Devarim 33 ( ano 17 - Agosto 2017)

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Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 12, n° 33, agosto de 2017 DEVARIM DEVARIM Desabafo D’Alma Rabino Sérgio Margulies O Peculiar Judaísmo de Stefan Zweig Israel Beloch ax2 + bx + c = 0 Paulo Geiger Três Poemas, Três Ruas em Tel Aviv Raul Cesar Gottlieb Delação Premiada e a Lei Judaica Rabino Dario Bialer A Real Tragédia dos Palestinos: Liderança IdeologiaKhaledFracassadaAbuToamehvs.Economia. Relatos Sobre a Aceleração da Aliá MarcusBrasileiraM.Gilban InquietaçõesDESLOCADOSnos50Anosde1967YehudaKurtzer A TEOCRACIA DEMOCRÁTICA Um Guia Contra a Desumanização Renato Somberg InquietaçõesDESLOCADOSPfeffernos50Anosde1967YehudaKurtzerA TEOCRACIA DEMOCRÁTICA Um Guia Contra a Desumanização Renato Somberg Pfeffer

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A pergunta meio sonsa de Garrincha tenta demonstrar a Feola que não adianta planejar pressupondo a reação dos ad versários. Vai que os russos não são atraídos pelos passes no meio de campo: a estratégia dá com os burros n’água. O jogo se ganha reagindo ao que acontece no campo e não seguindo conjecturas feitas fora da realidade.

mais conhecida das lendas do futebol brasileiro conta que na Copa de 58 o técnico Feola instruía a seleção antes do jogo contra a Rússia: “O meio de campo troca passes curtos para atrair a defesa russa, Garrincha se coloca à direita e, no momento propício, Nilton Santos faz um lançamento certeiro da esquerda para trás da adiantada defesa russa. Garrincha chega na linha de fundo e cruza a bola para a entrada da área, onde Mazolla solta a bomba para dentro do gol russo”. Garrincha solta, então, a frase históri ca: “Tá legal, seu Feola, entendemos tudo, mas o senhor já combinou isto com os russos?”.

Ressalvando a enorme diferença no contexto, esta história me veio à cabeça ao ler as análises sobre os 50 anos da Guerra dos Seis Dias. A maioria delas centrou na ocupação da Cis jordânia, como se o entorno que a provocou não a tivesse in fluenciado (e continuado a influenciar) e como se os dois la dos no conflito usassem a mesma cartilha de valores.

Um dos ilustres “russos” ausentes das análises são as amea ças árabes de extermínio dos israelenses. Tais como: “Estamos determinados a ensopar a terra com o seu sangue, e jogar vocês no mar” (Hafez Al-Assad então ministro da defesa da Síria), “O povo árabe quer lutar. Nosso objetivo é a destruição do Es tado de Israel” (Gamal Abdel Nasser, presidente do Egito); “Quem [entre os judeus] sobreviver ficará na Palestina. Mas na minha opinião ninguém sobreviverá” (Ahmed Shukieri, fun dador da OLP).

Parece piada. Mas infelizmente é apenas a moderna manifestação da velha doença do antissemitismo.

Outro notável “russo” ausente é a cartilha de valores do mundo islâmico. Não obstante as cruas realidades da ditadura e corrupção Palestina em Gaza e na Cisjordânia; da Al-Qae da e do ISIS; dos atentados terroristas em escala global; das características patriarcais e tribais da sociedade árabe que não

abrem espaço para o endosso às liberdades individuais; não obstante tudo isto, o mundo árabe é idealizado como ade rente aos ideais expressos na Declaração Universal dos Di reitos do Homem.

Brasil 1 x _ Alemanha

A minoria judaica que rejeita o Estado Palestino é retra tada como se majoritária fosse, enquanto que a maioria ára be que nega o direito à existência do Estado de Israel quase não é mencionada.

O trágico destino dos heróicos palestinos que tentaram e tentam trilhar este caminho, propondo coexistência e coope ração com os israelenses, é outro aspecto que inexiste nas aná lises. Desde Sami Taha e Fawzi Darwish al Husayni, os assas sinados membros da “Brit Shalom”, proposta por Judah Mag nes e Martin Buber nos anos 1940, e aos encarcerados pales tinos que defendem o “execrável crime” de normalização das relações com os vizinhos judeus nos dias de hoje.

Todo o foco das análises é sobre as ações de Israel, como se ele estivesse sozinho em campo, quando na verdade ele jus tificadamente percebe estar enfrentando a barbárie. A ocupa ção é ruim. Não há muita dúvida a respeito. Mas como é pos sível analisar a situação sem avaliar quão melhor ou minima mente aceitável seria a não ocupação? E como é possível pro por soluções para o conflito sem reconhecer que a aproxima ção do mundo árabe aos princípios que fundamentam as li berdades individuais e a consequente prosperidade do Oci dente é um dos caminhos para a paz?

EDITORIAL

A

Raul Cesar Gottlieb – Diretor de Devarim

É como se o jogo da semifinal da Copa de 2014 entre Bra sil e Alemanha fosse analisado sob a ótica exclusiva do gol do Brasil, sem ligar a mínima para os 7 gols da Alemanha e, então, concluir “de forma isenta e equilibrada” que a Alemanha é uma campeã ilegítima.

A Guerra dos Seis Dias e a ocupação são consequências diretas destas ameaças e das ações concretas dos países árabes para implementá-las. É lamentável que se opte não mencio nar estes “insignificantes” fatos.

A HBO está passando nas madrugadas o documentário “Cries from Syria”, sobre a guerra naquele país. É apavoran te. Pois é claro que os dirigentes da OLP e do Hamas não têm uma significativa distância cultural de Al-Assad e do ISIS e o pensamento “se eles são capazes de fazer isto com seus cida dãos, o que farão conosco, se puderem?” se instala na men te de forma perene.

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Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 12, nº 33, agosto de 2017

CONSELHO EDITORIAL

EDIÇÃO DE ARTE

Ideologia vs. Economia. Relatos Sobre a Aceleração da Aliá Brasileira Marcus M. Gilban ................................................................................ 50

Colaboraram neste número: Rabino Dario E. Bialer, Israel Beloch, Khaled Abu Toameh, Marcus M. Gilban, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Renato Somberg Pfeffer, Rabino Sérgio R. Margulies e Yehuda Kurtzer.

DIRETOR DA REVISTA Raul Cesar Gottlieb

Cócegas no Raciocínio Paulo Geiger......................................................................................... 56

EditoraEDIÇÃO

REVISÃO DE MariangelaTEXTOSPaganini (Libra Edição de Textos)

Deslocados: Inquietações nos 50 Anos de 1967 Yehuda Kurtzer....................................................................................... 3

Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

Tainá Nunes Costa

FOTOGRAFIA DE CAPA Justin Foster / iStockphoto

Desabafo D’Alma Rabino Sérgio Margulies 11

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

A Teocracia Democrática: um Guia Contra a Desumanização Renato Somberg Pfeffer 23

Breno Casiuch, Rabino Dario E. Bialer, Germano Fraifeld, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Mônica Herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies.

Narrativa Um

A revista Devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br (www.devarim.com.br) Administração e correspondência: Rua General Severiano, 170 – Botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ Telefone: 21 2156-0444

O Peculiar Judaísmo de Stefan Zweig Israel Beloch 31

Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI.

Delação Premiada e a Lei Judaica Rabino Dario Bialer 17

A contracapa de Devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ. A distribuição de Devarim é gratuita, sendo proibida a sua comercialização.

Três Poemas, Três Ruas em Tel Aviv Raul Cesar Gottlieb 44

PRESIDENTE DA ARI Flávio Kosminsky

SUMÁRIO

RABINOS DA ARI Sérgio R. Margulies, Dario E. Bialer

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A Real Tragédia dos Palestinos: Liderança Fracassada Khaled Abu Toameh 39

Ricardo Assis (Negrito Produção Editorial)

o meio do caminho da leitura de Salt Houses – o impressionante ro mance de estreia de Hala Alyan sobre quatro gerações de mulheres palestinas que navegam pelas dificuldades da dispersão e da diáspora –tive uma inquietante percepção de familiaridade. Senti como se eu já conhecesse essa história – e não porque dominasse seus detalhes. Nem porque sou de alguma forma bem versado na trama dos deslocamentos palestinos, a não ser como a consequência, como o trágico contratexto, do que eu conheço e comemoro do sionismo e da história israelense.

Ela era familiar porque esta é a nossa história. Era a história de um povo na jornada para se tornar Um Povo, preso na terra-de-ninguém de possuir uma consciência coletiva, mas sem os instrumentos para traduzi-la, efetiva e reco nhecidamente, em processos de autodeterminação; era a história do afasta mento de uma terra amada que ao longo do tempo foi se tornando mais sim bólica do que real; ela falava do anseio pelo retorno, apesar de – talvez por causa de – circunstâncias políticas que tornavam esse retorno, como um di reito ou como uma responsabilidade, completamente implausível; ela mur murava com a sensação de incompletude na diáspora; falava sobre as maneiras pelas quais A Terra assume qualidade tanto poética-mística como também se constitui num local para uma identidade política totalmente desterritoria lizada; e, claro, incorporava-se como uma das principais preocupações da an siedade pela assimilação e do medo pelo esquecimento que podem prejudicar a consciência de um povo por séculos. Todas estas facetas são judaicas. E não

A

O legado mais paradoxal da guerra de 1967 é que ela retirou dos judeus uma parte de nossa mitologia central e ofereceu-a como um presente de Pirro aos palestinos.

DESLO CADOS

Inquietações nos 50 anos de 1967

Lehtinen/istockphoto.comTuomas

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Yehuda Kurtzer

Para o povo judeu, a Guerra dos Seis Dias resultou numa barganha de mitologia por segurança. Esta posição não é percebida por muitos ativistas antiocupação: os desafios morais provocados pela guerra e a ocupação resultante, a barganha entre o “poder como meio de sobrevivência” e o “poder como prova moral” valem seu custo.

O sionismo musculoso da Guerra dos Seis Dias nos pede muito. Ele nos pede que aceitemos que o judaísmo da errância, que é parte central das nossas tradições e história, acabou

de honra. Mas é, ainda assim, uma iden tidade, e uma que, fortificada pelo apelo emocional, procura preencher de vida um povo. É a história majestosa e trágica-mítica que o povo judeu contou a si mesmo, de si mesmo, por um longo tempo.

O livro me fez pensar que enquanto convergimos para marcar os 50 anos des de que a guerra de 1967 reformulou a re lação entre Israel e seus Estados vizinhos, e entre Israel e os palestinos, seu legado mais paradoxal é que a mesma guerra que concedeu um tipo de permanência terre na e de segurança para o Estado de Israel – uma transformação implausível no des tino do povo judeu há apenas uma gera ção do ápice de sua impotência – ela retirou dos judeus uma parte de sua mitolo gia central e ofereceu-a como um presen te de Pirro aos palestinos. É um presente, desnecessário dizer, que tenho certeza de que os palestinos prefeririam receber na forma de suas terras; assumir a identidade do serem os er rantes do mundo é mais um castigo do que um emblema

Para o povo judeu, a Guerra dos Seis Dias resultou numa barganha de mito logia por segurança – e por certo essa é uma escolha que a maioria dos judeus que vivem e se preocupam com o Estado de Israel fariam alegremente muitas vezes mais. Esta posição não é percebida por muitos ativistas antiocupação: os desafios morais provocados pela guerra e a ocu pação resultante, que podem ser resumi dos como sendo a barganha entre o “po der como meio de sobrevivência” e o “poder como prova moral”, valem seu custo. Aqueles que se lembram da insegurança física das fronteiras pré-67 aceitam amplamente que a in segurança moral das realidades pós-67 são mais fáceis de

somente isto; essa inquietação é o epicentro psicológico e espiritual do judaísmo, tal como foi promulgado, transacionado e transmitido durante séculos.

MarieTDebs/istockphoto.com

Amos Oz – de forma alguma um grande amante da na ção-Estado – escreve em In The Land of Israel:

A ideia da nação-Estado é, aos meus olhos, goyim naches – um prazer de gentios. Eu ficaria mais do que feliz em viver num mundo composto por dezenas de civilizações, cada uma se desenvolvendo de acordo com seu próprio ritmo in terno, polinizando-se mutuamente, sem que ninguém emer gisse como nação-Estado: nenhuma bandeira, nenhum emble ma, nenhum passaporte, nenhum hino. Nada. Somente ci vilizações espirituais ligadas de alguma forma às suas terras, sem as ferramentas do Estado e sem os instrumentos de guerra.

Em Oz, encontramos praticamente a mais limítrofe e insensível abordagem quanto à utilidade do nacionalismo e os custos para mantê-lo sob a forma de um Estado segu ro e soberano – uma posição que ele ecoou décadas mais

Esta é a nossa história, a história de um povo na jornada para se tornar um povo, preso na terra-de-ninguém, de possuir uma cons ciência coletiva, mas sem os instrumentos para traduzi-la, efetiva e reconhecidamente, em processos de autodeterminação.

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Mas o povo judeu já organizou este tipo de show, soli

tariamente e por um longo tempo. O público internacio nal às vezes aplaudiu, às vezes jogou pedras, e ocasional mente massacrou o ator. Ninguém se juntou a nós; nin guém copiou o modelo que os judeus foram obrigados a sustentar durante 2.000 anos, o modelo de uma civiliza ção sem as “ferramentas do Estado”. Para mim, esse drama acabou com o assassinato dos judeus da Europa por Hitler. E eu sou obrigado a assumir a responsabilidade de jogar o “jogo das nações”, com todas as ferramentas do Estado, mesmo que isso me faça sentir (como disse George Steiner) como um idoso num jardim de infância.

tolerar. A maioria, também, descartará sem pestanejar o irônico ideal de não ter um teto em troca da dádiva de ter um pouco de espaço para respirar.

Vale/istockphoto.comVvoe

o Ocidente quer entender os judeus e o judaísmo. A repre sentação dos judeus como poesia e prosa nos faz, aos olhos de nossos detratores, defensores da imagem romântica de nós mesmos que transmitimos a eles por 2.000 anos, mas à qual somente eles continuam conectados, talvez porque o sofrimento envolvido era todo nosso.

