Revista da Associação Cultural – ATID Ano 17, n° 44, abril de 2022 Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI DEVARIM DEVARIM A Música dos Judeus Durante o Holocausto Tamar Isabelle Machado Recanati Os Violinos da Esperança Raul Cesar Gottlieb A Música dos Judeus Durante o Holocausto Tamar Isabelle Machado Recanati Os Violinos da Esperança Raul Cesar Gottlieb A Solidariedade em Manaus David Vidal Israel Dentro da sinagoga que está dentro de nós Rabino Sérgio Margulies Uma Releitura Crítica da Escravidão na Torá Rabino Joseph A. Edelheit A Shechitá nos Tempos de Hoje Walter A. Mannheimer Yoga na Sinagoga? Rabino Beni Wajnberg A EternaMartínAliançaHirsch Uma Breve Antologia Poética Moacir Amâncio A Literatura como Chave Testemunhal Carolina Sieja Bertin Hollywood e o Nazismo Jacques Fux A Atividade do Instituto Brasil-Israel David PauloCócegasVittorio“RetratoDavidAJacquesHollywoodCarolinaAMoacirUmaPauloCócegasVittorio“RetratoDiesendruckdeVitória”CorinaldinoRaciocínioGeigerBreveAntologiaPoéticaAmâncioLiteraturacomoChaveTestemunhalSiejaBertineoNazismoFuxAtividadedoInstitutoBrasil-IsraelDiesendruckdeVitória”CorinaldinoRaciocínioGeiger A Solidariedade em Manaus David Vidal Israel Dentro da sinagoga que está dentro de nós Rabino Sérgio Margulies Uma Releitura Crítica da Escravidão na Torá Rabino Joseph A. Edelheit A Shechitá nos Tempos de Hoje Walter A. Mannheimer Yoga na Sinagoga? Rabino Beni Wajnberg A EternaMartínAliançaHirsch



Israel, um Estado judaico ou democrático? possível um Estado ser judaico e democrático ao mesmoCentenastempo?de horas já foram dedicadas, na ARI apenas, para debater esta questão. Sendo que os propo nentes de que há uma contradição entre judaísmo e democracia emendam a inevitável e terrível sequência a esta questão: “O que queremos? Um Israel judaico ou um Is raelEudemocrático?”nuncaaceitei o argumento dos que propõem ser o judaísmo incompatível com a democracia. A meu ver, o que hoje em dia chamamos de “democracia” emerge dire tamente do judaísmo. É certo que o Tanach nem sempre favorece a eleição popular dos dirigentes. Alguns são elei tos por Deus (por exemplo, Moisés e Samuel). Contudo, o Tanach ordena a escolha de lideranças pelo povo (por exemplo em Devarim / Deuteronômio 1:13 e 16:18), mas não especifica o método da escolha. Em paralelo, a democracia não se caracteriza unica mente por eleições. Elas são importantes, porém o pilar central do edifício democrático é o dos direitos iguais para todos. Igualdade de direitos é a principal (e a meu ver, a mais original e revolucionária) proposição do judaísmo. Esta proposição é expressa ao longo de todo o texto bí blico. Por exemplo, em Devarim / Deuteronômio 1:16, so mos exortados a decidir com igualdade entre um israeli ta e um estrangeiro. A democracia ateniense escolhia os dirigentes por su frágio. Mas este sufrágio não era universal. Mulheres, as salariados e escravos não votavam. Então, temos que a de mocracia Ateniense não é a democracia moderna, mas a igualdade judaica é o princípio fundante da democracia moderna.Osprincípios de igualdade ancorados em direitos ina lienáveis do homem, ou seja, direitos que não podem ser revogados por meio de uma eleição, são o fundamento re volucionário do judaísmo: a crença que há um Deus que criou o mundo e o povoou com humanos que comparti lham igualdade de dignidade e direitos. Estes princípios estão tão enraizados em nossas men tes que muitos nem mais reconhecem sua origem na fé ju daica e os consideram auto evidentes. Mas, penso eu, esta consideração é duvidosa. Chego a esta conclusão ao obser var sociedades que não foram expostas à fé judaica e que não esposam os princípios da igualdade. Desta forma, o aprimoramento da democracia israelen se (que, como todas as construções humanas, sempre pode ser aperfeiçoada) resulta no fortalecimento do caráter ju daico do Estado.
EDITORIAL
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É
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A ferrenha e deselegante oposição à medida tomada pela Suprema Corte por parte dos partidos ultra ortodoxos em Israel – um deles divulgou um vídeo afirmando que o movimento Reformista converte cachorros – mostra que a promoção do caráter judaico do Estado não passa pela ul traortodoxia, com sua defesa do altamente lucrativo e ao mesmo tempo anti democrático (logo, antijudaico e às ve zes cruel) monopólio dos assuntos religiosos.

Raul CesarDiretorGottliebde Devarim
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A vitória do IRAC, liderado pela formidável Anat Hof fman, campeã também das “Mulheres do Muro” (iniciati va que busca a abertura de um espaço para oração femini na e igualitária no Muro das Lamentações em Jerusalém), aprimora a democracia israelense e, em consequência, tor na o país mais judaico.
Israel é democrático porque é judaico. A questão “Que remos um Israel judaico ou um Israel democrático?” sim plesmente não é uma questão, pois o “ou” é na verdade um “e” que elimina o ponto de interrogação. No ano passado Israel deu mais um importante passo para se tornar mais judaico e, em consequência, mais de mocrático. A Suprema Corte do país reconheceu que os judeus por opção considerados como tal pelas comunida des Reformistas e Conservadoras do país são judeus com pleno direito à cidadania. Esta decisão foi tomada 15 anos depois da provocação da Suprema Corte pelo IRAC – Is rael Religious Action Center –, ligado ao Movimento Re formista de Israel. Esta decisão não vai afetar a vida de muitas pessoas, apesar de ser extremamente significativa para as vidas que ela afeta. Contudo, o valor simbólico da decisão é mui to grande. Ela sinaliza a abertura de uma fresta na porta para o reconhecimento pleno das comunidades Reformis tas e Conservadoras de Israel. Reconhecimento este que quebraria o monopólio do Rabinato Central nas ques tões de casamentos, divórcios, heranças, sepultamentos e kasherut.Nãosão questões menores. Por exemplo, a quebra do monopólio religioso do Rabinato afeta sobremaneira as mulheres divorciadas, cuja possibilidade de reconstrução de uma família repousa integralmente nas mãos de uma gentil deferência dos ex-maridos. E nem todos os ex-ma ridos são gentis com as ex-esposas. Isto acontece porque o tribunal rabínico não tem poder para obrigar o divórcio, inclusive em casos de abuso físico. Esta regra já fazia pou co sentido no tempo em que os judeus viviam em peque nos povoados onde a pressão comunitária mitigava os tra tamentos desumanos. Porém, hoje o ex-marido consegue desaparecer no mundo com facilidade e a ex-esposa fica presa para sempre no casamento falido.
A revista Devarim é editada pela Associação Cultural – ATID Rua General Severiano 170 – Botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro-RJ CNPJ
COLABORARAM NESTE NÚMERO Rabino Beni Wajnberg, Carolina Sieja Bertin, David Diesendruck, David Vidal Israel, Jacques Fux, Rabino Joseph A. Edelheit, Martín Hirsch, Moacir Amâncio, Paulo Geiger, Rabino Sérgio R. Margulies, Raul Cesar Gottlieb, Tamar Isabelle Machado Recanati, Vittorio Corinaldi e Walter A. Mannheimer.

MINISTÉRIO DO TURISMO APRESENTA:
3 O quinto e último livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coisas. 4 Revista da Atid e do judaísmo liberal, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
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Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 3 Dentro da sinagoga que está dentro de nós Rabino Sérgio Margulies ...................................................................... 5 Uma Releitura Crítica da Escravidão na Torá Rabino Joseph A. Edelheit 11 A Música dos Judeus Durante o Holocausto Tamar Isabelle Machado Recanati 18 Os Violinos da Esperança Raul Cesar Gottlieb 25 Uma Breve Antologia Poética Moacir Amâncio 32 A Literatura como Chave Testemunhal Carolina Sieja Bertin .......................................................................... 39 Hollywood e o Nazismo Jacques Fux ........................................................................................ 47 A Shechitá nos Tempos de Hoje: Um Ensaio Walter A. Mannheimer....................................................................... 55 Israel não é um País Imaginário: A Atividade do Instituto Brasil-Israel David Diesendruck ............................................................................ 58 Retrato de Vitória Vittorio Corinaldi .............................................................................. 64 A Solidariedade em Manaus David Vidal Israel 69 A Eterna Aliança Martín Hirsch 73 Yoga na Sinagoga? Rabino Beni Wajnberg 79 Em Poucas Palavras 84 Cócegas no Raciocínio Paulo Geiger 91 SUMÁRIO Revista Devarim Associação Cultural – ATID Ano 17, nº 44, abril de 2022 PRESIDENTE DA ATID Gilberto Lamm RABINO CONSULTOR Sérgio R. Margulies ASSISTENTE DO RABINATO Andrea S. Z. Kulikovsky DIRETOR DA REVISTA Raul Cesar Gottlieb CONSELHO EDITORIAL Breno Casiuch, Germano Fraifeld, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Moacir Amancio, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies. EDIÇÃO Editora Narrativa Um EDIÇÃO DE ARTE Negrito Produção Editorial REVISÃO DE TEXTOS Mariangela Paganini (Libra Edição de Textos) FOTOGRAFIA DE CAPA Marina Ventura Gottlieb FOTOGRAFIAS iStockphoto.com
Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI. Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
[hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coisas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então milim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos.

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DENTRO DA SINAGOGA QUE ESTÁ DENTRO DE NÓS
Rabino Sérgio Margulies N a adolescência contavam-me uma história de lugares que deixariam de existir. Eram as comunidades judaicas que em dada época flo resciam e suas sinagogas, nas quais um dia se reuniam centenas de judeus para compartilhar, através dos rituais, as alegrias e tristezas da vida. Eram as escolas nas quais as crianças aprendiam os valores da tradição judaica. Tudo isto – me contavam – iria virar lenda, tal como as amplas dis cussões dos movimentos juvenis, as acaloradas decisões das federações. Eram as comunidades que gradativamente desapareceriam, as entidades assistenciais seriam esquecidas e os cemitérios abandonados iriam tornar-se ruínas. Contavam-me esta história como uma previsão do futuro de que, na me lhor das hipóteses, os rolos da Torá seriam enviados para museus a fim de não serem soterrados nos escombros das casas de oração, mas não seriam museus judaicos simplesmente porque não haveria mais comunidade para preservar até mesmo seus museus.
este discurso, não porque desprezava o potencial da as similação, e sim porque entendia ser uma narrativa que intencionava instigar
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Sempre negligenciei este discurso, não porque desprezava o potencial da assimilação, e sim porque entendia ser uma narrativa que intencionava instigar a culpa e destilar o medo ao invés de efetivamente educar os valores judaicos.
Na história que me contavam havia uma explicação para tudo isto: assimila ção! Assimilação pela falta de interesse era a estrada que conduzia as então glo riosas comunidades – uma após outra – ao desaparecimento. Assim me contavam na forma de um alerta resignado. O complemento seguia com ácidas ob servações: ‘o que os antissemitas não conseguiram fazer conosco, nós próprios estávamosSemprefazendo’.negligenciei
A difusão do judaísmo foi possível em função da tecnologia. No entanto, a tecnologia é o meio. O que a tecnologia transporta são os valores do judaísmo com a eterna e deliciosa discussão sobre estes valores.

a culpa e destilar o medo ao invés de efetivamente educar os valores judaicos que podem despertar o interesse pela vida ju daica. Assim, estes aterrorizantes discur sos ficaram esquecidos em algum canto da minha memória. Então veio a pande mia há dois anos. Os discursos ressusci taram. Como lavas de um vulcão ador mecido, começaram a entrar em erupção dentro de mim. Inicialmente, sob o im pacto da terrível praga da Covid-19, pen sei: ‘agora, com a comunidade de portas fechadas, cada pessoa isolada em seu ambiente, de fato o judaísmo esta fadado ao desaparecimento’. Pouco impor tava se o gongo do fim da luta pela sobrevivência judaica soaria pela assimilação ou pela irrelevância de ter as portas comunitárias fechadas. Pouco importava, pois irrelevância e assimilação são neste caso sinônimos. E foi neste momento que o pesadelo das previsões som brias abriu espaço para o vislumbre de um porvir sequer imaginado. É a difusão sem precedente dos ensinamentos judaicos, que transcendem os muros e chegam a tantos ju deus que não tinham acesso à vida comunitária ou estavam desprovidos do afã de buscar a vivência judaica. Uma difusão capaz de unir co munidades que de outro modo estariam afastadas umas das outras. Uma difusão que permite também aos não judeus aprenderem sobre o judaísmo, mitigan do o preconceito ancorado no desconhecimento. Esta difusão foi possível em fun ção da tecnologia. No entanto, a tecnolo gia é o meio. O que a tecnologia transpor ta são os valores do judaísmo com a eterna e deliciosa discussão sobre estes valores. A tecnologia está à disposição e os valores já existem –ainda que sempre renovados à luz do novo tempo –, en tão foi preciso mais um elemento: a decisão. A decisão do que fazer com a vida judaica diante de uma situação sem precedente que aflige a humanidade com nefastas conse quências econômicas e sanitárias. Decidir manter as portas fechadas ou entender que o tempo inesperado obriga a abrir as portas por via de outros caminhos. Esta decisão pode levar a assimilação de fato ou criar condições de fa zer do judaísmo o que ele se propõe ser: um instrumento ético e espiritual de valorização da vida e de constituição
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A mensagem judaica transmite princípios balizados pela ética. Deste modo, o verbo hebraico transmitir – lim sor – é associado etimologicamente ao termo moral: mus sar. A decisão pela assimilação é a de abandono da trans missão do que é moral. A assimilação pode existir mes mo que disfarçada de continuidade. Se nos recintos fecha dos e isolados que intencionam a autopreservação a mo ral for abandonada, haverá uma autofagia cujo desfecho será a assimilação.
O meio de transmissão é indubitavelmente a tecnolo gia. O meio leva a mensagem. Mas de quem para quem? Do Shabat para a congregação que se reúne no Shabat. A decisão de transmitir a mensagem moral e espiritual por via remota no Shabat preserva a essência do Shabat, traz

