprendi a amar este país, mais e mais. Em parte alguma eu poderia recons truir a minha vida agora que o mundo da minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 79 sua partida, Bernanos ponderou: “Ele está morrendo”.Nasegunda-feira de Carnaval, 16 de fevereiro, o casal Zweig desceu ao Rio com o amigo e escritor Ernst Feder para assistir a folia, mas a depressão o impediu de comparecer ao baile do Teatro Munici pal e eles retornaram para Petrópolis. Per deu, assim, a oportunidade de se encon trar com Orson Welles, que chegara dire to de Hollywood e manifestara interesse em conhecer o famoso escritor. Seus últimos encontros são com Ernst Feder e Leopold Stern, amigos com quem pode conversar em alemão, sua língua tão querida e da qual o nazismo o havia bani do em termos editoriais. No fatídico domingo, 22 de fevereiro, o metódico Zweig põe no correio envelopes com os originais de sua última obra, A partida de xadrez ou O livro do xadrez8 ou Novela de xadrez, conforme a tradução de Schachnovelle, endereçados a três de seus editores. É o seu livro mais aber tamente antifascista. Alceu Amoroso Lima, pensador e ati vista católico, morador de Petrópolis, passa de ônibus nes se dia em direção ao Rio e vê o casal parado na calçada em Duas Pontes, cruzamento sobre o qual se debruça o chalé da triste dupla. Um outro refugiado ilustre, o urbanista Alfred Agache, autor de um famoso plano de modernização do centro do Rio, é um dos primeiros a tomar conhecimento do fatí dico gesto. Passava temporadas em Petrópolis e, descendo para o Rio, tenta visitar Zweig e encontra o quadro cho cante, que logo transmite a Claudio de Souza, ex-presi dente da Academia Brasileira de Letras. Este melífluo fre quentador das antessalas do poder assume o comando do sepultamento e convoca Leopold Stern para, juntos, tra duzirem o tocante manuscrito intitulado Declaração, dei xado em local visível junto com cartas para a ex-mulher, parentes, amigos e editores. Declaração “Antes de deixar a vida por vontade própria, com a men te lúcida, imponho-me a última obrigação: dar um carinho so agradecimento a este maravilhoso país, o Brasil, que propi ciou, a mim e à minha obra, tão gentil e hospitaleira guarida.

Stefan Zweig Petrópolis, 22/2/19429

A desastrada tradução da última mensagem do escritor – Leopold Stern10 verteu do alemão para o francês e Clau dio de Souza do francês para o português – saiu na impren sa sem o último parágrafo, o fecho de tom esperançoso, sem o qual um sabor de renúncia, de covardia e abandono da luta tingiu o documento e suscitou críticas dos círculos de resistência ao nazismo. O erro felizmente foi corrigido pelos jornais nos dias seguintes. E então começou a novela do sepultamento. As lide ranças judaicas cariocas logo manifestaram a necessidade de trazer os corpos para o Rio de Janeiro, já que Petrópo lis não dispõe de um cemitério judaico. Por mais insisten tes que tenham sido esses pedidos, as autoridades não os atenderam. O próprio Getulio Vargas, que passava o ve rão em Petrópolis, foi instado a confirmar que o enter ro deveria se dar na cidade serrana. Argumentavam que o povo petropolitano se revoltaria caso os seus ilustres “ci dadãos” fossem transladados para outra cidade. Muitos, como o jornalista Aron Neumann, editor da revista Aon de Vamos?, viram na atitude um brutal ranço antissemita, uma recusa em reconhecer publicamente o judaísmo do renomado escritor.

Depois dos 60 anos são necessárias for ças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram exauridas nestes longos anos de desamparadas peregrinações.

Acrescento que, em carta a Sigmund Freud, de 15 de novembro de 1937, ele profetizava: “Não posso dizer o quanto sofro com o nosso tempo, algum deus mau me deu o dom de prever muita coisa e há qua tro anos sinto nos nervos o que está eclodindo agora (...)

Devarim em 2017.11

Israel Beloch, historiador, presidente da Casa Stefan Zweig, coor denador do Dicionário histórico-biográfico brasileiro, da Fundação Getulio Vargas, e do Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil, 2021. Notas

80 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI

1 Roudinesco, Elisabeth & Plon, Michel. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera Ribei ro & Lucy Magalhães, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.

4 Citado em Dines, Alberto. Morte no paraíso; a tragédia de Stefan Zweig. 4ª ed. am pliada, Rio de Janeiro, Rocco, 2012, pg. 624.

2 Mann, Thomas. Os Buddenbrook; decadência de uma família. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

5 Camões, Luis Vaz de. Os Lusíadas, canto I, 106. São Paulo, Círculo do Livro, s/d. A permanência da lírica camoniana pode ser confirmada quando se observa os mes mos versos na criação de Caetano Velloso e José Miguel Wisnik para o balé Onqo tô, coreografia do Grupo Corpo de 2005 que retrata a perplexidade humana dian te da vastidão do universo. 6 Dines, Alberto. Op. Cit., pg. 655. 7 Idem, ibidem. Pg. 532-533.

10 A propósito desses eventos Leopold Stern publicou A morte de Stefan Zweig. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1942.

12 Zweig, Stefan. A correspondência Stefan Zweig/Sigmund Freud. In: Zweig, Stefan. A cura pelo espírito; em perfis de Franz Mesmer, Mary Baker Eddy e Sigmund Freud. Trad. Kristina Michaelles, Rio de Janeiro, Zahar, 2017, pg. 343.

8 Zweig, Stefan. O livro do xadrez. Trad. Sílvia Bittencourt. São Paulo, Fósforo, 2021.

13 Beloch, Israel, Coord. Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil. Rio de Janeiro, Casa Stefan Zweig, 2021, pg. 392-395.

conservador Mordechai Tzeki novsky se retirava indignado, aparecia a figura luminosa do recém-chegado rabino Henrique Lemle, que se dispôs a encomendar os corpos no cemitério católico da cidade. Na sua grandeza de visão, deixou de lado o preceito de en terrar os suicidas próximo aos muros do campo santo e rezou com o chazan Fleischman o Kadish em pleno territó rio cristão. 80 anos depois, as duas lápides em mármore negro, com inscrições em hebraico, postadas lado a lado próximo à entrada do cemitério, continuam a receber le giões de admiradores emocionados. Henrique Lemle, natural de Augsburg, na Alemanha, refugiado do nazismo como Zweig, havia chegado ao Bra sil pouco mais de um ano antes, depois de percorrer ver dadeira saga de perseguições em sua terra. Graduou-se rabino em Berlim e, em 1932, apresentou à Universida de Julius Maximilian, em Würzburg, uma dissertação so bre o filósofo setecentista Moses Mendelssohn, pioneiro do iluminismo judaico, corrente abraçada com ardor por Lemle e pelo judaísmo reformista. Preso em 9 de novembro de 1938, na famigerada “Noite dos Cristais”, foi en viado ao campo de concentração de Buchenwald e teve a felicidade de ser libertado três semanas depois graças aos esforços da World Union for Progressive Judaism e se guiu para Londres, de onde rumou para o Brasil, desem barcando em dezembro de 1940 no Rio de Janeiro. Aqui, participou ativamente da fundação da ARI, formalizada em 13 de janeiro de 1942, apenas 40 dias antes da parti da de Stefan Zweig.13 A morte escolhida por Zweig foi objeto de extensa polêmica na imprensa e nos meios intelectuais, não só no Brasil mas na Argentina, nos EUA e em muitos ou tros países. Uns defendiam a sua memória e a sua traje tória, outros atacavam o seu derrotismo e sua renúncia à resistência.Depoisda Guerra, entre os destroços do regime hitle rista, foi encontrado o que ficou conhecido como “Livro Negro do Nazismo”, um documento listando 2.820 per sonalidades que deveriam ser presas imediatamente após a invasão alemã da Inglaterra. Na relação de nomes e endereços figurava o de Stefan Zweig, ilustremente acompa nhado por personalidades como Sigmund Freud, Virgina Woolf, Winston Churchill, Bertrand Russell, Charles De Gaulle, H. G. Wells e Aldous Huxley. Em sua biografia de Zweig, Alberto Dines incluiu in formações transmitidas pelo líder nazista Albert Speer, poupado pelo Tribunal de Nuremberg e ainda vivo em 1980, dando conta de que a morte de Zweig foi alegre mente festejada pela cúpula do Terceiro Reich. Mas a palavra final sobre Stefan Zweig, esse gigante da literatura e do humanismo, cabe ao seu colega, outro gigante, o romancista Thomas Mann: “Nunca alguém car regou uma fama universal com tão profunda modéstia, re finada descrição e humildade sem hipocrisia”.14