O fato de Oz ser um franco opositor da ocupação e das políticas necessárias para atendê-la cimenta sua boa fé para fazer esse argumento, que é o mais forte que eu conheço contra a perversidade moral das formas de antissionismo que desdenham o direito dos judeus a uma nação-Estado e que sujeitam Israel a um escrutínio desproporcional de suas políticas de segurança até o ponto de usar suas falhas como meio de contestar sua legitimidade. Os judeus, tal como concebidos nessas ideologias, devem desempenhar um papel poético e pristino na história, para servir à narra tivas teológicas e políticas convenientes para a forma como

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Ainda assim, como um povo cujas preces o retratam como um itinerante no deserto e um morador em ten das, se torna tão focado em projetos de construção? O que acontece com o judaísmo, como um conjunto organiza dor de ideias, quando sua principal mitologia operacio nal – uma história de jornada e de inquietude – é arrui nada pela chama da glória militar e substituída por uma versão mais antiga, mais sublime, contudo mais empoei

Jay/istockphoto.comMichael

É a história do afastamento de uma terra amada que ao longo do tempo foi se tornando mais simbólica do que real; ela falava do anseio pelo retor no, apesar de – talvez por causa de – circunstâncias políticas que tornavam esse retorno, como um direito ou como uma responsabilidade, com pletamente implausível.

tarde numa entrevista durante a Guerra de Gaza a respei to do direito fundamental de Israel defender-se da onda de bombardeios em curso.

O sionismo – e aqui referencio especificamente ao sio nismo musculoso da Guerra dos Seis Dias, o sionismo do poder e da permanência, com suas indicações de como ter minar a narrativa dos deslocamentos judaicos – nos pede muito. Este sionismo nos pede que aceitemos que o judaís mo da errância, que é parte central das nossas tradições e história, acabou. O sionismo recupera a bravura dos Has moneus, mas tenta nos fazer esquecer a corrupção e o de clínio ocorrido após o empoderamento de sua classe do minante; ele restaura a soberania messiânica dos Reis Da vídicos, mas pede-nos para parar o relógio de nosso ras treamento mítico nos breves anos idílicos de Salomão, em vez de na (inevitável) divisão e conflito que se sucederam.

rada da visão profética, uma história que não foi testada pela realidade por milha res de anos?

O título do ensaio de Soloveitchik é extraído do quin to capítulo do Cântico dos Cânticos, descrevendo o mo mento em que os dois protagonistas – o amante e o ama do – estão separados apenas por uma porta e uma fatídi ca batida nela. No livro, o amado não consegue atender a batida no tempo certo; na memorável formulação de So loveitchik, é incumbência dos judeus contemporâneos responder à porta desta vez quando Deus está tão claramen te “batendo nela”. Será que, Soloveitchik pergunta, não conseguiremos consumar nossa oportunidade de reconectar com Deus? O Eros não consumado imaginado entre o amante e o amado no Cântico dos Cânticos – e em tantas leituras tradicionais, entre Deus e o povo judeu – é enten dido neste paradigma como um problema a ser resolvido e não como uma condição duradoura.

Há muitas hipóteses vivamente debatidas sobre o mo tivo pelo qual os judeus americanos parecem se distanciar de Israel. São as políticas do governo e a cobertura que lhes são dadas pelo establishment judeu? É o abraço ingênuo dos judeus americanos do liberalismo bem-humorado de tikun olam que os torna inconscientes, antipáticos mesmo, para os desafios reais enfrentados por uma nação-Estado?

São Bernie Sanders e Keith Ellison casamentos inter-reli giosos, ou apenas uma característica das “crianças de hoje

A verdade é que, como a Odisseia, a Bíblia é a majes tosa história de uma jornada que se desenrola em descon fortável desacordo com as inevitáveis falhas da chegada. O lar nunca é tão bom quanto o esperado, e quanto mais o milagre do Estado de Israel perdurar, mais nos inclinare mos a compará-lo com os dois prévios e fracassados expe rimentos de soberania judaica e perguntaremos se nossos piores temores serão novamente experimentados. Um bom leitor da história judaica deve estar nervoso.

Como sionista, estou encantado pela nova oportunida de, pela possibilidade de realização de uma história que o povo judeu não conseguiu concretizar plenamente nas pri meiras tentativas. Mas, como judeu, acho estranha e alie nadora a ideia de que nossas histórias canônicas existem para serem consertadas, em vez de existirem para nos desafiar a partir de sua intacta integralidade.

Israel é submetido a um comodesegurançadesproporcionalescrutíniodesuaspolíticasdeatéopontousaremsuasfalhasmeiodecontestarsualegitimidade.

beneficiou do triunfo na guerra de 1967, é o mais estranho híbrido de todos. Uma ideologia que busca unir o judaísmo tra dicional e a revolução política do sionis mo moderno, baseia-se na ideia decidi damente não tradicional de que o judaís mo, tal como o conhecemos, pode ser corrigido: essa sempre me pareceu ser a maior questão conceitual que o rabino Joseph B. Soloveitchik enfrenta no famoso ensaio / dissertação Kol Dodi Do fek, uma profunda meditação teológica e política que ser ve como fundadora para muito do pragmático sionismo religioso americano.

Oz faz referência à George Steiner ci tando sua percepção que o povo judeu pratica o jogo do nacionalismo como “um idoso num jardim de infância”. A ideolo gia de Steiner é melhor expressa em seu ensaio clássico, Our Homeland, The Text, no qual ele transforma a imagem do ju deu inquieto num paradigma normativo a ser emulado e recuperado. Steiner lamenta que o “cho cante caminho da vida judaica” tenha encontrado seu fim numa nação-Estado “mesquinha”, “estridente” e “paro quial” no Oriente Médio. Eu pessoalmente considero Steiner politicamente intragável. Ele trivializa o terrível custo humano da desterritorialização judaica; quando ele se re fere ao povo judeu como “um punhado de errantes, nô mades da palavra”, sua eloquência disfarça uma inaceitá vel tolerância para com as condições que tornam o povo judeu nômade e apenas um punhado. Mas ele não é um mau leitor da tradição.

O sionismo religioso, a vertente sionista que mais se

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Este artigo foi publicado originalmente em inglês, na revista eletrô nica Tablet (tabletmag.com), no dia 5 de junho de 2017, e está sen do reproduzido aqui sob permissão da referida revista.

Yehuda Kurtzer é presidente do Instituto Shalom Hartman da Amé rica do Norte, membro do projeto iEngage, e o autor de Shuva: The future of the Jewish Past

Marzolino/istockphoto.com

Em nossas mãos! O fim de nosso quebrantamento, o fim da nossa história está em nossas mãos! E agora, uma vez em nossas mãos, como às vezes muito pequeno, na ver dade, se parece.

E mesmo que eu não troque o sionismo do futuro pela vitória na luta pela nostalgia da história judaica mais anti ga e melhor, eu me preocupo, pois esta nova história que substituiu a antiga mitologia da jornada é profundamen te insuficiente. A tradição rabínica dita que o Monte do Templo deve constituir o centro da consciência religiosa e, assim, tornar-se uma bússola literal e metafórica: reza mos em sua direção de onde quer que estejamos na con

vicção de que esta orientação nos centra. Rezamos para lá durante uma longa história em que não podíamos estar lá. Imaginamos que um dia fecharíamos a lacuna entre nos sos sonhos e nossas realidades, e, por sua vez, sustentáva mos nossa consciência religiosa com aquele implausível ato de imaginação. E então, recentemente, a geografia da consciência do povo judeu se transformou no momento em que o rádio do exército exclamou em meio à estática: “O Monte do Templo está em nossas mãos!”

em dia”? Eu acho que é mais simples do que isso tudo. Nós contamos histórias sobre nós por tanto tempo que elas se tornaram legitimamente reconhecidas, autênticas e endê micas do que chamamos de “judaísmo”.

Traduzido do inglês por Raul Cesar

que murmurava com a sensação de incompletude na diáspora; falava sobre as maneiras pelas quais a terra assume qualidade tanto poética-mística como também se constitui num local para uma identidade política totalmente desterritorializada.

GottliebUmahistória

São histórias de errâncias e deslocamentos, rezando para um retorno a Jerusalém, mas nunca esperando con cretizar essas orações. Em outras palavras, mesmo quando ensinamos judaísmo às nossas crianças, ele não cria e não criará o sionismo. E mesmo que, quando um judeu não abraça o sionismo e a sensação de lealdade a esse animal estranho chamado “povo judeu”, isto possa refletir um fra casso na adaptação, imaginação e responsabilidade do nos so processo educativo, tal não se constitui necessariamen te em sua incapacidade de entender o que significou para nós o anseio de ser judeu.

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Eles deixaram um Legado e você? O seu Presente é o Futuro das próximas gerações Tel:E-mail:Consulte-nosrosane@fcrj.org.br212257-2556Ramal:26Celular:99634-3575

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A

Rabino Sérgio Margulies

ntes da Era Contemporânea, a Moderna. E antes, a Idade Média. E antes, a Antiguidade. E antes, a Pré-História. A Pré-História antecede a invenção da escrita e, portanto, dos registros que possibilitaram a construção de uma história.

Antes dos comentários judaicos dos acharonim (últimas gerações) do ano de 1550 até a presente data houve o período dos posekim (intérpretes legais) do ano 1000 a 1550. E antes, a época dos geonim (sábios) de 650 até 1050, e an tes, dos comentaristas denominados saboraim (500-650), e antes, dos comenta ristas chamados amoraim, que entre 220-500 editaram as discussões do Talmud (Guemará), e antes, a geração dos tanaim, que compilaram o código das leis da Mishná entre os anos 7 e 220. E antes, o Período Bíblico. A Bíblia começa com o relato da criação do mundo. E antes, o que havia? A própria Torá descreve em hebraico: tohu vavohu, que expressa a condição caótica, sem forma e vazia.

E atualmente, qual é a época? A sensação é que estamos voltando à Pré-His tória, um período em que as referências de registro da construção da humani dade inexistiam. Ou que estamos regredindo ao tohu vavohu, para a falta de forma, para o Caos, que precedeu a criação. O mundo criado e transformado é desconfigurado e destruído. As referências que abalizam uma conduta, desprezadas. A vida, valor supremo e sagrado, perde seu significado. Da bomba de alto calibre de uma organização à bomba suicida dos fanáticos, a vida nada vale. Do tiro com mira calibrada à bala perdida (que não é perdida, pois encon tra um alvo) a vida nada vale. Do miserável que cambaleia desamparado pelas ruas sem rumo ao faminto que se depara com a abundância na esquina que não

DESABAFO D’ALMA

Uma voz clama no deserto (Ieshaiahu/Isaías 40:3)

A sensação é que estamos regredindo ao tohu vavohu, para a falta de forma, para o Caos, que precedeu a criação.

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Que da alma brote a força que impeça a boca ser amordaçada, o coração acorrentado e as mãos amarradas.

Além do Salmo, no período que precede a chegada do novo ano temos a oportunidade de escutarmos diariamente (a exceção do Shabat) os toques do shofar. As palavras do profeta Irmiahu/Jeremias (4:19) ecoam: “Escutaste, mi

Deste modo, caminhamos para a celebração de Rosh Hashaná, conforme as palavras do Machzor, o livro de ora ção desta festa: iom harat olam, o dia da criação do mun do. Uma criação que é sempre renovada, tal como apren demos de nossas orações diárias: “renove sempre os feitos da criação”. O medo imposto pela fragmentação da socie dade não nos catapultará à Pré-História ou ao Caos. Re nascerá a alma que quer continuar respirando plenamen te a vida. Sim, respirando: alma em hebraico é neshamá, palavra que vem do verbo limshom, respirar. No respirar d’alma, entre o medo que inspira e a esperança que expi ra, que não haja a asfixia do afã de viver.

Sem o sacrilégio de menosprezar a mensagem milenar de fé, o medo prevalece. A esperança é nebulosa diante da força avassaladora do medo. Inclusive, este medo se inten sifica em função do salve-se quem puder que nos conduz à treva da solidariedade e dos diálogos que se tornam mo nólogos na falta de compromisso com os demais. O medo ganha contornos de desalento diante da consciência de que tantos são influenciados por um ambiente em que não há medo. Não temem as consequências de seus atos. A au sência do temor os leva a atitudes que expressam “dane-se você”, ou “perdeu”. Ao não terem a compreensão das his tórias da vida que são construídas, agem com truculência e desconsideração infligindo a nossa perda de vida. Dila ceram a história que está sendo construída e criada e as sim, sem hesitação, nos ejetam para a Pré-História e para o Caos da pré-existência.

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*

lhe alcança, a vida nada vale. Da criança desprovida da oportunidade de estudo à criança que na escola deixa de sentar na cadeira para embaixo dela ter a ilusão de que se esconde, a vida nada vale.

* * *

Se a Pré-História antecede a palavra escrita e o período Pré-Bíblico a palavra divina, regredimos a um tempo em que não sabemos mais usar a escrita: as palavras enviadas a milhões pelas redes so ciais são muitas vezes flechas aniquiladoras que carregam em suas pontas venenos de ódio. Em seus monólogos afir mativos da própria concepção fanática, destroem ideias e esmigalham a dignidade, como se a vida nada valesse. * *

nha alma, o som do shofar, o alarme da guerra.” O som do shofar mescla os vá rios sentimentos de uma guerra, entre eles medo e Medoesperança.quesejam vitoriosos o radica lismo que sufoca a troca de ideias, o ódio que massacra os vínculos afetivos, a soberba que esmaga a condição para com o diferente, o foco ex clusivo que aniquila o pluralismo comunitário, os confli tos que dilaceram o compartilhar, a prepotência que alija o convívio íntegro, o interesse instantâneo que rompe os elos antigos. Este medo faz bradar o pessimismo do profe ta bíblico Ioná/Jonas (4:3): “Melhor me é morrer do que viver,” até mesmo porque se estes elementos forem de fato vitoriosos a alma – mesmo que em corpo vivo – morre.