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Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 7 de comunidades que se fortalecem para melhor agir na so ciedade. A decisão parece ser simples e óbvia. Mas não é. Para que novas portas sejam abertas é preciso romper com conceitos antigos e procedimentos que, válidos antes, se tornam obsoletos nas circunstâncias mutantes. A deci são deve olhar atentamente além do rótulo do instantâneo “não pode porque nunca pôde”. No entanto, se a de cisão for preservar o que não funciona, paradoxalmente em nome da manutenção de um sistema arcaico e disfun cional, o passo da assimilação é dado. Simplesmente dado porque este sistema torna-se irrelevante. Se na grave cri se, como a da Covid-19, a mensagem judaica não provê apoio e suporte, para que mantê-la? Assimilação torna-se uma opção. De modo claro: assimilação é a opção pela ir relevância. A irrelevância é, por sua vez, a opção do medo que hesita em criar. Criar é como em Pessach: acreditar nas possibilidades antes não concebidas de um mar se abrindo porque há a coragem de seguir. Criar é como em Purim: assumir a es sência, rechaçando a identidade oculta para resgatar o clamor pela vida que enxerga que uma nova sorte poderá ser construída. Criar é como em Chanucá: vislumbrar uma pequena quantidade de óleo, não se resignar e apreciar a chance de um novo futuro. Criar é como em Iom Kipur: ser capaz de corrigir para aprimorar e ouvir os sons de uma nova época. Criar é como em Tishá beAv, que lem bra a destruição da estrutura física do Templo, porém não da sua mensagem espiritual.
A mensagem do Templo era também expressa pela sua arquitetura. O Templo erguido por Salomão tinha janelas estreitas do lado de dentro e amplas do lado de fora. Os critérios de segurança indicam que deve ser ao contrário, estreitas fora e amplas dentro. Mas a segurança do Templo estava relacionada à capacidade de transmitir a sua mensagem. De outro modo, seria irrelevante. Por isso, sua es sência persistiu mesmo após a destruição.
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A mensagem judaica transmite princípios balizados pela ética. Deste modo, o verbo hebraico transmitir –limsor – é termoetimologicamenteassociadoaomoral: mussar. a relevância e afasta os temores da assimilação. Esta decisão honra as palavras do pensador Achad Haam (1856-1927): “mais do que o povo de Israel preservou o Shabat, o Shabat preservou o povo de Israel”. Se não transmitíssemos o Shabat, sua mensagem não chegaria a tantos que, assim, podem se congregar e, com isto, o próprio Shabat não seria preservado. E isto sim seria assimilação. Para enfrentar a crise da Covid-19 –ou ao menos minimizar alguns de seus efeitos – a men sagem milenar chega. Esta mensagem não se torna perso nagem de tenebrosas narrativas e convida para entrar em cena a esperança que cada Shabat comunitariamente vivenciado possibilita. Aliás, o alimento espiritual da espe rança não cega à realidade tem sido fonte de sustento para o povo judeu em sua vasta experiência de superar crises. Como ficará a solução provida pela tecnologia quan do a Covid-19 for completamente superada, ou até mes mo agora quando já arrefece seus impactos? Mesmo com as portas abertas, o que atende o anseio de estar fisicamen te uns com os outros, teremos aprendido que a solução a um problema imediato propicia a inclusão daqueles que, por exemplo, tem dificuldade de deslocamento. Para estes, o remoto também é presencial, pois é a afirmação da palavra do patriarca Abrah ão: “hineni”. “Eis-me aqui”. * * * Seja lá qual é o dia da semana em que você estiver lendo este artigo, antecipo: Shabat Shalom! Afinal, cada dia da sema na em hebraico é contado em função do Shabat. Somente o Shabat tem nome, os outros dias são numerais que antecipam o Shabat. Não poderíamos ficar – quando mais precisamos – sem seus cânticos e mensagens, sem estarmos uns com os outros, da forma que for possível. Que assim possamos ter a mesma sensação expres sa pelo rabino Ben Azzai (século 2): “eu estou escutando as palavras da Torá como se estivessem sendo faladas no Sinai”. O simbolismo do Sinai estava dentro dele. Que escutemos as palavras da Torá e a mensagem do Shabat como se estivéssemos na sinagoga, pois ela está em nós. Por estar em nós, dá uma enorme saudade – a ser sacia da! – de estar nela junto com todos que tem a sinagoga dentro si. Rabino Sérgio R. Margulies serve na ARI – Rio de Janeiro
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Rabino Joseph A. Edelheit
RELEITURA CRÍTICA DA ESCRAVIDÃO NA TORÁ narrativa da Torá sobre a experiência coerciva e dos israelitas no Egito é entendida como apenas no sentido contextual, porque a raiz para a palavra tem muitos significados diferentes.
A
implacável
A “Escravidão” da Torá não é a mesma do comércio de escravos através do Atlântico, que é a base dos conflitos que nos desafiam hoje. A erudição históri ca de Paul Lovejoy fornece uma definição com a qual podemos começar a dife renciar os antigos textos bíblicos das realidades históricas. “A escravidão é uma forma de exploração. Suas características específicas incluem a ideia de que os
A Hagadá permite que os participantes flexibilizem o tempo e perso nalizem a cerimônia. No início do período medieval, os editores ra bínicos adicionaram as duas palavras, “Avadim Hainu”, “nós éramos escravos …”. Em vez do “eles” da histórica terceira pessoa do plural, o “nós” da primeira pessoa inclui imediatamente cada pessoa sentada à mesa em cada NesteSeder.ano,esse dispositivo retórico também terá o efeito de provocar um grande choque politizado de preconceito ao conectar o Seder a conversas do lorosas sobre racismo sistêmico, supremacia branca, Black Lives Matter ou o best-seller de Laurentino Gomes, Escravidão.
A palavra, “escravidão” não pode ser simplesmente contida no passado his tórico, porque este ano “Avadim Hainu” irá desencadear questões políticas di visivas que requerem a atenção de todos. Ainda assim, os conceitos bíblicos e rabínicos de escravidão contados durante nosso Seder nada têm a ver com os séculos de comércio de escravos que produziram as questões contemporâneas que devemos reconhecer. Este ensaio constrói, a partir do texto da Torá, a base da perspectiva crítica necessária para tais conversas.
UMA
escravidão
O texto narrativo de Shemot usa essa raiz em muitas formas variantes. Quando o Faraó motiva os egípcios a ter medo dos israelitas e ordena trabalho coercitivo com a fi nalidade de marginalizá-los, ele distorce o poder potencial dos israelitas, o que, por sua vez, justifica o uso coercitivo de seu trabalho. Ao referir àquilo que os egípcios impu seram aos israelitas, Shemot 1:13 usa a raiz como um ver
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12 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI escravos são propriedade; que são estranhos por origem ou aos quais sua herança foi negada por meio de sanções ju diciais ou outras; que a coerção pode ser usada à vontade; que sua força de trabalho está completamente à disposição de um senhor ... [são] bens móveis, o que significa que podem ser comprados e vendidos ”. “… A escravidão era fun damentalmente um meio de negar a estranhos os direitos e privilégios de uma determinada sociedade para que pu dessem ser explorados para fins econômicos, políticos e/ou sociais.” (pág. 2) “… os escravos foram deslocados a uma considerável distância de seu local de nascimento, enfati zando assim suas origens estrangeiras. Esse desenraizamen to foi tão dramático quanto o transporte de africanos atra vés do Atlântico ou do Deserto do Saara ... definindo o es cravo como um estranho.” (pág. 3) “... o sistema america no de escravidão foi único ... em sua manipulação da raça como meio de controlar o escravo ...” (pág. 8)1. Quando a escravidão é racializada, estamos impondo um impossível desafio moral ao texto bíblico, porque a escravidão bíblica não tem nada a ver com raça! Uma re leitura crítica da Torá requer neutralizar conscientemen
1 Paul E. Lovejoy, Transformations in Slavery: A History of Slavery in Africa, Cam bridge, 2012, 3ª ed. te o preconceito altamente politizado de hoje para supe rar qualquer mal-entendido sobre escravos e escravidão na Bíblia Hebraica. Contudo, ironicamente, os significados politizados contemporâneos de “escravidão” magnificam a leitura errada criada por traduções do texto bíblico. Portanto, vamos reler criticamente esses textos com uma ên fase renovada no hebraico original.
O texto hebraico em Bereshit / Gênesis, Shemot / Êxo do, Vaikrá / Levítico e Devarim / Deuteronômio usa para o termo a mesma raiz, Ain, Vet, Dalet, mas o contexto de cada uso é vital para uma leitura crítica. Em Brown, Dri ver, Briggs Biblical Lexicon encontramos as palavras hebrai cas “avadim”, “avodá”, “eved” com vários significados di ferentes, variando de servir / servo, trabalho / trabalhador, escravizar / escravo e culto / serviço no templo. Portanto, devemos ser precisos em todas as traduções tanto da lín gua antiga quanto da cultura correspondente.
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A Bíblia Hebraica não é uma história de “Avadim” sendo libertados, mas de um povo sob aliança com Deus que foi trazido de “avodá kashá / beit avadim” para o propósito específico de “avodá” para Deus.
bo, “vaiavidu”, e o verso termina com o adjetivo “befarech”, “impiedoso”, enfati zando a natureza do trabalho. Shemot 1:14 usa a mesma raiz como um substantivo, “avodá”, usando adjeti vos adicionais para enfatizar o horror. O contexto da narrativa muda de mero ser viço e serviçal para escravizado e escravi dão: “Impiedosamente, tornavam a vida mais amarga para eles, por conta do traba lho (avodá) pesado com argamassa e tijo los e com todo tipo de tarefas no campo”. Shemot 2:23 usa novamente “avodá”, que algumas tra duções vertem para “escravidão” ou “servidão” como o fio narrativo essencial. Embora a raiz da palavra hebraica seja a mesma, o contexto narrativo requer que o leitor entenda que a escravidão mais severa só pode ser desfeita pelo Di vino. “Muito tempo depois disso, o rei do Egito morreu. Os israelitas gemiam sob a servidão (avodá) e clamavam; e seus clamores por socorro chegaram até Deus.” A extraordinária “história de origem” se desenrola até Shemot 3:13, com os israelitas enfrentando trabalho for çado, sofrimento e expressando sua opressão, até que um líder seja escolhido por Deus com o propósito único de salvá-los / resgatá-los / libertá-los do status de “avadim”, com o propósito de “iaavduni” (para que Me [Deus] sirvam), com o texto hebrai co usando a mesma raiz em várias formas diferentes. Abaixo temos exemplos mostrando a palavra derivada da raiz hebrai ca e sua tradução contemporânea para o português. Não há ênfase textual consistente para o uso desta palavra como tra balho abusivo, escravidão. O termo “ser vo” é usado tanto para descrever “israeli tas” pelos próprios israelitas, como tam bém para aqueles que servem na corte do Faraó. A mesma raiz também é usada várias vezes em pa lavras que significam adoração a Deus, ligando o serviço a Deus / culto à mesma raiz. Finalmente, em Shemot 13: 3, com o evento real do êxodo, o Egito agora é descrito como “Casa da Escravidão” (ou Servidão).
Shemot 3:12: você adorará (taavdun) Deus Shemot 5:16: nenhuma palha é provida a teus servos Shemot(avadecha)6:9:seus espíritos estavam esmagados por cruel servidão (avodá kashá) Shemot 7:16: deixe meu povo ir para que eles possam me louvar (iaavaduni)
Um leitor do século 21 que se envolve com esses textos bíblicos demanda deles uma forte justificativa moral que, então, diminui a sua compreensão crítica.
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Shemot 10:1: endureci seu coração e os corações de seus cortesãos (avadaiv) Shemot 13:3: vocês saíram livres do Egi to, da casa da servidão (beit avadim). A narrativa da Torá sobre a experiên cia coerciva e implacável dos israelitas no Egito é entendida como escravidão ape nas no sentido contextual, porque a raiz para a palavra tem muitos significados di ferentes. Quando o texto bíblico é lido apenas na tradução, o leitor não consegue discernir as diferentes conjugações da mesma palavra raiz com seus significados variados. No entanto, o significado antigo do termo bíblico eved (plural avadim) / avodá era muito mais matizado do que o nosso entendimento atual de “escravo / escravidão”. As passagens de Shemot 1 a 13 são narrativas únicas da Torá, que definem a identidade primária de uma comuni dade com o propósito de estabelecer um destino transcen dente. A Bíblia Hebraica não é uma descrição factual his tórica de uma realidade antiga, mas um documento que afirma ter intenção Divina. Esta não é uma história de “Avadim” sendo libertados, mas de um povo sob aliança com Deus que foi trazido de “avodá kashá / beit avadim” para o propósito específico de “avodá” para Deus. Não estou traduzindo as palavras hebraicas do parágrafo acima intencional mente, para que o leitor “ouça” o hebrai co transmitir sua própria mensagem. Esta história de origem não é um exemplo bí blico antigo de escravidão, que é compa rável a qualquer outra experiência histó rica de pessoas sendo encarceradas para o propósito de be nefício econômico de um povo dominante.
Uma consideração final sobre a palavra hebraica “avo dá”: Pirke Avot 1:2 cita Shimon, o Justo, afirmando que o mundo se baseia em três coisas: Torá, Avodá (na adoração / serviço a Deus / serviço do Templo) e Guemilut Chassa dim (atos de bondade graciosa). A passagem é importante
O uso pelo hebraico bíblico daquela única palavra su gere que esta comunidade foi libertada do trabalho / ser viço opressor para se tornar a comunidade primária cha mada ao serviço / adoração do Eterno. Essas passagens bí blicas específicas estão ligadas a ideias e ideais distantes das questões de escravos e escravidão.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 15 para nossa leitura crítica porque a tradição rabínica primi tiva está ensinando que esta palavra agora descreve o pro pósito da liberdade bíblica, “avodá”, de / para Deus. Seja com qual formato que a adoração venha a evoluir sem o culto sacrificial do Templo, continuaremos a ensinar que um dos três valores religiosos essenciais de uma nova vida judaica pós-bíblica será a “avodá”, que conecta o Is rael bíblico desde o deserto, através de dois Templos, até a nova, ainda não totalmente desenvolvida, compreensão rabínica da adoração. Além da história de origem da “escravidão” hebraica no Egito, o leitor contemporâneo tem o desafio ainda mais di fícil de entender as leis da escravidão encontradas em She mot / Êxodo 21:2-11; Vaikrá / Levítico 25:39-45; e Deva rim / Deuteronômio 15:12-18. Essas leis basicamente ci vis, ao invés de rituais, descrevem uma cultura ancestral em que escravos, homens, mulheres e crianças eram ele mentos aceitos daquela realidade socioeconômica. Essas leis referem-se à “escravidão da esposa” e duas formas diferentes de “escravidão por dívida”, em que cada catego ria inclui israelitas e não israelitas. O texto bíblico inclui realidades sociais rejeitadas hoje, como filhas vendidas por seus pais para se casarem em uma nova casa que muitas ve zes era polígama.
As circunstâncias de “escravidão por dívidas” incluem o ladrão que é “escravizado” pelo tribunal para pagar sua dívida ou uma pessoa cuja falta de recursos exige serviço autônomo para sobreviver. “O conhecimento das realida des sociais e jurídicas do antigo Oriente Próximo, muitas vezes disponível apenas através do estudo de outras cul turas, como as da Mesopotâmia, são essenciais para uma compreensão completa do mundo da lei bíblica ...” (Aaron Koller) https: caquedetigocostumes)baseadasdaferentesargumentamtextosdosque,tosve-reading-the-law-collections-as-complementary.//www.thetorah.com/article/the-hebrew-slaUmleitordoséculo21queseenvolvecomessestexbíblicosdemandadelesumafortejustificativamoralentão,diminuiasuacompreensãocrítica.Osestucontemporâneossobreessaspassagensenfatizamconinterdisciplinares.“Osestudosbíblicosacadêmicosqueessascoleçõesforamcompiladaspordieditores/autores,emdiferentesépocaselugareshistóriaisraelitaantiga.Emboratodasasfontessejamnodireitoconsuetudinário(direitoquesurgedos–semelhanteaodireitoconsuetudináriodoAnOrientePróximo,apartirdoqualcódigoscomoosHammurabieEshnunasebaseiam–,oeditor/autorredigiucadaconjuntorefleteumaperspectivahistóriegeográficadiferenteetemsuaprópriainterpretaçãodo
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16 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI que a lei deveria ser. (Zev Farber) lave-exodus-leviticus-and-deuteronomy.www.thetorah.com/article/the-hebrew-shttps://Jáque
Bereshit / Gênesis molda as ori gens de todas as pessoas, devemos ignorar exemplos da realidade social da escravi dão? Na narrativa sobre Abraão e o man damento do Brit Milá (circuncisão), en contramos menções a escravos. Bereshit 17:12-13 especifica que todos os homens do clã devem ser circuncidados e o texto usa duas palavras distintas para referen ciar os filhos do sexo masculino, nascidos no clã ou comprados. Esta é a iniciação dos hebreus como grupo distinto de todos os demais, contudo, a descrição legal dos homens incluídos no grupo requer a diferenciação entre “nascido na sua casa” e “adquirido de um estrangeiro”. Bereshit também inclui três mulheres essenciais para a narrativa, Hagar, Zilpá e Bilá, “servas” dadas a Sara, Léa e Raquel. O texto é ambí guo sobre se essas mulheres são consideradas servas com li berdade e direitos limitados. Hagar é convidada por Sara a se tornar a concubina de Abraão para substituí-la, ter um filho homem, o que gera Ismael, o progenitor dos árabes e do Islã. Zilpá e Bilá são presentes de Labão para suas filhas que por sua vez as oferecem a Jacó, e eles produzem quatro dos 12 filhos / tribos de Israel, Dan e Naftali, Gad e Asher. No texto, esses filhos parecem ser menos valorizados até que a linhagem completa de Jacó os inclua e ele abençoe a cada um deles, tal como os demais. Poderiam quatro das tribos necessárias para a antiga comunidade de Israel ser fi lhos de “escravos”? Esses detalhes narrativos adicionam ou tra dimensão às leis técnicas discutidas acima, confirman do que esta antiga comunidade abraçou totalmente a rea lidade de várias categorias do que chamamos de “escravos”.
Esses versos nem fazem parte da his tória da libertação do Egito, nem estão diretamente relacionados com as com plexas leis relativas aos escravos, mas sim são um meio de focar na história como um estimulante ético e empático. Nossa identidade como judeus é ancorada pela experiência comunitária compartilhada de termos sido escravos e nossa liberta ção com o propósito de servir a Deus. Os hebreus / israelitas eram um povo anti go que de alguma forma se envolveu na brutal experiência do trabalho forçado, e foram libertados / salvos disso por conta de um propósito transcendente de ética e adoração a um Criador e Redentor úni co. Devarim desafia cada leitor a parar e se envolver pessoalmente em uma me mória ordenada, um passado que é mui to mais fácil de ignorar quando é a his tória “deles”. O texto desafia a todos que o leem a considerar-se como tendo sido um “Eved”, um trabalhador forçado. Os estudos contemporâneos sobre o comércio de es cravos no Atlântico e as intensas demandas políticas pro vocadas pelas manchetes sobre a supremacia branca e o racismo sistêmico exigem pensamento deliberado e crí tico. O texto bíblico não tem respostas diretas para es sas agonias históricas do passado, porque não há nada na Torá que corresponda a essas questões complexas. Os textos de Devarim exigem que testemunhemos esse pas sado escuro e diferente, não conforme descrito pelo dis curso político contemporâneo, mas como seres huma nos exigidos pela tradição judaica para buscar um re conhecimento empático do sofrimento como atemporal fardo ético. O Rabino Joseph A. Edelheit é professor emérito de estudos re ligiosos e judaicos da St. Cloud State University. Rabino Fundador da comunidade Beit Tikvá de Maringá, Paraná. Membro fundador do Conselho Rabínico Reformista do Brasil, atua como docente do Ins tituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista e é autor de What Am I Missing? Questions About Being Human. Traduzido do inglês por Raul Cesar Gottlieb. Nossa identidade como judeus é ancorada pela experiência libertaçãocompartilhadacomunitáriadetermossidoescravosenossacomopropósitodeserviraDeus.Oshebreuseramumpovoantigoqueseenvolveunabrutalexperiênciadotrabalhoforçado,eforamlibertadosdissoporcontadeumpropósitotranscendentedeéticaeadoraçãoaumCriadoreRedentorúnico.
Devarim 15:15: Tenha em mente que você foi escravo na terra do Egito.
Devarim 24:18: Lembre-se de que você foi escravo no Egito.
Duas vezes em Devarim / Deuteronômio o texto bíbli co desafia os leitores do século 21 usando a segunda pessoa do singular, “lembre-se de que você foi escravo no Egito”.
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 17




A MÚSICA DOS JUDEUS DURANTE O HOLOCAUSTO
O
1) A música que era tocada e cantada por judeus obrigados pela SS: Em muitos campos de concentração e na maioria dos campos de extermínio exis tiam orquestras e, em alguns casos, até corais. Os músicos, o repertório, quando e onde tocavam... tudo era decidido pela SS. Os músicos sofriam toda sor te de abusos, eram ameaçados e, na maioria das vezes, a música era usada como uma ferramenta para aterrorizar e zombar dos detentos dos campos. Isto é o que poderia ser chamado: música sob coação. Embora muito interessante, este é um tópico completamente diferente do que queremos abordar neste artigo.
A pergunta que não quer calar é: Por que cantar durante um genocídio? Por que cantar enquanto o mundo estava colapsando e as chances de sobreviver não eram mais do que uma mera utopia? Em outras palavras, que função desempenharam as canções e o canto durante o Holocausto?
Tamar Isabelle Machado Recanati
s judeus compuseram, tocaram música e cantaram canções durante o Holocausto. …? Esta frase parece completamente deslocada do contexto e da realidade à qual os judeus foram expostos durante os anos de 1938 a 1945. Como é possível cantar e tocar música em meio a um genocídio? No entanto, os judeus cantavam e tocavam música. Este é um fenômeno que não é suficientemente conhecido, embora, como veremos, fosse bastante difundido e veio a ser uma parte importante da estratégia de sobrevi vência e vestígios de estar vivo; também é muito importante para nós, décadas após o fim da guerra, de um ponto de vista educacional, espiritual e cultural, porque é uma parte integrante da nossa história e porque qualquer estratégia de enfrentamento da adversidade é um conhecimento importante. Quando olhamos para a música dos judeus durante o Holocausto, preci samos primeiro definir e distinguir dois tipos diferentes de atividade musical:
18 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI
A pergunta que não quer calar é: Por que cantar duran te um genocídio? Por que cantar enquanto o mundo estava colapsando e as chances de sobreviver não eram mais do que uma mera utopia? Em outras palavras, que função de sempenharam as canções e o canto durante o Holocausto? Para tentar responder a essas perguntas, analisaremos algumas canções e suas histórias: As fotografias deste artigo são do local e do monumento onde existiu o campo de concentração de Treblinka.
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• Há canções em todos os idiomas que os judeus falavam naquele momento: é claro que o corpus principal está em iídiche; mas temos canções em lituano, russo, ale mão, romeno, grego, húngaro, francês, ladino, italia no, alemão, servo-croata etc.
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 19 Nosso foco será: 2) A música criada por judeus por vontade própria e, mais especificamente, as canções que os judeus criaram e cantaram. De antemão, podemos enfatizar quatro pontos
•importantes:Hácanções de todos os países onde os judeus estive ram “vivos” durante o Holocausto: da Noruega à Gré cia e da União Soviética à França.

• Há canções de todos os lugares onde os judeus foram encontrados: cidades, aldeias, florestas, guetos, cam pos de trabalho e concentração, campos de extermínio e, em circunstâncias muito específicas, alguns Sonder kommandos1 testemunharam sobre alguns judeus can tando enquanto morriam nas câmaras de gás de Birke nau: principalmente o Shema Israel e hinos, entre eles o Hatikva.
• Essas canções foram criadas por mulheres, homens e crianças de todo o espectro socioeconômico-religioso -cultural-político.... No entanto, muitas dessas canções são anônimas.
A primeira é uma canção que aparentemente foi criada durante a segunda metade de agosto de 1942, no Gue to de Varsóvia. O nome da canção: “Treblinka”. Aparen temente, a melodia foi tirada de um tango bem conheci do de antes da guerra. Como tantas canções desse perío do, ela é anônima: “Não muito longe daqui, uma pequena vila. Na Ums chlagPlatz2, perto dos vagões, há um verdadeiro caos. Todos nós temos que entrar. Tão assustador! E, de repente, um grito! Uma garotinha não muito lon ge de sua mãe chora: ‘Você me deixou sozinha, por favor, fi que comigo! Fique comigo querida mamãe, volte Maminu, eu nunca estive sem você!’ A vila de Treblinka foi preparada para os judeus. Quem chega lá, permanece para sempre. Pais e mães, irmãos e irmãs são empurrados para as câma ras de envenenamento e esse é o seu fim”. Alguns antecedentes dessa canção: de 22 de julho até os primórdios de setembro de 1942, os alemães organiza ram uma enorme “Aktion” no gueto de Varsóvia, durante a qual deportaram 300.000 judeus do gueto para o cam po de extermínio de Treblinka. No início da “Aktion”, os judeus foram atraídos para a UmschlagPlatz pela SS com a promessa de receber 3 quilos de pão e 1 quilo de geleia. Foi-lhes dito que seriam deportados para o Leste para tra balhar em melhores condições do que as que haviam no gueto. Para as pessoas que estavam morrendo de fome, aquilo seria suficiente e os judeus vinham aos milhares sem saber o que os esperava na realidade. Mas, então, algumas coisas aconteceram: os judeus que estavam trabalhando na UmschlagPlatz perceberam que os trens estavam voltan do muito rapidamente, contrariando a história da depor tação para o Leste. Eles então notaram que pessoas idosas e doentes, bebês e crianças órfãs estavam sendo deporta das... as quais obviamente não iriam trabalhar. A essa altura, alguns judeus conseguiram escapar do campo, retornaram e contaram o que realmente estava acontecendo; ao mesmo tempo, o gueto subterrâneo, com a ajuda de trabalhadores ferroviários, enviou alguns ho mens para espionar. Eles não conseguiram entrar no cam po, mas relataram ter visto um pequeno acampamento no qual nenhuma comida ali chegava.... Os judeus que esta vam sendo deportados para lá tinham evaporado; havia apenas aquele cheiro terrível pairando sobre a área...
Ao ouvir a canção “Treblinka”, é possível entender toda a história em aproximadamente dois minutos: o caos que

reina na UmschlagPlatz, o terror antes de ser empurrado para dentro daqueles va gões, o grito ensurdecedor da pequena menina separada de sua mãe pela primei ra vez em meio a uma verdadeira catástro fe, saber que isto está acontecendo porque se é judeu, que não há como escapar e que a morte é o único destino. Outro ponto muito importante sobre essa canção específica: eu tenho 17 ver sões diferentes dela... Porque, se ela “nas ceu” no gueto de Varsóvia, ela “viajou” para a Alemanha, para a Belarus, para a Romênia, numa época em que os judeus eram mortos aos milhares todos os dias, quando os judeus não tinham nenhum meio de comunicação regular. A canção, como tan tas outras canções, voou sobre arames farpados, dos gue tos aos campos; temos testemunhos de judeus que ouvi ram falar do campo de Treblinka pela primeira vez através dessa canção. Esse é o caso da húngara Shoshana Kalish, que relatou ter escutado pela primeira vez sobre o campo de Treblinka enquanto estava no campo de Peterswaldau, em setembro de 1944, escutando uma menina judia po lonesa cantando a canção. (Nessa época, Treblinka já havia deixado de existir há muitoMastempo.)porque cantar uma canção sobre o desenrolar de uma catástrofe? Esta não é a forma “normal” das pessoas reagirem ante qualquer emergência. Antes de res ponder a esta pergunta, eu gostaria de dar outroLetraexemplo:deTzvi Garmiza, compilada por Shmerke Kaczerginski, em Lider fun di Getos un Lagern. Embora a melodia tenha sido emprestada da peça teatral “A mames harts” (Um coração de mãe), parece que a versão original é de fato uma popular canção polonesa com o mesmo tí tulo (“Serce matki”), de Szymon Kataszek e Zygmunt Ka rasiński.“ Eu Perdi Meu Marido/ Chega de lamúria,/ Minha vida logo chegará ao fim;/// Não tenho mais lágrimas para cho rar,// Ninguém quer me ouvir chorar./// Então me faça cho rar, eu lhe imploro,/ Você consegue entender minha dor?/ Meu coração está partido,/ Minha consciência me aflige,/ Eu quero que esta vida acabe./// Refrão 1 Alvejada e mor A canção Treblinka, como tantas outras canções, voou sobre arames farpados, dos guetos aos campos; temos testemunhos de judeus que ouviram falar do campo de Treblinka pela primeira vez através dessa canção.
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22 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI ta está minha mãe,/ Eu vi com meus pró prios olhos, Junto com meu pai,/ Havia uma vala gigante. /Eu perdi meu marido, e dei à luz naquele mesmo dia;/ A criança mal tinha visto a luz—/ Do meu seio para o túmulo,/ De alguma forma, por desgraça, o fato de ter ficado sozinha me salvou,/ A bala falhou, ela passou por mim,/ Eu fugi em meio aos prantos angustiados./ Agora na floresta, escondida,/ Eu ainda ouço meu bebê gritar! / Nascido naquele dia,/ Tira do de mim – Deus, foi essa a sua vontade? // Refrão 2 Oh, Deus da vingança,/ Onde você está neste momento? / Você pode ver dentro da minha alma,/ Ou será que você está cego? / Justiça: é o que não há por aqui, eu choro e su plico e lamento;/ Chega de “chorar em sua tenda” ”— o sa dismo governa esse nosso mundo”. Esta é, de fato, uma canção muito dura. Ela descreve uma situação insondável, uma Aktion na Lituânia duran te a qual uma mulher foi capaz de escapar de um assassi nato em massa, mas a um preço tão alto! Nessa canção, Tzvi Garmiza dá a essa mulher sua voz. Ela fala de seu es tado de espírito e descreve o horror que a atingiu. Nós a escutamos quando ela volta sua fúria e raiva a Deus por que nada neste mundo é capaz de explicar o que aconte ceu lá. É uma canção de fé, apesar da raiva e do questio namento. Ela não está rejeitando a Deus. Temos duas canções que cantam a história de terríveis acontecimentos que se desenrolam em velocidades diferen tes, mas de uma forma muito condensada, frontalmente, em uma melodia que era conhecida pelas pessoas perten centes a um mesmo entorno cultural. Para aprender e can tar as canções não era preciso muito esforço e paciência –tais qualidades não estavam disponíveis nos guetos e nos campos! –, não era preciso papel e caneta, algo que não se podia encontrar em um campo pois estavam proibidos.
Em um gueto, podia-se escrever: muitos judeus escre veram diários. Mas quando vieram as Aktions, os alemães saquearam e destruíram todos os pertences dos judeus. A canção foi uma maneira fantástica de contar a história: mesmo que o autor da canção tenha sido assassinado de pois, ela seguiu seu próprio curso, cantando sua mensagem. Muitas das canções compostas durante o Holocaus to contam uma história.
Portanto, antes de mais nada eu di ria que cantar foi um meio de comunicar o que estava acontecendo, o que era de suma importância quando todos os vestí gios de vida e morte judaica estavam sen do erradicados. Halina Birnbaum, uma sobrevivente e cantora, escreve: “As canções que foram compostas nos guetos e nos campos de extermínio foram a expressão da vida ali, do forte desejo de deixar vestígios, de manter um espírito humano. ... Tais can ções nos contam fielmente hoje o que aconte ceu ali, naqueles tempos, como as pessoas se mantiveram de pé frente ao abismo, quan do a morte e o massacre dominavam tudo sem limites e sem sentido”.3 O cantar assumiu ainda muitas outras funções. Por agora, a melhor maneira de tentar compreender o signi ficado e os papéis das canções e do canto durante o Ho locausto é ler o que alguns sobreviventes explicaram so bre o assunto: Um testemunho de Majdaneck: “À primeira vista, pa recia que os judeus gregos que víamos no campo de con centração tinham pouco em comum com aqueles seus ir mãos da Polônia, Hungria, Tchecoslováquia ou França. Seus cabelos, sobrancelhas e cílios eram negros, e sua pele era da cor de chocolate claro. Eles eram durões e teimo sos, e falavam muito rápido. Eles falavam entre si em gre go, e às vezes também em francês, espanhol, italiano ou mesmo hebraico, mas não conheciam nem o iídiche nem o alemão. Como resultado, os judeus que queriam falar com eles tinham que fazê-lo através de um companheiro de prisão judeu que por acaso falava tanto o iídiche quan to o hebraico.... Naquela primeira noite, duas vozes vin das da escuridão começaram a cantar; eram dois homens daquele contingente grego. Foi a primeira vez que ouvi mos um estilo de canto tão estranhamente próximo; foi direto ao nosso coração como as palavras de uma mãe, de uma irmã ou de uma amante.... Quando a canção termi nou, todos suspiravam profundamente. Embora não conseguíssemos entender a letra, a melodia havia chacoalha do até os recônditos dos nossos corações”.4
Myriam Ha’rel, nascida em 1924, foi levada com sua família para o Gueto de Lodz: “As palavras estavam espa lhadas pelas ruas, bastava recolhê-las. Não era minha ima A canção foi uma maneira fantástica de contar a história: mesmo que o autor da canção tenha sido assassinado depois, ela seguiu seu próprio curso, cantando sua mensagem. Muitas das canções compostas durante o Holocausto contam uma história.
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 23 ginação, as palavras estavam lá; eu só tinha que colocá-las no papel. Eu conhecia as melodias de antes da guerra. To das elas eram melodias felizes, eu não conhecia melodias tristes. Então, eu escrevi e me senti livre depois que as dei xei sair. Minha família as leu e depois as cantou.... Eram noites longas e escuras e todos nós estávamos famintos e não conseguíamos adormecer”. “Cantar tinha um papel importante na vida judaica. O povo judeu chegou a um estado de desespero tão profundo que só cantar poderia ajudar. Quando alguém canta, mesmo que seja uma can ção triste, sua solidão desaparece, ele escuta sua própria voz. Ele e sua voz se tornam duas pessoas. Cantar é uma manifestação de esperança. As pessoas antes de sua morte não lamentam, elas cantam. A canção é um choro, e de pois dela você se sente livre”.5 Ester Rafael, nascida em Corfu e deportada aos 16 anos para Birkenau em 1944, testemunhou: “Nós canta mos para os nossos companheiros de reclusão ao longo de três minutos. Três minutos durante os quais não trabalha mos. Três minutos lá, isso era uma grande coisa! Quando se canta, se tem a sensação de ser livre”. É algo que ninguém pode tirar de você. Quando eu canto, eu sou aqui lo que eu quero ser”. Muitos foram os motivos e os papéis que assumiram as canções durante o Holocausto. Mas acho que comuni car-se e cantar com outros, deixar uma marca, expressar a própria angústia, desespero e solidão e o próprio ser estão entre as causas e as funções mais importantes.
4 Paul Trepman, Among Men and Beasts, p. 156? In Jerry Silverman, The Undying Fla me, Ballads and Songs of the Holocaust (Syracuse University Press, 2002), p. 245.
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1 Sonderkommandos: eram os homens, principalmente judeus, que eram obrigados a trabalhar nas câmaras de gás e crematórios.
2 UmschlagPlatz: O ponto de partida em Varsóvia a partir do qual centenas de mi lhares de judeus foram deportados para campos de extermínio nazistas. https:// www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205896.pdf