O verdadeiro livro que se deveria escrever seria a tragédia do judaísmo, mas temo que a realidade, por mais que au mentássemos a intensidade do livro, superará nossas fan tasias mais Enquantoousadas”.12orabino

9 Dines, Alberto. Op. Cit., Pg. 503.

11 Devarim. Rio de Janeiro, 12 (33), agosto de 2017, pg. 31-36.

14 Prater, Donald & Michels, Volker. Stefan Zweig; Leben und Werk im Bild. Frank furt am Main, Insel Verlag, 1981.

3 Zweig, Stefan. Brasil, um país do futuro. Trad. Kristina Michaelles. Porto Alegre, L&PM, 2006.

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BERGMANOjudaísmoreformistatemumaatitudepropensaaoacolhimentodeindivíduosefamíliasquequeremseracompanhadosemdireçãoaojudaísmoedentrodele.Algunsatraídosporumanostalgiadeorigemdesconhecida,outrosporumaexaustãodasreligiõesquepromulgamasubmissão,eoutrossimplesmenteporquepartiramequeremretornar.

O hoje presidente da WUPJ explicou que na população judaica mundial se devem incluir todos aqueles que queiram ser judeus por opção, assumindo que não exista nenhuma restrição por casamento inter-religioso nem certificação de conversão não ortodoxa, ou um pai, ou uma mãe judeus. O Rav Bergman in centivava a sair e buscar agregar para chegar aos 30 milhões.

Com este prólogo do Rav Bergman, me atrevo a dizer que muitos de nós se esquecem daqueles filhos de judeus patrilineares, os filhos e netos de judeus que decidiram se afastar por medo ou por desinteresse, os matrimônios mistos – incluídos os matrimônios homossexuais – e seus filhos a quem alguns des denham e, sem dúvida, todos aqueles que se consideram judeus com origens mais ou menos desconhecidas, como os bnei anussim (os forçados), os etíopes, os lemba, os bnei menashe, os russos subbotnik, os kaifeng na China, incluídos

JUDEUS DE

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 83 Andrés B. Mosquera E

ra um desses dias iluminados de Buenos Aires, barulhento como sem pre, quando um grupo de rabinos ibero-americanos estava reunido para discutir questões vitais ao movimento reformista na América Latina.

OS 30 MILHÕES DE

O Rav Sergio Bergman, hoje presidente da World Union for Pro gressive Judaism (WUPJ), conversava animadamente com o Rav Damian Karo, decano do Instituto Rabínico de Buenos Aires (IIFRR), e com o Rav Uri Lam, rabino da congregação Beth-El de São Paulo. Em um certo momento, saiu a conversa de quantos judeus havia no mundo; os números voavam com mais ou menos suporte histórico e científico, mas o Rav Bergman amavelmente sentenciou: “Há 30 milhões”.

84 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI aqueles que “descobrem” sua judaicidade de repente ou, quiçá, por um teste de DNA, e quem sabe quantos mais.

Em 1446 a.C. aconteceu o primeiro censo bíblico no Monte Sinai, e deu como resultado 600.000 homens, uns 2.000.000 israelitas com crianças e mulheres; e no censo de Moav a quantidade rondava o mesmo número. A po pulação do Crescente Fértil, que em sua zona central es tava habitado por judeus, se viu afetada pelas distintas in vasões egípcias, assírias, babilônicas, persas, macedônicas, assim como pelas guerras com Roma e o desenvolvimento do cristianismo na Ásia Menor.

Assim, vemos uma contínua sangria demográfica se guida de um antissemitismo endêmico que não apenas ti rou vidas, mas as quebrou e desligou de suas origens por meio de conversões forçadas, expulsões e dispersões, recru tamentos seletivos e, finalmente, o extermínio. Tudo isso, de alguma maneira, paralisou o que teria sido um crescimento natural da população judaica na Europa, Ásia e norte da África ao longo de toda a Idade Média, se bem que já nos séculos XVIII e XIX, com o Iluminismo e as melhoras médicas e científicas, se produz um crescimen to exponencial da população judaica, em paralelo com o

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Esses milhões de potenciais judeus não têm que ser con vertidos como quando João Hircano [Yochanan Horka nos] forçou os idumeus1 à conversão, e estou certo que Rav Bergman não falava de incorporar um enfoque proselitis ta ao judaísmo do século XXI, nada mais distante disso;

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 85 resto da população ocidental, para experimentar nos anos seguintes um crescimen to significativo na América.

por Michel e Sheila Ventura É operacionalizarnecessáriooque diz a Torá sobre a hospitalidade de Sara e Abrahão dando as boas-vindas aos estrangeiros em sua morada. Em Gênesis 12:5 vemos como Sara e Abrahão se aproximaram dos forasteiros oferecendo sua trazendohospitalidade,juntoapresençadivina,colocando-ossoba Shechiná.

1 Habitantes da Edom bíblica. mas, sim, de abrir as portas de nossa casa e apresentar os cômodos que, com mimo, cuidamos e melhoramos a cada dia. É necessário operacionalizar o que diz a Torá sobre a hospitalidade de Sara e Abrahão dando as boas-vindas aos estran geiros em sua morada. Em Gênesis 12:5 vemos como Sara e Abrahão se aproxima ram dos forasteiros oferecendo sua hospi talidade, trazendo junto a presença divi na, colocando-os sob a Shechiná. O mi drash (Bereshit Raba 39) nos diz que to dos que aproximam alguém da Shechiná é como se a tivessem criado e formado. Há algo maior do que criar? Assim nós devemos em hazman hazê, neste tempo da História em que nos toca viver, recuperar este princípio de acolhi mento, de aproximação dos outros à Shechiná, sem forçar, mas com o exemplo de uma bait patuach, uma casa aber ta. Nossas ferramentas são ensinar quem somos, o que fa zemos e os valores éticos que nossa tradição codificou e guardou ao longo dos séculos e que continuamos a atuali zar por meio do estudo profundo e do diálogo com nosso textos, para assim torná-los novamente significantes para a mulher e o homem modernos. A partir do movimento reformista o judaísmo se apre senta como uma bait patuach. Não é um café-para-todos, mas um local onde todos podem se aproximar para formar parte de nossa comunidade, sem importar sua procedên cia, ou se querem se aproximar de maneira laica ou religio sa. Uma bait patuach, como a de Sara e Abrahão, para que encontrem aconchego, boas-vindas e um sentido de per tinência à milenar comunidade judaica. Desta forma te remos iniciado o caminho não apenas para chegar aos 30 milhões de judeus de Rav Bergman, mas também para so nhar e tentar alcançar os 200 de Ashley e, mais importan te ainda, para ampliar as asas da Shechiná, independente mente dos números. Andrés B. Mosquera é advogado em exercício na Bélgica e estu dante de rabinato no Instituto Iberoamericano de Formação Rabí nica TraduzidoReformista.doespanhol

Della Pergolla assegurou no America Jewish Year Book 2018 que a população judaica é de 20,7 milhões, na qual se in cluem aqueles que dizem ser em parte ju deus ou que têm antecedentes judaicos, mas não um progenitor judeu, e aqueles não judeus que vivem em um lar judaico.

Todos chegam com uma série de medos, uns com incer tezas e, os que haviam partido, com dúvidas e saudades.

princípios inclusivos do judaísmo reformista. O judaísmo reformista tem uma atitude pro pensa ao acolhimento de indivíduos e famílias que querem ser acompanhados em direção ao judaísmo e dentro dele. Hoje constatamos que, apesar do antissemitismo endêmi co, muitos se sentem atraídos em direção ao judaísmo sem conhecê-lo, ou conhecendo-o parcialmente. Alguns atraí dos por uma nostalgia de origem desconhecida, outros por uma exaustão das religiões que promulgam a submissão, e outros simplesmente porque partiram e querem retornar.