Mas o retumbante toque do shofar também carrega nesta batalha a esperança. Esperança de que não sucumbi rão os estandartes dos valores que pautam condutas ínte gras, que predominarão os marechais da decência, que será continência o apreço à dignidade, que os caminhos serão escolhidos pelos princípios e não pelos atalhos da esperteza, que será reconhecida a relevância da determinação que germina a vontade de aprender e realizar. Esta esperança é o chamado do profeta bíblico Iehezekel/Ezequiel (18:32): “Retornai, pois, e vivei!” Retorne, isto é, não fuja, não de sista, resgate a essência de quem você é e de quem melhor pode se tornar. Retorne ao passo que mobiliza a constru ção de uma vida plena e realizadora.***

Estamos nos aproximando dos temíveis dias de julgamen to marcados pela celebração de Rosh Hashaná – o Ano Novo Judaico – e Iom Kipur – o Dia do Perdão. Na pre paração para estas celebrações recitamos diariamente o Sal mo 27 que traz como mensagem o resgate da esperança e nos convida a não termos medo. Diz o Salmo: “A quem então, temerei?” (...) “Fortalecer-se-á teu coração por de positares no Eterno toda a tua esperança”.

Rosh Hashaná – pontua Isaac Aboab (séc. 14, Espa nha) – também corresponde ao dia em que Iosef/José, filho do patriarca Iacov/Jacob e da matriarca Rachel, foi liberta

do do calabouço. Ele, que antes havia sido colocado num poço – condenado a morrer – pelos próprios irmãos sendo depois resgatado por mercadores, tornou-se emprega do de um nobre do Egito antigo, sendo injustamente acu sado de tentar seduzir (quando na verdade ele foi o seduzi do) a esposa deste nobre e foi enviado ao calabouço. Após sucessivas quedas – poço e calabouço – emergiu para tor nar-se aquele que salvaria tantos da fome. Rosh Hashaná representa, assim, a esperança de que a injustiça não pre valecerá e que a vingança não contaminará a alma com o veneno do Frequentementerancor. receamos, em consequência da inve ja e trapaça alheia, sermos remetidos às profundezas que se assemelham aos poços e calabouços. Que a este medo que seja adicionada a esperança de que é possível renas cer destas situações. Assim foi com Iosef/José e igualmente tem sido com as gerações contínuas de nosso povo e de nossas famílias. Que também seja, no resgate do impulso de viver, conosco.

Diante do desprezo dos que quebram os princípios mais básicos da vida, a recordação deste simbólico mo mento vivenciado por Moshé alimenta a alma e nos impul siona com renovado vigor. Não há ilusão messiânica sobre este vigor, tanto que ambas as versões das Tábuas da Lei –a quebrada e a inteira – foram colocadas juntas na mesma Arca da Aliança (Talmud: Tratado Berachot). Com cons ciência da realidade, o medo do mundo fragmentado se gue junto com a esperança de restauração.

* * *

Na sequência de Rosh Hashaná celebramos Iom Kipur, dia em que – ensina o comentarista Rashi (séc. 11/12, França) – Moshé/Moisés, ao estar pela segunda vez no Monte Si nai, recebeu a nova versão das Tábuas da Lei em função da quebra da primeira versão no episódio do bezerro de ouro.

Afirma a Torá que “estas palavras [entre as quais as das Tábuas da Lei] estão em sua boca, coração e mão”. (Deva rim/ Deuteronômio 30:14). Isto significa que o medo pa ralisante e a esperança transformadora estão em nossas pa lavras (boca), pensamento (coração)1 e ações (mão). Que da alma brote a força que impeça a boca ser amordaçada, o coração acorrentado e as mãos amarradas.

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Ao construirmos a vida com esperança como não es tremecer e não ter medo? E no temor como não escutar a

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1. O coração, na Bíblia, é caracterizado como o lugar da sabedoria.

esperança para que nossa alma não seja como um deser to que desistiu de frutificar as sementes da vida? A alma torna-se “uma voz [que] clama no deserto”. (Ieshaiahu/ Isaias 40:3) Clama a esperança e simultaneamente desa bafa o medo.

* * *

No pêndulo que vai da esperança ao medo, entendemos que medo existe porque há vida sendo construída com pessoas amadas através de projetos sonhados. Este medo é também o medo de que a esperança de um futuro me lhor evapore e com ela o sopro da vida. Assim, o toque do shofar – como o sopro da vida – evoca tanto a esperan ça quanto o medo: “E tocarás o shofar e sem que estreme çam?”, indaga o profeta bíblico Amós (3:6).

Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Israe lita do Rio de Janeiro – ARI.

Notas

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D

O conceito da delação premiada é inspirado em casos bem sucedidos da Itá lia e dos Estados Unidos: uma pessoa que se juntou a outras para praticar pro cedimentos ilícitos e que está sendo investigada por este feito resolve colaborar com a justiça, se autoincriminando e oferecendo os meios para a obtenção de provas materiais que incriminem os demais participantes da organização crimi

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izer que jamais se viu no Brasil crise tão grande como a atual é lu gar comum. Quando alguém imaginou que teríamos todas essas figuras atrás das grades? Poderosos que normalmente estão a salvo do sistema – muitas vezes protegidos pelo próprio sistema! – estão na cadeia. E a Lava-Jato continua. A sociedade assiste incrédula, a maioria eufórica, outros indignados, a maior investigação de corrupção no Brasil e provavelmente do mundo.

A Lava-Jato iniciou em março de 2014 em Curitiba como uma investigação sobre organizações criminosas controladas por doleiros, que operavam um mer cado paralelo de câmbio. O curioso nome da operação se deve ao uso de uma rede de postos de serviços de automóveis para lavagem de dinheiro.

DELAÇÃO PREMIADA E A LEI JUDAICA

Rabino Dario Bialer

A partir deste começo quase banal se chegou ao esquema de corrupção que envolveu pesadamente a Petrobras e outras iniciativas controladas pelo Estado. Com o extensivo uso do recurso da delação premiada, Odebrecht, JBS e ou tras megaempresas brasileiras fizeram estremecer parte considerável da alta clas se política brasileira, envolvida até o pescoço na corrupção.

O livro de Shemot 23:1 adverte que o testemunho de quem cometeu o crime não pode jamais ser considerado pelo tribunal.

Os executivos da Odebrecht explica ram que, por não poder trabalhar na América Latina sem pagar subornos, eles o sistematizaram. Os políticos foram expostos pela eficácia dos engenheiros brasileiros que su bornaram com o mesmo profissionalismo com que cons tróem pontes. A partir da cultura de uma empresa de en genharia, obcecada com o controle, medição e registro de tudo, um sistema foi construído para organizar o fluxo de dinheiro. Quanto foi pago a quem e porquê, o que faltava pagar e outras informações foram sistematizadas num “de partamento de propinas” que passou a fazer parte da estru tura orgânica da mesma.

Dentro desse contexto de perplexidade geral, mais de uma vez congregantes da sinagoga me perguntaram: “O que diz a lei judaica sobre a delação premiada? A pergun ta às vezes aparece por simples curiosidade, mas muitas ve zes encerra uma genuína preocupação.

O tribunal deve estabelecer os fatos por uma investigação que preserve inteiramente o suspeito.

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Isto faz lembrar o conceito cunhado por Hannah Arendt em seu livro Eichmann em Jerusalém, sobre a bana lidade do mal dos nazistas, que inventaram métodos efi

nosa da qual fez parte, em troca da redução parcial ou total de sua punição. Des ta forma a delação premiada ajuda a jus tiça a encontrar e implicar os outros indi víduos do esquema que sem a delação di ficilmente seriam identificados.

cientes para levar a cabo o seu tenebroso extermínio. Todas as atividades se estrutu ram dentro de uma aberrante e impessoal profissionalização com o intuito de criar uma subjetividade que torna o ilícito na tural. Essa é a banalidade do mal. Ele se banaliza quando passa a ser aceito como parte do cotidiano. Salvando a imensa distância com o na zismo, vejam em que ponto estamos no Brasil, quando o que chama a atenção não é que pessoas proeminentes te nham roubado, mas que estejam sendo presas.

Alguns se sentem decepcionados pelo fato de um cri minoso ser poupado de qualquer pena por delatar políticos corruptos. Como pode ser que pessoas inescrupulo sas fiquem sem pena apenas por entregar seus comparsas? Como isso pode ser justo?

de corrupção são mais próximos ao primeiro grupo, contudo, conforme opina o rabino Skorka, vale a pena olhar também para os casos mais extremos (dinei nefashot), pois eles podem sinalizar princípios válidos para todos os casos.

O primeiro princípio que norteia a proibição da au toincriminação consta no Talmud Babilônico e é espan dido por Maimônedes no Mishne Torá (Sanhedrin 18:6): “ninguém pode fazer de si uma má pessoa (rashá)”.

A Torá exige duas ou três testemunhas, mas não diz ex plicitamente que uma delas não pode ser o acusado. Con tudo, baseado no raciocínio que vai abaixo, Rashi infere que a proibição da autoincriminação está ligada à passa gem

Pois,acima.olivro de Shemot / Êxodo 23:1 adverte que não se deve aceitar um malvado (rashá) como testemunha, uma vez que sua palavra não é confiável. Logo, o testemunho de quem cometeu o crime não pode jamais ser consi derado pelo tribunal.

E de novo, conforme a piada judaica: também com eles a ToráEntãoconcorda.vamosanalisar o assunto e entender os argumen tos que o judaísmo traz sobre a delação premiada a partir da abordagem da advogada Melissa Ivy Softness1 e do ra bino Abraham Skorka2

Primeiro princípio

Segundo princípio

Nota-se a extrema preocupação judaica na preserva ção da dignidade do indivíduo. Nem mesmo voluntaria mente permite-se que ele se degrade perante a comunida de. Nota-se também que por este princípio a delação pre miada está proibida.

Um outro princípio importante na análise da validade da autodelação deriva da Torá, no livro Devarim / Deute ronômio, onde a preocupação de não permitir que uma injustiça seja feita exige a presença de no mínimo duas ou três testemunhas, dependendo do assunto a ser julga do. É excluída a possibilidade de apenas uma única pes soa testemunhar: “uma testemunha não se levantará con tra uma pessoa por qualquer iniquidade ou por qualquer pecado que ela tenha cometido; pela boca de duas testemu nhas ou pela boca de três testemunhas os fatos serão estabele cidos.” (Devarim 19:15).

Esta observação indica que as delações provocadas pela Lava-Jato encontram amparo na lei judaica, pois elas são feitas por pessoas contra as quais a justiça já amealhou provas irrefutáveis e que serão condenadas a muitos anos de prisão devido a isto. Mas existem outros princípios em jogo que rejeitam a autodelação. Portan to, sigamos na análise.

Contudo, nada é tão simples assim! É preciso observar que a proibição de uma pessoa fazer mal a si mesma indica também que a pessoa deve escolher o caminho da menor pena, quando esta for inevitável. Uma metáfora para isso é a amputação de um membro. A amputação é peremptoria mente proibida pela lei judaica, mas pelo princípio do mal menor, ela é permitida se for necessária para salvar a vida.

Ou seja, mesmo que a pessoa se autoincrimine sem coação e sem premiação, o tribunal deve rejeitar este tes temunho, pois ela não pode fazer mal a si mesma.

A lei judaica é cuidadosa. A proibição de uma única testemunha diminui muito a possibilidade de testemunho falso ou enganoso, visto que as testemunhas terão suas his tórias contrastadas.

Bem, neste ponto dá vontade de fechar o livro e con cluir que a autodelação (premiada ou não) é inaceitável. O criminoso não tem credibilidade. Fim de papo. Mas será

Por outro lado, muitos acreditam que a delação pre miada é um recurso imprescindível, além de legítimo, para se chegar ao fundo do poço e começar por fim a limpar o país.

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A legislação judaica se ocupa amplamente da temática da autodelação (seja ela premiada ou não), e os rabinos são bastante claros na proibição dessa prática pelos tribu nais. Mas, como veremos mais adiante, com algumas exceções e Contudo,particularidades.antesdeentrar no tema em si, eu queria res salvar que a lei judaica distingue dois tipos de crime: os que envolvem penas pecuniárias (dinei mamonot) e os que envolvem penas físicas (dinei nefashot). No segundo caso, as precauções na aceitação de testemunhas (inclusive as que se autodelatam) são mais rígidas. Ou seja, uma teste munha que não seria aceita num caso que resulte em pena física, talvez possa ser aceita num delito onde as penas são pecuniárias.Oscrimes

Bem, tenho que dizer que a Torá concorda com eles.

Terceiro princípio

a. Tempo de emergência.

Um resumo até aqui

Maimônides também endossou e reforçou a tese. Ele disse que “uma proibição abrangente proibindo a autoin criminação é necessária para evitar que pessoas emocional mente confusas cometam o crime de confessar crimes que não

Vimos três princípios. O primeiro proibe uma pessoa de fazer mal a si mes ma, o que por um lado ele proibe a auto delação, mas ao mesmo tempo a endossa nos casos que é premiada. Um a zero para a delação premiada.

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Sobre o último ponto, Maimônides disse que só pode ria ser aplicado por período limitado de tempo. Ou seja, que a autodelação não poderia ser codificada na lei, o que coloca a lei brasileira em oposição à lei judaica.

Contudo, o que acontece no Brasil em nossos dias pa rece se enquadrar perfeitamente em “tempo emergencial”, muito embora sua definição seja limitada no tempo e o fato da corrupção política estar tão enraizada no Brasil levanta a hipótese de que sua naturalidade contradiga o con ceito de emergência. Em outras palavras: algo que acontece o tempo todo não pode ser considerado uma emergência.

que isto é válido sempre? Vamos aprofundar mais um pouco no assunto.

Os sábios no judaísmo destacam as três circunstâncias nas quais é possível contrariar alguns princípios consagra dos, dentre eles o da autodelação.

Mas será esta é a última palavra? Não! Ainda há mais. Vamos analisar agora a lista de circunstâncias extraordiná rias onde se permite aos responsáveis pelos julgamentos ra bínicos avaliar se as normas podem ser suspensas.