Traduzido do inglês por Kelita Rejanne Cohen. Notas
5 Gil Flam, Singing for Survival: Songs of the Lodz Ghetto, 1940-1945 (University Il linois Press, 1992) p. 107.
Tamar Isabelle Machado Recanati nasceu na França e imigrou para Israel em 1971. Ela é bacharel em Ciência Política, Relações Internacionais e Psicologia, com mestrado em Musicoterapia e Mu sicologia. Sua investigação sobre a música dos judeus durante o Holocausto teve início há 26 anos e desde então nunca mais pa rou, vindo a fazer parte da equipe que criou o novo Museu do Ho locausto, inaugurado no Yad vaShem em 2005. Atualmente ela en sina e pesquisa para o Yad vaShem sobre os muitos temas relacio nados com a música e o Holocausto. Como hobby, ela também en sina História da Música Clássica Ocidental. Ela é da 2ª geração de sobreviventes do Holocausto, por ambos os pais.
3 Halina Birnbaum: Shirim Lifnei oumiToch haMaboul, p. 10.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 25
OS VIOLINOS DA ESPERANÇA Temos violinos que estiveram em Auschwitz. Que estiveram nos guetos. Que foram jogados pelas janelas dos trens que levavam os judeus para os campos. Nem todos os violinos estiveram na Shoá. Mas todos foram profundamente afetados pela Shoá.
C
Raul Cesar Gottlieb hegamos, Marina e eu, no endereço indicado em Tel Aviv, um prédio residencial comum. Descemos a escadinha que leva ao subsolo do prédio e abrimos a porta vermelha sem bater, conforme a recomendação recebida. Amnon Weinstein, um dos mais conceituados fabricantes de violinos de Israel, desvia o olhar de sua bancada de trabalho e diz: “Vocês devem ser os jornalistas brasileiros que marcaram hora comigo. Entrem, sejam bem-vindos”.Aoficinaestá atulhada de estantes, cada uma delas empilhando os violinos que ele está fabricando ou consertando. Muitas dezenas deles, o olhar não con segue achar um único espaço onde não haja um instrumento. Trocamos um pouquinho de conversa casual e logo mergulhamos no motivo da visita. Que remos entender o que são os “Violinos da Esperança” (Violins of Hope), o pro jeto que ele inventou e que compartilha com o filho. De onde provêm os violinos do projeto? De todo o mundo. Eu tenho muita experiência e confio muito no meu jul gamento. Percebo com facilidade se posso ou não acreditar na pessoa. Muitas pessoas, que ouviram que eu colecionava estes instrumentos, vieram aqui com seus violinos, violas e violoncelos. Para alguns poucos o contato acabou com eu olhando para a pessoa e depois para o instrumento e depois de novo para a
Fotos de Marina Ventura Gottlieb
26 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI pessoa e falando [numa frase bem israelense]: “Veja, ali há uma porta, vá até lá, saia e feche-a atrás de você”. Mas 99,9% das pessoas foram muito bem-vindas. Elas estiveram lá, na Europa, durante a guerra, e a história que elas contaram sobre suas famílias, sobre os instrumentos, me convenceram que aquele violino era um dos que eu es tava procurando. Por que este interesse nos violinos?
Veja: meu pai era um artesão nascido na Polônia que fabricava violinos. Ele também era um sionista e em 1938 ele e minha mãe vieram para Israel a partir de Vílnius. Eu nasci aqui em 1939. Durante a Shoá a minha família perdeu uma quanti dade enorme de membros, eu não sei precisar quantos, mas a estimativa do meu pai indica um número gigan te! Em torno de 400. Então, eu não queria tocar na Shoá. Meu pai teve um ataque do coração quando lhe contaram o que havia acontecido com a família dele. Então, eu ti nha medo do assunto. Mas isto mudou. Essencialmente porque em 1936 o Sr. Bronislaw Huberman fundou a Orquestra Filarmônica de Israel [naquela época chamada Orquestra Filarmônica da Palestina]. Huberman não sabia que a Shoá estava vindo, mas ele sabia que os músicos judeus estavam sendo escor raçados das orquestras da Alemanha nazista e quis ajudá -los [Amnon aponta para uma foto na parede atrás dele, onde se vê Huberman falando com Einstein, e nos explica que Huberman pediu ao cientista, e a tantos outros, para que o ajudasse a levantar os fundos necessários para o su porte aos músicos]. Os músicos que vieram pelas mãos de Huberman eram alemães, austríacos e poloneses e eles eram os melhores dos melhores dos melhores. Assim, a Filarmônica foi um su cesso desde o seu começo. O concerto inaugural foi regido pelo grande regente italiano Arturo Toscanini.
Em 1945 soubemos em Israel o que aconteceu na Eu

Cada um deles conta uma história. Temos violinos que estiveram em Auschwitz. Que es tiveram nos guetos. Que foram jogados pelas janelas dos Seis milhões de judeus perderam a voz na Shoá e estes violinos são a voz deles agora. Cada um destes instrumentos conta uma história.
ropa. Antes disso havia apenas rumores, não tínhamos certeza de nada. Mas de pois que tivemos certeza teve início aqui um enorme boicote a tudo que vinha da Alemanha, incluindo, é claro, instrumen tos musicais e seus acessórios. Os músicos que tinham vindo da Eu ropa haviam, obviamente, trazido consi go seus instrumentos e os melhores deles tinham sido fabricados na Alemanha. Muitos destes músi cos procuraram o meu pai e disseram: “Se você não com prar este violino eu vou quebrá-lo, ou queimá-lo”. Meu pai era um fabricante de violinos e sabia que não tinha havido problema algum entre os fabricantes de violi nos alemães e os judeus. Alguns haviam até mesmo tentado proteger seus amigos judeus. Além disso, para ele, que brar um violino era um quase sacrilégio. Então ele passou a comprar os violinos alemães trazidos para cá pelos músi cos judeus. Comprar e guardar. E por anos ninguém que ria ver estes violinos, ouvir falar deles, ter nada a ver com eles. Ficaram apenas aqui na oficina. Até que um dia um aluno meu, um alemão de Dres den, viu aquela quantidade de violinos primorosos, enfi leirados um ao lado do outro, cobertos por uma grossa ca mada de poeira, e me perguntou “por que isso?” Eu contei para ele a história toda. Ele nunca tinha ouvido nada so bre a música e a Shoá. E ele me pediu para fazer uma conferência na cidade dele so bre os músicos judeus e seus instrumentos alemães. Eu não quis fazer a conferência. Mas ele não se conformou. Sentou aqui [aponta para o banco onde Marina está sentada] e ficou repetindo, faça, faça, faça. Fui para Dresden e fiz a palestra de duas horas para a Associação Alemã de Fabricantes de Violinos e Arcos. Eles ficaram chocados. Eles não sabiam nada sobre o que havia acontecido. Você sabe, na Alemanha Oriental [onde fica Dresden] não se fa lava sobre a Shoá, então aquilo realmente os abalou imen samente. Me perguntaram: “Você tem certeza que aqui lo aconteceu?” “Existem provas?”, “Como foi possível?” e coisas assim.
Na volta para Israel, dei uma entrevista no rádio con tando sobre a palestra e pedi para quem tivesse um instrumento ou a história sobre um instrumento usado na Shoá que, por favor, me procurasse.
E aí começou uma bola de neve. Um violino, dois violinos, cinco violinos, um violoncelo, duas violas, e assim por diante. Hoje temos 89 instrumentos na coleção.

Mas o que é o “Violinos da Esperança”?
trens que levavam os judeus para os campos. Nem todos os violinos estiveram na Shoá. Mas todos foram profundamente afetados pela Shoá. A maioria foi trazida por judeus, mas nem todos. Vejam, temos na coleção o violino de um policial não judeu, que era músico amador e que falsificou mui tos documentos para salvar judeus. Ele é considerado um dos “justos entre as na ções” pelo Iad Vashem. Com certeza este violino também conta a história da Shoá. Na Holanda havia uma família judia que era vizinha de uma família não judia. As mulheres se divertiam tocando violino juntas. Antes de ser deportada, a senhora judia pediu para a amiga guardar o violino dela até que ela voltas se. Mas ela nunca voltou. Um dia a amiga ouviu falar sobre o Violinos da Esperança e veio, junto com toda a família, me entregar o instrumento aqui em Tel Aviv. Em outra ocasião recebi um violino de um senhor que me disse ter tocado na orquestra do campo, enquanto se lecionavam os prisioneiros para a câmera de gás ou para o trabalho escravo. Ele me disse que nunca mais iria to car violino algum, mas queria consertar aquele para que seu neto pudesse tocar nele. Quando abri o instrumento vi que havia um pó preto dentro dele. Só havia uma ra zão para aquele pó estar ali: ele tinha caído das chaminés do crematório.
umaMaspartepalavras.sentimentosseuscomUmaboanãofalanada.todos–músicos,plateia–demonstramemoçãoprofunda.
Seis milhões de judeus perderam a voz na Shoá e estes violinos são a voz deles agora.Cada um destes instrumentos conta uma história. São as vozes que restaram para aqueles que partiram. São dezenas de histórias e elas ainda não pararam de chegar. E eu ainda não tenho nenhum violi no que esteve no Brasil, mas quem sabe um dia…[diz Amnon sorrindo].
Este é o projeto que eu fiz com o meu filho Avshai para usar estes instrumentos históricos. Fazemos concertos com eles em todas as partes do mundo. Nós não vendemos os violinos. Levamos eles – um, dois, vinte, a quantidade que for combinada – para o local e organizamos concertos onde músicos locais – os melhores músicos locais – usam os instrumentos. Depois fazemos palestras sobre eles, fa lamos sobre a música na Shoá em todos os seus aspectos.

Nem todas as pessoas expressam
E vocês têm que estar num desses eventos para enten der o que acontece lá.
Meu filho, que é quem faz toda a logística da operação, me disse ontem que, assim que os céus estiverem abertos de novo [nossa entrevista se deu no final de 2020, no meio das restrições da Covid-19], nós estaremos ocupados até 2023. Só a partir dali teremos datas disponíveis.

Raul Cesar Gottlieb é o diretor de Devarim. Apesar do que falou Amnon, ele não é jornalista e sim engenheiro.
Nem todas as pessoas expressam seus sentimentos com palavras. Uma boa parte não fala nada. Mas todos – mú sicos, plateia – demonstram uma emoção profunda. A maior parte dos músicos, quando devolvem o instrumen to no qual tocaram, têm os olhos úmidos. Alguns choram. Volta e meia temos problemas. “Posso ficar com o violino mais um pouco?” “Quero levar ele comigo.” “Não consi go me separar dele.” Mas realmente nós jamais vendemos os instrumentos. Quais os concertos que mais te marcaram? O primeiro concerto foi num lugar inusitado: em Is tambul. Fui fazer um evento de música clássica lá e co nheci uma pessoa maravilhosa, o filho de um Cádi [clé rigo muçulmano]. Contei a história dos violinos para ele e tivemos juntos a ideia de fazer um concerto usando-os. Foi um sucesso, fizemos mais um concerto lá e depois me convidaram para Paris. Tivemos medo de que não haveria ninguém na audiência, mas depois de uma pequena notí cia na televisão, a sala encheu. Depois fizemos um concerto em Jerusalém e o projeto foi ganhando corpo. Fizemos um concerto com a Berliner Philarmonic, tal vez a melhor orquestra do mundo. Eles me disseram que houve uma lista de espera não atendida com mais de 1.300 pessoas. Lá me deram um prêmio superprestigioso ao nos so projeto.Cadaevento é diferente do outro. Em alguns temos um solista apenas tocando o instrumento, em outros, parte da orquestra, em outros, toda a seção de cordas. Tocamos em igrejas, sinagogas, salas de concerto, parques, em todas as partes. A única coisa que não varia é o uso dos instrumen tos. E também o fato que lotamos todos os lugares. O concerto que mais me impactou foi feito em Bir mingham, no estado de Alabama, nos Estados Unidos. Houve um ataque terrorista numa igreja lá e quatro meni nas morreram. Fizemos um concerto em lembrança a essa tragédia. Todas as cores da humanidade estavam presentes nesse concerto. O ataque foi contra os negros e nós está vamos todos juntos no repúdio ao ataque. O maestro era negro, o solista era negro, tocando um violino usado por um judeu na Shoá, e eu estava celebrando junto com eles a esperança por um mundo melhor. Isto é algo que você experimenta apenas uma vez na vida. * * * Marina e eu saímos para a rua com seu movimento normal de começo de noite fria em Tel Aviv. Olhamos para o prédio atrás de nós e nos certificamos mais uma vez de que era um prédio comum, banal. Mas agora sabíamos que ele escondia em seu porão um tesouro desconhecido pelos que passam to dos os dias por ali. Assim é Israel: cada porta tem o potencial para revelações estonteantes. Veja mais sobre o Violinos da Esperança em: a) https://www.violins-of-hope.com; b) YouTu be, buscando por Violins of Hope. Garanto que vale a pena!

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32 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI
O que se propõe numa antologia, ainda mais traduzida, é um diálogo, até uma discussão muito interessante ao eventual leitor, que, se devidamente provoca do, passará a reagir como um legítimo crítico. Assim como o tradutor é sempre um autor de segunda mão, o leitor também pode ser leitor de primeira mão, tendo lido o original, tem direito à sua própria interpretação.
Traduzi poemas distribuídos entre longos espaços de tempo, começando pe los poetas de Alandalus, Sefarad, na Idade Média: Shmuel haNaguid, Samuel, o Príncipe, ministro de Granada, guerreiro, erudito, sábio etc., com um poe ma de tom filosófico. Continuamos com Shelomô Ibn Gabirol, filósofo e poe ta, apresentando um pequeno poema que, na graciosidade, celebra o Criador sobre a temática do artista limitado à imitação das coisas produzidas, entre as quais o poeta e qualquer outro artesão, todo inventor, intelectual, o ser huma no... a partir de versículos proféticos. Yehudá haLevi, um dos mais conhecidos dos grandes poetas daquele tempo, está presente com um texto no qual tema tiza o exílio, a nostalgia por Sion e a bênção divina. Depois de um salto imenso, chegamos a Bialik, que é um marco na histó ria da modernidade da poesia hebraica. O primeiro poema é de temática sub jetiva, o segundo fala do pogrom de Kishnev – neste caso, tomei a liberdade de fazer parceria aberta com o escritor –, não é atitude herética, mas tentativa de escrever ecoando os poemas bíblicos, sem métrica e rima, até para fugir ao ris
O que se propõe numa antologia, ainda mais traduzida, é um diálogo, até uma discussão muito interessante ao eventual leitor, que, se devidamente provocado, passará a reagir como um legítimo crítico.
omo sabemos, antologias são normalmente incompletas. Dependem do gosto, do foco do antologista, da encomenda que lhe fazem, se for o caso, o que significa que qualquer antologia, por mais despreten siosa que seja, tem certa marca autoral, que se acrescenta à época do tradutor e ao seu próprio modo de escrever. Então, qualquer antologia, breve ou extensa, jamais agradará a todos os leitores que conheçam determinada literatura, tenham lido algo que ficou na memória afetiva, daí a pergunta fre quente: mas por que este poema e não aquele, por que diz assim e não assado. Porque na verdade todos nós temos a nossa leitura a partir de um texto dado.
Moacir Amâncio C
UMA ANTOLOGIABREVE POÉTICA
Disse ela: alegra-te por ter chegado Aos cinquenta anos neste mundo teu –Nem sabia ela, não vejo cisão Entre o dia de Noé e este meu. Nada tenho além da hora presente, que, qual nuvem, foi, desapareceu.

O inverno escreveu com tinta de chuva E a pena de raios nas mãos das nuvens A carta no jardim de azul e púrpura, Jamais dessa maneira o poeta escreve. No tempo do amor a terra ao céu Bordou estrelas num canteiro breve.
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 33 Fcscafeine/iStockphoto
SHMUEL HANAGUID (993-1056)
IBN GABIROL (1021-1055)
YEHUDÁ HALEVI (1075-1141) A pomba dos exílios A pomba nos exílios pelos bosques / voa até o estertor de suas forças, A voar e a esvoaçar ao derredor / do Amado a voltear entre os tormentos. Mas do cálculo antigo se envergonha / por pensar era o termo de mil anos. Punia-lhe o Amado com os longes / fazendo-a a sofrer até mil mortes –Então disse, Teu nome esquecerei, / e então grassou-lhe o fogo nas entranhas. Por que meu inimigo Ele seria? / E a sede a desejar a última chuva. Mas com todo o esperar a alma anseia – / na glória de Seu Nome ou nos exílios. Pois o Senhor virá, jamais se cala – / cercado no estalar da glória em chamas. –
SHELOMÔ
CHAIM NACHMAN BIALIK (1873-1934)
N.T. Inspirado no pogrom de Kishnev ocorrido nos dias 3 e 7 de abril de 1903: 47 ou 49 mortos, 500 feridos, além da destruição provocada pelos agressores. Trata-se a rigor de uma “parceria“, pois evitou-se a métrica e a rima, sendo que, além disso a metáfora da “cárie“ no penúltimo verso é do tradutor.
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DAVID VOGEL (1891-1944)
Espadas atravessam o cobertor, embaixo não há ninguém. Balança o berço por si mesmo, nele uma criança morta. A cada mil anos vem uma velha da terra condenada, olha uma vez na janela e se vai.
YONA WOLLACH (1944-1985) Deixa que as palavras Deixe que as palavras façam em você deixa que elas seja livre elas penetrarão bem fundo fazendo formas sobre formas formarão em você aquela vivência deixe que em você façam as palavras elas farão como quiserem fazendo formas novas na sua coisa farão na coisa sua a mesma coisa exatamente que elas são a coisa que farão você entenderá bem que elas vão reviver em você aquela vivência e seu significado como natureza pois elas natureza são e não invenção e nem descoberta que sim são natureza farão a coisa natureza em você como dar sexo é vida para a palavra deixa que em você façam as palavras
Sobre a matança Céus, implorai piedade por mim! Se há um Deus em vós e se em vós há um caminho até Ele –E eu não O encontrei –Orai por mim! Eu – meu coração morreu e não há mais prece em meus lábios, E já me abandonaram as forças e a esperança se foi –Até quando, por quanto tempo, até quando? Carrasco! Eis o pescoço – vem e mata! Degola-me como a um cão, teu é o braço e teu é o machado, E para mim toda a terra é um patíbulo –E nós – nós somos a parte fraca! Meu sangue é nada – golpeia o crânio, e o sangue da chacina, Sangue dos que ainda são de peito e dos velhos, estará em tuas vestes –E jamais sairá, jamais. E se há justiça – que apareça agora! Porém se vier após minha destruição Sob os céus –Por favor, que seu trono seja violado! E que o mal eterno corrompa os céus; E vós, perversos, nesta agressão E no vosso sangue vivei e vos purificai. E maldito seja quem diga: vingança! Vingança como esta, vingança do sangue de uma criança, Ainda não foi criada por Satã. E que o sangue penetre as profundas! Que o sangue penetre até o fundo da treva, E devore na escuridão e seja cárie De todas as fundações desta terra podre.

co de embelezar um tema que é a própria negação de qualquer conceito de bom e de belo. Bialik rimou, de acordo com o seu tempo, mas essa é uma questão que se impôs de maneira definitiva no correr do século 20. Em seguida, David Vogel, poeta modernista, pioneiro do modernismo hebraico, nascido na Rússia e morto, ao que tudo indica, em Auschwitz. O poema escolhido não é sobre a Shoá, mas sobre a guerra, e se aplica às brutalidades cometidas roti neiramente ao longo da história humana. Num segundo salto, menor que o anterior, chegamos a um dos mais interessantes poemas de Yona Wollach, que viveu apenas 41 anos e deixou obra marcante, polêmica e que provoca inquietações até hoje. No poema “Deixa que as palavras”, Yona, que se dizia mística – ou pelo menos a mística está presente na sua poesia, como no texto escolhido, em que a autora invoca a Palavra Criadora capaz de sempre renovar nossa existência física e espiritual. Passa mos por Ronny Someck, nascido em Bagdá e levado pelos pais a Israel ainda muito pequeno, e que se tornaria poeta traduzidíssimo, sendo considerado grande representante da arte poética hebraica atual. Someck situa-se em Israel, mas sempre aberto ao diálogo com a cultura universal, no caso do poema escolhido, a da língua portuguesa na figu ra de um dos seus maiores poetas. Em outra demonstração da universalidade dos poe tas hebraicos (que escrevem em hebraico) da atualidade, uma composição de Amir Or, na qual transparece seu co nhecimento e diálogo existencial com a poesia japonesa. Cada trecho pode ser visto como um poema em si. Depois, amostra da poesia de Tal Nitzán, outra autora tam bém muito traduzida, cujos poemas falam tanto da reali dade israelense quanto da realidade da mulher e do ho mem de qualquer ponto do planeta – precisa mais? O li vro Ata (Editora Record), reúne diversos volumes dos poe mas de sua autoria. Moacir Amâncio possui graduação em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero (1975) e douto rado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Univer sidade de São Paulo (2001). Atualmente é professor titular da Uni versidade de São Paulo. Tem experiência na área de Literatura e Cultura Judaica, Literatura Brasileira, jornalismo, atuando principal mente nos seguintes temas: poesia, poemas, cinema, judaísmo, li teratura e artes plásticas.
Carta a Fernando Pessoa
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RONNY SOMECK (1951-)
Tu és tão parecido com um dos guardas do jardim zoológico que havia na Rua Shelomô HaMêlech, perto da casa onde desenhei guepardos na parede.
Ele, assim eu acreditava, sabia citar em panterês as leis da floresta aos gatos que nasciam com pelagem dourada, calar-se em elefantês sob as presas de marfim, e até falar à pavoa sobre a beleza dela na língua cujas cores estão sempre em pé.
Numa olhadela ele sabia dobrar a grade de aço e tirar com as próprias mãos a coroa de rei da juba dos leões tão facilmente como tu despias as palavras das vestes de realeza.
Pena que não vos tenhais se conhecido, mas deixa imaginar-te escondendo no paletó dele as linhas de abertura da poesia que talvez escreverias em sua honra.