Por outro lado, Ashley Perry, um ex-con selheiro do ministro de Relações Exterio res israelense de 2009 a 2015, argumen tou em 2018 à Aruts Sheva (agência de notícias nacional israelense) que poderia haver uns 200 milhões de judeus de múl tiplas procedências no mundo. Pouco importa qual a quantidade, mas o certo é que há mais do que os quase 15 milhões por aí afora que, de uma maneira ou de outra, estão em cifras mais oficiais. Retornando aos 30 milhões do Rav Berg man, está claro que o Rav não se referia a um número con creto, mas que se referia, mais do que a uma cifra, a uma atitude, a de ter as portas abertas da casa judaica, e fazê-lo em todas as suas modalidades, a laica, a religiosa, usando princípiosEstamosinclusivos.falandodos

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Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 87 Gizele Bakman C

omo muitos de nós sabemos através de nossas vidas, o judaísmo é um intrincado mundo no qual identidade, religião, cultura e tradição se entrelaçam fortemente. A definição usual afirma que judeu é aquele que nasce de ventre judeu, mas não compreende toda a complexidade da experiência judaica. Tal definição é baseada numa lei religiosa, e é fortaleci da pelo fato de que os laços por consanguinidade são valores significativos na sociedade ocidental que nos rodeia – uma herança que determina mais do que características fenotípicas ou genéticas, mas também espaços de pertencimento e deAdireitos.adoção, aceita pela lei religiosa judaica, exige que a criança cumpra deter minados passos, semelhantes aos de uma pessoa que realiza a conversão. Digo semelhante porque, comumente realizada quando a criança é ainda pequena, sugere uma “confirmação” de sua parte, ao adentrar a maioridade religiosa, em dar continuidade a seu pertencimento. O que acontece, no meu entender, de forma similar a outros membros da comunidade que, a despeito de seu nasci mento em ventre judeu, traçam seus caminhos seguindo suas escolhas pessoais e perfazem, ou não, uma trajetória judaica, através da inserção religiosa, cultural, social e/ou familiar.

Com suas certezas, os avós apontam o que consideram importante: os laços construídos pelos afetos, a convivência marcada pela transmissão de valores, o acesso ao patrimônio judaico, um pertencimento à família e um enquadramentoconsequenteaojudaísmo.

JUDIAS COM LAÇOS POR ADOÇÃO

Entre os anos de 2015 e 2019, realizei meu Doutorado em Psicologia So cial na UERJ, sob a orientação da Profa. Dra. Anna Paula Uziel. Na pesqui sa Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção (Bakman, 2019), entrevistei avós judeus, com netos por adoção, na intenção de discu

RITUAIS EM FAMÍLIAS

A possibilidade de ver o filho/filha realizar seu projeto de parentalidade é o motivo que torna a adoção bem rece bida pelos avós: constituir uma família com filhos é o va lor que fica acima da imposição ou desejo de que sejam gerados biologicamente, apontando para a importância da continuidade e da formação das famílias.

tir o que tornam as pessoas família e compreender como se formam os laços quando não há consanguinidade em jogo. Escolhi entrevistar avós, por não serem eles os que decidem por ter netos, muito menos netos por adoção. E me enveredei pelo judaísmo justamente pela importância dada aos laços de sangue.

88 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI

Nas entrevistas, conversamos sobre as histórias familia res, a vida em família e a inserção comunitária. A importância de falar do passado, contar sobre as vidas de seus próprios pais e avós foi um dos pontos marcantes. Ao en fatizar a importância do seu passado, os avós indicam que é possível construir uma gênese familiar com os netos por adoção, no qual a descontinuidade sanguínea não implica

Na maioria das famílias entrevistadas, a adoção foi al ternativa à infertilidade, como é comum neste campo. As dinâmicas dos pais por adoção nestas famílias eram variadas, refletindo também a realidade das varas de família e da abrangência da lei brasileira (2009): mães que adotaram sozinhas, casal homoparental e casais heteroparentais. As famílias são compostas por filho único, por adoção, com filho biológico nascido após a adoção, com filhos maiores de outro casamento de um dos cônjuges.

Tive o privilégio de entrevistar dez famílias, sendo dez avós e três avôs, com idades entre 69 e 80 anos, com ne tos por adoção entre quatro e 45 anos.1 Nove dessas fa mílias têm outros netos além dos por adoção e todas per tencem às camadas médias do Rio de Janeiro. Agradeço -os imensamente por estes encontros, e às suas famílias, por me receberem em suas casas e me permitirem adentrar em suas vidas.

Ao pesquisar com famílias judias, minha intenção não era promover uma discussão religiosa ou identitária, mas, através delas, acionar importantes forças que se entrelaçam na formação de nossa sociedade e nas relações familiares, como: sangue, cultura, herança, pertencimento, identida de, comunidade e convivência.

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Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 89 uma ruptura, mas cria um novo diagrama de forças. A transmissão de bens simbólicos às gerações seguintes situa a família como o lugar dessa passagem, fazendo de cada descendente o alvo e ao mesmo tempo o veículo da preservação dos valores fami liares. (Barros, 1989, p. 36). Quanto à questão de os netos por ado ção serem considerados pelos avós judeus, a maior parte dos entrevistados mostrou surpresa diante do meu questionamen to. Apesar do pouco sentido para eles da minha pergunta, responderam, em sua maioria, de forma afirmativa. Buscaram respostas para demonstrar a certeza de que seus netos eram judeus – não era algo que sabiam, mas que sentiam a res peito de seus netos, como mostram os diálogos abaixo:

Gizele: E o que a senhora pensa sobre a Carolina, assim, a Carolina é judia?

Luna: Olha, ainda não. Ele fez o Brit Milá. Ela (a mãe) fez questão. (...).

Gizele: A senhora alguma vez pensou que a Maria não era Sarah:judia? Não, de jeito nenhum. Acho que a educação, né? O papel da gente (...). Acho que a parte educacional que é a mais importante, né? (...). Ela foi educada dentro da comu nidadeGizele:judaica.Como você vê assim: eles são judeus? Como você considera o judaísmo deles? Miriam: Completamente. É impressionante porque eles vieram sem nada. (...). E a primeira vez que nós fomos para ambas, isso até me chamou atenção. (...). Quando saímos da igreja, Noé falou “poxa, que diferença!”, e olha que ele esta va conosco há dois meses. “Eu sou judeu e notei que na sina goga não tem uma imagem, não tem estátua, não tem nada. E os católicos estão cheios de estátuas, e tem um homem que está sofrendo e sangrando e não sei o quê.”

Gizele: Quer dizer ela queria, ela quer que ele seja judeu? Luna: Quer, quer (...). Gizele: E você disse para mim que ainda não é judeu? Por Luna:quê?

Vicente: Primeiro porque ele está na escola ídiche, então ele sabe o que que é isso e tudo; e ele se considera judeu, esse que é o negócio todo.

Gizele: Por quê?

Não, não sei, não porquê.... nunca tinha pensa do nisso.Gizele: Você acha que o Hugo é judeu? Vicente: Com certeza. Luna: Que bonitinho! (Rindo)

Gizele: Para a senhora ele é judeu? Malka: É Gizele: Por quê? Malka: Porque ele fez a circuncisão, ele fez o Bar Mits va, eu enxergo ele como judeu. E enxergo ele com todo amor, com todo carinho, e ele foi criado com dois judeus. Ele com põe toda a família judia.

Gizele: Mas teve algum apoio de algu ma sinagoga? Alguma coisa? Não? Luna: Não, ela não dá a menor bola para isso, e nós tam bémGizele:não. Mas quis circuncisar?

Rebeca: (...) a Carolina (...) tem paixão pelo judaísmo. Ela conhece o judaísmo. Estudou história judaica. Ela fala com qual quer adulto que entenda. Ela sabe muito mais do que eu. Ela me dá aulas. Ela ama, ela ama ser judia. É uma coisa assim fora do comum.Gizele: E você considera o Hugo judeu?