Mais tarde no caminhar da história, um novo e muito importante argumen to foi adicionado à lista de princípios que proibem os tribunais rabínicos de aceitar a autoincriminação. O rabino Joseph ibn Migash (10771141) expõe isto da seguinte forma: “Se confissões tiverem valor probatório os tribunais se inclinarão a supervalorizá-las, tal como fez o rei David em Samuel II 1:16, passando a dar menor importância à sua obrigação de procurar esta belecer os fatos.”

A história em Samuel II é do Rei David mandando matar um Amelikita que lhe disse ter ajudado a matar o Rei Saul (a pedido do próprio Rei Saul, que estava mortal mente ferido). David condenou o Amalekita a morte sem checar se sua história era verdadeira, ou seja, sem procurar uma segunda testemunha, o que é insuficiente para uma corte rabínica, pois gera a incerteza que um inocente este ja sendoIndependentementeculpabilizado.

Ecometeram”.istoparece se encaixar em muitos casos da opera ção Lava-Jato, onde os delatores estariam “confusos” pela quantidade de provas trazidas contra eles e pela prisão tem porária que foi imposta a alguns.

O terceiro princípio obriga cuidado extremo para evi tar danos morais aos investigados. Ou seja, pela lei rabíni ca a pessoa não pode se autoincriminar. E mesmo que ela o faça voluntariamente o tribunal deve desconsiderar seu testemunho. O jogo virou. Dois a um para a proibição.

O segundo obriga a presença de no mí nimo duas testemunhas e desautoriza o testemunho de cri minosos. A anulação dos testemunhos dos criminosos re pele a autodelação. Temos agora um empate de um a um.

Outros rabinos enfatizaram o ponto de ibn Migash: David ben Solomon ibn Abi Zimra (Radbaz), século 16, opinou que confissões são inadmissíveis em casos que re sultam em pena de morte, pois “a vida da pessoa não lhe pertence, e sim a Deus, assim que sua confissão não pode afe tar algo que não é dele.”

Circunstâncias extraordinárias

se a justificativa bíblica usada pelo rabino ibn Migash é razoável ou não, fica claro que sua preocupação é afastar qualquer possibilidade de coação (sob tortura física ou moral) de suspeitos. O tribunal deve esta belecer os fatos por uma investigação que preserve inteira mente o suspeito, em mais uma demonstração do extremo cuidado da lei judaica com a dignidade da vida humana.

b. Perigo substancial para a comunidade.

c. Desrespeito sistematizado à lei.

Mas, mesmo escapando pela tangente acima notada, há um muito bem fundamentado e inequívoco “Perigo subs

A lei judaica coincide com a lei brasileira, se bem que apenas em circunstâncias como as que vivenciandoestamoshoje.

Em circunstâncias normais, portanto, concluimos que a lei judaica não autoriza a delação premiada.

Conclusão

Finalmente, como não lembrar de um autor imprescin dível na compreensão da alma brasileira, o genial e aguça do Nelson Rodrigues, que nos alerta sobre os idiotas (po líticos e empresários corruptos?) confessos:

2. Publicado no livro Temas de Derecho Hebreo, editado pelo Seminário Rabínico La tinoamericano Marshall T. Meyer.

Não se trata apenas de que a Lava-Jato esteja expondo o tamanho da corrupção, que é de milhares de milhões de reais, mas fundamentalmente o fato de que os crimes es tão sendo cometidos pelas altas autoridades do país, o que leva ao perigo de um colapso total na sociedade. Esse ar gumento me parece ser suficiente para deixar de lado as demais considerações e aceitar a delação premiada como ferramenta indispensável para sanar a doença da socieda de. A lei judaica passa a coincidir com a lei brasileira, se bem que apenas em circunstâncias como as que estamos vivenciando hoje.

“Os idiotas prosperam no Brasil. E sobrevivem em tor no da ilusão de poder. É interessante ver o que acontece quando esse poder vai diminuindo.”

tancial para a comunidade”. A corrupção está devastando o Brasil, dizimando o potencial da nação em oferecer mui to melhor qualidade de vida para seus cidadãos. Uma bre ve visita aos estudos da ONG Transparência Internacional evidencia que o mapa da corrupção no mundo é incrivel mente semelhante ao mapa da pobreza.

É lamentável a realidade que a Lava-Jato está demons trando. Não é o ideal que criminosos confessos (como é o caso desses empresários e políticos) sejam poupados do castigo que merecem, mas a delação premiada parece ser necessária para se atingir o objetivo maior de resgatar o país de lideranças nocivas ao povo brasileiro.

1. No texto: “Compelled to Render Oneself Evil: American Plea-Bargaining from a Jewish Law Perspective”, encontrado a partir de https://papers.ssrn.com/sol3/pa pers.cfm?abstract_id=2013237

90-100 CleanVery #cpi2016 www.transparency.org/cpi This work from Transparency International, 2017 is licensed under CC BY-ND 4.0 indexperceptionscorruption2016 The perceived levels of public sector corruption in 176 countries/territories around the world. Score 0-9 10-19 20-29 30-39 40-49 50-59 60-69 70-79 80-89 90-100 CleanVeryCorruptHighly Índice mundial de percepção da corrupção 2016 Níveis de corrupção percebida pela população em 176 países/territórios no mundo TransparênciaFonte: Internacional

Notas

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O Rabino Dario E. Bialer serve à ARI – Rio de Janeiro.

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O Talmud, na verdade, afirma a realidade viva de Deus. Os sábios talmú dicos partem do princípio de que Deus atua no presente assim como atuou no passado. Mais do que isso, a sabedoria divina ultrapassa o tempo presente e suas

A

Um Guia contra a Desumanização

Renato Somberg Pfeffer

O judaísmo talmúdico, por outro lado, não se preocupou em desenvolver doutrinas lógicas ou uma forma definitiva. Inexistem no Talmud verdades reli giosas fixadas de forma dogmática. Há ali uma fluidez filosófica entre gerações e indivíduos em uma escala muito maior do que nas questões legais ou rituais. É verdade também que essas questões legais e rituais derivam de conceitos filo sóficos básicos que sempre permaneceram ocultos. É sugestivo que há um consenso maior sobre a classificação dos 613 mandamentos bíblicos do que em re lação aos princípios básicos da fé judaica.

Inexistem no Talmud verdades religiosas fixadas de forma dogmática. Há ali uma fluidez filosófica entre gerações e indivíduos em uma escala muito maior do que nas questões legais ou rituais.

forma dominante da religião judaica desde os últimos séculos da Antiguidade até hoje foi o judaísmo talmúdico. Foi após a destruição do segundo templo no ano 70 da era comum que as diversas correntes que competiam com os fariseus acabaram sucumbindo e o judaísmo alcançou uma forma unificada. Para as gerações posteriores, o judaísmo talmúdico significou, na prática, a consolidação das leis religiosas. Prescrições legais e rituais foram fixadas no texto talmúdico e, com algu mas variações, mantiveram-se ao longo dos séculos seguintes. A preocupação talmúdica era desenvolver um conjunto de práticas que estabelecessem um modo de vida religioso.

A DEMOCRÁTICATEOCRACIA

A presença do Deus vivo no Talmud e o livre arbítrio

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Os sábios talmúdicos ainda sentiam a presença de Deus em suas vidas, mesmo que as revelações divinas não fossem mais explícitas. Eles acreditavam que a divina providência

circunstâncias históricas e servem ao futuro. Talvez, por isso, esses mesmos rabinos insistem sobre a necessidade de se estu dar a Torá e, utilizando-se de um ousado antropomorfismo, descrevem o próprio Deus como um estudioso da Torá (Gutt man, 2003).

ainda governava a vida de todo o povo judeu. Utilizando-se de outro antropomor fismo, afirmavam que Deus lamentava o exílio e as aflições que Ele mesmo causara ao povo de Israel (Berachot 9b).

Em diversos momentos da história judaica, a aliança de fé foi colocada em cheque. Após a destruição do segun do templo, em especial, a dispersão judaica suscitou uma enorme crise. Sem estruturas políticas e dispersos geograficamente, havia a real possibilidade de o povo de Israel dei xar de existir. Foi nesse momento histórico que o Talmud foi redigido e a identidade coletiva do povo foi garantida.

A ideia central que subjaz à mensa gem talmúdica é a natureza pessoal e mo ral de Deus. Ao contrário da mensagem ética apaixonada dos profetas que viveram alguns séculos antes, os sábios do Talmud foram marcados por uma piedade mais tranquila, vinculada à história, à tradição. Da mesma for ma que no tempo dos profetas, no entanto, a vida religio sa continuava associada aos comandos divinos que mos travam o caminho da comunhão entre Deus e o homem. A experiência religiosa no Talmud parte, portanto, de duas compreensões convergentes de Deus: Ele é o senhor da história e criador do mundo e do homem. Tudo que existe não se explica por si mesmo, tudo se remete ao criador.

A vida piedosa para os talmudistas não consistia so mente em seguir os mandamentos; era necessário imitar o

É o homem quem decide suas ações, mesmo em relação à onipotência divina. Cabe ao homem decidir observar ou não os mandamentos, que são a corporificação da vontade de Deus.

Se é possível afirmar que os aspectos mais relevantes da religião judaica são encontrados no Talmud, também é possível dizer que, a partir deles, é impossível sistema tizar uma doutrina. Existe um ponto de vista global, mas falta-lhe unificação. Mais do que uma filosofia do Tal mud, o que temos são reflexões filosóficas com diversos

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 25

Ao longo do Talmud, os rabinos vão cunhando suas máximas onde doutrinas religiosas e éticas eram enuncia das de forma concisa. Entre essas máximas existem grandes

Hermenêutica talmúdica

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modelo divino de amor. Para que os man damentos fossem corretamente observa dos, era necessário amar a Deus, confiar Nele e imitar Suas qualidades. Os rabi nos não pretendiam apenas a submissão do homem, eles propunham uma posi ção ativa na sua conduta. A consequência dessa visão religiosa é a ênfase na liberda de moral do indivíduo. É o homem quem decide suas ações, mesmo em relação à onipotência divina. Cabe ao homem de cidir observar ou não os mandamentos, que são a corporificação da vontade de Deus.

diferenças em relação a temas e formas de pensamento. Não é encontrado na discus são talmúdica um sistema definido. Seu intuito é o tratamento de problemas reli giosos e os aspectos fundamentais da reli gião são discutidos na mesma proporção que os detalhes aparentemente insignifi cantes. Suas respostas eram muitas vezes algum provérbio ou um comentário in dividual sobre um versículo bíblico e dali seguia-se uma discussão particular sem a preocupação de combinar as conclusões isoladas de forma coerente.

Cada interpretação faz emergir novas perguntas que exigem outras explicações, isso porque o texto contém sentidos variados à medida que é linguagem profética, um pensamento originário.

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Belkin (2003) propõe o conceito de “teocracia demo crática” para caracterizar o judaísmo talmúdico à medi da que as práticas judaicas seriam a lei divina projetada para proteger o indivíduo. Teocracia porque é a soberania de Deus que determina a moralidade judaica; democracia porque o sistema legal talmúdico enfatiza o caráter sagra do do indivíduo e de sua personalidade. Esses são os dois princípios básicos que sustentam a filosofia talmúdica: a soberania de Deus e o caráter sagrado do indivíduo. É atra vés desses princípios que se torna possível a compreensão do espírito do judaísmo.

O judaísmo talmúdico sustenta que a soberania huma na depende da soberania divina e, nesse sentido, os atos humanos deveriam ser a realização da vontade dos céus. Talvez por isso seja tão difícil investigar os dogmas teoló gicos abstratos do judaísmo. Os talmudistas estavam mais interessados em criar um código de vida através do qual o homem, em suas práticas diárias, pudesse servir melhor a Deus, segundo um sistema tal que os deveres do homem para com seus semelhantes fossem parte integrante dos seus deveres para com seu criador.

Ao contrário dos antigos impérios, a teocracia judaica baseia sua fé na valorização da vida, na dignidade do indivíduo, na equidade da justiça entre fortes e fracos, na compaixão e na garantidaliberdadepelalei.

Ao estabelecer a vida como algo sagrado, o Talmud consagra a soberania divina e a distingue da soberania dos homens. Enquanto os impérios antigos queriam impor ao homem a uniformidade através de governos autoritá

A literatura judaica ao longo dos séculos vem se debru çando na complexa relação entre o sentido divino do tex to e essas aproximações hermenêuticas buscando a verdade divina na temporalidade da palavra humana. Os ensi namentos e símbolos talmúdicos podem significar isso ou

níveis de profundidade. A limitação da reflexão filosófica do Talmud fica explí cita quando se constata uma falta de for mulação dogmática da essência do que o judaísmo pretende ensinar. Não há, no Talmud, a intenção de fixar os conteú dos da fé, o que torna impossível distin guir a opinião de um sábio específico e uma doutrina geral. Essa flexibilidade da fé permitiu ampla liberdade de interpre tação às gerações seguintes.

O texto talmúdico é um combate in telectual que rompe com o pensamen to grego/ocidental e permite uma nova abertura para as questões filosóficas. Suas páginas exigem um leitor livre, inventivo e audacioso que revele seus múltiplos sentidos. Ao afirmar que a essência do judaís mo consistia no estudo do Talmud, Lévinas (2003), se guindo a trilha aberta no período medieval por Maimô nides (1138-1204), defendia que as discussões rabínicas ali inscritas abriam as portas para uma interpretação da tradição religiosa à luz da razão. Para Lévinas, há no Tal mud uma dimensão da qual emerge um passado vivo que dialoga com a modernidade. O Talmud é mais que um prolongamento da Torá, ele elabora novos significados. É essa percepção que permite afirmar seu caráter herme nêuticoSuscasas(interpretativo).(1994)encontra a riqueza das escrituras na polissemia (multiplicidade de significados) do versículo: o sentido se estratifica em múltiplos níveis, presentes e im plícitos na unidade do enunciado. Nesse sentido, a letra bíblica exige um desenvolvimento de sua inteligibilidade na forma de comentários rabínicos. Essa relação complexa entre o sentido divino presente no texto e aproximações hermenêuticas constitui o essencial da literatura judaica, cuja verdade divina se reconhece na temporalidade da pa lavra humana. Seguindo esse caminho, cada interpretação faz emergir novas perguntas que exigem outras explica ções, isso porque o texto contém sentidos variados à medi da que é linguagem profética, um pensamento originário.