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AgoraIsso isso tem vida malignaprópria,vida própria, o conhecido e o desconhecido não têm domínio sobre ele, e se for contido voltará e irromperá, sempre mais agarrandodestrutivo,mais forte com a mão imaginária a garganta não imaginária, e não há nada bastante claro que separa isso do que não é isso. Às vezes não há nada que não seja isso.
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Lições cedo1 pela manhã a língua do farfalhar dos galhos ao vento eu quero aprender sopra2 também em mim ensina-me a farfalhar palavras ao vento estende3 os meus galhos ensina-me a ser a árvore que eu sou do4 fundo podre ao perfume das flores meu bom peso – minha duração, minha vida folhas5 se elevam folhas caem e eu
TAL NITZÁN (1960-)
AMIR OR (1956-)




pesar dos inúmeros escritos acerca da memória, a ars memoriae tem seu início com Simônides de Ceos, maior autor de epigramas na Gré cia antiga, e criador da Mnemotécnica, ou seja, da prática dos pro cessos de memorização.
Nas descrições de Cícero, de Quintiliano e, sobretudo, em Ad Herennium, vemos algumas histórias bastante ilustrativas das realizações de Simônides. Entre elas, uma bastante comum: a do banquete em homenagem ao pugilista Skopas. Durante a recepção, Simônides, também conhecido por sua retórica elogiosa, fez um discurso bastante acalorado em ho menagem ao esportista e a outros que lá estavam. Assim que terminou, porém, foi chamado à porta por duas pessoas que queriam lhe falar.
A
A experiência de narrar os traumas sociais e individuais no século XX passou a ter grande repercussão sobretudo a partir do exemplo paradigmático dos testemunhos dos sobreviventes da Shoá durante o julgamento de Eichmann, em Israel, em 1961.
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 39 Carolina Sieja Bertin
Ao chegar à soleira do salão, Simônides não encontrou ninguém; mas logo compreendeu o que estava acontecendo: o salão havia desabado matando to dos. Porém, por conta de seu discurso tão belo, os deuses o recompensaram, salvando-lhe a vida. Além disso, o poeta era necessário por conta de sua habi lidade técnica no processo de rememoração: o teto da sala de recepções caíra com tamanha violência sobre os convidados que eles ficaram totalmente des figurados e irreconhecíveis. Simônides, o único sobrevivente, por conta de sua habilidade em rememorar, pôde nomear cada um dos cadáveres: na medida em que se recordava exatamente do local onde cada conviva ocupara, todos pude ram ser identificados e enterrados com honras fúnebres. Simônides, inclusi ve, foi o poeta grego que se dedicou grandemente à história da entidade Mnemosine. Segundo ele, foi ela quem descobriu o poder da memória e que deu nomes a muitos dos objetos e conceitos usados para fazer os mortais se enten derem enquanto conversavam. Sem as habilidades dadas pela entidade, a co municação não aconteceria, pois não teríamos como compartilhar o mesmo nome para as coisas.
A LITERATURA COMO CHAVE TESTEMUNHAL
Desde os primórdios da civilização moderna, o processo de relembrar envol ve as duas vias do processo de comunica ção: os discursos elogiosos e as benfeito rias; e a necessidade de preservar a memó ria dos que já pereceram. A base da me mória seria, nesse contexto, o equilíbrio entre a vida e a morte.
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A experiência de narrar os traumas sociais e indivi duais no século XX passou a ter grande repercussão so bretudo a partir do exemplo paradigmático dos testemu nhos dos sobreviventes da Shoá durante o julgamento de um dos líderes nazistas Adolf Eichmann, em Israel, em 1961 – que, aliás, sofreu inúmeras críticas, as quais apon tavam para a supervalorização do testemunho como meio de prova, ao invés dos documentos. Em seu livro O In consciente Jurídico: Julgamentos e Traumas no Século XX (2014), Felman argumenta que o Direito e a historiogra fia tradicional tendem a se pautar nos documentos, já que enquanto a testemunha está sujeita à parcialidade, ao per júrio, portanto à mentira e ao erro pela falha na rememo ração, o documento possibilitaria uma leitura objetiva –um veredito definitivo para a história. Durante o depoi mento do autor K-Zetnik, a dificuldade de representação de um evento traumático diante das emoções humanas fica ainda mais evidente: “Isso é uma crônica do planeta Auschwitz. Eu estive lá por aproximadamente dois anos. O tempo lá não é como é aqui na terra. Cada fração de minuto lá passava em uma escala diferente de tempo. E os habitantes desse planeta não tinham nomes, eles não tinham pais ou filhos. Lá, eles não se vestiam da maneira que se vestiam aqui; eles não haviam nascido lá e não davam à luz; eles respiravam de acordo com diferentes leis da natureza. Eles não viviam, e também não morriam – de acordo com as leis deste mun do” (minha tradução). Antes mesmo de finalizar seu depoimento, incapaz de responder às pergun tas do promotor, a testemunha entra em colapso. Frente ao irrepresentável e à incapacidade de testemunhar, ela desmaia. Auschwitz, então, torna-se o elemento in verossímil daquela realidade por excelên cia, mas que, ao mesmo tempo, deve ser testemunhado. Não falar sobre a Shoá se ria criar ao redor do evento uma aura im penetrável, seria tirá-la do contexto hu mano dentro da qual ocorreu e, conse quentemente, possibilitar que ocorra no vamente (Agamben, 1998).
Com o advento das guerras mundiais, a experiência humana, como então era conhecida, sofre mudanças radicais: em um mundo onde a violência reina, as ex periências perdem o viés narrativo. A pró pria morte adquire um outro espectro: se antes se dava com o moribundo em sua cama, recebendo a atenção de todos ao seu redor, com suas últimas palavras sen do ouvidas e respeitadas, agora, ela perde sua autoridade. Pessoas são dizimadas su bitamente, sejam nas trincheiras, ou nos campos de concentração, sem deixar traços. Para além das sombras, agora, são apenas cinzas.
No artigo em questão, apresentarei de que maneira as representações culturais contemporâneas (como as ilus trações do cartunista Art Spiegelman) trazem a imagi nação como elemento estimulador da narrativa do trauma. É precisamente o ato de imaginar que proporciona rá um auxílio do simbólico para enfrentar o buraco ne gro do real do trauma, fazendo com que a narração en contre mais elementos que possam lhe dar vazão. Nesse sentido, retomaremos o que Derrida (1998) chamou de aproximação entre o campo testemunhal e o da imaginação, já que, segundo o autor, sendo a literatura fruto das ex periências humanas, ela mantém um constante compro misso com a vida, e que, por isso, encontra variados ca minhos para o encontro com o real. Tais possibilidades seriam o seu teor testemunhal Há de se apontar algumas problemáticas importantes no que tange a literatura e o testemunho. A primeira de las chamaremos aqui de paradoxo da singularidade. Todo testemunho é único e insubstituível, tanto com relação à sua estrutura, quanto ao seu conteúdo; ele anuncia algo excepcional. É essa singularidade, porém, o que corrói a relação entre o discurso testemunhal e o simbólico tra zido pela literatura, afinal, sendo a linguagem um cons tructo de generalidades, ela é feita de símbolos universais. Sendo assim, o testemunho como evento singular desafia Todo testemunho é único e insubstituível, tanto com relação à sua estrutura, quanto ao seu conteúdo; ele anuncia algo excepcional. É essa singularidade, porém, o que corrói a relação entre o discurso testemunhal e o simbólico trazido pela literatura, afinal, sendo a linguagem um constructo de generalidades, ela é feita de símbolos universais.
Detalhe da ilustração da guarda de The Complete Maus, da Pantheon Book New York, 2011.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 41 a linguagem de quem fala e do ouvinte. Mesmo que tal singularidade seja transposta, depara mo-nos com a segunda problemática: a tentativa (fracas sada) de narrar o mundo moderno emperra sua passagem e tradução para o simbólico, fazendo com que o testemu nho aconteça quase que primordialmente no plano da li teralidade, como veremos no depoimento de Fred O.:
“Houve uma situação que acho que nunca se repetiu na história. Nunca será (sic). Isso nunca vai acontecer novamen te. A situação dos piolhos. As pessoas estavam ... as pessoas usavam duas ou três peças de roupa, uma em cima da outra, porque se tivessem que se mudar para ir para outro lugar, é isso que poderiam carregar. E, especialmente, isso ficou ain da pior mais tarde, quando deixei Varsóvia e fui para Hru bieszow novamente. É por isso que essa fantástica, enorme e incrível epidemia de tifo e febre tifoide. Se você não tivesse imunidade à exposição anterior ao tifo, você tinha que pe gá-lo porque os piolhos estavam cobrindo tudo. Mais tarde,
em Hrubieszow, vi uma vez algo que ainda vejo depois de 40 ou 50 anos. Este pobre homem veio e começou, eu tinha um tipo de escritório com cerca de um metro por um metro e meio, um pequeno espaço. Este homem veio cuspindo sangue ou algo assim, tuberculose, provavelmente, não me lembro. E eu disse ‘Tire a roupa’. E eu estava sentado em um canto da sala e ele estava entrando pela porta. E ele começou a se des pir. Ele tirou um casaco, uma capa externa e depois uma ja queta, e depois um colete, e depois outra jaqueta e várias pe ças de roupa e continuou colocando-as no chão. E então eu o vi, disse: ‘O que ele está vestindo?’ Tirei meus óculos, sou um pouco míope, e havia um casaco, completamente, um casa co completo de milhares de... piolhos cobrindo seu corpo. Os piolhos são branco-acinzentados, você sabe. Eles estavam bri lhando. Foi algo que depois de quarenta anos ainda me as sombra. Esta visão de um homem coberto por centenas, tal vez milhares de piolhos rastejando sobre ele e uns sobre os ou tros” (tradução minha).
deguardadailustraçãodaDetalhe MausCompleteThe 2011.York,NewBookPantheonda,

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 43
1 Ao citarmos o termo “metáfora”, estamos retomando os trabalhos de George La koff e Mark Johnson, Metaphors We Live By (2003), bem como a obra Metaphor: A Practical Introduction (2010) de Zoltan Kovecses, que a concebe como um filtro simbólico através do qual passam nossas visões de mundo. (tradução minha)2 (Young, 1990, p. 91).
2 “Metaphor, Language and Culture”. In: ci_arttext&pid=S0102-44502010000300017.http://www.scielo.br/scielo.php?script=sAcessoem17desetembrode2018.
O trecho acima faz parte do testemunho de Fred O., médico polonês re sidente em Varsóvia. O. não é falante na tivo da língua inglesa, apesar disso não se mostrou um problema durante seu de poimento: seus fatos são apresentados de maneira coesa, os sujeitos e objetos bem definidos e o tempo verbal claramente es tabelecido. Entretanto, não consegue dis farçar as pausas e as tremulações de sua voz quando a lógica parece faltar nos fatos que apresenta: um colete de piolhos? Tan tos piolhos que era possível se confundir com uma parte da vestimenta? Uma vi são tão grotesca que ainda o impressionava depois de 40 anos, e cuja narração tor nava a própria linguagem desconfortável, como se fosse inadequada. O trecho ilustra a falta de simboliza ção da linguagem. O desconforto causa do pela cena do homem coberto de pio lhos é principalmente devido ao fato de que não há espaço para uma metáfora, ou seja, a linguagem descreve aquilo que real mente é, sem lugar para a imaginação1; aqui aparece o que chamamos previamente de ruptura com o simbólico. Acerca de tal temática, Ja mes Young (1990) advoga pela necessidade de inserir o ge nocídio na esfera da simbolização, sob a alegação de que: “Deixar Auschwitz fora da metáfora seria deixá-la com pletamente fora da linguagem: ela foi conhecida, entendi da e respondida metaforicamente na época por suas vítimas; foi organizada, expressa e interpretada metaforicamente por seus escritores; e agora está sendo lembrada, comentada e tendo significado histórico metaforicamente por estudiosos e poetas da geração seguinte. Se levada ao seu fim literal, uma injunção contra as metáforas de Auschwitz colocaria eventos fora da linguagem e significando completamente, assim mistificando o Holocausto e realizando após o fato precisa mente o que os nazistas esperavam realizar através da sua própria – muitas vezes metafórica – mistificação de evento”
O narrador ainda tenta tornar seu tes temunho “aceitável” para a imaginação humana por meio da contextualização dos eventos: explica sua profissão, onde trabalhava, suas condições precárias, o frio que fazia, a consequente necessida de de usar várias camadas de roupa. Tudo isso para que, dois minutos depois, seja sugado para o momento em que se depa ra com o homem coberto de piolhos e se dê conta de que, mesmo após todos esses anos, o episódio não o possibilita descre vê-lo além da experiência sensório-visual: os piolhos brilhavam, rastejavam uns so bre os outros. A realidade aparece de forma tão crua, de forma tão inesperada em sua vivência, que só pode ser to mada em sua concretude: “a visão de um homem coberto por dezenas, talvez centenas de piolhos, rastejando sobre ele e uns sobre os outros”.
A opção pela ilustração permite que Spiegelman mantenha o seu trabalho dentro do que Rothberg denomina de realismo traumático, ou seja, algo que se mantém entre o antirrealismo e o realismo total, entre o surreal e o banal.

Em Maus, os quadrinhos do escritor Art Spiegelman, de 1991, ao se deparar com a mesma situação na história de seu pai, munido também de seu texto visual, o autor tem como desafio imaginar e representar uma vivência que não lhe pertence – curiosamente, similar ao caso de Fred O.: seu pai conta que, em uma das piores fases de sua trajetó ria, o piolho causava grande problema entre os prisionei ros, já que deles provinha o tifo. Sendo assim, era necessá rio mostrar a camisa limpa para ganhar o direito de se ali mentar, como mostra a imagem da página 253 do livro (re produzida à esquerda na página 44 da revista).
A problemática da narrativa acima de Fred O. ocorre no momento em que o narrador define seu evento como indeci frável, como algo que ainda o assombra. Para o narrador, ele não tem lugar no sim bólico, pois quando O. alerta que não há como fugir do tifo ou da febre tifoide, o discurso é tomado em sua forma literal, já que as condições do gueto eram tão abje tas que todos os habitantes eventualmente contrairiam uma das duas doenças.
Em seus quadrinhos, Spiegelman aproxima-se do rela to histórico através da ilustração ampliada e crua do pio lho, que aparece quase como ponto central da página para o qual os olhos do leitor são levados automaticamente –ou pelo menos não conseguem evitar a presença do ani mal. O autor recria a sensação de inevitabilidade através da disposição do piolho em seus quadrinhos, já que não há como desviar o olhar da figura que aparece no centro, praticamente em primeiro plano. A frequência com que a palavra “Piolho” é repetida aumenta a sensação de oni presença do piolho, que culmina com a frase de Vladek: “Tudo era piolho”. É, então, por meio de sua ilustração, que Spiegelman vasculha o under-standing do discurso de seu pai, trazen do à tona a complexidade paradoxal do campo de concen tração: os prisioneiros agora se tornam os próprios inse tos, por conta das péssimas condições dos campos de con centração. O sistema nazista, que pregava os judeus como uma raça, mas certamente não humana, logrou êxito em transformar o mundo em algo que encaixasse em sua visão deturpada de um mundo no qual uma comunidade po deria ser ressignificada como algo que precisa ser aniqui lado. Maus, então, perpassa o literal histórico e é alimen tado por ele, mas não se limita a isso – prisioneiros são re presentados de formas diferentes, dependendo da manei ra com que o autor busca dirigir nosso olhar para diferen tes detalhes.Senoprimeiro quadrinho a morte é o elemento prin cipal, possível de ser vista na cabeça caída dos ratos que as seguram com as mãos, ou na aparência esquelética do rato à esquerda, o segundo quadrinho é predominado pela anulação do prisioneiro, o qual aparece totalmente em preto, de forma que apenas seu uniforme ganha luz e variação de cores. Isso se alinha ao que narra Vladek quan Maus, de Art Spiegelman, páginas 253 e 255.

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Bibliografia Agamben, Giorgio. O que Resta de Auschwitz: O Arquivo e a Testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. Benjamin, Walter (1985). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 8ª edi ção. São Paulo: Brasiliense, 2012.
Não há, por assim dizer, uma busca por uma represen tação do real em Maus. O que Spiegelman faz é criar in dicadores, ou seja, elementos que movem o olhar do leitor para o vazio do real: a transformação do humano em rato; a “onipresença” do piolho, por meio da ilustração no cen tro da página; a ausência da cena violenta ao final da pági na 255 do livro (reproduzida à direita na página 44 da revista), as diferentes camadas textuais e imagéticas ao lon go de toda a obra, etc.

Na tentativa de cobrir tal ausência da simbolização, devido à literalidade extrema do testemunho, as gerações posteriores se voltam para o trabalho da imaginação. Des sa forma, é possível proporcionar ao testemunho outras formas híbridas de representação, como evento que oscila entre a literalidade traumática e a literatura imaginativa, bem como sua tradução em termos simbólicos.
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 45 do especifica que a comida seria dada apenas aos que mostrassem o uniforme limpo, bem como ao que Spiegelman sugere: que apenas o uniforme importa na fila da comida. Por meio de seus quadrinhos, Spiegelman toma por base o relato documental singular do pai e extrai dele a universalidade histórica do evento – no caso, a crise de piolhos que ocorreu na febre tifoide em massa. Ao mes mo tempo, encontra outros caminhos simbólicos para a sua representação própria. Ao final, Maus se torna um re lato particular, uma memória construída por duas gera ções, através da fusão entre a memória individual do pai e a memória pública do filho. A opção pela ilustração per mite que Spiegelman mantenha o seu trabalho dentro do que Rothberg (2000) denomina de realismo traumático, ou seja, algo que se mantém entre o antirrealismo e o realismo total, entre o surreal e o banal. Ao optar por ratos antro pomorfizados no lugar das figuras humanas, o autor esta belece uma espécie de “contrato” com o leitor: proporcio na uma sensação de coerência, desde que esta seja enten dida como ilusória e ficcional – afinal, apesar da similari dade dos traços cartunizados com as imagens documen tais, as ilustrações não figuram como real histórico em si.
Felman, Shoshana. O inconsciente jurídico: julgamentos e traumas no sé culo XX – Volume 01. São Paulo, Edipro: 2014. Fred, O. Vídeo de Fortunoff Video Archive for Holocaust Testimonies. Yale Univeristy Library, 1998. Hirsch, Marianne. “Family Pictures: Maus, Mourning, and Post-Me mory”. In: Discourse 15, 1992–93. Lakoff, George; Johnson, Mark. Metaphors We Live By. Chicago: Uni versity of Chicago, 2003. Spiegelman, Art. (1991). Maus – A História de um Sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Rothberg, Michael. Traumatic Realism – The Demands of Holocaust Re presentation. Minnesota: Univ of Minnesota Press, 2000. Seligmann-Silva, Márcio. “Antimonumentos: trabalho de memória e de resistência”. In: Revista Psicologia USP. Número 01, vol. 27, 2016. São Paulo. In: Young,pusp-27-01-00049.pdf.https://www.scielo.br/pdf/pusp/v27n1/1678-5177-Acessoem28dedezembrode2020.James.
The Texture of Memory. Yale: Yale University Press, 1993. Carolina Sieja Bertin é doutora em Estudos Linguísticos e Literá rios do Inglês, tendo realizado parte de seus estudos de pós-gra duação na Universidade de Harvard. Atualmente é pesquisadora in dependente pela Universidade Estadual de Campinas, onde realiza seus estudos de pós-doutorado.
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Em uma conexão bizarra, porém não improvável, Michael Jackson, com sua música Stranger Moscow, do álbum History (1996), recria diversas dessas cenas com a presença do exército vermelho em pontos históricos russos enquanto fãs, seguidores e apaixonados ovacionam sua marcha. Seriam esses momentos casuais ou mostrariam (e atestariam) uma fascina ção, uma obscenidade e uma possível influência das imagens e filmes nazistas na contemporaneidade?
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EProvocações
Susan Sontag, em seu artigo “Fascinating facism”, dis cute a fascinação do fascismo e ataca diretamente a suposta ‘arte’ de Riefens tahl. Para ela, a diretora alemã só estava interessada em fazer propaganda nazi
EHOLLYWOODONAZISMO
Jacques Fux
m 1934, Leni Riefenstahl lança seu filme O triunfo da vontade (Triumph des Willens). Uma cena memorável é construída utilizando ângu los de filmagem ainda pouco convencionais. Hitler, Himmler e Lutze marcham no centro do estádio de Nuremberg, cercados por tropas geometricamente organizadas, para prestar homenagem ao memorial dos sol dados mortos durante a Primeira Guerra. Em 1977, na célebre película de Ge orge Lucas, Star Wars IV – A new hope, Luke, Solo e Chewbacca, por atingirem “A estrela da morte”, são condecorados pela princesa Leia. Os três, marchando lentamente pelas tropas também geometricamente organizadas, recriam (tal vez) a clássica cena nazista de 42 anos atrás. Coincidência? Invenção? Uma reedição de “Kafka e seus precursores”? Ainda, nesta mesma realização de Rie fenstahl, Hitler aparece por diversas vezes ovacionado em diferentes lugares e momentos. Cercado por fãs, seguidores e apaixonados, Hitler, usando farda desenhada por Hugo Boss, arranca gritos entusiásticos pelas ruas onde desfila.
Se há uma oferta tão grande de filmes, entendemos que a estética nazista ainda fascina, encanta e vende muito. Antes, as lentes de Riefenstahl queriam mostrar a perfeição e a beleza travestida do Terceiro Reich; hoje, as lentes de Hollywood, e da indústria cinematográfica em geral, adulteram a História com o intuito de vender e popularizar a Segunda Guerra.
“De quem e do que somos contemporâneos?”, feita por Giorgio Agamben, pode ser muito bem empregada aqui. Somos contemporâneos dos nazistas? A sua cultura ainda reflete e recria o pop e a arte contemporânea? Os numerosos fil mes produzidos no período nacional-so cialista e as suas releituras seriam o intempestivo que Nietzsche postulou e Barthes e Agamben discutiram? Um olhar atento, verdadeiramente contemporâneo e atual, encontraria a sombra, o ideal, a Propagan da e a arte do cinema nazista de Riefens tahl? Este artigo discute essas questões. Cinema Nazi e fascínio O nazismo até hoje nos intriga, já que nos leva a pen sar acerca dos nossos próprios limites enquanto seres humanos. Os limites da violência, da destruição em massa e do genocídio, além do uso da arte, da Propaganda e da cul tura, são questões recorrentes e que merecem ser profun damente estudados. Apesar de tentarmos olhar com certa distância para esses escabrosos temas, temos que levar em consideração que esses atos violentos e, talvez, inimaginá veis, foram praticados por indivíduos pensantes e por uma cultura até hoje bastante desenvolvida e largamente admi rada. Ao fazer referência aos perpetradores nazistas, Wil liam T. Vollmann incomoda e nos faz refletir: “Seria mui to conveniente se os cidadãos do Terceiro Reich fossem de alguma forma maus por natureza, demônios no álbum dos condenados de alguém – em outras palavras, ao con trário de nós. O caso real é muito mais terrível”.2 Perceber as trevas do ser humano, as trevas do mal absoluto nazista e as manifestações artísticas que permeiam a sociedade é ser contemporâneo, estendendo os conceitos de Agamben.
48 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI Porém, não há como concordar com a negação da importância dos filmes de Riefenstahl feita por Sontag nesse artigo: “Triumph of the Will and Olympia are un doubtedly superb films (they may be the two greatest documentaries ever made), but they are not really important in the history of the cinema as an art form. No body making films today alludes to Rie fenstahl”.1 Tanto na cena de Star Wars quanto nos clipes de Michael Jackson, e em outros momentos (como mostraremos neste artigo), os filmes de Riefenstahl foram de alguma forma revisitados. Confirmando a fascinação e o interesse do grande pú blico, tanto pela Alemanha nazista quanto pela figura enigmática de Hitler, filmes e séries de TV vêm sendo produzi dos sobre o tema. Além dos filmes de Riefenstahl, o usuá rio pode assistir às novas séries documentais da BBC, da National Geographic e várias produções de ficção sobre o tema. Esses filmes e documentários, no entanto, não são ‘confiáveis’ em relação à ‘verdadeira’ história, como mos traremos. É importante ressaltar que, quando se pensa em qualquer representação, seja através do cinema ou da lite ratura, não há como mensurar essa confiabilidade, já que existe sempre um caráter ficcional e inventivo. A Literatu ra de Testemunho, assim como a idealização de um docu mentário ou de um documento histórico, clama por uma verdade utópica que, como sabemos, não pode ser acessa da. Porém, é necessário continuar buscando os ‘verdadeiros fatos’, se esse é o objetivo, mesmo com os vários níveis de apreensão do ‘real’. Se há uma oferta tão grande de filmes, entendemos que a estética nazista ainda fascina, encanta e vende mui to. Contudo, diante desse desejo de consumo por produ ções e documentários, muitas realizações inventam e mo dificam os verdadeiros fatos. Assim, o contemporâneo, de certa forma, ainda continua recriando a ‘verdade’. Antes, as lentes de Riefenstahl queriam mostrar a perfeição e a be leza travestida do Terceiro Reich; hoje, as lentes de Holly wood, e da indústria cinematográfica em geral, adulteram a História com o intuito de vender e popularizar a Segun da Guerra.Apergunta
Com o intuito de entender a evolução do cinema alemão até chegar ao período nazista, apresentamos momen tos importantes e alguns de seus principais filmes, de acor do com Siegfried Kracauer (2004). Para efeitos didáticos, a estrutura cinematográfica alemã pode ser dividida em períodos com determinadas características. Entre 1895 e Confirmando a fascinação e o interesse do grande público, tanto pela Alemanha nazista quanto pela figura enigmática de Hitler, filmes e séries de TV vêm sendo produzidos sobre o tema.
O nacional-socialismo, na proporção que alcançou, não teria sido bem-sucedido sem a utilização do cinema como ferramenta e influência. O regime, liderado por Hi tler e assessorado na Propaganda por Goebbels, despertou o desejo e o imaginário da população em todos seus aspectos culturais. Livros, panfletos, charges, teatro e cinema auxiliaram a reescrita da História e dos fatos.
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 49 1918, com Max e Emil Skladonowksy e Oskar Messter, encontramos filmes curtos, documentários e histórias sim ples e efêmeras, sem muita relevância. Em 1910, no en tanto, foram produzidos filmes mais trabalhados, conhe cidos como “Autorenfilme”, com o intuito de atrair a clas se média aos cinemas e discutir problemas e situações en contrados em grandes obras literárias e em grandes escrito res. Durante a Primeira Guerra surge um importante estú dio. Universum Film Ag (Ufa) que, já em 1917, distribui: Der Student von Prague/The Student of Prague (Stellan Rye, 1913); Der Andere/The Other (Max Mack, 1913); Der Golem/The Golem (Henrik Galeen/Paul Wegener, 1914); Ho munculus (Otto Rippert, 1916).
Na “idade de ouro” do cinema alemão, que coincide com a República de Weimar (1918-1933), surgem os pri meiros filmes expressionistas (1919-1924). Com a finali dade de ousar e experimentar novas formas e possibilida des artísticas, as obras desse período trabalham com ilu minação, distorção e padrões geométricos que podiam ser