Luna: Ah, sim, quis. (...)

Com suas certezas, os avós apontam o que consideram importante: os laços construídos pelos afetos, a convivên cia marcada pela transmissão de valores, o acesso ao patri mônio judaico, um pertencimento à família e um conse quente enquadramento ao judaísmo. Os netos por adoção, em quase sua totalidade, realizaram cerimônias religiosas, mesmo quando a família não se encontrava ligada ao ju daísmoSophiepraticante.Nizard, pesquisadora francesa, realizou, na França e em Israel, uma ampla pesquisa sobre adoção, en Ao receber a criança, a família tem o desejo de incorporá-la à sua história e aos seus costumes. Para os pais adotivos, as crianças, ao se tornarem seus filhos, tornam-se judeus como eles, pois são parte de si, mesmo que não seja confirmado pela lei religiosa mais restrita.

Vicente: Eita! Não tenho a menor dúvida! (rindo)(...)

90 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI trevistando pais judeus, representantes religiosos e agências governamentais. Ape sar de suas pesquisas não serem realiza das no Brasil, e as comunidades judaicas possuírem características diversas em cada país ou cidade que se encontram, suas re flexões foram um alento para compreen der esta parte da minha pesquisa. Na pesquisa de Nizard (2011a), a maioria dos pais por adoção segue os pas sos da conversão dos filhos, mesmo os que consideravam que não tem muito de ju daísmo em suas vidas, mas desejam ser re conhecidos, juntamente com seus filhos, como judeus. Assim, segundo ela, a conversão (Nizard, 2004), originalmente um ato religioso, se torna uma for ma de reforçar a adoção, ligando a criança a um passado e construindo uma segurança para seu futuro.

A autora (Nizard, 2011b) compreende que a entrada da criança na memória da família por adoção é um pon to fundamental: que, ao receber a criança, a família tem o desejo de incorporá-la à sua história e aos seus costumes.

Os legados que os avós querem deixar para seus filhos e netos estão fortemente conectados com o judaísmo: manter as tradições, fazer shabat ou comemorar os chaguim, garantir a transmissão de valores éticos e morais, de ajuda mútua e respeito.

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“Quando os pais por adoção são judeus, as questões de integração ao seio da família são somadas à integração ao seio do grupo, do povo. A transmissão familiar se acom panha, então, de uma transmissão de uma memória judaica. Mas como transmitir essa memória que não é do seu meio biológico? Nomear, circuncisar, converter, recontar histórias da família, recitar os ritos de seu povo, fotografar e colocar em cena a imagem da família, reforçando na casa da criança e nas casas dos parentes o sentimento de per tencimento a uma família por adoção e ao povo judeu.” (Nizard, 2011a, p.83)2

No seu entender, para os pais adotivos, as crianças, ao se tornarem seus filhos, tornam-se judeus como eles, pois são parte de si, mesmo que não seja confirmado pela lei reli giosa mais restrita (Nizard, 2017), que detém mais exigên cias sobre a forma de ser judeu. De forma semelhante foi o que os avós da minha pesquisa me afirmaram: se são par te de suas famílias, são judeus. Há três famílias na pesquisa que se destacaram das de mais nesse aspecto de compreender o neto adotado como judeu: uma em que a adoção era recente, o neto já ado lescente e praticante de outra religião, mas há um desejo de que ele conheça as raízes familiares judaicas para poder “fazer parte”, mesmo que isto não signifique abraçar a re ligião. Numa segunda família, o avô acredita que o neto não é judeu porque teve dificuldades na inserção comunitária, foi discriminado pela cor de sua pele, mas é através dos encontros do shabat que toda a família se reúne e que os laços são tecidos entre seus membros. E numa terceira família, o avô não considera o neto judeu, pois seu filho é casado com uma não judia, é afastado da comunidade e, de alguma forma, segundo ele, também não é mais ju deu, então como seu neto seria? Mas como é comum certa tensão e paradoxo no que tange à identidade judaica, me relata com orgulho, em um outro momento da con versa, que este filho mantém a tradição de fazer um “com pleto e perfeito” Seder de Pessach em sua casa. Assim, mes mo nestas situações, a vida do neto e da família se entre laça com o judaísmo. A maior parte dos avós desconheciam as leis religiosas a respeito da adoção porque não era com isto que se im portavam. O que estava em jogo era ver seus filhos torna rem-se pais/mães, concretizarem o projeto de formar suas próprias famílias, tornarem-se avó/avô, continuar o per curso de suas histórias. Então, o que significam as cerimônias religiosas nes tas famílias? Como em muitas outras famílias, compreen-

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Notas 1 Para facilitar a leitura, mesmo que a maioria dos entrevistados tenha sido do sexo feminino, usarei o masculino ao falar dos avós, e também dos netos, de forma ge nérica. Todos os nomes citados são fictícios.

Os legados que os avós querem deixar para seus filhos e netos estão fortemente conectados com o judaísmo: man ter as tradições, fazer shabat ou comemorar os chaguim, garantir a transmissão de valores éticos e morais, de ajuda mútua e Assim,respeito.ojudaísmo é, sem dúvida, um fio que adensa a experiência do ser família para meus entrevistados. É um valor que se entremeia na costura por meio de uma heran ça que vem, através dos anos, sendo cultivada, ampliada e transformada, que mantém a importância das histórias, das lembranças, dos costumes, que fortalecem o pertenci mento. Promove encontros, gera proximidade. Os avós mostraram-se fundamentais na montagem desta trama familiar porque são eles os responsáveis pe los encontros, pelas festas, geralmente em volta da mesa, pela continuidade das tradições, mas, especialmente, pela costura dos afetos. Eles são os guardiões das me mórias, desfiando os fios que vêm se entremeando desde seus próprios avós, bisavós e, hoje, enlaçam filhos, ne tos e Mas,bisnetos.adespeito de ter encontrado, na pesquisa, uma ideia uniforme do que é ser família, elas são sempre ver bo, ação, movimento. Não é possível, nem desejado, se restringir ou prescrever um modelo estanque, duro, que deve ser seguido, e sim valorizar e compreender o que é vivido por cada pessoa em seu grupo. Não há como to talizar esta experiência numa única e simples definição.

Contato: gizele.bakman@gmail.com Bibliografia Bakman, Gizele. Por entre as tramas familiares: avós judeus e seus netos por adoção. 2019. 174 f. Tese (Doutorado em Psicologia social) –Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019. CDU 316.6 Brasil. Nova lei da adoção. Lei n° 12.010, de 3 de agosto de 2009. Bra sília: DF, Congresso Nacional, 2009. Barros, Myriam Moraes Lins de. “Memória e Família”. Estudos Históri cos, Rio de Janeiro, v. 2, n. J, p. 29-42, 1989. Borowitz, Eugene B. Compreendendo o judaísmo. São Paulo: Congrega ção Israelita Paulista, 1986. Nizard, Sophie. «La conversion des enfants adoptés au milieu juif. Quels enjeux?» Diasporas, n. 3, p. 114-130, jan. 2004. _____. «Les pères juifs adoptifs sont-ils des mères juives?» Revue Plu rielles, n. 15, 2010. _____. «Histoires juives d’adoption». Les Cahiers du judaïsme, n. 33, p. 82-90, 2011a. _____. «Adopter et transmettre en milieu juif». In: Gross, Martine; Mathieu, Séverine; Nizard, Sophie. Sacrées familles! Changements fa miliaux, changements religiex. Èditions Éres, 2011b. pp. 179-191. _____. “Applying for adoption: how are jewish families perceived? Gender, Families and Transmission in the Contemporary Jewish Context”. Cambridge Scholars Publishing, p. 113-123, 2017.

Nommer, circoncire, convertir, raconter l’histoire de la famille, faire le récit de celle du peuple notamment à l’occasion des rites, photographier et mettre en scéne l’imagerie fa miliale. Renforcent, chez l’enfant comme chez des preches, le sentiment de son apparte nance à la famille adoptive et au peuple juife”. do que significam continuidade e pertencimento. Seja por tradição ou religião, seja por costume ou norma, por celebra ção ou imposição, as cerimônias são la ços que unem e fortalecem. Para Borowitz (1986, p. 52), os rituais “(...) são ‘poe mas’ religiosos que escrevemos com atos, e não com palavras”, são a maneira como os seres humanos marcam muitos de seus momentos importantes e que, para nós, judeus, nos mantêm conectados à nossa vida familiar e social. Pelo olhar dos avós, não são os rituais que tornam os netos judeus, mas por serem judeus devem passar pelos rituais, como os demais membros da família.