A teocracia democrática do Talmud

aquilo a partir dos contextos pessoal e his tórico vividos pelo leitor, o que torna seus significados sempre renováveis.

As escolas talmúdicas estavam em constante desacordo no que diz respei to à halachá (lei judaica), mas o propósi to era sempre a observância dos mandamentos divinos. As disputas entre os sá bios no Talmud sobre a verdadeira tradi ção ou a interpretação exata de uma lei eram decididas sempre pela maioria e, mesmo as opiniões minoritárias, eram re gistradas. As opiniões não aceitas, inclu sive, são consideradas de estudo obrigató rio. Existe outra mishná (Ediot 1,5) que explica o motivo: é possível que numa ocasião futura, a maioria vote e a opi nião discordante se torne dominante e aceita.

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rios, a soberania divina abre espaço à diferença. Ao contrário dos antigos impé rios, a teocracia judaica baseia sua fé na valorização da vida, na dignidade do in divíduo, na equidade da justiça entre for tes e fracos, na compaixão e na liberdade garantida pela lei.

Em uma modernidade que ofuscou a imagem divina do homem e transformou a existência em algo sem sentido, a leitura dos textos talmúdicos pode servir de guia contra a desumanização. Através do Tal mud, é possível repensar a crise da huma nidade e suas possibilidades de renovação através do mistério que envolve a existência. Para uma modernidade desgastada, o Talmud pode ser útil como fonte de solidariedade e cons ciência moral. As ideias talmúdicas, porém, não são apenas um caminho para denunciar as injustiças e criticar a desu manização e despersonalização da sociedade. Se assim fos se, a religião seria reduzida a sentimentos morais e empo breceria o sentido e o significado da mesma enquanto ex periência de salvação.

O Talmud também é uma interpretação humana de um conteúdo revelador anterior, que está além da com preensão humana. As Escrituras e o Talmud são o mo vimento perpétuo do espírito, num oceano de significa do (Heschel, 1975). Essa abertura que o texto talmúdico oferece decorre dos dois eventos simultâneos que ocorreram no Sinai, segundo os sábios: Deus deu a Torá escrita e oral e Israel recebeu a Torá escrita e oral, ou seja, o en contro no Monte Sinai deve ser entendido tanto a partir de sua origem divina como de sua apropriação humana. Disso se deduz que a fonte da autoridade é a compreen são de Israel acerca do texto bíblico e talmúdico e não a palavra do texto em si. É exatamente nesse ponto que o Talmud se abre ao homem contemporâneo, pois a co munidade tem um papel ativo na interpretação da expe riência reveladora.

Oz e Oz-Salzberger (2014) defen dem a ideia de que a ortodoxia judaica se manteve paralisada desde os últimos escritos talmúdicos no início da moder nidade. As discussões rabínicas sobre a essência da Torá avançaram ao longo dos séculos através dos tanaím (século I e II da E.C.), dos amoraím (século III a V da E.C.), dos savoraím (século VI e VII da E.C.), dos gueonim (século VIII e XI da E.C.), dos rishonim (século XI a XV da E.C.), e se esgotaram para os judeus ortodoxos com os acharonim (séculos XV e XVI da E.C.). Por outro lado, a não ortodoxia manteve a tradição iniciada por Moisés. Mendelson (o terceiro grande Moisés depois do profe ta e de Maimônides), Asher Ginszberg (Ahad Há’am), Gershom Schlohem, Franz Rosenzweig, Martin Buber, Emmanuel Lévinas são alguns representantes de uma grande cadeia de erudição judaica lançada por Moisés, e que foi transmitida a Josué, aos anciãos, aos profetas, aos membros da grande assembleia. Eles, entre outros, mer gulharam no oceano do Talmud e as suas múltiplas sig nificações em diálogo constante com o mundo não ju deu e ao pluralismo de ideias.

Suscasas, P. Judaísmo y filosofía en el pensamiento de E. Lévinas: lectura de um palimpsesto Cadernos salamantinos de filosofia, n. XI, p, 71104, 1994.

Belkin, S. A filosofia do Talmud: o caráter sagrado da vida humana na teocracia democrática judaica. São Paulo: Sêfer, 2003.

O Deus concebido na filosofia talmúdica não é, deci didamente, o Deus dos filósofos gregos. Ele não é abstra to, autossuficiente e tampouco representa a perfeição ab soluta. O Deus da Filosofia grega não se importaria com a condição moral, social ou espiritual do ser humano. O Deus dos sábios talmúdicos se preocupa, envolve-se,

O encontro no Monte Sinai deve ser entendido tanto a partir de sua origem divina como de sua apropriação humana. O Talmud se abre ao homem contemporâneo, pois a comunidade tem um papel ativo na interpretação da experiência reveladora.

emociona-se com o mundano. Por outro lado, Ele exige uma contrapartida huma na, uma espécie de habilidade de percep ção para experimentar Sua presença e in terpretar Sua vontade.

Renato Somberg Pfeffer é Doutor em Filosofia, Tecnologia e Socie dade pela Universidad Complutense de Madri, Pesquisador da Fun dação João Pinheiro de Minas Gerais e professor do IBMEC-MG.

Referências bibliográficas

Guttman, Julius. A filosofía do judaísmo. São Paulo: Perspectiva, 2003. Heschel, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. São Paulo: Pau linas, 1975.

Lévinas, E. Quatro leituras talmúdicas. São Paulo: Perspectiva, 2003. Oz Amos; Oz-Salzberger, Fania. Los judíos y las palabras. Madrid: Si ruela, 2014.

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Excelência acadêmica com alto índice de sucesso nos vestibulares e exames de Cambridge Currículo inovador de Cultura disciplinasintegradoJudaicaàsdonúcleocomum Um Educaçãoesaudável,ambientefelizenriquecedorparaalunosdaInfantilaoEnsinoMédioTecnologiascriativaselaboratóriosparaoaprendizado“mãonamassa” Uma escola judaica renovada: plural, vibrante e conectada. Sede Laranjeiras tel 21 2156-6100 Unidade Infantil Ipanema tel 21 2513-3318 Integrantewww.eliezermax.com.brdaRededeEscolas Judaicas Pluralistas

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STEFANJUDAÍSMOPECULIARDEZWEIG

Um personagem como Stefan Zweig, alma atormentada, escritor maravilhoso, figura contraditória e generosa, ligado pelo amor e pela morte ao Brasil, necessariamenteseráum objeto de difícil interpretação.

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Uma cena da película dirigida por Maria Schrader retrata a reunião inter nacional de escritores promovida pelo P.E.N. Club em Buenos Aires em 1936, ano da primeira passagem de Zweig pelo Brasil. Apesar de fortemente pressio nado a dar declarações sobre a situação na Alemanha, o escritor se mantém fir me na recusa a fazer pronunciamentos políticos e a atacar a nação germânica.

Israel Beloch

uitos dos que assistiram o filme “Adeus Europa” (Vor der Morgen röte), produção alemã recém-exibida em nossas telas, retratando as viagens de Stefan Zweig ao continente americano e seu exílio e morte no Brasil, experimentaram a angústia de ver a resistência do grande intelectual em denunciar de público o regime nazista, que, no terceiro ano de vida, já mostrava com clareza seu caráter antissemita.

1

M

Um personagem como Stefan Zweig, alma atormentada, escritor maravi lhoso, correspondente e interlocutor dos maiores intelectuais de seu tempo, fi gura contraditória e generosa, ligado pelo amor e pela morte ao Brasil, será ne cessariamente um objeto de difícil interpretação.

É difícil entender esta atitude. Resultaria ela de simples medo, de puro temor de represálias? Ele já fugira da Áustria em 1934, abandonando o seu acolhedor palacete em Salzburgo, quando o governo fascista embora antiale mão de Dollfuss, promoveu uma batida em busca de armas em sua residên cia. Radicou-se então na Inglaterra e de lá também fugiu em 1940, pouco após a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Instalou-se no Brasil em 1941, na sua terceira viagem ao país, ocupando um pequeno chalé em Petrópolis,

Em 1917 lançara o drama teatral Jeremias, em que a advertência do profeta bíblico para a destruição de Jerusalém é convertida em mensagem contemporânea, uni versal: “Escolhi como símbolo a figura de Jeremias, aque le que avisa em vão. Mas não pretendia uma peça “pacifis ta”, colocar em palavra e verso um lugar-comum, de que a paz era melhor que a guerra, e sim dizer que aquele que nos tempos de euforia é desprezado como fraco, amedron tado, na hora da derrota é, em geral, o único que não ape nas a suporta, mas a domina. (...) eu já me lançava no abis mo mais fundo da catástrofe, e procurava como subir... in conscientemente, com um tema tirado da Bíblia, eu toca ra algo que até ali não havia utilizado: a comunhão, obscuramente fundada no sangue ou na tradição, com o des tinoNajudaico”.3República de Weimar, implantada na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, desfrutou de grande pro ximidade com Walther Rathenau, o empresário e intelec

Na reunião do P.E.N. Clube em Buenos Aires, quando Emil Ludwig descreveu as perseguições promovidas pelo nazismo contra os judeus, Zweig, sentado à mesa da presi dência do encontro, cobriu o rosto com as mãos. Correu a notícia de que chorava, impressão depois desmentida em sua correspondência. De fato, concentrava-se no que ou via e refletia sobre o terror.

onde hoje funciona a Casa Stefan Zweig. Em dezembro de 1941 os japoneses ata caram Pearl Harbor e os EUA entraram na guerra. Em janeiro seguinte, a Reu nião de Chanceleres Americanos no Rio de Janeiro decidiu pela ruptura de re lações dos países do Continente com o Eixo (Alemanha-Itália-Japão); um mês depois o primeiro navio mercante bra sileiro foi torpedeado em nossas costas por um submarino alemão; neste mes mo fevereiro de 1942, Zweig e sua mu lher Lotte se suicidaram na casinha da Rua Gonçalves Dias, em Petrópolis. A depressão vinha de longe e parece que o medo também.

Stefan Zweig nasceu em Viena numa família de judeus enriquecidos com a indústria têxtil. Seu pai, Moritz, provinha da Morávia, hoje República Tcheca, sua mãe,

Ida Brettauer, de origem austríaca, nas ceu em Ancona, na Itália. Eram os típi cos Westjuden que compareciam à sina goga em Rosh Hashaná e Yom Kipur e que se viam muito diferentes dos Ostju den, os judeus da Polônia, da Galícia, da Rússia, da Bessarábia, dualidade descrita com grande vigor por outro imenso escri tor, o galiciano Joseph Roth, amigo mui to próximo de Zweig2.

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Iniciou sua vida literária com o apoio de Theodor Herzl, o fundador do sionis mo político e editor do principal jornal vienense, o Neue Freie Presse, onde publicou em 1901 o seu primeiro trabalho, um texto sobre poesia, e logo em seguida um conto e um ensaio. Mas não compartilhou com Herzl o entusiasmo sionista, descrente de que a Pa lestina pudesse significar a solução do “problema” judaico. Foi antes um territorialista, adepto da definição de um es paço geográfico adequado que oferecesse refúgio imedia to ao povo perseguido.

É possível que Stefan Zweig não tenha se dado conta da diferença entre, de um lado, os choques de nacionalis mos, ambições territoriais e patriotadas sangrentas da Pri meira Guerra e, de outro, a monstruosa ideologia que ha via se apossado da Alemanha em 1933, ganhava adeptos na sua Áustria e logo mergulharia o mundo na guerra mais tenebrosa de todos os tempos?

A questão judaica o desconcerta, acha que os judeus, como judeus, não devem aparecer. Esposa uma opinião que hoje pode nos soar covarde. Na verdade, suas ante nas sensíveis preocupavam-se com a mudança do antisse mitismo europeu, que tinha deixado de ser religioso para ser racial e político.

A sua ojeriza à política era antiga, da militância paci fista durante a Primeira Guerra Mundial, quando se co locou ao lado de Romain Rolland, o grande escritor fran cês campeão da luta contra o delírio bélico. Inúmeras ve zes manifestou seu desprezo pela política, pelos naciona lismos e os preconceitos entre povos, culturas e religiões. Identificou-se plenamente com os textos de Rolland reu nidos em 1915 sob o título Au dessus de la mêlée (Acima da confusão). No entanto, depois de uma visita à jovem –mas já estalinista – União Soviética em 1928, a decepção com o que viu, somada ao seu apoliticismo, provocaram o progressivo afastamento do mestre Rolland, que se defini ra como militante comunista.

Embora cético acerca da eficácia de manifestos, Zweig esboçou em 1933 um documento de repúdio ao nazismo e em defesa do povo judeu a ser assinado por luminares da cultura e da ciência de todo o mundo.

tual judeu que chegou a Ministro do Exterior e foi assas sinado em 1922 por fanáticos da ultradireita. “Cinco me ses depois do assassinato – lembra Dines –, Zweig recebeu uma carta de Hugo Geitner, ex-secretário de Rathenau e amigo da família, convidando-o a escrever uma biografia do amigo. Em suas mãos a trajetória daquele que nos tem pos modernos melhor encarnou a figura dos reis-filósofos poderia até reanimar a combalida República de Weimar. A ideia empacou por algum motivo: talvez o horror à po lítica e às controvérsias, ou simplesmente medo. Medo de ser assassinado como foi o biografado.”