controlados em estúdio. São eles: Das Cabinet des Dr. Ca ligari/The Cabinet of Dr. Caligari (Robert Wiene, 1920); Nosferatu (F. W. Murnau, 1922); Dr. Mabuse, der Spieler/ Dr. Mabuse, the Gambler (Fritz Lang, 1922); Die Straße/ The Street (Karl Grune, 1923); Die Nibelungen/The Nibe lungs (Fritz Lang, 1924); Das Wachsfigurenkabinett/Wax works (Paul Leni, 1924); Metropolis (Fritz Lang, 1927).
Em 1924, o país vivencia um período de estabilidade econômica que dá origem ao movimento Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade) e os filmes mudam de contexto; antes clamando por um excesso de emoção e estilismo, voltam-se aos problemas cotidianos e à realidade atual pela qual passa a Alemanha pós-guerra. São eles: Der letzte Mann/The Last Laugh (F. W. Murnau, 1924); Die freudlose Gasse/The Joyless Street (G. W. Pabst, 1925); Berlin, Sinfonie der Großstadt/ Berlin, Symphony of a City (Walter Ruttmann, 1927). Já os anos anteriores ao governo de Hitler (1929-1932) são marcados por lançamentos com intenções pacíficas, de ataques ao militarismo da Prússia e de entretenimento geral como: Leni Riefenstahl filmando em 1934.
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Menschen am Sonntag/People on Sunday (R. Siodmak/E. Ulmer, 1929); Der blaue Engel/The Blue Angel (Josef von Sternberg, 1930); Westfront 1918 (G. W. Pabst, 1930); M (Fritz Lang, 1931); Die 3-Groschen-Oper/The 3-Penny-Opera (G. W. Pabst, 1931); Mädchen in Uniform (Leonti ne Sagan, 1931); Kuhle Wampe (S. Dudow, 1932).3
Portanto, até o momento, os filmes produzidos, ape sar de apresentarem um caráter artístico e de utilizarem os primeiros aspectos da Propaganda, não influenciavam pro fundamente a visão política da população, segundo Jack son Spielvogel (1988). Ainda existia certa ingenuidade e simplicidade ao se pensar a função dessa arte como Pro paganda política. Porém, o Terceiro Reich (1933-1945) muda completamente os rumos da História, em todos os aspectos. Joseph Goebbels, ministro da Propaganda, dou tor em Teatro Romântico, torna-se a figura central na ex ploração dessa arte: “A essência de qualquer propaganda é conquistar as pessoas para uma ideia tão profunda e vi tal que, no final, elas caem sob seu feitiço e não podem mais escapar dele”.4 Interessante ressaltar que a Propagan da aqui não se torna somente aberta e explícita, mas, fre quentemente sutil, subliminar e indireta, desperta o dese jo e seduz multidões. A produção das 1.094 películas na zistas mesclava política, propaganda e viabilidade comercial. Os filmes eram assistidos por parte significativa da po pulação alemã, arrecadando bastante dinheiro e difundin do os ideais ali presentes. Alguns dos mais famosos e importantes são: Hitlerjunge Quex/Hitler Youth Quex (Hans Steinhoff, 1933); Triumph des Willens/Triumph of the Will (Leni Riefenstahl, 1935); Jud Süß/Jew Süss (Veit Harlan, 1940); Münchhausen (Joseph von Baky, 1943); Kolberg (Veit Harlan, 1945). Teriam sido, entretanto, os alemães

Pôsteres dos filmes “Olympia“ e “Triunfo da Vontade“

Riefenstahl e a sociedade do espetáculo
A imagem de Hitler, antes em Riefenstahl, e hoje nas produções de Hollywood, ainda desperta interesse e feti che. Riefenstahl sempre argumentou que seus filmes não tinham o caráter de Propaganda e só foram condenados
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 51 os únicos a empregar a Propaganda com o intuito de convencer e chancelar o exter mínio, guerras e matanças? Reside aí ou tra polêmica discussão. Em 1945, Franz Capra dirige o fil me Here is Germany, que tem como ob jetivo convencer a população mundial da maldade absoluta e da violência sem pre cedentes que os alemães empregaram na construção dos campos de extermínio. A partir da obscenidade, severamente criti cada por Lanzmann em Shoah, e usando e abusando de imagens de corpos, ossos e dos sobreviventes “muçulmanos”5, o fil me desconstrói a racionalidade e a sabedoria alemã a fim de mostrar a ‘verdadei ra’ Alemanha e, com isso, justificar a guer ra para a opinião pública. O mesmo é feito com a realiza ção do filme Know your enemy: Japan, justificando, talvez, as bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki. Talvez, no entanto, a imagem mais marcante que o ci nema e a cultura nazista deixaram como legado tenha sido a de Adolf Hitler. Vários filmes, tanto na época nazista quanto na atualidade colocam Hitler como um superstar.6 Assim escreve Rentschler: “O carismático Führer surgiu como a extensão da tecnologia de ponta e da instrumentação audiovisual, maior do que a vida, mas às vezes também um homem comum. Imediatamente reconhecível, ele é a maior celebridade da mídia do século XX e, a esse respei to, ainda é um homem de nossos tempos”.7 Em O triun fo da vontade, Hitler representa o próprio papel. Todas as tomadas de Riefenstahl são minuciosamente estudadas, evocando o imaginário e a admiração pela lendária figura do Führer. Em outras produções, como Der Fuehrer’s Face (Pato Donald, 1942), The Great Dictator (Charles Cha plin, 1940) e Der Bonker (Monty Python, Walter Moers, 2005), a imagem de Hitler é ridicularizada, mas inspirada em um ideal e em um fascínio criado pelos filmes nazistas, em especial pelos filmes de Riefenstahl. O triunfo da vontade, assim como outros filmes nazistas, constrói um falso fascínio pela figura emblemática do líder nazista. Além do uso da imagem em movimento, o rádio participou ativamente dos espetáculos de massa, despertan do o interesse por uma figura, em si, ridícula e pouco atra tiva. Hitler foi o único político do século XX que interpre tou o seu próprio personagem em um fil me devotado à criação de uma lenda polí tica. Isso é uma constatação importantís sima e que deve ser levada em consideração ao analisarmos a estética e os objetivos dos filmes de Riefenstahl. A então aclama da diretora experimentou momentos de glória e premiações; depois da revelação das atrocidades nazistas, teve sua parcela de culpa reconhecida e foi banida do ce nário artístico, além de passar um perío do presa. Porém ela, indubitavelmente, foi uma das principais responsáveis pela cria ção dessa lenda imagética. A figura de Hi tler tornou-se tão atrativa, popular e pop que, em 1934, Heinrich Hoffman publi cou uma coleção de mais de cem fotos do Führer com o título de Hitler wie ihn keiner kennt (The Hi tler Nobody Knows), fato até então inédito, sobretudo ao se tratar de um líder político, atestando a fascinação e a visão do líder como uma estrela cinematográfica. Em 1983, por exemplo, aparece na capa da revista ale mã West German a descoberta dos diários de Hitler. A pu blicação dessa notícia, que logo depois foi desmascarada, provocou o que a imprensa chamou de “Hitler wave”. O fantasma emblemático da figura monstruosa do líder to talitário ainda despertava o interesse, sobretudo pelo seu lado talvez humano. Esse lado foi retratado, por exemplo, no filme A queda (Oliver Hirschbiegel, 2004), que virou uma sensação, principalmente na internet e no Youtube. Inúmeras variações de uma das cenas – em que Hitler, no bunker, num ataque de fúria, pronuncia o seu “nein, nein, nein, nein, nein, nein” – circulou em diversas mídias, mos trando a caricatura, a loucura e a ficção por trás dessa fi gura humana e de superstar. Também em alguns clipes e filmes Hitler é retratado com um popstar: Heil, Honey, I’m Home (BBC, 1990), The Producers (Mel Brooks, 1968), Hitler Rap (Whitest Kids U’Know).
O utilizaçãoalcançou,nacional-socialismo,naproporçãoquenãoteriasidobem-sucedidosemadocinemacomoferramentaeinfluência.Oregime,lideradoporHitlereassessoradonaPropagandaporGoebbels,despertouodesejoeoimagináriodapopulaçãoemtodosseusaspectosculturais.
11 Benjamin. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. p. 29.
2 Volman. Seeing eye to eye. p. 11. 3 De acordo com Eric Rentschler.
10 Benjamin. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. p. 28.
A imagem de Hitler, antes em Riefenstahl, e hoje nas produções de Hollywood, ainda desperta interesse e fetiche. Riefenstahl sempre argumentou que seus filmes não tinham o caráter de Propaganda e só foram posteriormente.condenados
6 Termo utilizado pelo professor Eric Rentschler durante seu curso em referência a Theodor Adorno (1978, p. 127): “While appearing as a superman (...) the leader must at the same time work the miracle of appearing as an average person, just as Hitler posed as a composite of King Kong and the suburban barber”.
O atleta alemão foi incluído em seu grupo e em sua raça superior; já o adversário, o diferente, foi neutralizado e excluído em virtude da abordagem racista. “O que ca racteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o ho mem se apresenta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a esse aparelho, ele represen ta para si o mundo que o rodeia.”10 Dessa forma, se por um lado o público alemão representa a beleza, a perfeição e a bonan ça como vistas nos filmes de Riefenstahl, ele, por outro lado, execra, ojeriza e des preza a figura do judeu criada pelos fil mes Jew Süss (1940) e Eternal Jew (1940).
Se “sempre foi uma das tarefas essen ciais da arte a de suscitar determinada in dagação num tempo ainda não maduro para que se recebesse plena resposta”,11 podemos estudar e relacionar a estrutura nazista com a Sociedade do Espetáculo. O documentário de Guy Debord (1967) mostra as ligações e semelhanças da arte na época fascista e na atualidade. Primeiramente na versão original, The society of the spectacle, e posteriormen te na versão contemporânea com o mesmo nome, produzi da por Aska em 2011, encontramos indagações num tem po ainda não completamente maduro para fornecer plenas respostas aos acontecimentos da Segunda Guerra. Os filmes, a Shoah e estética totalitarista são, portan to, utilizadas na filmografia contemporânea e literária para ainda lucrar com esse “espetáculo”.
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Entretanto, Susan Sontag discorda: “O Triunfo da Vontade – o filme de maior sucesso e mais puramente propagandístico já realizado, cuja própria concepção nega a possibilidade de os ci neastas terem uma concepção estética in dependente da propaganda”. Ao estudar a composição, a história e o orçamento desse filme, percebemos o grande inves timento nazista nesse espetáculo artísti co, atestando assim sua abordagem pro pagandística (“a ‘realidade’ foi construída para servir a imagem”).8
7 Rentschler. Culture and Belief 54. Nazi Cinema Nazi Cinema: The art and politics of illusion 8 Sontag. “Fascinating Fascism”. p. 82. 9 Ver Nazario. “O discurso ideológico de Olympia”.
posteriormente.
A ostentação da beleza dos corpos e das imagens repre sentados por Riefenstahl, desta vez em Olympia: Festival of Beauty (1938), compara e cria um imaginário entre a rea lidade de determinada nação a partir de closes dados aos atletas. Ao filmar os alemães, Riefenstahl concebe a beleza, a alegria, o coletivo e a bonança ariana. Com corpos escul turais, os atletas alemães, mesmo perdendo algumas com petições, retratam a pura perfeição idealizada pelos nazis tas. Saudando seu líder popstar e cantando Deutschland, Deutschland über Alles, os esportistas germânicos consegui ram a façanha de ganhar o maior número de medalhas de ouro nesses Jogos Olímpicos. Tudo foi documentado, nar rado e construído no filme de Riefenstahl.9 Por outro lado, ao filmar atletas de outras nacionalidades, sobretudo o ve locista afro-americano Jesse Owens, ganhador de quatro medalhas de ouro, Riefenstahl (muito provavelmente jun to com Goebbels) tenta sutilmente e de forma subliminar diminuir e apagar seus grandes feitos. Enquanto os closes dos atletas alemães dedicam-se minuciosamente a mostrar a perfeição e a beleza, os closes dos atletas não alemães de sejavam evidenciar e pontuar pequenas imperfeições des ses corpos. Os closes em Jesse Owens mostram, por exem plo, as imperfeições de seus dentes e, junto a outro corre dor afro-americano ganhador de medalha de ouro, Cor nelius Johnson, retratam um excesso de músculos e esfor ço não esteticamente belos, que contrastariam com a leve za e beleza dos atletas arianos.
Jacques Fux é matemático e escritor; autor de Antiterapias (Scrip tum 2014), Meshugá; um romance sobre a loucura (José Olympio 2016), Nobel (José Olympio 2018), entre outros. Notas 1 Sontag. “Fascinating Fascism”, p. 95. Triunfo da Vontade e Olympia são, sem dúvi da, filmes soberbos (podem ser os dois maiores documentários já feitos), mas não têm grande importância na história do cinema como forma de arte. Ninguém que faz filmes hoje alude a Riefenstahl.
4 Leiser. Nazi Cinema. p. 47. 5 Primo Levi revelou que os prisioneiros dos campos que não mais reagiam em busca de sobrevivência eram chamados de “muçulmanos” pelos demais prisioneiros, numa alusão à sua submissão frente a um destino tido como inescapável [nota do editor].


54 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI iJacky/iStockphoto

DE HOJE:
1 Explico em nota, pois é cruel: vais ao campo e cortas uma perna do cordeiro e a trazes para assar. O cordeiro fica no pasto e, no dia seguinte, sem geladeira, vais buscar outra perna; estará fresquinha...
É possivelmente o primeiro resquício de ética entre as leis. A relação com a preocupação de não causar sofrimento a um ser vivo é clara, e leva diretamen
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 55
Walter A. Mannheimer A Shechitá A Shechitá é o abate ritual de mamíferos e aves, de acordo com as leis dietéticas judaicas (1,2). O ato é executado seccionando a traqueia, o esôfago, as carótidas e jugulares, usando uma faca extremamente afiada, e drenando o sangue. O animal deve ser abatido com “respeito e compaixão” por um shochet (magarefe ritual), um judeu religioso devidamente treinado e licenciado. Ética e compaixão Os Dez Mandamentos são frequentemente indicados como o grande mar co inicial da ética judaica. No entanto, podemos remontar no tempo, e consi derarmos as Sete Leis de Noé (3,4). O que há de extraordinário aqui? Seis de las são, mesmo para a época, corriqueiras. Todas as civilizações já reconheciam, de uma maneira ou outra, a necessidade de um código social para seu funcionamento: Não mentirás, não matarás, não adulterarás, estabelecereis autorida des entre vós. Mas uma é singular, e não se refere ao bom funcionamento da sociedade: não comerás a carne de um animal vivo.1
A SHECHITÁ
NOS TEMPOS UM ENSAIO
Argumentam alguns que a observação rígida dos mandamentos e rituais tradicionais são fundamentais para a preservação milenar do povo, da cultura e ética judaicas. E invoca-se erigir uma cerca em volta da Torá, para confinar a tentação, e evitar a evasão. E quem melhor poderá garantir o futuro do Judaísmo? Os que aceitam ficar confinados, ou aqueles que se aventuram em busca de maiores horizontes?
Judaísmo: ortodoxo, conservador, liberal, reconstrutor... Há muitas formas de Judaísmo, e muitas são as divergências. Não seriamos judeus, se não as tivéssemos... Mas uma é ubíqua: como agir em função da evolução do homem e do tempo? Os costumes, os conhecimentos e as condições de vida mudam – devem as leis e costumes serem congelados no tempo? Deve o ser humano valer-se do livre arbítrio, que lhe é explicitamente concedido e or denado, para orientar sua vida? Deve destilar o que é fun damentalmente ético daquilo que é ordenação ritual? Devemos prosseguir, qual autômatos, com prescrições seculares, ou mesmo milenares, na face de novos conheci mentos e de novas circunstâncias?
A cerca em torno da Torá Argumentam alguns que a observação rígida dos mandamentos e rituais tradi cionais são fundamentais para a preser vação milenar do povo, da cultura e éti ca judaicas. Esta preservação é certamen te singular na história humana. E invo ca-se erigir uma cerca em volta da Torá, para confinar a tentação, e evitar a eva são. Mas uma cerca pode ser pulada por aqueles que não aceitam o confinamento. E quem melhor poderá garantir o futuro do Judaísmo? Os que aceitam fi car confinados, ou aqueles que se aventuram em busca de maiores horizontes?
A proposição de uma experiência Vou propor uma experiência: não me interessa saber se é exequível, nem qual seria seu resultado. Na boa tradição talmúdica, quero filosofar sobre a questão em si, e como as diferentes correntes judaicas reagiriam ao resultado: Proponho que uma universidade em Israel se dedique ao problema de desenvolver um eletroencefalógrafo para Como agir em função da evolução do homem e do tempo? Os costumes, os conhecimentos e as condições de vida mudam – devem as leis e costumes serem congelados no tempo?
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te à Shechitá: comer é preciso, mas façamo-lo causando o menor sofrimento pos sível ao animal. Afirmam os sábios que o abate nestas condições é indolor e instan tâneo para o animal.
Creio estar aqui um dos maiores pontos de conflito en tre as correntes.
Suponhamos que esta experiência indique, de manei ra irrefutável, que o abate usando pistola de atordoar (stun gun) causa muito menos sofrimento do que a Shechitá.
Dois procedimentos são usados atualmente no abate leigo: a percussão craniana (stun gun) e eletrochoque, que para o coração. De acordo com autoridades, são equivalen tes quanto aos resultados na prática. Mas me parece haver uma diferença quanto ao ritual judaico. Eletrochoque mata o animal, a pistola o atordoa. Se fi zermos Shechitá em um animal atordoado, nós o estare mos matando. Shechitá em um animal eletrocutado é san grar uma carcaça. Portanto, ao atordoarmos o animal es taremos apenas adicionando uma etapa ao procedimento tradicional. A diferença, para um ortodoxo, pode ser sig nificativa, aceitando o uso da pistola.
Walter A. Mannheimer é engenheiro, professor emérito da Univer sidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ e associado da ARI.
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O ponto principal seria que, na época, este era o método mais misericordioso. Hoje, com a evolução tecnológi ca, não é mais.
A aceitação do stun gun, que não fere os preceitos da Shechitá, seria uma solução conciliadora com a socieda de maior, e evitaria um conflito de resultado imprevisível.
Gostaria de ouvir os Rabonim das diferentes correntes.
Referências Deut. 12:21, Deut. 14:21, Num. https://hamodia.com/2017/11/29/jewish-groups-challenge-belgianhttps://www.aa.com.tr/en/europe/eu-upholds-belgian-ban-on-halalhttp://www.jpost.com/Diaspora/Belgian-Jews-files-second-lawsuit-ahttps://en.wikipedia.org/wiki/Seven_Laws_of_Noahhttps://www.myjewishlearning.com/article/the-noahide-laws/https://en.wikipedia.org/wiki/Shechita11:22(2021.02.04)(2021.02.04)(2021.02.04)gainst-ban-on-religious-slaughter-536905kosher-slaughter/2080873-shechitah-ban-high-court/
Esta questão tornou-se recentemente muito importan te, em vista da crescente legislação na União Europeia so bre as regras kasher e halal (5,6,7), visto ter a Corte de Jus tiça da União Europeia mantido a proibição da Bélgica ao abate kasher em 17/12/2020.