2 No original: “Quand le parents adoptifs sont juifs, les questions d’integration au sein de la famille se doublent de celle de l’integration au sein du groupe, du peuple. La transmition familiale s’acopagne alors de la trasnmission d’une memorie juive. Mais comment transmettre cette mémoire à um enfant qui n’est pas biologiquement le sien?

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Há sempre muitas famílias na palavra família. Na minha pesquisa, para os avós judeus que vivem a experiência de adoção em suas vidas, os laços familiares são tecidos na convivência, no afeto e nos cuidados, embalados e refor çados pelas tradições de nosso povo, nos sos costumes e valores, e não atrelados a aspectos biológicos. São muitos ingre dientes, mas, por vezes, pode se resumir a um cheiro gostoso, com sons e vozes conhecidas, envoltos em melodias anti gas, regado por memórias novas, vividas ou ainda por inventar. São um brinde à vida e à sua continuidade. Le chaim! Gizele Bakman é psicóloga, Doutora em Psico logia Social com trabalho clínico com crianças, adolescentes, adul tos, casais e famílias sob a perspectiva da Abordagem Sistêmica.

Os laços familiares são tecidos na convivência, no afeto e nos cuidados, embalados e reforçados pelas tradições de nosso povo, nossos costumes e valores, e não atrelados a aspectos biológicos.

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Ele veio da Bessarábia (então romena, numa região em que as fronteiras se deslocavam constantemente); mais tarde, já razoavelmente estabelecido em ter ras tropicais, primogênito de uma prole numerosa, conseguiu trazer a maior parte da sua família, entre seus irmãos e irmãs.

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA NA BESSARÁBIA E NO RIO DE JANEIRO

eu avô paterno imigrou para o Brasil na segunda metade da dé cada de 1910, ainda rapaz bem jovem, fugindo da pobreza e dos sucessivos pogroms, em busca de oportunidades em um contexto menos opressivo do que o da Europa Oriental.

Ainda em meados dos anos 1920, percorrendo por uma única vez o cami nho inverso, retornou à cidade natal para casar e voltar com minha então mui to jovem avó; talvez fosse um casamento arranjado entre as famílias, como era de costume, mas disso não tenho certeza.

Para imigrantes judeus daquela época, egressos de um contexto de permanentes manifestações explícitas de antissemitismo, a chegada em novas terras americanas era percebida como promissora e potencialmente livre da pesada carga europeia.

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Alfredo Schechtman M

Nos anos de 1930, já em plena ascensão do nazismo alemão e seus tentá culos pelo território europeu, ele e os irmãos conseguiram trazer para cá o pa triarca da família, em idade avançada, mas essa iniciativa foi malograda pela dificuldade absoluta que o pai encontrou em adaptar-se e experimentar novos ares àquela altura da vida, levando-o a retornar para um previsível desen lace dramático. Para imigrantes judeus daquela época, egressos de um contex to de permanentes manifestações explícitas de antissemitismo, a chegada em novas terras americanas era percebida como promissora e potencialmente livre da pesada carga europeia.

No começo da jornada de meu avô por estas terras, quando ele aqui che gou, e como era frequente, ele foi recep cionado por um primo que o precedera e o albergou inicialmente, assim como lhe apontou a possibilidade do traba lho como prestamista de porta em porta. Como não falava o idioma local, nos pri meiros tempos meu avô ateve-se a circu lar pela vizinhança imediata de sua mora dia para tentar vender seus produtos, che gando a levantar suspeitas na vizinhança de que se tratasse de um olheiro para algum amigo do alheio, segundo con ta a lenda familiar. No seu novo país, como era uma pessoa bastante comunicativa, fazia-se entender por todos, ainda que sem dominar por completo a língua portuguesa nos mais de cinquenta anos em que aqui viveu. Já minha avó era seu oposto, com facilidade e fluência em vários idiomas. Um fato da biografia de meus avós que sempre me pa receu quase inacreditável foi a ida deles para o interior de Minas Gerais, mal chegados ao Brasil, não sei como conse guiam se comunicar e ganhar a vida. Foi a perspectiva do nascimento do primei ro filho (meu pai) que os trouxe de vol ta ao Rio, pela necessidade que sentiram de ter um ambiente judaico aonde criar a novaMeufamília.avônão era um homem estritamente religioso, mas muito afeito à cul tura judaica em seu sentido mais amplo. Em sua casa, o ídiche era a língua coti diana predominante. Aquela geração nos transmitia uma vontade de encarar os desafios que se apre sentassem, valorizando os laços de amizade e a participa ção comunitária. Essa herança nos foi legada. Meus avós frequentavam o círculo local de escritores judeus (mais que escritores, eram leitores vorazes). Lem bro-me de ser motivo de humor familiar a presença de uns banquinhos de madeira de três pernas que meu avô havia comprado para receber os amigos desse grupo de es critores, todos já em idade avançada para uso dessa peça de mobiliário de precário equilíbrio e grande desconfor to. Sei também que durante um bom período o grande

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Meu avô não era um homem cotidianaafeitoreligioso,estritamentemasmuitoàculturajudaicaemseusentidomaisamplo.Emsuacasa,oídicheeraalínguapredominante.

Quando criança, meu avô me contava, que fora envia do pela família muito pobre para estudar em outro shtetl, na verdade uma aldeia pouco maior que a sua, frequen tando o cheder (escola judaica) e, em seguida, o seminário rabínico (yeshivá); comia cada dia em uma casa dife rente da comunidade, recurso comunal que permitia aos jovens prosseguir seus estudos. A mim causava forte im pressão sua evocação do trajeto percorrido entre estas ci dadezinhas, com a presença constante da neve e de lobos das estepes de sua infância.

Alfredo Schechtman é médico e escritor, mestre em Medicina So cial, servidor aposentado do Ministério da Saúde. Componente da equipe da Coordenação de Saúde Mental do MS, participou do pro cesso de implantação da reforma psiquiátrica no SUS, de 1990 a 2010. Texto elaborado a partir do curso Figurações da Família na Literatura Brasileira do Século XX, ministrado em 2020 pela pro fessora Belinda Mandelbaum, do Instituto de Psicologia da USP, no Instituto de Estudos Avançados da USP.

O que permanece, tantos anos depois, é a forte sensação de que meu avô e eu passeamos juntos nossa infância, seja nas longínquas estepes da Bessarábia, seja nas excur sões cariocas aos domingos.

Ele nunca teve muitas habilidades práticas para ga nhar a vida, cheio de planos mirabolantes e pouco retor no prático; iniciou vários negócios que produziram pou cos frutos. O mais incrível foi a fabulosa compra de uma fábrica de geladeiras tradicionais (caixas de madeira com serragem onde eram colocadas barras de gelo para o res friamento), um negócio potencialmente da China, se não coincidisse com o início da produção industrial de ge ladeiras elétricas. Não que não trabalhasse sempre, mas quem provia o sustento com maior regularidade era minha avó, como professora de Hebraico em escolas judai cas do Rio de Janeiro.

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A casa de meus avós era o ponto de encontro de nos sa família nas sextas-feiras à noite, nossos shabats, quando junto com tios e primos nos reuníamos para jantar e passar parte da noite juntos; nós, crianças, costumávamos encenar alguns pequenos esquetes cômicos de nossa própria lavra.

debate do grupo foi sobre qual dos dois irmãos Singer era melhor escritor; sempre saía vencedor Israel, e não Isaac (este ainda não era um Nobel).