Hesitou tremendamente até abandonar a Áustria, já inebriada com os vapores do nazismo. Ainda em 1933 escreve a Romain Rolland: “Silencio sobre o que esta mos sofrendo moralmente, mas, mesmo neste momen to, não posso odiar um país inteiro... a língua na qual es

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crevemos não permite que amaldiçoemos seu povo, ain da que em pleno desvario... tenho que tomar uma deci são. Devo ir-me? Ficar significa sofrimento, ameaças, si lêncio, viver a vida de um prisioneiro. Ir embora signifi ca abandonar aqueles cujas obras não lhes permitem in dependência financeira... ficar e silenciar (ser forçado ao silêncio) é ser suspeito de covardia. Ir embora cheira a co vardia ainda maior. Esse o dilema que me atormenta dia e noite. Creio que ficarei... Minha mulher quer o con trário... Os emigrantes olham torto para os que ficam. Tenho uma velha mãe, com 80 anos, em Viena. Sabem que sou pacifista, internacionalista, mas jamais serei da queles que falam mal da Alemanha (jamais ataquei um povo qualquer, tanto na guerra como na paz, mesmo ago ra não porei a culpa na Alemanha inteira pela ferocida de de seus carrascos)... Não é possível que sejam sempre

Stefan e Lotte Zweig na Escola Sholem Aleichem, no Rio de Janeiro, em 1940; entre os alunos, o menino Alberto Dines, sétimo da esquerda para direita na penúltima fila.

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e somente os judeus que tomam a palavra pela liberdade na Alemanha...”4 Mesmo a queima de livros em Berlim (10/05/1933) ainda não é suficiente para fazer a sua ca beça. Abandona, por fim, a Áustria em março de 1934, quando sua residência é varejada pela polícia em busca de “armas social-democratas”.

No ano seguinte, já exilado na Inglaterra, colabora com Richard Strauss, o grande músico alemão que manteve es treitos vínculos com o regime nazista, produzindo o libreto da ópera A mulher silenciosa. A parceria com um dos maiores compositores de todos os tempos era um galardão valioso, mas a encenação da obra dependeu de gestões de Strauss junto a Goebbels. Essa embaraçosa situação exigiu de Zweig grande esforço de justificação: nas memórias, o episódio ocupa dez páginas.

cético acerca da eficácia de manifestos, esbo çou em 1933 um documento de repúdio ao nazismo e em defesa do povo judeu a ser assinado por luminares da cultura e da ciência de todo o mundo. O rascunho do que de signou como “magna carta”, enviado a seus amigos Albert Einstein, Max Brod e a outras personalidades, proclama va: “Calmamente, mas com inabalável firmeza, rejeitamos a tentativa de desonrar nosso povo iniciada pelos ideólogos

racistas, preferimos morrer a reconhecer como verdade tal loucura. (...) ninguém conhece mais o problema dos deslo cados como nós com dois mil anos de perambulação. (...) quem quer que tenha visto a Palestina não poderá ignorar o nosso honesto desejo de um avanço criativo na solução do problema judaico (...) estamos prontos para colaborar com todos os povos e com o representante desses, a Liga das Nações, em busca de qualquer solução para o proble ma judaico, desde que atenda a nossa honra e a honra des se século.” Como se vê, o documento contemplava o sio nismo e o territorialismo. A baixa adesão, no entanto, fez naufragar a iniciativa.

Só se assume plenamente judeu no final da vida, em seu livro de memórias, O mundo de ontem (1941): “Nove décimos do que o mundo festejava como cultura vienense era uma cultura estimulada e alimentada pelos judeus vie nenses ou era até mesmo uma cultura criada por eles.” An tes, o judaísmo parecia-lhe um interminável contencioso – com Deus, com os homens, com os outros judeus – far do difícil de carregar. Schver tsu zain a yid, penoso ser ju deu, diz Alberto Dines em idisch.

O caráter contraditório de seus movimentos se revela na decisão, tomada ainda em 1933, de doar sigilosamen te o seu riquíssimo acervo de cartas à Biblioteca da Uni versidade Hebraica de Jerusalém, onde estão arquivadas até Emborahoje.

À esquerda, Stefan Zweig cobrindo o rosto com as mãos no Congresso do PEN em Buenos Aires, 1936. À direita, Stefan Zweig e Joseph Roth, em Ostende, Bélgica, 1936.

Nunca se recusou, no entanto, a apoiar as comuni dades judaicas dos vários países por onde transitou. Nas três passagens pelo Brasil, foram fartas as demonstrações neste sentido: reunião com 1.200 presentes no Centro Is raelita Brasileiro (1936), evento em benefício do Comitê Brasileiro Pró Vítimas da Guerra, no Clube Botafo go (1940), visita à Escola Sholem Aleichem e ao Ginásio

Sua obra mais judaica, O candelabro enterrado, publi cada em 1936, conclui com as palavras: “Quanto ao eter no castiçal... continua sendo segredo de Deus e dorme nas trevas das idades; quem sabe se dormirá sempre, invisível e chorando por seu povo, que continua a errar de exílio em exílio, ou se se acabará por descobri-lo no dia em que Is rael se reencontrar a si mesmo e se, de novo, resplandece rá no templo da paz?”

Hebreu-Brasileiro (1940). Se esquivava porém de qualquer manifestação religio sa e declinou o convite do Rabino Hen rique Lemle para falar no Yom Kipur de 1941 na pequena sinagoga, embrião da ARI, onde se reuniam os judeus alemães.

Zweig sabia o quanto de utópico, de quimera, e até de quixotismo, podia ser enxergado no seu grito pela paz e pela unidade espiritual do gênero humano.

Embora sem aludir diretamente ao judaísmo, a não ser na menção exemplar à Torre de Babel, arquétipo do desentendimento entre os homens, a experiência histó rica do povo milenar perpassa profundamente o texto de sua conferência “A unidade espiritual do mundo”, pro nunciada pelo escritor em sua primeira viagem ao Bra sil (1936) e objeto da mais recente publicação da Casa StefanTalvezZweig.6umpouco ingenuamente, havia ficado maravi lhado com a nossa sociedade, pacífica e miscigenada, que lhe inspiraria anos depois o seu livro emblemático Brasil, um país do futuro, publicado em 1941 em oito edições si multâneas em todo o mundo. Pode-se interpretar que a

Capas de algumas das obras de Stefan Zweig publicadas no Brasil, entre elas a notória Autobiografia: o mundo de ontem e duas diferentes edições de Brasil: um país do futuro

Reproduções

Seu círculo de amigos, que sempre teve forte presença judaica, manteve a mesma natureza no exílio brasileiro. Sua última agenda telefônica, que a Casa Ste fan Zweig publicou recentemente em fac-símile, conti nha 48% de judeus, tanto indivíduos quanto entidades.5

O rabino tradicionalista do Rio de Janeiro, Morde chai Tzekinovsky, dando uma surpreendente interpreta ção liberal ao preceito judaico que manda enterrar os sui cidas perto dos muros do campo-santo, tentou de todo

jeito realizar um funeral normal no ce mitério de Vila Rosali. Desistiu diante da discordância das autoridades de Pe trópolis, que queriam sepultá-lo na cidade e chegaram a ameaçar veladamente o rabino com rebelião popular. Stefan e Lotte Zweig repousam no cemitério ca tólico de Petrópolis. Naquele 24 de feve reiro de 1942, as preces fúnebres foram entoadas pelo Rabino Lemle. As lápides contêm inscrições em hebraico.

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Notas

6. Stefan Zweig. A unidade espiritual do mundo: um grito pela paz no Brasil. Textos de Alberto Dines, Celso Lafer, Klemens Renoldner e Jacques Le Rider. Rio de Janei ro, Casa Stefan Zweig – Memória Brasil, 2017.

O peculiar judaísmo de Stefan Zweig é subjacente a toda sua obra. Embora pendular, oscilante, seu judaísmo é um nervo exposto, é a base da sua arte e da sua ânsia de compreender o ser humano. A cada dia se multiplicam em todo o mundo as referências ao intelectual vienense: reedi ções, biografias, estudos, livros de ficção baseados em sua vida, matérias jornalísticas, filmes e peças teatrais. Sua per manência, 75 anos depois da morte trágica em Petrópolis, atesta que a centelha de gênio que o iluminava, seu huma nismo e sua modernidade encerram uma mensagem muito viva para os nossos tempos.

O mesmo se pode dizer da conferência “A unidade es piritual do mundo”. Zweig sabia o quanto de utópico, de quimera, e até de quixotismo, podia ser enxergado no seu grito pela paz e pela unidade espiritual do gênero huma no. Como argumenta Alberto Dines na apresentação, o autor “não se preocupou em ser realista, racional, lógico, queria desfraldar o seu sonho...” Como a dizer que só os loucos não sonham.

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2. Joseph Roth. Judeus errantes. Trad. de Simone Pereira Gonçalves. Belo Horizonte, Editora Âyiné, 2016 [Biblioteca Antagonista, 12]

Israel Beloch é historiador, coordenou o Dicionário histórico-bio gráfico brasileiro, do CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, foi edi tor-chefe do site Brasiliana Eletrônica da UFRJ (www.brasiliana.com. br), é diretor da Casa Stefan Zweig (www.casastefanzweig.org.br) e editor da Memória Brasil.

Nas palavras do austríaco, “o dever superior do intelec tual é o de permanecer fiel às suas convicções, ainda que a realidade as desminta no momento (...) Admitamos, porém, que inclusive tenhamos nos equivocado e trabalhado em favor de uma quimera; pelo menos teremos vivido para a ilusão mais nobre que anima a face da Terra”.

Esse grito zweiguiano exumado de uma coleção de do cumentos, que a Casa Stefan Zweig publicou em 2017, em fac-símile e nas cinco línguas mais faladas do Ociden te, é um alerta mais que oportuno nos dias turbulentos que vivemos. Como nunca, o humanismo e o pacifismo têm lugar obrigatório no presente, nesses tempos de pro fundas divisões nacionais, étnicas, religiosas, sociais e cul turais. Tendo se mostrado tão amargurado com o confli to europeu, o que sentiria Zweig hoje diante da ferocida de das guerras localizadas, do flagelo do terrorismo, das hordas de refugiados, da xenofobia e das culturas refratárias à integração, do renascimento do nacionalismo primi tivo e boçal, da proliferação das armas nucleares, das for ças centrífugas que parecem estilhaçar povos e comunida des de nações.

5. Alberto Dines. A rede de amigos de Stefan Zweig: sua última agenda (1940-1942). Organização de Israel Beloch. Rio de Janeiro, Casa Stefan Zweig – Memória Bra sil, 2014.

1. Dedico este artigo ao jornalista Alberto Dines, Presidente de Honra da Casa Ste fan Zweig, decano dos estudos zweiguianos no Brasil, autor da exemplar biogra fia Morte no paraíso; a tragédia de Stefan Zweig” (4ª ed. ampliada, Rio de Janeiro, Rocco, 2012) na qual largamente este texto se baseia.

4. Stefan Zweig. Carta a Romain Rolland, 10/04/1933. Briefe 1932-1942. Knut Beck, Jeffrey B. Berlin e Natasha Weschenbach-Feggeler (orgs.). Frankfurt am Main, S. Fischer Verlag, 2005. Transcrita de Alberto Dines. Op. cit.

3. Stefan Zweig. O mundo que eu vi (Die Welt von Gestern; Erinnerungen eines Eu ropäers). Trad. De Lya Luft. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999, pg. 302-304. Trans crita de Alberto Dines. Op. cit.

Reprodução

descrição idílica que ele apresentou do Brasil neste livro clássico não fosse fruto apenas do desconhecimento ou da credulidade, mas uma contraposição consciente ao racis mo nazista, que logo atingiria o seu píncaro.

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Sob os regimes da AP e do Hamas, os palestinos são livres para criticar Is rael e incitar contra ele. Mas quando se trata de criticar os líderes da AP e do Hamas, as regras do jogo mudam. A crítica passa a ser considerada um “cri me” e os responsáveis frequentemente vão parar atrás das grades ou sofrem ou tras formas de punição.

A REAL TRAGÉDIA DOS FRACASSADALIDERANÇAPALESTINOS:

A maioria dos palestinos esperava de seus líderes após a assinatura dos Acordos de Oslo o estabelecimento da democracia e liberdade de expressão. No entanto, a AP provou não ser diferente da maioria das ditaduras árabes.

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Autoridade Palestina (AP) na Cisjordânia e o Hamas na Faixa de Gaza podem estar em guerra um contra o outro, mas os dois rivais parecem concordar numa questão: é preciso silenciar e intimidar seus críticos. Claro, isso não chega a ser uma surpresa para aqueles que estão fami liarizados com a natureza antidemocrática da AP e do Hamas.

Isso, é claro, não é o que a maioria dos palestinos esperava de seus líderes. Após a assinatura dos Acordos de Oslo e o estabelecimento da AP há mais de 20 anos, os palestinos esperavam ter democracia e liberdade de expressão. No entanto, a AP, primeiro sob Yasser Arafat e mais tarde sob Mahmoud Abbas, provou não ser muito diferente da maioria das ditaduras árabes, onde a demo cracia e a liberdade de expressão são inexistentes.

No passado, os palestinos tinham que lidar com um único regime (a AP) que não honra a liberdade de expressão, mas nos últimos dez anos eles acumu laram mais um governo repressivo (Hamas) que controla a Faixa de Gaza com punho de ferro e suprime qualquer forma de liberdade de expressão, além de perseguir qualquer pessoa que se atreva a falar.

Khaled Abu Toameh

Aos palestinos dos territórios con trolados pela AP na Cisjordânia e pelo Hamas na Faixa de Gaza resta apenas olhar para os vizinhos em Israel e inve já-los pela democracia, pela imprensa li vre e pelo estado de direito. Praticamen te nenhum dia se passa sem que os pa lestinos sejam lembrados, tanto pela AP como pelo Hamas, de que ainda estão longe de alcançar sua aspiração de des frutar da democracia e da liberdade de expressão. Uma imprensa livre é algo que os palestinos só conseguem hoje viven ciar em sonho.

Na ausência de uma imprensa livre e independente na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, alguns escritores, jornalistas e ativistas políticos recorrem às mí dias sociais para transmitir seus pontos de vista e compar tilhar suas queixas com seus companheiros palestinos e com o mundo exterior. Mas a AP e o Hamas descobriram o poder do Facebook e do Twitter, e expandiram a batalha contra seus críticos para essas duas plataformas também.