Qual o caminho a seguir? Persistir no procedimento ri tual, ou evoluir para aquele que melhor cumpre o manda mento de não fazer sofrer?
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 57 uma vaca. A colocação dos eletrodos, por hipótese, permi tiria medir os sentimentos e o sofrimento durante o abate.
Uma versão inicial deste ensaio foi encaminhada à comunidade de Antwerp em 2018/01/21, mas não obteve resposta.
David Diesendruck
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A atividade do Instituto Brasil-Israel
Novas pautas surgiram, tais como a desigualdade social, o empoderamento feminino, o racismo, a diversidade de gênero, a sustentabilidade, e estas passaram a ocupar um espaço maior nos corações e mentes de nossos jovens.
J udaísmo, Israel e ativismo comunitário sempre estiveram presentes na vida de minha família. Meu avô, o rabino Menahem Diesendruck z”l, foi um sionista fervoroso. Em Lisboa, durante a Segunda Guerra Mundial, além da lideranca espiritual, ocupou o cargo de presidente da Organização Sionista e trabalhou intensamente no auxílio aos refugiados que buscavam imigrar a Israel. No Brasil, também seguiu inspirando sua comuni dade a desenvolver maiores vínculos com o Estado judeu, tendo sido um dos idealizadores do movimento juvenil Netsach. Meu pai trilhou um caminho semelhante, assumindo a presidência da Casa de Cultura de Israel, e participan do da diretoria da A Hebraica, Macabi e de outras entidades comunitárias. Em 2004, meus pais fizeram aliá, passando a morar na cidade de Netanya, e juntan do-se aos meus irmãos e suas famílias, que vivem em Israel há mais de 30 anos.
Com esse histórico, mantive a tradição, atuando em Movimento e Conselho Juvenil, Federação Israelita do Estado de São Paulo e em outras instituições.
ISRAEL NÃO É UM
PAÍS IMAGINÁRIO
Entretanto, observo através de meus filhos que o momento atual demanda novas narrativas. Apesar da educação em escola judaica, da vivência dos cos tumes judaicos em casa e das viagens anuais a Israel, noto que a relação com o judaísmo, com o sionismo e com o ativismo comunitário é outra. Novas pau tas surgiram, tais como a desigualdade social, o empoderamento feminino, o racis mo, a diversidade de gênero, a sustentabilidade, e estas passaram a ocupar um es paço maior nos corações e mentes de nossos jovens. A atual sensação de segurança do povo judeu, que depois da criação do Estado de Israel passou a usufruir de uma dignidade que jamais possuiu, somada à narrativa sionista convencional
A perspectiva exclusivista que apresenta os judeus como o povo mais perseguido entre todos, inclusive por meio da memória da Shoá, e as poucas iniciativas em con junto com pessoas e grupos em situação de maior vulnera bilidade no Brasil fortalecem este sentimento de indiferen ça com o sofrimento alheio. O apoio de membros da comu nidade judaica e representantes do Estado de Israel a lide ranças nacionais com discurso xenófobo e racista contri buíram para esta percepção.
Além disso, temos arraigada em parte de nossa comu nidade a ideia de que, quando abordamos temáticas relacionadas a Israel com um pensamento crítico, evidencian do a complexidade de sua história e os desafios de seu go verno e de sua sociedade civil, fortalecemos os inimigos. Aqueles que o fazem são considerados “self-hating jews” ou traidores. Deixa-se de ser alguém com uma opinião diferen te. Passa-se a ser um inimigo passível, inclusive, de agres sões dos mais diversos tipos. São assustadoras as situações de ódio gratuito que presenciamos entre judeus no Brasil.
Inversamente, como parte do mesmo processo, todos aqueles que se declaram amigos de Israel são automaticamen te elevados à categoria de amigos dos judeus e, portanto, de vem ser isentos de críticas. Os eventos nos EUA que cul minaram na invasão do Capitólio evidenciaram esta con tradição, uma vez que bandeiras de Israel e slogans anti semitas faziam igualmente parte da simbologia usada pe los Maismanifestantes.especificamente sobre Israel, os materiais e narra tivas que encontramos nas instituições judaicas de educa ção formal ou não formal raramente trazem a perspectiva “do outro lado”. Ainda encontramos muitos manuais de res postas prontas para perguntas pré-formuladas. Quase não há questionamento. Nas viagens de jovens judeus a Israel, não há encontros com jovens palestinos na Cisjordânia. Ou seja, apesar de contarem com ampla formação comunitá O IBI promove viagens para dialogar sobre a situação atual com israelenses e palestinos.
IBIAcervoFotos:
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 59 que fala “de dentro para dentro”, sem buscar uma inter secção com outras comunidades e grupos discriminados, parece mais afastar do que atrair.

zando a conversa. A outra consequência é o afastamento de um capital humano valiosíssimo do seio comunitário, que não encontra espaço para falar sobre Israel apesar de tê-lo presente na sua formação identitária. É neste contexto de pautas mais inclusivas, do olhar para o outro, da valorização da escuta e do diálogo sobre Israel e sionismo que o Instituto Brasil-Israel - IBI nasceu e vem atuando. Nossa missão é combater a visão preconceituosa e excepcio nalizante sobre os judeus e Israel no Brasil, manifestada in dependentemente de corrente ideológica, dentro e fora da co munidade judaica.

Essa construção enviesada consolida o que costuma mos chamar de um “Israel Imaginário”, um lugar excep cional, para o bem ou para o mal, que parece não possuir características que fazem dele um país normal. Esse “Israel Imaginário” é concebido tanto por alguns daqueles que são considerados “amigos”, como por alguns daqueles que são considerados “inimigos”, dentro de sua conveniência e interesses geopolíticos ou ideológicos. Pelos dois extremos, Israel é visto como como um país conser vador, religioso e militarizado. Enquanto uns acham isso bom, entendendo Israel como um polo avançado do Oci dente no Oriente Médio, que opera como barreira de con tenção frente ao avanço do islamismo, outros acham isso ruim, entendendo Israel como um país imperialista e co lonizador de terras que não lhe pertencem. Ambas as versões desumanizam Israel. Não levam em conta a complexidade de sua sociedade civil. Simplificam o debate. Leva-o para os extremos, polarizando e inviabili
Temos como públicos prioritários os formadores de opinião, alunos, professores e lideranças das universida des e a imprensa. Mas também atuamos junto a lideranças comunitárias, grupos jovens e a sociedade civil brasileira.
ria, esses judeus são surpreendidos ao chegarem nas uni versidades e escutarem narrativas que jamais escutaram. Sentindo-se traídos, alguns abandonam o tema, enquanto outros acabam aderindo a movimentos de boicote.
• Produção de conteúdo: Desenvolvimento de pesqui sas científicas para o público acadêmico, além da publica Atividade do IBI com jovens de movimentos juvenis.
• Formação: Cursos, viagens, palestras, laborató rios, grupos de estudos e seminários, independentes e em parceria com instituições de formação.
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Os nossos pilares de atuação são:
• Já o GA’AVAH, coletivo judaico LGBTQIA+ do IBI, trouxe visibilidade sobre a temática em Israel e na comu nidade judaica brasileira, através de materiais, cursos, se minários e eventos.
• Diálogo: Promoção e enriquecimen to do diálogo com grupos discriminados da sociedade civil brasileira e contato com a mídia, influenciadores e stakeholders es tratégicos.
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 61 ção de livros. E produção de materiais jornalísticos para o público geral em mídias sociais (podcast, vídeos, site, lives), com divulgação na imprensa.
• O IBI também criou uma programação em parceria com a Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP, com a série Diálogos Literários Brasil-Israel, contando com a participação dos israelenses Amos Gitai, Gershon Baskin e Orly Castel-Bloom, e dos brasileiros Flávia de Castro, Luiz Eduardo Soares e Mel Duarte.
• Nosso podcast “E eu com isso?” alcançou a marca de 146 episódios e ultrapassou as 70 mil reproduções, entrando na lista dos 50+ do Spotify.
• E seguimos apoiando o Centro de Estudos Judai cos da USP, de forma que possa permanecer realizando Esse “Israel Imaginário” é concebido tanto por alguns daqueles que são considerados “amigos”, como por alguns daqueles que são
• Fomos destaque em jornais e revistas nacionais e in ternacionais, como Folha de S. Paulo, Estadão, O Globo, Valor Econômico, El País, Piauí, Nexo, UOL, Poder 360, Metrópoles, Antagonista, The Intercept Brasil, Jota, Haa retz, Le Monde. E em vários canais de televisão: Globo, Band, Cultura, GloboNews, CNN Brasil, além das rá dios CBN, BandNews e Jovem Pan.
interesses“inimigos”,consideradosdentrodesuaconveniênciaegeopolíticosouideológicos.
• Lançamos três livros: Israel e Palestina: um ativista em busca da paz, do negociador israelense Gershon Baskin, com prefácio do psicanalista Christian Dunker; Conflitos e religiosidades: Israel, Palestina e estudos judaicos no Bra sil, reunindo artigos de pesquisadores do IBI no Campus; e Antissemitismo: uma presença atual, de Francisco Carlos Teixeira da Silva e Karl Schurster.
• O Projeto Imaginários, realizado em parceria com a União do Judaísmo Reformista – UJR e com o apoio da Fundação Gênesis, levou discussões sobre o conflito en tre israelenses e palestinos a escolas de ensino médio de todo o país.
• Acolhimento construído em rede (ativismo): Estimulando a criação de co munidades e espaços de representativida de para identidades judaicas diversas.
O impacto de nossas iniciativas tem sido estimulan te. E não faltaram atividades em 2021. Alguns destaques:
• 2021 foi também o ano do início de uma parceria com a Quatro Cinco Um, a revista literária de maior alcan ce no Brasil. Apoiamos a criação de uma seção fixa de lite ratura israelense, que apresentou textos cobrindo um arco que foi do humor, em ensaio assinado por Gregório Du vivier, à investigação dos sonhos de israelenses e palestinos em áreas deflagradas pelo conflito, passando pelos diários de Kafka e muito mais.
• O IBI no Campus, projeto nacional e online de estu do e pesquisa acadêmica sobre judaísmo, sionismo, Israel e Palestina, contou com a participação de 140 estudantes de 54 universidades de 14 estados brasileiros.
• Tivemos também uma presença impactante na im prensa e na TV. Foram dezenas de entrevistas, artigos e no tas sobre temas como o conflito entre israelenses e pales tinos, o sucesso da campanha de vacinação em Israel, as eleições locais, antissemitismo e os usos da simbologia ju daica e sionista no Brasil.
• Também produzimos dezenas de webinars e lives, que vieram junto com a oportunidade de se discutir com mais apuro a complexidade de temas como o entrelaçamento do antissemitismo com o racismo, o lugar de fala da mulher no conflito israelense-palestino e a discrimi nação contra a diversidade sexual, entre outros. Fernando Haddad, Henrique Cymerman, Lilia Schwarcz, e Thiago Ampa ro foram alguns dos participantes, ao lado de uma seleção de acadêmicos, jornalistas e especialistas, em parcerias estratégicas com instituições como a Universidade Zumbi dos Palmares.
• Combate ao antissemitismo Para cada um destes pilares atuamos com acolhimento, inclusão e diálogo com as vozes discordantes, buscan do manter sempre uma linguagem criativa, sem renunciar à qualidade da mensagem.
• Ainda na área de formação, para aqueles que prefe riram seguir os estudos no seu próprio ritmo, disponibili zamos o curso online “Precisamos falar sobre Israel e Pa lestina”.
David Diesendruck é Presidente do Instituto Brasil-Israel-IBI, em presário e CEO da Redibra – Agência de Licenciamento e Extensão de Marcas. Membro do Conselho da Licensing International, Funda ção Abrinq, Hospital Albert Einstein e Diretor da Fisesp.
Em vez de criar
valoresadesnecessáriastensõesentrecomunidadejudaicaeaimprensa,asuniversidadesouospartidospolíticos,atuamosaoladodequemcompartilhaosdademocracia.
Agradeço a oportunidade de poder compartilhar um pouco do nosso trabalho nesta revista tão qualificada a uma comunidade da relevância da ARI. Fica o convite para você, leitor, acompanhar e participar do IBI. Siga nossas redes sociais e cadastre-se para receber nosso ne wsletter semanal através do e-mail contato@instituto brasilisrael.org
Semanalmente, cerca de 30 jovens de sobrenovirtualmenteuniversidadesdiversassereúnemnogrupoIBICampusparadebaterIsrael.
62 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI congressos, palestras, grupos de estudo e publicações. O destaque no ano passado foi a realização do Congresso Nacional de Pesquisadores de Estudos Judaicos, com 18 mesas de debate e 86 palestrantes, em mais de 30 horas de programação. Nesta nossa jornada o aprendizado é constante. O alinhamento e a integra ção entre equipe voluntária e profissional é fundamental e buscamos este objetivo com determinação. Um trabalho que de manda convicção, coerência e consistência. Para finalizar, importante reforçar que notamos si tuações em que reações precipitadas ou emotivas con tra supostos ataques antissemitas ou antissionistas aca bam transformando em inimigos pessoas ou organiza ções que fizeram colocações mais por ignorância do que por preconceito. Procuramos em primeiro lugar a veracidade da informação e, na sequência, a busca do diálogo. Com instituições, nossa estratégia tem sido a de encon trar parceiros, pois sabemos que elas não são homogêneas e herméticas. Assim, em vez de criar tensões desnecessá rias entre a comunidade judaica e a imprensa, as univer sidades ou os partidos políticos, atuamos ao lado de quem compartilha os valores da democracia.Estecaminho, na maioria das ve zes, tem se provado transformador para construção de pontes. Como nos ins pirou o filósofo israelense Micah Good man: “ Precisamos passar do julgamento para a curiosidade. Isso não significa con cordar ou aceitar”


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O filme revive um conhecido e contestado episódio da Guerra de Independência de Israel: a violenta batalha de 7 de Junho de 1948, que terminou na rendição dos últimos remanescentes do Kibuts Nitsanim ao exército egípcio, que avançava do Sul pela costa em direção a Tel Aviv – avanço em que foi detido nas proximidades da atual cidade de Ashdod.
O diretor israelense Avi Nesher.
Naquela época, e ainda por muitos anos, os kibutsim se identificavam se gundo uma filiação ideológico-partidária: uma maioria ao partido Mapai (hoje “Avodá”), então a força propulsora do desenvolvimento do país; um número significativo ao “Kibuts Artsi” do movimento Hashomer Hatsair e seu partido Mapam; um certo número eram kibutsim religiosos ligados ao Mizrachi, então solidário com a linha oficial, mas empenhado na aplicação das regras e cos tumes da religião na vida civil; e uma minoria do “Haoved Hatsioni” (na qual se inclui Nitsanim) se afiliava aos “Progressistas” do partido dos Sionistas Ge rais, representante da pequena burguesia liberal, pouco prestigiada pelos círcu los da direção do Ishuv Este filme assumiu para mim o caráter de catalizador de memória e fator de perspectiva sobre um período rico e crucial de vida pessoal no contexto de um país cheio de história: uma história que ao lado de episódios de alto sentido humano, nos defronta também com fatos de discutível valor
RETRATOético.
DE VITÓRIA
á algumas semanas vem sendo exibido nos cinemas o filme “Retrato de Vitória” (“Tmunat Nitsachon”) do diretor israelense Avi Nesher.
O título do filme reflete a aspiração do Rei Faruk do Egito de ver a vitória de seu exército ilustrada na imprensa – tarefa para a qual se preocupou em desig nar uma equipe jornalística e fotográfica que acompanhasse a expedição militar.
Nitsanim se encontra junto à estrada de cerca de 50 km que une as cidades de Ashkelon e Tel Aviv. Em 1948 ocupava uma área na costa do mar, adquiri da poucos anos antes pelo Keren Kaiemet de um rico proprietário árabe que lá havia construído espaçosa casa. Hoje o kibuts está instalado a leste da estrada principal à pequena distância de sua vulnerável localização original.
Vittorio Corinaldi H

Com esta, todos os presentes no local (inclusive os feri dos) foram feitos prisioneiros, e levados de início para Ma jdal (Migdal, hoje bairro de Ashkelon), onde estacionava o comando egípcio, e de lá para a prisão definitiva no Cai ro. Sua situação de prisioneiros durou por muitos meses, durante os quais passaram por interrogatórios e também por torturas. Dela voltaram somente após o armistício de Fevereiro de 1949, quando a situação militar se reverteu em favor das forças israelenses, já melhor estruturadas e equipadas durante tréguas parciais utilmente aproveitadas.
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 65 Mais a Sul, sobre o mesmo eixo costeiro que leva à Tel Aviv, muito próximo ao que é hoje a fronteira com a fai xa de Gaza, encontra-se o Kibuts Iad Mordechai da fede ração do Hashomer Hatsair. Também ele foi violentamen te atacado pelo exército egípcio. A parte não-combaten te da população (em especial as crianças) fora evacuada às vésperas da luta iminente, no esforço, o quanto possível, de evitar vítimas. Isto se fez também com Nitsanim. Mas à diferença deste, Iad Mordechai contava com algum ar mamento, o que lhe possibilitou sustentar uma resistência heroica, até o momento em que se decidiu pela retirada de todos os combatentes antes da entrada das forças egípcias no recinto do Kibuts. A resistência de Nitsanim não foi menos heroica do que a de Iad Mordechai. Mas não recebeu os reforços de sesperadamente solicitados pelos combatentes do kibuts: há quem diga que isto se deu em virtude da menor aten ção recebida pelo agrupamento partidário deste junto ao comando das operações de luta, fortemente orientado pela linha de esquerda. E depois de esgotados todos os meios de defesa, e com considerável número de vítimas, os re manescentes se renderam à força militar egípcia, desmesuradamente superior: não antes que traiçoeiros tiros atin gissem os representantes do Kibuts que se encaminhavam para negociar a rendição.
Até aqui a descrição dos acontecimentos. Junto ao comando militar da Haganá encontrava-se também um ofi cial que exercia funções de porta-voz e esclarecimento: Memorial da Guerra de Independência em 1948 próximo a Yehiam, Israel.
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Meu interesse pelo filme excedeu a simples curiosidade cinematográfica, e se alimentou de dois coeficientes pes soais que – embora triviais – são característicos de quem tem um passado e uma vivência já lon ga no país, podendo encontrar pontos de contato de sua experiência com fatos que assumem uma perspectiva histórica.
O filme descrito (que recomendo a quem se interesse) assumiu então para mim também o caráter de catalizador de memória e fator de perspectiva sobre um período rico e crucial de vida pessoal no contexto de um país cheio de história: uma história que ao lado de episódios de alto sen tido humano, nos defronta também com fatos de discutível valor ético, que é mister lembrar, em coerência com a verdade documentária em que se baseia a formação de uma consciência coletiva da nação.
O atual filme veio despertar novamente o amargo lití gio. O enfoque empático e equilibrado que apresenta do desenrolar dos fatos daqueles trágicos dias abre uma justa reapreciação do heroísmo de Nitsanim. O esforço do di retor de apresentar um quadro objetivo, leva a indicar um ponto positivo também do lado egípcio, no personagem do jornalista encarregado da reportagem: homem sensível isento da retórica bombástica requerida pelo regime, e ca paz de perceber o valor dos adversários, e dentre eles tam bém corajosas mulheres.
Vittorio Corinaldi é arquiteto formado pela Faculdade de Arqui tetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do Kibuts Broch Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, planejamento e organi zação dentro do movimento kibutsiano. Artigo escrito em Tel Aviv, janeiro de 2022.
Dessa equipe fazia parte também Aba Kovner, encar regado dos textos e legendas relativos ao conteúdo do ma terial apresentado. Lembro-o como personalidade forte e impressionante, mas ao mesmo tempo presunçosa, retóri ca, ciente de sua fama, e pouco maleável no que tocava à posição do Hashomer Hatsair no contexto geral do tema da exposição.Nodecorrer dos anos, em meu trabalho como arquiteto do movimento kibutsiano, criei um contato bastan te íntimo com Nitsanim: não cheguei a projetar lá ne nhum edifício, mas acompanhei o kibuts como consultor adjunto em questões relativas a seu desenvolvimento físi co. Auxiliaram-me nesta tarefa minha qualidade de “vizi nho” (meu kibutz, Bror Chail, se acha a pouca distância mais a Sul), e o passado comum latino-americano de mui tos dos chaverim de ambos os kibutsim.
66 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI era Aba Kovner, figura cercada de notória admiração, por seu então recente pas sado de combatente da resistência judai ca no Gueto de Vilna, e pela conclama ção a não se deixar levar “como gado para o matadouro” (expressão que se fixou no vocabulário do confronto com o genocí dio Abanazista).Kovner sobreviveu ao Holocaus to abandonando a liderança daquela re sistência: o exército soviético havia deti do o avanço nazista em Stalingrado e rei nava no público judeu a ilusória esperança de que o des tino do Gueto mudaria proximamente, não justifican do uma desastrosa e desigual insurreição. E Kovner conseguiu se juntar aos partisans em cujas fileiras lutou até que, terminada a Guerra, fez aliá para um dos kibutsim do Hashomer Hatsair – movimento do qual se tornou ati vo e enfático defensor. Em sua qualidade de oficial adjunto ao comando da Frente Sul, Kovner divulgou um manifesto depois da ba talha de Nitsanim, criticando e condenando expressamen te os membros do Kibuts pela rendição, por ele aponta da como ato de covardia contrário ao espírito e à letra das ordens de combate. Não pensou em fazer semelhante crí tica aos companheiros de Iad Mordechai, que igualmen te abandonaram a luta, mas não passaram pelo trauma do cativeiro. Com isto, e com obstinada recusa de se retra tar, mantida por anos a fio, deu origem a um longo rompimento de relações entre os dois vizinhos kibutsim, e a um ostracismo de sua pessoa, apontada como persona non grata em Nitsanim.
O filme “Retrato de Vitória” do diretor israelense Avi Nesher revive a batalha de 1948 que terminou na rendição dos KibutsremanescentesúltimosdoNitsanimaoexércitoegípcio.
Em 1958, como jovem arquiteto re cém-chegado ao país, fui designado para a equipe encarregada de projetar e executar em Haifa uma grande exposição sobre o kibuts e seu papel na formação do Estado, por ocasião do primeiro decênio deste. Foi um evento de grande envergadura, que re uniu em trabalho interdisciplinar elemen tos de todas as formações do movimento kibutsiano.
w w w . s h . c o m . b r CERTA FAZ SEU PROJETO A PARCEIRA DAR 0CERTO8008998903 N O S S A E S T R U T U R A É F E I TA D E G E N T E E m b u s c a d e u m p a r c e i r o d e c o n fi a n ç a p a r a a s u a o b r a ? E s c o l h a v o c ê t a m b é m a S H ! S ã o m a i s d e 5 0 a n o s o f e r e c e n d o q u a l i d a d e e s e g u r a n ç a a t r a v é s d e s o l u ç õ e s m o d e r n a s e d e e n g e n h a r i a d e p r i m e i r a . A S H é l í d e r n o f o r n e c i m e n t o d e f o r m a s , a n d a i m e s e e s c o r a m e n t o s n o B r a s i l , e c o n t a c o m a m a i o r r e d e d e a t e n d i m e n t o d a A m é r i c a d o S u l . # E u E s c o l h o A S H






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A comunidade judaica de Manaus tem aproximadamente 800 membros, hoje em sua maioria composta pelas terceira e quarta gerações dos pioneiros marroquinos que, em um primeiro momento, se fixaram nas calhas do rio Ama zonas e posteriormente migraram para as capitais, como Manaus, após o fim do ciclo da borracha na década de 30 dos anos 1900. Ainda que esses ciclos te nham se encerrado a tanto tempo, podemos dizer que até hoje impactam po sitivamente na vida judaica amazonense: parte do orçamento anual do Comi tê Israelita do Amazonas (CIAM) é proveniente de aluguéis de imóveis doa dos à comunidade pela família Pinto, prósperos comerciantes daquela época. O órgão que representa oficialmente a comunidade é o Comitê Israeli ta do Amazonas. Fundado em 1929, conta com a sinagoga Beit Yaccov-Rebi Meyr, onde são feitas tefilot durante a semana, nos Shabatot e nos chaguim.
A EMSOLIDARIEDADEMANAUSOsentimentodeajuda ao próximo e de tikun olam não se limitou aos membros da comunidade: nos meses de janeiro e fevereiro de 2021, a população amazonense passou por momentos difíceis, quando, em meio à onda de uma variante violenta do vírus, os suprimentos de oxigênio colapsaram.
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Os encontros sociais são realizados no Clube Hebraica-Manaus, onde também são desenvolvidas as atividades do movimento juvenil Habonim Dor. Nossas
David Vidal Israel N as primeiras décadas dos anos 1800, atraídos pela liberdade religiosa e pela possibilidade de melhoria de vida, muitos homens e mulheres judeus vieram do Marrocos para o interior da Amazônia atrás das ri quezas da floresta, em especial a borracha dos seringais. Vieram com muita vontade de prosperar e fizeram as adaptações que julgaram necessárias em seus costumes para a nova realidade que encontraram. Se hoje existe juda ísmo por aqui, devemos à tenacidade dessas pessoas.
impostas pela Covid-19, como fizeram nossos antepassados, nossa comunidade está passando por processos de adaptação, desta vez às tecnologias virtuais. Os serviços religio sos e as atividades da escola judaica pas saram a ser transmitidos por intermédio do aplicativo Zoom. A Chevra sofreu mu danças para se adaptar às normas sanitá rias vigentes. Outro grande impacto causado pela pandemia foi a diminuição na arrecadação causada pelos sucessivos e ne cessários lockdown que impactam direta mente em nossas receitas de aluguéis.
Por outro lado, os membros da comu nidade judaica manauara têm sido bas tante generosos em prover recursos na forma de apoio financeiro e de trabalho voluntário, ajudando pessoas em situação de risco pela Covid. Os médicos do nos so ishuv têm tido papel importante, cola borando com consultas gratuitas e acom panhando pacientes internados, que aju dam a família e o Comitê a prover maior conforto aos enfermos.