Como o mais velho dos seus sete netos, desfrutei mais tempo da sua convivência; íamos muitas vezes fazer a fei ra aos domingos, comprar legumes e frutas. Chegando em casa, meu avô comia uma cebola crua inteira, hábito ad quirido após sua primeira e inolvidável visita ao novo es tado de Israel. Viagem aquela que durou três meses, de na vio, com despedida e acolhida por todos da família no cais do porto da Praça Mauá.

resenha de livro

Fux recorda que o ponto de partida desse livro remonta a 2014, quando foi convidado por Marco Lucchesi, enquanto presidente da Academia Brasileira de Letras, para escrever um artigo para a revista da ABL. Naquele ano, o escritor estava cursando pós-doutorado na Universidade de Harvard, nos Estados Uni dos, onde se aprofundou nas questões sobre a memória, que vai além do que se lembra. “Inclui também o que esquecemos, transformamos, criamos e recalca mos. Eu estava trabalhando com o testemunho na literatura, e fiz uma imersão no tema. E, assim, escrevi esse texto que eu acho que é único na minha vida. É um texto muito bonito, muito sincero”, comenta Fux. Dois autores com os quais ele estava dialogando bastante nos seus estudos foram Georges Perec (1936-1982) e Sarah Kofman (1934-1994), que passa ram pelo trauma da Segunda Guerra Mundial e também produziram livros nos quais se valem de uma linguagem infantil, mas sem abrir mão da densidade das questões abordadas por eles. Produzir As Coisas que Não me Lembro, Sou, para Fux, foi, de certo modo, realizar esse exercício de retorno a um “lugar” já es

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AS COISAS DE QUE NÃO ME LEMBRO, SOU

E ste livro propõe um jogo em que se revisita memórias muitas vezes inacessíveis, como as da primeira infância, e aponta para a própria natureza poética e ficcional das lembranças “Eu não me lembro do dia em que nasci”. Assim começa o novo li vro de Jacques Fux e Raquel Matsushita, que, ao combinarem texto e imagem, produzem uma narrativa em camadas como parece sugerir o próprio movimen to das lembranças. As Coisas de que Não me Lembro, Sou é dividido em três par tes: “Tudo que lembro de não lembrar”, “Tudo que lembro de não compreender”, “Tudo o que me tornei em função de não me lembrar”. E, assim, a narra tiva avança e retrocede no tempo, perpassando também algumas fases da ado lescência, da juventude e da vida adulta de um personagem cujas memórias in dividuais estão entrelaçadas com outras coletivas, como a do mundo judeu.

resenha de livro

“Esse texto é muito bonito, fala o que todo mundo vi veu e o que todo mundo esqueceu, mas esse esquecimen to foi fundamental para a criação de quem somos. Todas essas coisas que nós não lembramos da infância, desses ca rinhos, desse convívio com os pais, enfim, dessa vida de neném, eu acho que são justamente essas memórias que nos fazem ser o que somos. Então, esse livro trata muito dessa não memória, mas que, de alguma forma, nos defi ne”, completa Fux.

Ao final do livro, há a relação das obras e dos artistas sele cionados”, pontua. Para Rosana de Mont’Alverne, editora da Aletria, As Coisas de que Não me Lembro, Sou é um livro reflexivo e encantador, para ler, reler e presentear. “Quando crianças, amamos ouvir repetidamente as histórias de nosso nasci mento, do casamento de nossos pais, daquele tombo hor rível que deixou cicatriz… Assim vamos nos constituindo, não só pela memória dos acontecidos, mas também pelas narrativas dos adultos. Freud dizia que não somos apenas o que pensamos ser. ‘Somos mais’ ‒ diz ele ‒ ‘somos tam bém o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que comete mos, os impulsos a que cedemos ‘sem querer’”, ressalta.

A ilustradora Raquel Matsushita, que também assina o projeto gráfico do livro, conta que identificou no texto de Fux um forte viés psicanalítico, o que a guiou no proces so de produção das imagens, construídas basicamente em duas cores, preto e branco. “O livro trata de uma memó ria ‘esquecida’, mas é justamente por meio dela que o nar rador conta as histórias e reconstrói a si mesmo. No pa radoxo do ambiente escuro das não recordações, o narra dor se revela em forma de fragmentos”, pontua a artista.

“Jacques Fux nos traz, em boa hora, essa reflexão freu diana traduzida num texto literário belíssimo, enxuto e, sobretudo, simples, essa qualidade dificílima de alcan çar na aventura de escrever um livro. A cereja do bolo é o projeto gráfico e as ilustrações de Raquel Matsushi ta, que brinca com o claro‒escuro o tempo todo, numa alusão à escuridão das não recordações que nos impul sionam na busca da claridade e do autoconhecimento”, conclui a editora.

“O projeto gráfico do livro propõe intensificar a ideia de fragmentos com pequenos trechos de texto distribuí dos nas duplas. Ainda sobre esses trechos, um novo frag mento de texto é realçado por retângulos pretos ou bran cos, que, por sua vez, se misturam com as ilustrações. O preto e branco (do papel) se revezam no protagonismo de cada capítulo. Também foram pensados como uma alusão à lembrança e não lembrança do narrador, a luz e a som bra”, completa ela. Matsushita também buscou referências em obras de artistas que fizeram parte ou dialogaram com o surrealis mo, como René Magritte (1898-1967), Leonora Carrin gton (1917-2011) e Tarsila do Amaral (1886-1973), en tre outros. “As ilustrações foram criadas livremente sobre essas obras, sendo, portanto, uma releitura, uma recons trução do passado. No conjunto de 20 ilustrações, hou ve a preocupação em escolher artistas brasileiros e tam bém em equilibrar os gêneros (9 mulheres e 11 homens).

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quecido mas ao mesmo tempo familiar para todo mundo.

A ARI CONTRIBUI PARA A HISTÓRIA DO BRASIL este quadro, por retratar a inserção da comunidade judaica no Brasil e celebrar a forma hospitaleira com a qual os judeus foram aqui recebidos. De prata prensada, repuxada e cinzelada com motivos florais, a peça é provavelmente de meados do século XX e remete a um estilo estético usado desde o século XIX pela Escola de Artes Bezalel, em Jerusalém. O porta-etrog traz inscrições em hebraico (Levítico 23:40: ”Vocês colherão os frutos da cidreira amarela.”) e em português (No quadragésimo jubileu rabínico do Dr. Lemle. Dos cariocas em Israel à ARI 1-4-1973), que explicitam seu uso e a ocasião em que foi dedicado na Sinagoga. Tal como a incorporação do porta-etrog ao acervo do museu simboliza a interseção entre as histórias brasileiras e judaicas, suas duas inscrições simbolizam a interseção entre a tradição judaica e a comunidade carioca, representada pela ARI. ü

Haaretz publicou uma resenha elogiosa do livro Antiterapias do brasileiro (de Minas Gerais) Jacques Fux, escritor e matemático, que colabora regularmente com Devarim (seu mais recente texto para a nossa revista foi publicado no número anterior a este, versando sobre Hollywood e a estética do Nazismo).

Nacional Cidade de Belo Horizonte, do Prêmio Manaus e do Prêmio Paraná. Ele já publicou sete livros no Brasil, tendo neste momento três obras no prelo, a serem lançadas ainda em 2022. Foi traduzido para o espanhol, italiano e hebraico. Em Israel ele tem neste momento uma obra publicada, uma no prelo e uma emAtradução.revistaDevarim se sente muito orgulhosa pelo sucesso internacional de Jacques Fux. Ele projeta ao mundo as percepções do cidadão brasileiro e judeu. Não somos muitos, meros 0,0012% da população mundial, mas mesmo assim temos com o que contribuir. ü

Aseção de livros do jornal israelense

em poucas palavras EM POUCAS PALAVRAS

JACQUES FUX NO HAARETZ Em maio deste ano a ARI entregou em doação para o acervo do Museu Histórico Nacional um porta-etrog. Assim, o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro passa a ser um dos primeiros (quiçá o primeiro) museus sobre a história nacional de um país fora de Israel a incluir a imigração e a presença dos judeus em seu acervo e programa institucional.Museussobre a imigração e a presença judaicas existem em vários países do mundo. Contudo estes museus são especializados na vivência judaica. Não temos conhecimento de um museu sobre a história nacional que inclua a história dos judeus do país em sua narrativa ou exposições. A presença do portaetrog no acervo do MNH muda