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A mídia palestina na Cisjordânia serve como porta-voz da AP e de seus líderes. Mesmo as estações privadas de rá dio e televisão na Cisjordânia sabem há muito tempo que devem se manter na linha ou enfrentar medidas puniti vas e sentir a mão pesada das forças de segurança da AP. É por isso que os meios de comunicação e os jornalistas pa lestinos na Cisjordânia se abstêm de informar sobre qual quer história que possa refletir negativamente sobre Ab

Praticamente nenhum dia se passa sem que os palestinos sejam lembrados, tanto pela AP como pelo Hamas, de que ainda estão longe de alcançar sua aspiração de desfrutar da democracia e da liberdade de expressão.

Cbies/istockphoto.com

bas ou qualquer um dos seus camaradas. No mundo da imprensa, isto é chamado de autocensura.NaFaixade Gaza, a situação não é melhor. Na verdade, é difícil falar sobre a existência de uma imprensa sob o Hamas. O Hamas e suas forças de segurança man têm um forte aperto nos meios de comu nicação locais e os jornalistas são subme tidos a restrições rigorosas. As críticas ao Hamas são quase inéditas e podem con duzir os responsáveis para a prisão.

Publicar postagens críticas ou polêmicas nas mídias so ciais é considerada uma ofensa grave sob a AP e o Ha

olhardefesainternacionaisorganizaçõesdedosdireitoshumanospreferemparaooutroladodiantedasviolaçõesdosdireitoshumanospelaAPepeloHamas. Ramspott/istockphoto.comFrank

A ausência de críticas internacionais permite que a AP e o Hamas mantenham sua política de silenciar e intimidar os pa lestinos que se atrevem a falar contra a falta de liberdade de expressão e de demo cracia na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Recentemente, por exemplo, o Ha mas prendeu dois palestinos na Faixa de Gaza que publicaram comentários críti cos no Facebook: Abdallah Abu Sharekh e Shukri Abu Oun.

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mas. Os líderes da AP e do Hamas acusam aqueles que se atrevem a criticá-los no Facebook de “vilipendiar” e “insultar” os representantes dos palestinos.

Nos últimos anos, dezenas de jorna listas palestinos, blogueiros, acadêmicos e ativistas políticos foram presos ou condu zidos a interrogatório pela AP e pelo Ha mas em suas postagens no Facebook. As organizações internacionais de defesa dos direitos humanos e os defensores da liber dade de expressão e de imprensa em todo o mundo pre ferem olhar para o outro lado diante dessas violações dos direitos humanos pela AP e pelo Hamas. Além disso, os grupos e os indivíduos “pró-palestinos” no Ocidente não parecem se preocupar com a triste situação dos palestinos sob a AP e o Hamas. Os únicos “erros” e “males” que eles veem estão do lado israelense. Ao ignorar a situação dos palestinos oprimidos, esses ativistas e grupos “pró-palesti nos” estão realmente ajudando a AP e o Hamas em seus esforços para silenciar as vozes da dissidência e da crítica.

Abu Sharekh, um proeminente escritor, foi preso pou co depois de publicar um comentário no Facebook cri ticando o alto funcionário do Hamas, Salah Bardaweel. “Você está governando a Faixa de Gaza com um punho de ferro e fogo”, escreveu Abu Sharekh. “A opressão (na Fai xa de Gaza) é intolerável. Você (Hamas) levou a Faixa de Gaza de volta à Idade Média”.

As críticas de Abu Sharekh foram feitas em respos ta à crise de energia elétrica na Faixa de Gaza. Como re sultado da luta de poder entre o Hamas e a a Autori

As

É ao mesmo tempo irônico e triste que a Autoridade Palestina, que tem criticado a repressão do Hamas à liberdade de expressão na Faixa de Gaza, recorra a medidas se melhantes contra os seus críticos na Cisjordânia.

No ano passado, a AP demonstrou que não hesita em prender mesmo um dos seus, quando ele se atreve a criticar os líderes palestinos. Osama Mansour, um alto fun cionário de segurança da AP, foi preso e depois demitiu-se porque criticou Mahmoud Abbas por participar do fune ral do ex-presidente israelense Shimon Peres.

Dado o estado atual dos palestinos, é difícil perceber como eles poderão ter algum progresso no sentido de esta belecer um Estado bem sucedido, com lei, ordem e respei to pelas liberdades individuais e pela democracia.

Traduzido do inglês por Raul Cesar Gottlieb

Abu Oun foi preso por publicar críticas semelhantes sobre o Hamas no Facebook. Anteriormente, o Hamas também prendeu os jornalistas Nasr Abu Foul, Ahmed Qdeih e Hazem Madi, acusando-os de publicar “notícias falsas” e “espalhar rumores”. Seus verdadeiros crimes: publicar comentários críticos sobre o Hamas nas mídias so ciais. Mais tarde, o Hamas também prendeu os ativis tas políticos Mohammed al-Tuli e Amer Balousheh pelo mesmoOutromotivo.jornalista palestino da Faixa de Gaza que foi ví tima da repressão do Hamas à liberdade de expressão é Fuad Jaradeh, um correspondente da televisão palestina. Os agentes de segurança do Hamas prenderam Jaradeh de pois de invadir sua casa no subúrbio Tel-Al-Hawa da cida de de Gaza e confiscar seu laptop e celular. Sua família diz que ele foi preso apenas por causa de suas postagens críti cas no Facebook contra o Hamas.

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A verdadeira tragédia dos palestinos nas últimas décadas foi a liderança fracassada – seja da secular OLP ou do islâmico Hamas.

A mais recente vítima da AP é Nassar Jaradat, um ativista político de 23 anos que foi preso no início desta semana por criticar o proeminente político palestino Jibril Rajoub. As forças de segurança da AP prenderam Jaradat depois dele pu blicar um comentário no Facebook, no qual criticou Rajoub por ter reconheci do o direito dos judeus ao Muro das La mentações em Jerusalém. Um tribunal da AP ordenou que Jaradat, um estudante de engenharia, fosse interna do durante 15 dias pela acusação de “insultar” um alto funcionário palestino.

Os palestinos esperavam alcançar um estado indepen dente. No entanto, como resultado da luta de poder entre a Autoridade Palestina e o Hamas, eles conseguiram dois Estados separados – um na Cisjordânia e outro na Faixa de Gaza. Mas a verdadeira tragédia é que nem a AP nem o Hamas valorizam os direitos humanos ou as liberdades individuais. A verdadeira tragédia dos palestinos nas últi mas décadas foi a liderança fracassada – seja da OLP secu lar ou do Hamas islâmico.

Tais detenções tornaram-se rotina na Cisjordânia sob a AP. Quase todas as semanas, os palestinos ouvem falar de mais um jornalista ou blogueiro ou ativista que foi preso ou convocado para interrogatório pelas forças de seguran ça da AP por ter feito nada além de postar críticas ao go verno nas mídias sociais.

dade Palestina, milhares de famílias passam a maior parte do dia sem eletrici dade. No mês passado, a AP anunciou que deixaria de pagar Israel pelo com bustível fornecido às usinas da Faixa de Gaza. O movimento da AP destina-se a punir o Hamas. Mas Abu Sharekh e ou tros palestinos na Faixa de Gaza respon sabilizam o Hamas pela crise. Eles argu mentam que a corrupção do Hamas, especificamente o desvio de fundos do Qatar, destinados a comprar com bustível para as usinas de energia, é o principal motivo da crise. Abu Sharekh, em seu comentário no Facebook, apontou que os líderes do Hamas instalaram geradores privados que fornecem eletricidade para suas casas mesmo durante as interrupções de energia.

Khaled Abu Toameh é jornalista premiado que mora em Jerusalém.

Publicado originalmente pelo Gatestone (gatestoneinstitute.org) em 15 de junho de 2017.

Em um movimento sem precedentes e ousado, o clã de Abu Sharekh emitiu uma declaração condenando o Ha mas pela prisão de seu filho pelo crime de ele ter expressa do sua opinião: “Nós responsabilizamos o Hamas pela se gurança e pela saúde de nosso filho e pedimos o fim da per seguição a ele e a seus assemelhados ... Rejeitamos e con denamos qualquer ação que constitua um assalto ao direi to de nossos filhos a expressar sua visão política”.

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TRÊS POEMAS, TRÊS RUAS EM TEL AVIV

Tel Aviv: uma cidade onde os construtores da literatura judaica nomeiam as ruas. istockphoto.com)

Três ruas entre tantas, três poetas entre tantos, três vivências de uma única e longa história. Que continua a ser escrita. E que continuará a sê-lo enquanto assim o desejarmos.

Fotos Daniela Strauss

Raul Cesar Gottlieb

Ausência de paz e, portanto, de segurança que compe liram este povo a, assim que possível, exercitar seu ador mecido músculo político e distender, qual uma mola su bitamente desbloqueada, o desejo milenarmente reprimi do de viver em segurança.

Liorpt/istockphoto.com

(Foto:

T

rês ruas em Tel Aviv. Três homenagens a poetas dispersos por três milênios de vivência judaica. Em paralelo, três contrastes entre poesia e paisa gem Contrastesurbana.querefletem o ressurgimento político de um povo muito antigo, que por milênios se alimentou apenas de espiritualidade, mas que, mesmo sem ter rele vância política, jamais foi deixado em paz para desfrutar sua singular relação com o transcendente.

Então quando a terra desejou o céu, Ela teceu sobre si leitos de flores, Mais ou menos como as estrelas.

Usando chuvas e trovoadas como tinta, Raios como pena e nuvens como mãos, O inverno escreveu uma carta para o solo, em azul e violeta, Obra que nem o mais perito artesão conseguiria igualar.

Mas não é nada disto que temos em Tel Aviv e sim uma rua, uma das maio res ruas da cidade. Importante via de ligação do centro com o norte da cidade e, como tal, constantemente superlotada. Nos horários de pico (e eles são mui tos), ônibus, carros e motos disputam cada centímetro de suas pistas, buzinando freneticamente ao menor sinal de hesitação do motorista à frente.

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O Bordado da Terra1

Solomon Ibn Gvirol (cerca 1021-1058)

As calçadas são ladeadas por lojas de todos os tipos e tamanhos, o que faz com que pedestres e bicicletas disputem o espaço com mesas de restaurantes, alguns de bom nível outros nem tanto. A prefeitura, um edifício em forma de gigante caixa de sapatos sem muita graça se debruça sobre a grande esplanada quase vazia e árida onde as manifestações políticas de Tel Aviv acontecem (é a praça Rabin, onde o primeiro-ministro foi assassinado).

Um equipamento urbano compatível com o poema deveria ser algo como uma praça, não muito grande, gramada, florida, cercada por uma cerca baixa e delicada. Ao centro, um laguinho refletindo as cores do céu e bancos sombrea dos à volta convidando amigos e namorados a desfrutar a brisa juntos.

A harmonia do poema medieval contrasta com a desarmonia e a concre tude de uma paisagem urbana, que empastela de suor no verão e congela no vento do inverno.

Difícil pensar no leito de flores da poesia de Ibn Gvirol enquanto você está no meio do trânsito.

O poeta viveu na chamada “Idade de Ouro” do judaísmo na Espanha mou ra. O poema é um canto idílico à harmonia do mundo. Tal qual um amante, os céus mandam uma carta de amor para a terra na forma das chuvas de inver no. A terra retribui ao seu amado tecendo uma trama com as flores que nas ceram após a chuva. Flores que refletem na terra o padrão das estrelas do céu.

A harmonia idílica do poeta medieval não está refletida na movimentada concretude do cotidiano.

Oh louvemos nós o teu doce Jesus Com o golpe dos teus grandes sinos; Bing-bong.

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Os judeus não tinham sinos para acenar a Deus. Benditos sejam os cristãos, porque deles são os sinos no alto, Sinos cujas vozes soam seriamente através das planícies, agora que é primavera, Intensamente esparramada pelas terras cobertas de fragrâncias e cores. É todo poderoso e mestre de tudo: não há nada a Lhe passar acima, Como Ele uma vez passou sobre os tetos dos judeus.

Mas a primavera será a primavera - e o verão vem abundantemente depois, As árvores que margeiam as estradas estão cheias de frutas, como nunca antes. As frutas nunca estiveram tão vermelhas ou suculentas como agora Que não há mais judeus.

Mais uma vez as neves derreteram aqui … e os assassinos agora são fazendeiros. E lá se foram eles arar suas terras, que são, todas elas, meus cemitérios. Se o toque de seu arado, rolando como um crânio sobre os sulcos da terra, Topar com um dos meus esqueletos, o fazendeiro não ficará nem triste nem chocado, Mas irá sorrir e reconhecê-lo, reconhecerá a marca que sua ferramenta atingiu.

Ou nos túmulos das florestas Nas margens dos rios, no fundo dos rios, ou jogados por aí Nos caminhos a que pertencem.

Seguramente o ciclista não está pensando, como na poesia de Uri Tzvi Greenberg, em cadáveres desenterrados pelos arados dos camponeses.

Uri Tzvi Greenberg (1896-1981)

A primavera se renova sobre a terra: brotos e botões e liláses e pássaros. Rebanhos pousam ao longo de brilhantes correntezas de águas rasas, Os judeus errantes não estão mais: não estão mais com suas barbas e peot. Não estão mais nas pousadas com talit e tsitsit sobre suas camisas; Não estão mais nas mercearias ou nas lojas de roupas; Não estão mais em suas oficinas e vagões de bonde; Não estão mais nem em suas sinagogas, ou no mercado; Eles estão sob os dentes do arado cristão.

Por que o Senhor encheu de graça Seus goym escolhidos.

Sob os Dentes de seus Arados2

Benditos sejam os cristãos, por que deles são os sinos no alto, Que honram a Deus que ama os cristãos e toda a humanidade. E todos os judeus são cadáveres sob os dentes de seus arados Ou sob a grama das pastagens.

Pinheiro3

Em ti eu fui transplantada, oh meu pinheiro, Em ti eu me transformei em mim mesma e cresci Onde paisagens díspares dividem uma raiz em duas.

Lea Goldberg (1911-1970)

A amargura do escrito contrasta com a doçura da rua, num pequeno bairro residencial, bem planejado, dispondo de amplos espaços para crianças brincarem, de um pequeno mas bem fornido centro comercial e bem servido de es colas e de transporte público. Lugar de vida agradável e pacífica no atual limi te norte de Tel Aviv. Nada, absolutamente nada, na rua lembra remotamente os pogroms da Europa – não há nem cossacos-lavradores nem barbas e peot. Neste caso é a desarmonia do poema que contrasta com a harmonia da rua.