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crianças recebem educação judaica complementar na escola Jacob Azulay. A Che vra Kadisha conta com estrutura neces sária para a realização de seus serviços e, além do cemitério do centro, já possui lo cal novo licenciado. Contamos também um serviço de assistência social regular, que provê mais de 15 famílias com algu ma ajuda financeira mensal e bolsas de es tudos patrocinadas pelo fundo “Samuel Benchimol” para jovens acima da idade de Barmitsvá que mantêm rendimento escolarDevidosatisfatório.àscondições
As ofertas de ajuda e o apoio moral que recebemos da comunidade da ARI e de muitas outras do nosso país, assim como a presença de seus membros em nossos eventos virtuais, como a Havdalá com a participação do rabino Margulies, nos deram a certeza de que somos importantes para nossos irmãos do Brasil e do mundo.
Se por um lado vivemos momentos tristes, quando per demos em cinco semanas cinco membros de nossa comu nidade pela Covid (no total nove em oito meses), por ou tro lado constatamos que não estamos sozinhos. As ofertas de ajuda e o apoio moral que recebemos da comunidade da ARI e de muitas outras do nosso país, assim como a pre sença de seus membros em nossos eventos virtuais, como a Havdalá em 23-2-2021, com a participação do rabino Margulies, nos deram a certeza de que somos importantes para nossos irmãos do Brasil e do mundo.
David Vidal Israel é presidente do Comitê Israelita do Amazonas para o Biênio 2020-2021. Este artigo foi escrito em março de 2021.

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Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 71
Esse sentimento de ajuda ao próximo e de tikun olam não se limitou somente aos membros da comunidade: nos meses de janeiro e fevereiro de 2021, a população amazo nense passou por momentos difíceis, quando, em meio à onda de uma variante violenta do vírus, os suprimentos de oxigênio colapsaram. A cidade de Manaus, com quase 2,4 milhões de habitantes, está localizada no centro geográfico da Amazônia e é cercada pela floresta. Nosso abastecimen to é feito quase que exclusivamente pelos rios. Há quem diga que se a estrada que nos liga ao sul e sudeste tivesse boas condições de tráfego, essa tragédia teria sido menor. Nesse contexto, membros de nossa kehilá encabeçaram lis tas de doações para o sistema de saúde local e o CIAM orientou que todas as ofertas vindas de membros de ou tras comunidades fossem canalizadas para estas iniciativas.
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Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 73
Pessach representa a passagem da opressão à liberdade, delineada pela ação e poder divinos. Toda a narrativa de Pessach é uma alegoria do poder de Deus sobre as divindades egípcias e sobre a natureza. Em forma progressiva e grada tiva, as pragas enviadas ao Egito demonstram a superioridade de Deus sobre qualquer outro panteão de deuses. E a travessia do Mar dos Juncos (ou Mar Vermelho) demonstra o poder de Deus sobre as forças da natureza.
Pessach marca o nascimento de Israel como uma nação física. Por esta razão, as analogias entre o êxodo do Egito e o nascimento de um bebê não são inco muns: Góshen, a fértil região egípcia onde os israelitas viveram, é comparada a um ventre. Mitsráim (Egito), que contém a raiz hebraica do “tsar”, “estreito”, “estrito”, “angústia”, é comparado com o canal do parto, e depois vem o nasci mento, com seu gran finale em meio à divisão das águas.
Shavuot, no outro extremo, representa a revelação divina no Sinai. Repre senta a consumação do êxodo, no qual Deus apresenta a solene aliança (brit) com o povo de Israel, dando-lhe instruções, estatutos e leis. Esta aliança é mol dada de acordo com os pactos de vassalagem dos povos do antigo Oriente Mé dio. Um modelo que se baseia em tratados, nos quais um rei mais fraco acei tava um rei mais poderoso como seu superior, e toda a população se subordi nava a esse rei.
O pacto do Sinai era único: um acordo entre uma deidade e um povo para criar um novo relacionamento iniciado por Deus através da abolição da escravatura. Requeria uma resposta do povo para ser um “reino de sacerdotes” e uma “nação santa” (Êxodo 19:6) e dando uma série de orientações de como consegui-lo.
ALIANÇA
A ETERNA
Martín Hirsch A Eterna Aliança
A s festividades de Pessach e Shavuot estão intrinsecamente conectadas.
Não só por causa da contagem das sete semanas do Omer, mas tam bém devido ao impacto dessa conexão na configuração do judaísmo ao longo dos séculos.
74 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI

Outra característica notável da aliança do Sinai é que seu texto levou em conta cada indivíduo de Israel, consi derado um membro responsável pela comunidade. Isto se reflete nas palavras de Moisés: “O Senhor, nosso Deus, fez uma aliança conosco em Chorev.2 Não com os nossos pais foi feita essa aliança, mas conosco, os que estamos vivos, com cada um de nós que está aqui hoje”. (Devarim / Deu teronômio 5:2-3)
O pacto do Sinai era único: um acordo entre uma deidade e um povo para criar um novo relacionamento ini ciado por Deus através da abolição da escravatura. Reque ria uma resposta do povo para ser um “reino de sacerdo tes” e uma “nação santa” (Êxodo 19:6) e dando uma série de orientações de como consegui-lo. Embora os outros povos do Oriente Médio já tivessem leis de conduta contra homicídio, roubo etc., essas leis es tavam formuladas como “se... então”. Se alguém cometesse assassinato, então receberia tal punição. Por outro lado, o decálogo do Sinai o declara em forma absoluta: “Não ma tarás”, “não roubarás”. Em outras palavras, a aliança do Sinai apresenta princípios universais e éticos. Se algum des ses atos for cometido, não se trata apenas de ilegalidade na conduta, mas é, além disso, um comportamento impróprio que viola princípios universais.
Uma evidência histórica dessa relação de subordinação pode ser encontrada nos tratados dos hititas com reis su balternos (1350 aec.), cujas formulações oferecem um pa ralelo próximo ao tratado de Deus como soberano sobre Israel, descrito na Torá.1 A estrutura de tais tratados era a seguinte: começaram com um preâmbulo e um prólogo histórico, depois vinha uma série de bênçãos concedidas pelo soberano, seguidos pelas cláusulas do acordo, que in cluíam a promessa do protegido de não se aliar a outros reis, e concluíram com uma série de maldições em caso de incumprimento.Muitosdesses elementos podem ser encontrados na aliança do Sinai entre Deus e Israel: “Eu sou o Senhor” (preâmbulo), “que vos tirou do Egito” (benefícios conce didos); “Não tereis outros deuses” (proteção exclusiva), se guidos das condições enumeradas nos mandamentos. Ou tros tratados que se assemelham à estrutura encontrada no tratado do Sinai são os tratados neoassírios (670 aec.). No entanto, de todos os tratados do antigo Oriente Médio, apenas Israel concebeu a sua relação com uma di vindade como um pacto. Isto é surpreendente, uma vez que os pactos eram acordos políticos, militares, econômi cos ou conjugais, mas não incluíam uma divindade. A função desse pacto era definir a relação exclusiva entre um povo e o Deus único. Os dois primeiros mandamentos de finem uma relação personalizada, uma vez que Deus tem um interesse especial em que Israel não se envolva com outros deuses.
Essa aliança é mais do que um antigo tratado de su jeição, já que representa um dos fundamentos do judaís mo: Deus está preocupado com a forma como nos trata mos uns aos outros.
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O judaísmo atual se intitula “judaís mo rabínico” porque se baseia na Torá Oral, desenvolvida ao longo dos séculos, em vez de tomar a Torá Escrita na sua literalidade. E isto se aplica a todas as cor rentes do Judaísmo. O pacto do Sinai é eterno e o seu eco é moldado às necessidades dos tempos, sem perder o seu alicerce na Torá de Moisés.
O desenvolvimento da Torá Oral não teria sido possí vel sem a consideração que eles sentiam de ter o direito de interpretar a Torá Escrita para manter a presença de Deus entre o povo judeu.
Assim, surgiu uma variedade de pensadores judeus que justificavam a fé e a ação com base no pensamento racio nal. Alguns, como Hermann Cohen, pensavam que a re velação era resultado de um pensamento racional sobre Deus.O rabino neo-ortodoxo Raphael Shimshon Hirsch aplicou a razão para explicar que Israel era uma nação em virtude das leis divinas, e que receberia a terra de Israel a fim de aplicar ali essas leis. Em contraste, as outras nações possuíam primeiramente uma terra e, só então, criavam as suas próprias leis.
Eles se apoiaram no versículo da Torá que diz: “Con forme ao mandado da lei que te ensinarem, e conforme ao juízo que te disserem, farás. Não te afastarás das pala vras que te declararem”. (Devarim / Deuteronômio 17:11)
Para Martin Buber, não devemos perceber o judaísmo como uma série de leis de querelaçõesobrigatório,cumprimentomas,sim,comoapromoçãodeespeciaiscomoutrossereshumanos,elechamou“relaçãoEu-Tu”,deixandodeladotodooutilitarismo,umavezque,emtodasasrelaçõessinceras“Eu-Tu”,nosalinhamoscomo“TuEterno”.
Isto confere à aliança uma dimensão eterna, uma vez que ela se renova de gera ção em geração. Cada vez que uma pessoa aceita os ditames éticos da Torá, está rea cendendo a aliança. Mais ainda, é como se ela própria estivesse diante do Monte Sinai escutando a voz de Deus. Para os profetas, a dimensão eterna e imutável da aliança implicava que, mes mo que o povo não cumprisse as exigên cias e caísse na idolatria, a justiça divina recairia sobre o povo na forma de um ini migo externo. Contudo, o castigo era ate nuado pela compaixão divina, que, para além da destruição, prometia um futuro glorioso. Isto salientava o carácter eterno da aliança entre Deus e Israel.
Como não havia sacerdotes ou profetas, os sábios in terpretaram que eles herdaram a autoridade legítima para continuar o trabalho interpretativo, de modo que a alian ça eterna pudesse ser aplicada em cada tempo.
Parece uma ideia revolucionária, mas no primeiro capítulo da Mishná Pirkei Avot, o Tratado de Princípios dos Sábios, esta ideia é apresentada de forma pragmática, uma vez que é apresentada uma longa cadeia de tradição reve lada, começando no Sinai: “Moisés recebeu a Torá no Si nai e a transmitiu a Josué, e Josué aos anciãos, e os an ciãos aos profetas, e os profetas transmiti ram-na aos membros da Grande Assem bleia (que por sua vez a transmitiram aos sábios)”.Elesforam ainda mais longe ao indi car que já não era o tempo dos profetas, quando escreveram o Talmud: “Desde o dia em que o Templo foi destruído, a pro fecia deixou os profetas e foi entregue aos tolos e às crianças”. (Bava Batra 12b) Os autores da Torá Oral estavam cer tos de que as leis propostas não eram uma invenção pessoal, mas que derivavam de princípios da Torá Escrita.
O rabino reformista Léo Baeck enfatizou o fato de “todo o povo” ter participado do encontro do Sinai. Não estava presente apenas uma elite ou alguns escolhidos, e isso, de acordo com o seu pensamento, é um princípio fun
O Iluminismo: Uma época de mudanças Do século XVII em diante, o surgimento do Iluminismo mudou radicalmente a compreensão da aliança e a na tureza da revelação. Os judeus, e a cultura ocidental em geral, preferiram confiar na razão como a principal forma de compreender o mundo e Deus.
A aliança na época talmúdica Para os nossos sábios, a aliança é recriada continua mente através do relacionamento entre Deus e Israel. Cada Shabat e cada festividade é visualizada como um “ot”, um “sinal” do concerto eterno. Os sábios do Talmud com preenderam a necessidade de reconstruir a vida judaica em tempos nos quais a centralidade do Templo de Jerusalém já não existia e a diáspora se mostrava em franco crescimento.
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Para Martin Buber, portanto, a revelação no Sinai não foi uma mera entrega de palavras, mas a revelação de Deus.
Franz Rosenzweig, filósofo da primei ra metade do século XX, argumentou que quem quiser acreditar na realidade da teo fania e, além disso, quiser se enfrentar a todas as dificuldades literárias e históricas do texto bíblico, deve concluir que tudo o que o povo experimentou no Sinai foi a “avassaladora presença divina”, que os motivou a aceitar Deus como uma força exigente nas suas vidas.
Martín Hirsch é estudante de rabinato no IIFRR – Instituto de For mação Rabínica Reformista.

A Torá desenvolve um humanismo idealista, ao indicar que devemos nos ocupar do bem-estar dos pobres, dos menos favorecidos e dos oprimidos, a fim de criar uma sociedade ideal.
76 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI dacional. Portanto, ninguém pode assumir a tarefa do outro, cada pessoa tem so bre si a responsabilidade de manter a exis tência unificada de Israel e a sua aliança.

Aqui vemos o pensamento da escola existencialista, que ensinou que o conhecimento de qualquer assunto começa pela compreensão da experiência individual de cada pessoa.
Todas as palavras da Torá são um registro das percepções das pessoas que participaram no Sinai. A narrativa da Torá é importante porque testemunha a experiência de Deus.

A descrição da Torá desse evento, e os mandamentos, são reações humanas ao estar em contato com Deus. A con sequência dessa experiência consiste em recriá-la em cada momento da vida, através do nosso relacionamento com o próximo. Portanto, não devemos perceber o judaísmo como uma série de leis de cumprimento obrigatório, mas, sim, como a promoção de relações especiais com outros se res humanos, que ele chamou “relação Eu-Tu”, deixando de lado todo o utilitarismo, uma vez que em todas as rela ções sinceras “Eu-Tu”, nos alinhamos com o “Tu Eterno”. A aliança monoteísta de amor No Sinai, a Torá enfatiza o amor de Deus pelo povo de Israel. Trata-se de uma divindade próxima, mas de uma forma espiritual, não física, que, por sua vez, demanda a lealdade de Israel. Por esta razão, há passagens no sentido de “amarás a Deus com todo o teu coração”. Esse amor é aperfeiçoado através do monoteísmo: a ardente e apaixona da defesa de Moisés acerca do monoteísmo moldou e sus tentou o judaísmo durante séculos. O monoteísmo atin ge o seu mais alto grau no versículo incluído no capítulo 6 de Deuteronômio: “Shemá Israel Adonai Eloheinu, Ado nai Echad”, “Ouve, ó Israel, Adonai é o nosso Deus, Ado nai é único”, o que, para muitos, represen ta a própria declaração de fé do judaísmo. No entanto, o judaísmo não é uma re ligião exclusivamente baseada na fé, nem é uma simples crença num Deus único, mas é uma relação com Deus e com os seres humanos. Uma relação que é aper feiçoada pela ideia da transcendência de Deus, da Sua justiça e da Sua ética. Uma relação estreita entre Deus e o Seu povo, baseada na “avassaladora experiência da presença divina”, nas palavras de Rosenzweig. Moisés exorta a viver de acordo com o monoteísmo e seus valores, perseguindo a justiça e o direito, vivendo em harmonia com o nosso próximo e com Deus. Além disso, Moisés explica que o bem-estar depende da manutenção de uma sociedade na qual imperem os valores da ética e da justiça expressados na Torá. Não devemos ver esses va lores como impostos pela força, mas como um verdadei ro presente de Deus. A Torá desenvolve um humanismo idealista, ao indi car que devemos nos ocupar do bem-estar dos pobres, dos menos favorecidos e dos oprimidos, a fim de criar uma so ciedade ideal. Esse ideal está representado nos elevados va lores morais do judaísmo reformista: respeito pelo ser hu mano, inclusão, tolerância e justiça. O impacto da reve lação divina tanto em yetsiat Mitsráim – “a saída do Egi to” – como no Sinai reflete-se nas ações e nos pensamen tos do povo de Israel. Bibliografia Plaut W., Gunther. rican Hebrew Congregations, New York, 1981. Lieber, David; Dorff, Elliot. Rabbinical Assembly, New York, 2001.
Traduzido do espanhol por Kelita Rejanne Cohen. Notas 1 Plaut W., Gunther, 2 Chorev é outro nome usado na Torá para o monte Sinai.
/ Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 77cejmishkan@gmail.com





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As quatro espécies de Sucot representam um costume bem judaico, não é? Talvez, porém mais provável, um ritual pagão de fertilidade.2 Até a melodia “tradicional” mais conhecida da canção litúrgica Ein Keeloheinu talvez tenha origens não judaicas. De acordo com uma teoria, ela vem de uma canção ale mã de bar ou de um hino da igreja luterana.3
O homem moderno está sempre à procura de significado para sua vida. Tendo estado em comunidades judaicas em muitas partes do mundo, me dou a liberdade de fazer uma revelação audaciosa. Em qualquer sábado de manhã,
YOGA SINAGOGA?NA
Relevância, adaptabilidade e mudanças não foram perigos para a nossa sobrevivência, mas, ao contrário, a chave para entender o mistério do nosso passado, o significado de nosso presente e a importância do nosso futuro.
Rabino Beni Wajnberg S
abe os biscoitinhos de Purim, Oznei Haman ou Hamantaschen? Sim bolizam as orelhas de Haman, ou o chapéu do Haman, não é? Bom, de acordo com a revista Time1, nada disso. O biscoito que virou si nônimo de Purim vem de um biscoito que tinha ficado famoso na Europa chamado Mohntaschen, literalmente “um bolso de papoula.”
O meu ponto é o seguinte: temos medo de influências externas e assimila ção como a principal ameaça ao futuro do povo judeu, quando na verdade ela aconteceu por todos os séculos, sempre enriquecendo as práticas e os costumes de nossos ancestrais. De certa maneira, o judeu respira um ar fresco e vivo, que reenergiza sua prática e conexão com o passado. Relevância, adaptabilidade e mudanças não foram perigos para a nossa sobrevivência, mas, ao contrário, a chave para entender o mistério do nosso passado, o significado de nosso pre sente e a importância do nosso futuro.
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80 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI a maior parte das comunidades tem menos congregantes na sinagoga do que em estudos de yoga, em academias se exercitando ou relaxando na praia, na montanha ou onde for. Temos, então, duas alternativas: ou batemos a cabe ça contra a parede e choramos, ou procuramos entender o porquê desse fenômeno, e procuramos integrar as ma neiras pelas quais as pessoas em 2021 caminhem suas jor nadas espirituais ao nosso Judaísmo para que ele continue vivo. Eu sou um forte proponente da segunda opção. Até porque gosto da melodia do Ein Keelokeinu, independen temente de sua origem. Na verdade, tem muita coisa kasher no yoga. Conec tá-lo com Yidishkeit e com a sinagoga não é muito difícil. Quando terminamos a nossa análise, apreciaremos mais os judeus que rezam em um sábado num estúdio de yoga, mexendo seus corpos em sincronia com sua respiração.
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Talvez até sintamos que é interessante de vez em quando trazer o yoga para dentro da sinagoga, e criar um minian Shal-OM praticando essa arte e exercício como um shacharit integrado. Como rabino, a minha prática de yoga me trouxe mais próximo ao Judaísmo e ao Sagrado. A Espiritualidade Yoga é muito mais do que só exercício. Exercício é uma parte importante da prática, mas de maneira alguma resu me a essência da experiência para os estudantes e pratican tes. Yoga vem da palavra em sânscrito Yuj, que quer dizer “unir” ou “trazer junto”. Corpo e alma, o mundano e o es piritual, se reunindo. Essa e a definição de yoga. Não por coincidência, também é como muitos líderes espirituais judeus viram o objetivo de nossa tradição. Os chassidim (quando ainda eram revolucionários e não reacionários e ultraortodoxos como são hoje) criaram o costume de hitbodedut. Entravam no meio da floresta para se aproximar de Deus, e começavam a falar, sentin do e vendo Deus diretamente em frente a eles, ao invés de um ícone sentado em um trono celestial recompensando ou castigando. Eles também falavam de dvekkut, um pro cesso de estarem diretamente ligados (literalmente cola dos) a Deus. O Judaísmo desenvolveu por meio do misti cismo aplicado uma maneira de entender a dicotomia en tre “corpo” e “alma” como uma ilusão. Reb Nachman de Bratislav ensinou que existem camadas da realidade en terradas no que observamos, e que podemos revelar o que estáEsseescondido.conceito de rezar ser só uma obrigação que ho mens (e só homens) devem fazer, como uma pessoa indo ao mercado com uma lista de obrigações, não só é insuficiente como também um detrimento e insulto à riqueza da vida espiritual. Reb Zalman Schachter-Shalomi, fundador do movimento Renewal no Judaísmo, escreveu em Jewish with Feeling que Judaísmo não é igual a comprar uma fruta no mercado, que foi limpada e tratada para durar em uma

Quer encontrar Deus? Você O encontrará em cada respiração. Esqueça um homem sentado em um trono celeste mandando relâmpagos como castigo, concentre-se no respirar do seu corpo e da natureza e você entenderá a contribuição do yoga para a teologia judaica.
“Kol HaNeshamá Tehalel Yá”, procla ma o Salmo 150. Normalmente tradu zimos esse verso como “Todas as almas (ou ‘tudo que tem uma alma’) louvam a Deus”. Mas adicione um yud à palavra Neshamá e ao invés de alma temos respi ração, neshimá. Como na história bíblica, que Deus respira uma alma para as fossas nasais de Adão. Toda respiração é um louvor a Yá. E quem é esse/essa Yá? Bote sua mão no lugar onde seu pescoço se une ao seu peitoral e senta a vibração que vem com a palavra, como uma exalação. Podemos então traduzir o verso do salmo como “Toda inalação louva com o exalar sa grado”. Se você ainda não está convencido, basta olhar o nome sagrado de Deus, o nome de quatro letras: Yud Hey Vav Hey. As vogais têm que ser descartadas, porque, como sabemos, no original, na Torá, as vogais não exis tem. Adonai também é um nome artificial, criado como tentativa de resolver essa falta de vogais – e uma tentativa extremamente complicada, porque acabou ficando na forma plural em hebraico com o sufixo “ai” significando Senhores. Como sabemos, Judaísmo fala da união e unidade do sagrado, então Adonai não faz muito sentido. Então, tire todas as vogais e tente pronunciar YHVH.
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Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 81 prateleira. Judaísmo é mais como ir à ma cieira, morder uma fruta direto da árvo re, e sentir a doçura do fluxo de vida que se une com o seu! E ele diz que Judaísmo pasteurizado, tratado, artificializado é um Judaísmo morto e irrelevante. Para que trazer o yoga para a sinagoga?
O yoga, sendo um manifesto da capacidade de unir o corpo com a alma, se trans forma no pior dos casos em um lembrete de qual é o objetivo da prática espiritual. E no melhor dos casos, ele vira um con vite a participar desse processo de unifica ção de uma pessoa com toda a unidade da energia espiritual que existe no mundo. A Pranayama Uma parte principal da prática do yoga para atingir essa unificação é a pranayama, a prática de respiração in tencional. A respiração vem a ser vista como a conexão en tre o corpo e o sagrado, e sua prática como um caminho a uma elevada consciência. Respiramos, claro, muitas vezes por minutos. Mas fazemos isso inconscientemente, como um reflexo involuntário. Porém, diferentemente de outros reflexos involuntários como o bater do coração, a respira ção podemos controlar, tornando-a única e especial.