“Antiterapias é um livro avassalador que oscila entre criminosos nazistas, judeus, mães e amadas shiksas [meninas não judias em ídiche]. O romance autobiográfico de Jacques Fux é composto por reminiscências da adolescência e inspirado no OULIPO, movimento literário de vanguarda cujos membros, escritores e matemáticos, impuseram restrições à escrita com vista a refinar o poder criativo.” Assim Gilad Melzer começa sua resenha do livro de Fux, num artigo que ocupa mais de uma página. Fux é ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura, do Prêmio

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NEGACIONISMO 2.0 (mas por que esperar coerência de antissemitas?) ela se combina com a negação total de que a Shoá tenha acontecido ou com uma redução radical de sua escala genocida e ferocidade.AInversão do Holocausto está aparente também nas universidades do Ocidente. Em artigo publicado em 2014, na Al Jazeera o professor Hamid Dabashi da Universidade de Columbia de New York diz: “Depois de Gaza nenhum israelense pronunciará a palavra ‘Auschwitz‘ sem que ela soe como ‘Gaza’. Auschwitz como fato é um registro histórico. Auschwitz como metáfora é, agora, palestina. Daqui para frente toda vez que algum judeu, em qualquer lugar do mundo, pronunciar a palavra ‹Auschwitz‘ o mundo ouvirá Declarações‘Gaza’”.3destetipo cruzam a linha entre a crítica a Israel e a de demonização dos judeus. É impossível deixar de notar que a frase de Dabashi começa focando nos israelenses e termina nos judeus. A inversão do Holocausto é uma das técnicas favoritas da perseguição aos judeus. Que isso seja praticado tão abertamente por professores titulares na principal universidade de New York é um escândalo e, principalmente, um alerta. ü 3 gazahttps://www.aljazeera.com/opinions/2014/8/8/-poetry-after-auschwitz/

Saiu da moda negar a Shoá.1 Esta atitude é coisa do passado tal como as calças boca de sino e camisas de golas largas dos anos 1970.Tanto David Irving como Robert Faurisson que, naquela década, postularam a inexistência das câmaras de gás em Auschwitz, foram ultrapassados pelo atual “Negacionismo 2.0”, também chamado por alguns de “Inversão do Holocausto”.Osantissemitas do começo do século 21 já se conformaram que o mundo não comprou as mentiras do passado. Então eles reciclaram a manifestação de seu ódio aos judeus através da afirmação que o Auschwitz está sendo reeditado hoje pelos judeus, numa versão ainda mais cruenta, em Gaza e na Margem Ocidental do Jordão.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 101 em poucas palavras

BrasilNut/iStockphoto.

Afirma o romancista britânico Howard Jacobson: “Em vez de dizer que a Shoá não aconteceu, o negacionista sofisticado moderno aceita o evento em toda a sua terrível enormidade, apenas para acusar os judeus de tentar lucrar com isso, seja na forma de chantagem moral ou roubo territorial. De acordo com esse pensamento, os judeus traíram a Shoá e se tornaram indignos dele, sendo os palestinos os verdadeiros herdeiros de seu sofrimento”.2Estaatitude está totalmente inserida no mundo árabe-muçulmano, onde ela tem onipresença gráfica em caricaturas na imprensa árabe e iraniana, na qual os israelenses são regularmente retratados em trajes nazistas. Frequente e paradoxalmente 1 Denominada em português de Holocausto. 2 -is-1624827.htmlquo-s-see-the-criticism-of-israel-for-what-it-reallytators/howard-jacobson/howard-jacobson-let-rshttps://www.independent.co.uk/voices/commen

Em Iom haAtsmaut (o dia em que se celebra a fundação do moderno Estado de Israel), o Yated Neeman publicou uma charge que ilustra o pensamento do judaísmo ultraortodoxo com relação ao Estado que o abriga e sustenta.

Ojornal israelense do partido ultraortodoxo Ihadut haTorá (o judaísmo da Torá) tem o nome Yated Neeman, um termo retirado do livro do profeta Isaías que significa literalmente “pilar confiável”.

A supremacista ideologia ultraortodoxa joga na lata do lixo valores fundamentais judaicos tais como a fraternidade, o respeito pelas opiniões opostas e a gratidão, que são os verdadeiros pilares que sustentaram os judeus ao longo de sua existência. O partido ultraortodoxo que publica o jornal defende um judaísmo incompreensível. ü

O PILAR INSTÁVEL Balassiano.Victorimagem:daReprodução

Não há nenhum reconhecimento pela generosidade dos cidadãos israelenses que, com seus impostos, sustentam a comunidade ultraortodoxa e nem ao menos pela atuação do exército de Israel (no qual os ultraortodoxos são muito pouco representados) na defesa física dos habitantes de Israel.

Duas figuras regam uma mesma árvore, com resultados diametralmente opostos. De um lado a água gera uma árvore frondosa, cheia de folhas e frutas suculentas. Do outro lado, a árvore é ressequida, não tem folhas e seus poucos frutos são podres. A ilustração que acompanha esta nota reproduz e traduz a charge do jornal. O lado verde da árvore é regado por um ultraortodoxo com a água da Galut / Diáspora. O lado murcho é regado por um sabra (pessoa nascida em Israel) com a água da Hatsmaut / Independência. A mensagem é claríssima. O judaísmo diaspórico é tudo de bom, enquanto que a fundação do Estado de Israel só produziu insegurança, violência e imoralidade.

102 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI em poucas palavras

em poucas palavras Pessach é uma data e festividade com múltiplos sentidos e uma importância por vezes desconhecida. Pessach, também conhecida como Chag Cherut, é comemorada no dia 14 de Nissan no calendário hebraico. Na época em que o templo de Jerusalém existia e funcionava, a população de Israel para lá se dirigia a fim de fazer sacrifício de cordeiros, o cordeiro pascal. Nos dias atuais celebra-se Pessach em família, com um jantar centrado na narrativa do êxodo judaico do Egito dos faraós e repleto de comidas que remetem simbolicamente a situações vivenciadas naqueles tempos. A palavra Pessach é comumente traduzida como “passar sobre (pular)”. Esta noção deriva da narrativa de que Deus ordenou ao anjo da morte que passasse sobre a casa dos judeus e não exterminasse os primogênitos daquelas casas. Entretanto, uma outra tradução, talvez mais condizente com o sentido da palavra na época seria “teve compaixão”, conforme depreendido do texto do Targum Onkelos (tradução do Hebraico para Aramaico do século 2 da era comum). Há debate sobre a importância relativa das festividades. Alguns afirmam ser Yom Kipur a data mais importante no calendário religioso. Certamente Shavuot deveria ter lugar de destaque. Entretanto, não há nenhuma festividade, exceto Pessach, que permita a celebração em data posterior (14 de Iyar) para aqueles que por alguma razão estiveram impossibilitados de fazê-lo na data original. Creio ser este fato razão suficiente para considerar Pessach como a celebração religiosa mais importante.Nãohádúvida que o fulcro da festividade de Pessach é a liberdade. Ademais, conforme os ditames da própria festividade, deve cada celebrante considerar-se como se ele próprio estivesse sendo liberto dos grilhões da escravatura. Entretanto, fosse Pessach considerado somente em seu sentido estrito e literal de libertação da escravatura, não teria a importância que possui. Em um sentido mais amplo, pode-se argumentar que liberdade implica no livre arbítrio. Ou seja, a possibilidade de pensar e agir diferente. A festividade de Shavuot está liturgica e intrinsecamente conectada à Pessach pelo período de contagem do Omer. A implicação desta conjunção temporal no plano abstrato seria a complementaridade de liberdade e lei. Assim, a liberdade de pensar e agir diferente não pode ser absoluta devendo ser modulada pela lei.

Ora, se individualmente um judeu deve agir conforme explicitado acima, como grupo deve estar comprometido com o apoio a políticas governamentais que induzam à consecução destes objetivos. Assim, não há espaço para apoio a políticos contrários ao estabelecimento e/ou manutenção de redes de proteção social, mormente quando comportando-se como autocratas pretendem extinguir o sistema jurídico existente ou modificá-lo de tal forma que deixará de ser consistente e justo. ü

Ressalte-se a óbvia constatação de que a inexistência de tal sistema jurídico acarretará na falta de liberdade pois todos os indivíduos, judeus ou não, estarão sujeitos à “lei do mais forte” e aos mandos e desmandos do ditador de plantão.

Aos judeus é vedado viver no seio de uma comunidade que não tenha sistema judiciário consistente e justo.

Shavuot, ou Chag HaBikurim, explicita ainda uma outra faceta da ética judaica. O judaísmo está repleto de exemplos e regras nas quais a compaixão e o respeito pelo mais desafortunado se mostra presente.

O sábio Hillel afirmou que a ética do judaísmo consiste em não fazer a outrem o que não deseja que façam a si. Os 613 mandamentos que um judeu deve, ou deveria, obedecer são os métodos pragmáticos de concretizar esta ética. Já para a população em geral, ser ético consiste em seguir as sete leis de Noé. Estabelecer um sistema judiciário consistente, e portanto justo, é uma destas leis universais.

A obrigação explícita de não coletar totalmente o trigo no campo, deixando assim trigo para as viúvas e os necessitados, deve ser entendida não somente literalmente, mas no sentido mais amplo de prover uma rede de proteção social. Deste breve texto depreende-se que um judeu não pode ser contrário à existência de um sistema judiciário consistente e justo. Além disso, um judeu deve ser justo e ter compaixão, compreendendo da necessidade de haver redes de proteção social, e consequentemente apoiá-las.

PESSACH : IMPLICAÇÕES HÉLIO SCHECHTMAN Filipfoto/iStockphoto

O desfraldar de uma não precisa ser a negação do desfraldar de outra.

O já centenário conflito palestinoisraelense (que já foi árabeisraelense) não será resolvido, real ou simbolicamente, queimando a bandeira de Israel ou pisando nela, como estamos acostumados a ver, nem proibindo bandeiras palestinas. Um símbolo não significa necessariamente a negação de outro símbolo, ou seja, de outras emoções e ideias, a não ser que esta seja intenção ideológica e emocional a ele atribuída. Alguns símbolos têm essa conotação inequívoca de predadores de emoções, ideias e histórias alheias, como a suástica. Os símbolos judaicos, especificamente a bandeira do povo e do estado judeu, não têm essa conotação, nem na intenção nem na evocação, nem na história. Bandeiras podem e devem coexistir, assim como povos, religiões e estados.

Diante do prédio da ONU em Nova York tremulam juntas 193 bandeiras.

104 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI No Iom Ierushalaim, o Dia de Jerusalém, o centro das atenções foi para a marcha das bandeiras. Um mar de bandeiras israelenses percorreu a cidade em direção a Har Habait, o Monte do Templo, hoje um espaço dividido entre o Muro e a Mesquita de Omar. Bandeiras israelenses em Jerusalém e no Muro não deveriam ser tema de polêmica, mas foram usadas como foco de um novo embate de acusações e hostilidades. Talvez porque essa marcha tenha suscitado uma percepção de desafio e contestação: num lado, desafio e contestação à presença árabe e islâmica no lugar mais sagrado do judaísmo – o remanescente do Templo construído no século 6 antes da Era Comum, na capital do estado judaico. No outro lado, percepção de uma indevida presença judaica, nacional e religiosa, no terceiro mais sagrado lugar do islamismo, mesquita que começou a ser construída no século 7 da Era Comum, e terminada no século 11. E, talvez, contestação à presença judaica em qualquer lugar de Israel. Logo, em resposta ao mar de bandeiras israelenses, árabes israelenses organizaram um mar de bandeiras palestinas, mais uma vez suscitando dupla percepção: os cidadãos árabes de Israel manifestando apoio à causa de um estado palestino, os israelenses percebendo na manifestação uma indevida exaltação, por israelenses, de uma causa de inimigos do estado judeu, que visa a sua eliminação, ou destruição. Fala-se em Israel de criminalizar esse uso de bandeiras palestinas, por representar uma intenção, e uma instigação, explícita ou não, não só da criação de um estado palestino, mas da extinção do estado de Israel. Bandeiras, realmente, são símbolos fortes de identificação com grupos, ideias, identidades. A emoção visual de uma bandeira evoca todas as emoções conectadas a identidade, a pertinência, a destino histórico, no passado e no futuro, a senso comunitário. Isso vale para nações, religiões, times de futebol. O impacto visual e emocional de um mar de bandeiras no despertar de fidelidades e comprometimentos é imenso.Uma bandeira é um símbolo. Símbolo é a concentração, num objeto real ou virtual, físico ou imaginado, de emoções e de ideias. Sem ser explícito, ele evoca com sua simples presença uma ampla gama de associações, fidelidades, lembranças, conceitos. O judaísmo, como religião, identidade, história e cultura, é permeado de símbolos. Mezuzá, tefilin e talit, matsá e maror, velas de Shabat e de Chanuká, sete espécies de Shavuot, quatro espécies de Sucot, e mais... A bandeira de Isael tem no centro o maguen David, que muito antes de ser o símbolo do Estado foi, por séculos, o símbolo do povo judeu e, modernamente, do sionismo. A bandeira de Israel está dizendo, na linguagem dos símbolos: o povo judeu está de volta à sua terra de origem, da qual nunca se esqueceu nem abriu mão. A bandeira de Israel é consequência de uma história nacional, imagem simbólica de uma permanência milenar e de um renascer ansiado, cultivado e realizado. O maguen David representa tanto a continuação de uma história como seu reinício. Sua presença em qualquer momento ou lugar de Israel não deve ser considerada um desafio, independentemente da intenção de quem a carregue. No entanto, é a intenção que está em causa. Por exemplo, ser a favor de um estado palestino, contanto que num contexto de um acordo e de uma paz definitiva com Israel, respeitados por todos os fatores do conflito, é aceitável e válido. Agitar bandeiras palestinas com essa intenção não é desafio nem traição. Mas se a intenção é responder à afirmação de presença judaica (simbolizada na bandeira do povo e do estado judeu) no lugar mais sagrado do judaísmo, e no próprio estado judeu, contra-afirmando que a bandeira palestina é a [única] que simboliza a identidade, história e religião de Har Habait, e, por extensão em qualquer lugar de Israel, isso seria um desafio e um acinte. Agravado pelo fato de ser conduzida por cidadãos de Israel.

Cabe aos palestinos, e aos árabes israelenses, atribuírem significado a seus símbolos, e a suas bandeiras. Afirmação ou contestação. Convivência ou desafio. É isso que está em questão.

O maguen David foi durante séculos, como símbolo do povo judeu, símbolo de permanência e de esperança, não de desafio a outras bandeiras. Como símbolo do Estado de Israel, estampado em sua bandeira, ele reafirma a permanência histórica e a esperança [que é o próprio título do hino de Israel] de, como diz o hino, ”ser um povo livre em nossa terra”. Por não ter conotação de desafio, e, sim, de presença e esperança, ela é também a bandeira de todos os cidadãos de Israel.

cócegas no raciocínio Paulo GeigerBANDEIRAS

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106 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI A nova geração do Livro para todas as gerações do povo do livro Adquira já seu exemplar na ARI! (21) adriana@aririo.org.br97641-6234 A primeira tradução para o português do Chumash do rabino Plaut, com os 5 livros da Torá, notas de tradução, interpretações, análises históricas, literárias e teológicas, além de referências que enriquecem o estudo do judaísmo. Uma biblioteca completaem um único livro. Textos de on-lineExclusivocontemporâneaeminterpretaçõescomentáriosreferência,elinguagemeatual.índiceremissivoembreve. Mudou-se Desconhecido FalecidoRecusado End. Insu ciente Reintegrado ao serviço postal em: __/__/__ PARA USO DOS CORREIOS __/__/__ _____________________________ Associação Cultural ATID Rua General Severiano, 170 22290-040 - Rio de Janeiro - RJ Rementente: ASSINE DEVARIMA GRATUITAMENTEwww.devarimonline.com.brdevarim@aririo.org.br

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Devarim 45 (ano 17 - agosto de 2022) by ARI - Associação Religiosa Israelita - Issuu