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Faça certo e vai realizar algo extremamente importante. O nome de Deus não é Adonai. O nome de Deus é uma exalação. Quer en contrar Deus? Você O encontrará em cada respiração. Esqueça um homem sentado em um trono celeste mandan do relâmpagos como castigo, concentre -se no respirar do seu corpo e da natureza e você entenderá a contribuição do yoga para a teologia judaica. Por que eu pra tico yoga? Porque o yoga me ajuda a de senvolver minha teologia judaica como rabino, simples assim. A Asana Asana em sânscrito significa “sentado” e se refere à pri meira imagem de yoga que vem à nossa cabeça pelo senso comum: a parte do exercício. As poses do yoga são sincro nizadas com a respiração e têm como objetivo o mesmo do que qualquer outra parte da prática: essa reunificação entre o corporal e o espiritual. A prática é uma de concen tração, sensibilidade e agilidade. O praticante procura co nexão com o chão e com a natureza, movendo sua energia interior em sincronia com a energia exterior. Como pode o exercício ser prática espiritual? Em pri meiro lugar, temos que discutir a importância do corpo como veículo da conexão com o sagrado. A benção Asher Yatsar em nosso Sidur agradece pela maneira com a qual os nossos órgãos nos dão a capacidade de vida. E em She mot 25:8, a Torá diz: “Vaassu li mikdash veshachanti beto cham”. “Construam para Mim um santuário, e Eu viverei dentro deles”. A princípio, parece que temos um problema de gramática. Se os nossos antepassados construíssem um santuário, imaginaríamos que seria para que Deus tomas se residência nesse lugar especial. Mas o versículo diz algo diferente. Façam o santuário, mas Eu morarei dentro de vocês. Deus não mora num lugar, mas dentro de cada um. O santuário é o corpo. Cada um de nós aluga pelas nossas vidas uma sinagoga própria de nós mesmos. Deus resi de dentro de nós. O que ingerimos impacta não só física, mas espiritualmente, a nossa “sinagoga” privada, o nosso santuário individual. O que fazemos com nossa estrutura óssea, com nossos órgãos, com nosso corpo tem impactos diretos na nossa capacidade de lembrar da espiritualidade interior. Mexer o corpo com intencionalida de, fazendo-o mais forte, mais flexível, e mais conectado com a nossa respiração, pode virar prática religiosa. Pode dar -nos a capacidade de internalizar mais esse sentimento do sagrado por meio de cada movimento, gota de suor, batida rá pida de coração. Tapas Não, tapas não são uma referência à culinária espanhola. Se refere a limitações e circunstâncias de desconforto temporá rias que resultam, a longo prazo, numa melhoria em nos sas vidas. Parte tem a ver com limitação do que, como e quanto se come para que a alimentação seja também um exercício espiritual de atenção plena, e parte com o des conforto que pode vir de se adaptar a uma vida diferente de busca espiritual, como, por exemplo, limitações iniciais de flexibilidade em movimento. O Judaísmo também vê valor em mudar nossas vidas mesmo que cause desconforto. Até os costumes de ka sherut, do que se come e do que não se come, podem ser entendidos dessa maneira. A tradição judaica não tinha como visão a indústria kasher, que tende à busca do lu cro financeiro e político. Não, ao contrário, kasher em hebraico quer dizer “adequado” para o consumo. Mais do que o produto final, tem a ver com a intencionalidade de cada pessoa. Nos concentramos no que está diante de nós mesmos e pensamos se consumir aquilo vai contribuir na nossa jornada espiritual. Eu diria que considerações am bientais, de sustentabilidade e de condição de vida dos trabalhadores que produzem o que comemos têm que ser necessárias, e devem ser vistas também pelo prisma de discernimento do que é verdadeiramente kasher.
Da mesma maneira, em Yom Kipur, por exemplo, mu damos a nossa vida nos colocando em desconforto temporário por um motivo sagrado: avaliar as nossas prioridades e a maneira pela qual nos relacionamos com nossas vidas e nosso universo. E em Pessach comemos o maror para internalizar a amargura do passado, talvez dando novo valor à nossa liberdade e vida. Também falamos no Seder que Talvez possamos ver o Judaísmo mais como um playground experimental do que como um museu. Podemos nos machucar de vez em quando, mas participando, brincando e decomprometidosmaissairemosexperimentandomaisfortes,conectados,maise,acimatudo,maisinspirados.
O Rabino Beni Wajnberg é cria da ARI e se formou no Hebrew Union College em Los Angeles. Depois de sua formatura, serviu à sinagoga Shaarei Tefilá em Nova York e atualmente ao Temple Beth Rishon em Nova Jersey. Em junho ele deve se mudar para Singa pura com a finalidade de servir à United Hebrew Congregation, a maior sinagoga reformista na Ásia. Notas 1 https://time.com/4695901/purim-history-hamantaschen/ 2 cies-on-sukkot-1.5450033https://www.haaretz.com/jewish/MAGAZINE-why-do-jews-shake-the-four-spe 3 http://www.chazzanut.com/articles/on-ein-keloheinu.html
Por que introduzir o yoga na sinagoga? Por que não? Já introduzimos costumes pagãos e can ções estrangeiras sem ameaçarem nossa sobrevivência. No pior dos casos, nada ruim acontece. Talvez, judeus que já encontram relevância no yoga reencontrem a relevância na sinagoga e no Judaísmo, vendo como os dois são relacio nados e se comunicam um com o outro. No melhor dos casos, o yoga pode fazer de cada um de nós judeus melhores. Conectados à nossa respiração, aos nossos corpos e à maneira com a qual consumimos. Tal vez nós também vejamos mais relevância no Judaísmo fora de um museu, olhando como espectadores ao que deve ser cuidado com medo e distância como uma parede de vi dro. Talvez possamos ver o Judaísmo mais como um playground experimental do que como um museu. Podemos nos machucar de vez em quando, mas participando, brin cando e experimentando sairemos mais fortes, mais conectados, mais comprometidos e, acima de tudo, mais inspi rados. Não é esse o tipo de Judaísmo que nossas crianças acharão mais interessante? Não é esse o tipo de Judaísmo que queremos deixar para o futuro?

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 83 se não refletirmos em Pessach, matsá e maror não cumprimos nosso objetivo. Não basta apenas comer. É parar, re fletir, internalizar e saborear. Pode demorar mais, pode ser desagradável, mas nos leva a um lugar de maior aprecia ção e maturidade.
Drozdova/iStockphotoAnna
E isto é apenas o começo. Centenas de videos espalhados pelos três andares do grande prédio abordam todos os traços culturais e históricos da imponente jornada judaica pelos quatro cantos do mundo: desde a religião com todas as suas correntes às mais variadas expressões culturais e desenvolvimento filosófico e científico.Apartir de agora, nenhuma visita a Israel estará completa sem uma visita ao Anu anumuseum.org.il).(https://www. ü
EM POUCAS PALAVRAS
84 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI
Em maio de 1978 foi inagurado dentro da Universidade de Tel Aviv o espetacular museu chamado Beit Hatefutsot – a Casa das Dispersões – e dedicado a exibir as características, cores e sabores da vida judaica nos milênios em que ela evoluiu fora de Israel.
O Museu era um verdadeiro curso intensivo de judaísmo. As fontes, as riquíssimas variedades culturais, os fortes laços de união e solidariedade, tudo estava exibido lá, num museu que não exibia objetos e sim história. Em março de 2021 o Museu foi reinaugurado no mesmo local, com UM VELHO-NOVO MUSEU EM ISRAEL em poucas palavras
a mesma proposta, mas com uma renovação espetacular e um novo nome – Anu (nós em hebraico) –Museum of the Jewish People. Os recursos audio visuais foram explorados em toda a sua intensidade. Por exemplo, o maravilhoso mosaico na entrada do Museu, que mostrava a diversidade de rostos judaicos, foi substituído por um conjunto de uma dezena de grandes telas onde judeus de todo o mundo se revezam contando como enxergam a sua identidade judaica. São muitas dezenas de depoimentos, todos eles interessantes.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 85 em poucas palavras PeopleJewishtheofMuseum–ANUFotos: Fotografias do Museu Anu (nós, em hebraico), reinaugurado em 2021 no local onde existia o Beit Hatefutsot, dentro da Universidade de Tel Aviv.


em poucas palavras Em 2021 o Tribunal Penal Internacional (ICC em inglês) anunciou sua decisão de exercer jurisdição sobre Israel e Palestina com o propósito de processar Israel por supostos crimes de guerra durante a guerra de 2014 em Gaza e a conduta de Israel contra a violência palestina que emana de Gaza.
Tal jurisdição estabelecerá um precedente perigoso para cidadãos de todas as nações que podem se tornar as próximas vítimas de um crescente populismo internacional. Eis que dois problemas centrais confrontam a decisão do ICC: Israel não é signatário do Estatuto de Roma, que formou o ICC e a Palestina não é um Estado e não estabeleceu quais as suas fronteiras. A decisão de estender a jurisdição não foi unânime (foi por 2x1). O juiz Péter Kovács escreveu uma forte opinião divergente. Porém, agora que a decisão foi tomada, é importante considerar: quais serão as consequências da decisão?
Resistimos à tentação de qualificar críticas a Israel como sendo oriundas de antissemitismo. Mas, neste caso, a resistência é quebrada. O duplo padrão contra Israel fica evidente, pois o ICC nunca julgou os líderes da Síria pelos ataques químicos e convencionais contra seus civis; nunca julgou os líderes da China pelo encarceramento de milhões de muçulmanos em campos de “reeducação“, e tantos outros casos. Milhões de vidas poderiam ter sido salvas pela aplicação adequada da missão do ICC. Em vez disso, o ICC, um corpo político não eleito e não democrático, está tentando aplicar um poder não controlado com base em agenda política. Isso prejudica a confiança global nas instituições internacionais e na própria natureza do Direito Internacional, apresentando assim danos sérios e de longo prazo ao crescimento do nosso mundo como uma comunidade global cooperativa. ü
O Direito Internacional não é uma compilação de legislação no senti do clássico, mas uma coleção de tra tados que Estados soberanos con cordaram em obedecer. Nesse caso, o tratado relevante é o Estatuto de Roma. Como Israel não assinou este tratado, na prática, o ICC se auto ou torgou o poder de exercer autoridade sobre qualquer nação soberana, uma noção que viola a própria natureza do direitoQuandointernacional.asnações concordam com um tratado, esse acordo pode e deve ser aplicado por órgãos que as várias nações designaram para esse fim. No entanto, neste caso, o ICC determinou que é aceitável impor um acordo a partes que não o assinaram.

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E isto é muito importante, pois o ICC tem poderes para emitir mandados internacionais de prisão e impor punições a lideres nacionais, soldados e até civis. Assim, Israel poderia potencialmente encontrar seus líderes incapazes de viajar para o exterior e até mesmo jovens soldados israelenses que guardaram um posto de controle serem definidos como “criminosos de guerra“ e presos por décadas. Não é certo que esse desfecho extremo aconteça, mas de acordo com a formulação específica do Estatuto de Roma, isso é possível.
palavras
FANTASIAS
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devarim | 87 em poucas Em fevereiro de 2021, no auge da crise do COVID, um dos apresentadores de um popular programa humorístico norteamericano conta uma piada: “Israel anunciou que já vacinou metade de sua população. Eu suponho que seja a metade judia da se indignaram. Es pernearam nas redes sociais: “Que absurdo!“; “Todos sabem que Israel está vacinando todos os seus cida dãos, judeus, muçulmanos, cristãos, drusos.“; “Israel falha tremendamente na transmissão de sua imagem para o mundo!“; “Como podemos esclarecer melhor a imprensa?“. Outros abrem os olhos: quão oportuna foi esta “piada“! Ela revela os lobos debaixo das fanta sias dos cordeiros. Fica a sensação que não adianta esclarecer os autores dos ataques infundados contra Israel e os judeus, Em fevereiro deste ano a ONG “Anistia Internacional“ (Amnesty International) publicou mais um relató rio qualificando o tratamento dos pa lestinos por Israel como “apartheid“, apontando que um dos motivos para sejam eles irônicos ou em qualquer outro formato. Os que atacam Israel ancorados em falácias realmente nos odeiam e, escondidos por trás de suas fantasias, vêm nos dizendo isso há algum tempo. ü MUITAS DOS LOBOS O PECADO IRREDIMÍVEL

esta qualificação deriva da forma como Israel foi criado: “No proces so do estabelecimento de Israel como um estado judeu em 1948, Israel ex pulsou centenas de milhares de pales tinos e destruiu centenas de aldeias palestinas, no que equivaleu a uma limpeza étnica“ Esta qualificação é falsa e injurio sa. Falsa porque 20% da população do Estado de Israel pertence à minoria árabe que teria sido exterminada. E in juriosa porque foram os países árabes que atacaram o nascente Israel, e não o contrário.Porém,a declaração é ainda mais nefasta, pois caso o presumido apar theid israelense provém de sua cria ção a única solução possível para afastar esta qualificação seria desfa zer o PoisEstado.éfato que o tempo não vol ta para trás o que resulta na impos sibilidade de Israel se livrar do “gran de pecado“ de não ter permitido que sua população judia fosse massacra da pelos invasores árabes. ü
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CONSTRUINDO A PALESTINA por poder. Por exemplo, em 12 de novembro de 2007 homens armados do Hamas atiraram em um comício organizado pela facção palestina Fatah em comemoração do falecido Yasser Arafat. Muitos foram mortos. Milícias do Hamas massacraram os combatentes do Fatah, jogando homens feridos do telhado de um prédio de 15 andares para a morte. Os palestinos devem refletir sobre por que, após lutar por 100 anos, seu sonho de um Estado continua não realizado. Eles precisam se perguntar por que países minúsculos em
Qualquer que seja o seu lado do conflito árabe-israelense, você não pode negar a coragem e perseverança do povo palestino. Por gerações, eles vivem como cidadãos apátridas, por um lado enfrentando Israel, que controla suas vidas cotidianas, e por outro lado, suportando sua própria liderança, que os traiu em todas as oportunidades. É triste ver sua busca centenária por um Estado prejudicada pelo mal do Hamas, que transformou a legítima luta nacional palestina em uma Jihad Islâmica contra os judeus. Gaza poderia ter se tornado uma vitrine do esclarecimento e iniciati va árabe depois que Israel se retirou do território em 2005. Ela poderia ter se tornado um paraíso turístico e um cadinho para o aprendizado e as ar tes, ciência e tecnologia. Não faltaram incentivos para isto. Em vez disso, Gaza se tornou uma ditadura islâmica de um partido sob o Hamas, dedica da à destruição do Estado de Israel. E não apenas israelenses foram alvos de morte. Palestinos que se opõem ao Hamas também foram massacrados em sua luta
poucas palavras

em poucas palavras
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ElHajj/iStockphotoAbdallah
sob ocupação por inimigos maiores se tornaram nações independentes, enquanto a criação de um Estado palestino permanece fora de alcance. Durante 400 anos Timor Leste foi colonizado por Portugal e em 1975 foi ocupado pela Indonésia. Um milhão de timorenses, na sua maioria católicos, travaram uma amarga guerra contra a enorme Indonésia islâmica e sua população de 300 milhões de pessoas. Em 2002, Timor Leste conquistou a independência. Em 1962, a Eritreia foi anexada pela Etiópia, seu vizinho maior. Isso desencadeou uma guerra de 30 anos que envolveu sequestros e assassinatos, deixando cicatrizes em uma geração inteira. No entanto, em 1991, após um referendo supervisionado pela ONU, a Eritreia ganhou a sua independência. O Kosovo, de maioria islâmica, declarou independênciaunilateralmentedaSérvia, de maioria cristã, em 2008. De lá para cá ele ganhou reconhecimento internacional e, segundo a Wikipedia, em setembro de 2020, 113 Estados já o reconheciam como país independente. Em todos os casos acima, esses movimentos de libertação nacional queriam sua própria liberdade, não a destruição dos países que ocupavam suas terras. Timor Leste não queria destruir a Indonésia. Kosovo não tinha interesse em varrer a Sérvia do mapa. Quando os palestinos pararem de gritar pela morte dos judeus e pela destruição de Israel e começarem a trabalhar para garantir seu próprio estado, eles o conseguirão. Os palestinos demonstraram coragem e perseverança. O que eles precisam agora é sabedoria. ü Foto área da Cidade de Gaza e de seu litoral.

Peterspiro/iStockphoto
em poucas palavras
No Parlamentarismo israelense, caso o governo não consiga manter uma coalizão apoiada por no mínimo a metade mais um dos parlamentares são convocadas novas eleições. Por conta disso Israel experimentou quatro eleições em três anos (abril e setembro de 2019, março de 2020 e 2021), o que alguns descreveram como sendo uma “crise da democracia israelense“. Contudo, ao longo destes três politicamente conturbados anos nenhum grupo com alguma ressonância nacional expressou dúvidas quanto à legitimidade do sistema político de Israel ou postulou a inadequação da democracia. A isto se soma o fato de que o governo que resultou após as A CRISE INEXISTENTE eleições de março de 2021 é o mais inclusivo de todos os governos jamais formados em Israel. Ele inclui desde o partido mais à esquerda no espectro israelense até um partido que se situa mais à direita do que o partido direitista do ex-primeiro ministro. Naftali Benet, o atual primeiroministro, é cumpridor das mitsvot segundo a visão ortodoxa e, portanto, anda de kipá, o que é algo inédito. E o ineditismo de seu governo não para porPelaaí. primeira vez um partido árabe faz parte da coalizão governante e Mansour Abbas (não tem relação com Mahmoud Abbas da Autoridade Palestina), o líder do partido árabeisraelense, fez uma importantíssima declaração numa entrevista ao final de 2022: “O Estado de Israel nasceu como um país judaico e continuará a ser um país judaico, a questão [que nos mobiliza] é a de como integrar a sociedade árabe nele.“ A integração dos árabes israelenses no Estado de Israel é efetivamente o maior desafio interno do país. Mansour Abbas faz parte do primeiro governo disposto a enfrentar este desafio dentro da estrutura democrática de exercício do poder e sua declaração demonstra que grande parte da atual sociedade árabe israelense não tem posição antissionista.Israel,damesma forma que todos os países do mundo, enfrenta crises, mas, com certeza, a crise democrática não faz parte desta lista. ü
O plenário do Parlamento de Israel, Knesset.
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Não lembro, lá longe em minha juventude, onde, quando, ou mesmo se li sobre o dilema, ou o inventei eu mesmo, de se deveríamos aspirar a ser am sgulá ou am kechol haamim [um povo como todos os povos]. Foram quase quatro mil anos acreditando ser um povo eleito [sem jactância nem soberba, eleito para servir a Deus em benefício da humanidade, pois de Sion sairia a Torá para todos] e pagando caríssimo o preço dessa ‘eleição’ (pelo voto único de Deus), disperso, perseguido e massacrado, e sem poder ser o dono do próprio destino.Quando, na era do iluminismo, dos direitos do homem e da autodeterminação dos povos, o povo judeu percebeu que esses direitos eram seus também, o sionismo concebeu, programou e executou o projeto de dar a esse povo de exceção a condição de ser como todos os povos. O estado judeu representa, além da redenção do povo judeu, além do retorno a Sion – almejado e sonhado e invocado nas orações diárias –, a inserção da nação judaica na família das nações, como igual nos direitos e nas responsabilidades.Somandoessas duas concepções, essas duas aspirações, a de ser uma nação como todas as outras em sua integração no mundo, e a de ser, como igual, uma nação exemplar em sua contribuição para a humanidade, pode-se compreender uma alegada desproporção entre a presença judaica no mundo (quantitativa) e a contribuição judaica (qualitativa) durante 2.000 anos de exílio. Que se prolonga e avulta ainda mais nos 73 anos de existência do Estado de Israel. Com toda justiça, o povo judeu pode se orgulhar de sua contribuição, coletiva e individual, na medida em que, principalmente, ela visa ao bem comum. Acreditar ter sido eleito para servir não configura elitismo. Acreditar ser um povo como todos os povos faz dessa contribuição um patrimônio de todos. O mesmo pode-se dizer quanto ao Estado de Israel. No entanto, essa equação ainda não foi totalmente resolvida. Ainda é preciso cuidar para que a autopercepção como am sgulá não atinja (e em certos casos ultrapasse, e muito) o limiar do ufanismo, da autoindulgência, de uma suposta autossuficiência. Num mundo cada vez mais interligado por problemas e desafios, os principais problemas e desafios não se distribuem segundo fronteiras nacionais. E não se resolvem dentro dessas fronteiras. Tomando como exemplo (intuitivo e atual) a pandemia, e apesar do subsequente surto da variante ômicron, todos nos orgulhamos do sucesso israelense na vacinação, do Paulo Geiger
1. Povo especial, ou povo de elite, ou, mais comumen te dito, povo eleito.
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AM SGULÁ? 1
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Ao mesmo tempo, na contramão do grande êxito na vacinação, Israel também foi palco para o aspecto negativo da síndrome de am sgulá no sentido errado do termo As irresponsáveis, dramáticas, agressivas aglomerações de charedim, um segmento ‘eleito’ dentro do povo eleito, demonstram que realmente a equação não está resolvida.

lugar de Israel no topo de uma jornada de competência e determinação, inclusive como laboratório de análise da eficácia de vacinação, uma contribuição para o mundo.
Como aceitar que um grupo possa se considerar de exceção e ameaçar a saúde, a vida, a normalização de toda uma população sem que esteja sujeita às restrições que o bom senso, a responsabilidade, e até a lei impõem? E, ironicamente, considerando o que temos visto no Brasil, e em outras partes do mundo, por parte de fanáticos do negacionismo – por motivos ideológicos, religiosos ou simplesmente por ignorância –, descobrimos que a verdadeira questão não está em ser ou não de elite, mas a de ser ou não parte responsável e partícipe da humanidade. A pandemia ajudou a lembrar que não existem soluções locais, ‘nacionais’, aos grandes problemas e aos desafios da humanidade. E não somente na tec nologia ou na eficiência de medidas sa nitárias. Sermos um povo como todos os povos, ser Israel uma nação como todas, integrada no planeta e na huma nidade, significa que a ameaça ecoló gica é nosso problema, que desmata mento e queimadas não dizem respeito apenas ao Brasil, que a fome e a misé ria, onde estiverem, são problema nos so, que minorias discriminadas e perse guidas merecem nossa solidariedade e nossa atuação a seu favor, não só por que passamos por isso (e ainda somos ameaçados por isso) mas principalmen te porque pertencemos à mesma huma nidade, e portanto tudo isso ameaça a NÓS,Nãodiretamente.sepodeser feliz cercado de infelicidade, saudável cercado de doenças, redimido cercado de gente oprimida. Não se pode ser uma nação como todas as outras sendo indiferente às agruras do mundo. E, como am sgulá, cabe a nós contribuir para a solução, não como magnânimos doadores, mas como partícipes integrais do problema. O povo judeu durante 2.000 anos resistiu à dispersão, a perseguições, ao Holocausto, para ser novamente um povo como todos os povos. Para isso, precisou e conseguiu desenvolver qualidades, resiliência e criatividade. Ser am sgulá (no bom sentido, nem elitista nemTambémauto-suficiente).oEstado de Israel, em suas condições geográficas e geopolíticas, teve de se superar em qualidade e proficiência para existir e sobreviver como uma nação entre todas as outras. Mas as fronteiras de sua existência nacional (ainda sendo defendidas) não devem ser as fronteiras de sua participação nos desafios mundiais: sociais, ecológicos, humanitários, tão bem resumidos em três palavras: tsedek tsedek tirdof. Porque lhe cabe agora, como uma nação entre todas as outras, e também como am sgulá, ser parte da solução de todos os problemas do planeta e da humanidade.

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