Talvez as aves migratórias que acham sozinhas Seu próprio caminho se equilibrando entre céu e terra, Sabem como eu oscilo entre duas terras de nascimento.

Acima, flores e gramados ladeiam a rua que homenageia o poeta Uri Tzvi Greenberg, que anteviu a destruição da vida judaica na Europa. Abaixo, na Rua Lea Goldberg, uma esquina tipicamente israelense.

A indesculpável generalização condenatória do poema e sua completa desi lusão com um Deus que, conforme ele aprendeu no cheder, deveria amar seu povo acima de todos os demais, mas que parece se deixar subornar pelo poder dos sinos e pela beleza das igrejas, só podem ser mitigadas pela compreensão da terrível vivência do poeta.

O poeta e jornalista viveu no auge da Shoá. Lutou a Primeira Guerra Mundial pelo Império Austro-Húngaro e ao escapar miraculosamente dos pogroms de Lemberg, em 1918, se convenceu definitivamente que todos os judeus que viviam na Europa seriam, mais cedo ou mais tarde, exterminados. Ele anteviu o nazismo antes mesmo de seu nascimento e alertou com seus escritos sobre sua terrível ameaça. Mas em vão. Os judeus ficaram na Europa e ele, que imi grou em 1923 para Israel, passou o resto da vida tendo que contemplar diaria mente a sensação de “se ao menos me tivessem escutado”.

Aqui eu nunca ouvirei o chamado do cuco. Aqui as árvores nunca vestirão o shtreimel de neve. Mas aqui, à sombra do pinheiro, eu posso ouvir toda A minha infância, revivida de tanto tempo atrás.

As agulhas ecoam: Era uma vez “Lar” era a palavra que eu dava à neve, não à areia, E ao riacho trancado no gelo - uma geada esverdeada Do idioma do meu canto numa terra longínqua.

1. Traduzido para o português a partir da tradução do hebraico para o inglês de Raymond P. Scheindlin, no livro Vulture in a Cage: Poems by Solomon Ibn Gabirol

Notas

Contudo, a prefeitura de Tel Aviv a colocou numa rua tipicamente israelen se, num bairro relativamente novo do norte da cidade, sem nenhum resquício do charme europeu e também sem muita semelhança com o estilo que Lea en controu na cidade em 1935.

Raul Cesar Gottlieb é diretor da Devarim Daniela Strauss é artista plástica

Por séculos vivemos no mundo superior das ideias, dos debates teóricos so bre a organização jurídica, política e social de um Estado. Apesar da beleza su perior deste mundo, não queremos voltar para lá.

3. Traduzido para o português a partir da tradução do hebraico para o inglês de A. Z. Foreman, publicada em seu blog “Poems Found in Translation”.

A poetisa se sentia pertencente a dois mundos, mas sua homenagem em as falto e concreto é unicamente israelense.***

Três ruas em Tel Aviv. Três homenagens a poetas dispersos por três milênios de vivência judaica. Em paralelo, três contrastes entre poesia e paisagem urbana.

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Homenagear a dupla afinidade cultural de Lea Goldberg exigiria dar o nome dela a uma rua que fosse ao mesmo tempo semelhante a um boulevard euro peu, com duas pistas separadas no meio por um passeio arborizado, mas com os prédios brancos e baixos de linhas retas que pontuam a Tel Aviv dos primei ros tempos – algo como Sderot Rotschild ou Sderot Chen.

A poetisa Lea Goldberg sonhava com pinheiros nevados, mas a rua “dela” tem cactos israelenses.

Lea Goldberg já era dona de uma erudição invejável quando fez aliá em 1935. Filha de uma família lituana, fez seus altos estudos em filosofia e idiomas semíticos na Lituânia e na Alemanha. Atraída pelo sionismo, se obrigou a es crever apenas em hebraico deixando completamente para trás sua zona de con forto. “Para mim, escrever num idioma diferente do hebraico é o mesmo que não escrever … e eu quero ser uma escritora, este é meu único objetivo”, ano tou em seu diário. Ela falava sete idiomas e traduziu muitas obras estrangeiras para o hebraico, notadamente russas e italianas.

Contrastes que refletem a distância entre o lirismo e a realidade. Entre o sonho e sua consumação.

Diferentemente de muitos sionistas daquela época, que se esforçaram para abandonar suas raízes europeias, Lea jamais tentou sufocá-las, muito ao con trário. Abraçou de forma entusiasmada o seu novo país, mas nunca deixou de valorizar a cultura europeia – suas raízes se dividiram em duas.

2. Traduzido para o português a partir da tradução do hebraico para o inglês de A. Z. Foreman, publicada em seu blog “Poems Found in Translation”.

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Não há coincidências. É comum a piada entre os olim chadashim2 brasilei ros de que “Dilma foi a melhor shelichá3” que já houve, brincando com o fato de que nem mesmo os representantes da Sochnut4, responsáveis por promover a aliá, tiveram tanto sucesso em convencer um número tão grande de famílias brasileiras a emigrar para a Terra Prometida.

Marcus M. Gilban

Relatos sobre a Aceleração da Aliá Brasileira

Hoje, o número de brasileiros em Israel – judeus ou não – gira em torno de 13 mil. De acordo com a Agência Judaica, há cerca de 1.800 pessoas com “pas

N

unca tantos judeus trocaram o Brasil por Israel. Em 2016, foram quase 700 pessoas, o que representa um aumento de 250% com rela ção à média anual de 200 olim1 do Brasil desde a fundação do Estado judeu em 1948. Em 2015, o número havia sido em torno de 500, quase o dobro dos 280 em 2014, ano em que a ex-presidente Dilma Rousseff foi reeleita.“Esperamos aproximadamente 900 olim até o fim de 2017, um aumento de 30% em relação ao ano passado. Há um interesse duradouro na aliá entre os judeus brasileiros e acreditamos que esta tendência é ainda muito forte, mas não é possível prever o futuro”, afirma Yigal Palmor, diretor global de relações públicas e comunicação da Agência Judaica.

“Fazer aliá é com certeza uma das mais complexas decisões que uma pessoa ou um casal pode tomar. Tudo necessariamente será diferente depois do desenraizamento da árvore pessoal e familiar e o transplante da mesma no novo país”.

“É um conjunto de fatores. A situação política, a violência nas ruas, a economia, a qualidade dos serviços públicos, a maior transparência da informação sobre a realidade israelense entre os judeus do Brasil, e até um efeito de bola de neve: quanto mais brasileiros se mudam, mais brasileiros eles mesmos atraem”, explica Michel Abadi, presidente da Beit Brasil, rede de relacionamentos for mada por cerca de 120 voluntários que orientam o novo imigrante de forma individualizada desde sua saída do Brasil até seus primeiros meses no novo país.

VS.IDEOLOGIAECONOMIA

No final de junho, cerca de mil pessoas assistiram a pa lestras concorridíssimas no Rio e em São Paulo, proferidas por representantes da Agência Judaica e olim brasileiros vo luntários vindos de Israel para compartilhar suas histórias.

“Fazer aliá é com certeza uma das mais complexas de cisões que uma pessoa ou um casal pode tomar. Ela pres supõe ‘recalcular a rota’, como no Waze. Tudo necessaria mente será diferente depois do desenraizamento da árvore pessoal e familiar e o transplante da mesma no novo país”, explicou a psicóloga carioca Rita Cohen Wolf ao público.

“A aliá pode promover um upgrade significativo na qualidade de vida das famílias não só pela liberdade que se tem, mas também pela mudança do paradigma de valores. Para mim, sem dúvida, Israel é o melhor lugar do mundo

Grupo de olim brasileiros residentes em Ra’anana em passeio ao Monte Hermon.

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Canal aberto com veteranos

“O aumento do número de olim do Brasil não é temporário, e sim continuará para os próximos anos”, garan te Gladis Berezowsky, uma das principais referências em apoio a novos imigrantes brasileiros em Israel há 14 anos, e que até há pouco atuava como diretora do Beit Brasil. Trocou a sua Porto Alegre natal por Jerusalém aos 19 anos para realizar o sonho sionista.

“A ONG ‘Olim do Brasil’ está em fase de registro no Ministério de Justiça em Israel e terá como objetivos prin cipais melhorar a absorção dos olim e o acesso às informações sobre Israel para todos os potenciais olim do Brasil in teiro. Será aberta em agosto de 2017”, promete.

a principal fonte de informações para atuais e potenciais imigrantes. Seu novo projeto é a criação de uma organiza ção não governamental para atender imigrantes brasileiros.

Em 2010, Gladis fundou o grupo de Facebook cha mado “Olim do Brasil”, hoje com quase 2.500 inscritos,

ta aberta”, ou seja, deram início aos trâmites iniciais para fazer aliá, o que inclui telefonar para uma central telefôni ca em Jerusalém, preencher um questionário on-line detalhado e reunir certidões civis e religiosas assinadas por um rabino. De acordo com a Lei do Retorno, todo aquele que comprove que um dos seus quatro avós seja judeu, ou que tenha se convertido ao judaísmo em qualquer uma de suas vertentes, é elegível a fazer aliá, recebendo o seu documen to nacional de identidade (teudat zeut) ainda no aeroporto ao desembarcar em Israel.

O administrador de empresas Mar tin Teitelbaum foi outro que contou um pouco da sua vivência como israelen se. Em 2010, deixou São Paulo para trás com esposa e três filhos de dois, cinco e sete anos. A gota d’água foi um assalto em Higienópolis à luz do dia. “No Brasil, eu era apenas mais um tentando so breviver. A vida era supérflua e com valores invertidos. Em Israel, nós valorizamos o que deve ser valorizado”, avalia.

Cidadezinha de 80 mil habitantes a 14 quilômetros de Tel Aviv (mesma distância do Leblon até a Barra), Ra’anana virou uma febre entre os brasileiros nos últimos anos. As razões são diversas, entre elas o fato de que dá para se sentir num dos prósperos e tranquilos subúrbios de Miami, sonho dourado de nove em dez brasileiros. A praia mais próxima, em Hertzliya, fica a 15 minutos. O

para se viver”, completa Rita, que deixou o Rio em 1977 com marido e duas filhas de sete e dez anos, após sofrer seis assaltos. Divorciou-se, casou de novo e teve um ca sal de gêmeos, os primeiros sabras5 da fa mília, hoje a poucos meses do Bar Mitsvá.

Ra’anana: ‘Little Brazil’

“Somos uma referência não só na cidade, mas tam bém no Brasil. As pessoas querem vir para Ra’anana por que ela tem brasileiros e uma kehilá brasileira”, garante o engenheiro Alexandre Gomberg, um dos líderes da “Kehilá Yalla Chaverim”, grupo de amigos fundado em meados de 2016, que reúne também residentes de algumas cida des vizinhas como Kfar Saba, distante de Ra’anana como o Leblon de Recentemente,Ipanema.ainvasão de imigrantes franceses fugin do do crescente antissemitismo em seu país deu um char me ainda mais especial à cidade, trazendo de um lado o glamour dos cafés e bistrôs iguaizinhos aos de Paris, mas também fazendo os preços dos imóveis irem às alturas. Eles já são alguns milhares.

“A aliá pode promover um upgrade significativo na qualidade de vida das famílias não só pela liberdade que se tem, mas também pela mudança do paradigma de valores.”

Ra’anana é a cidade israelense com maior concentração de anglófonos em termos proporcionais. Fundada em 1922 por imigrantes de Nova York, estima-se que 20% da população tenham o inglês como língua-mãe por terem emigrado de países como Estados Unidos, África do Sul, Reino Unido e Canadá, ou serem a primeira geração nascida em Israel.

Atividade de esclarecimentos sobre aliá no colégio Bar Ilan, Rio de Janeiro.

Kotel fica logo ali, a cerca de 1 hora de carro, praticamente uma ida a Terê.

A comunidade brasileira é mais modesta em números, mas já reúne mais de 200 famílias, e cresce a olhos vis tos. Por meio da página da Kehilá no Facebook e diversos grupos de WhatsApp, agendam-se vários eventos e ofer ta-se uma série de serviços por brasileiros para brasileiros.

“Cerca de 70% dos meus clientes são brasileiros. A im portância de poder alugar um apartamento antes de fazer aliá é ter a tranquilidade de saber para onde você está che gando”, explica.

Estados Unidos 3.094 0,05

Reino Unido 689 0,23

Bélgica 218 0,71

Notas: Nos casos da Rússia e da Ucrânia, os cálculos foram fei tos com base na estimativa de Della Pergola quanto à quanti dade de pessoas elegíveis para aliá segundo a Lei do Retorno. Nos demais países se utilizou a população judaica, consideran do que neles os números de elegíveis para aliá pela Lei do Re torno não diferem muito da população judaica geral. Dos seis primeiros países apenas o Brasil cresceu em quantidade entre 2015 e 2016, tendência que deve se repetir (talvez em núme ros superiores) em 2017. Isto pode vir a colocar o Brasil como o segundo ou terceiro país do mundo na taxa entre população elegível para aliá e olim

dos brasileiros no quesito aluguel de apartamentos na ci dade. Ela orienta os interessados antes mesmo da aliá, por meio de Skype, WhatsApp e telefone. Normalmente, tor na-se amiga da família e segue com o apoio voluntário durante a sua inserção no país.

Rússia 7.834 0,78

Moradia e trabalho

Ucrânia 6.048 1,69

O brasileiro é conhecido aqui por arregaçar as man gas e mergulhar no trabalho, seja ele qual for. No início, Gomberg deu duro, trabalhou descarregando conteineres, e hoje atua como supervisor de manutenção da El Al. Sua esposa, a pedagoga Sonia Cebukin, trabalha como profes sora num jardim de infância. A filha do casal, hoje com 21 anos, serviu o Exército ano passado e o filho, com 17, está prestes a se alistar. A família chegou a Israel em agos to de 2014, no final da campanha militar Operação Mar gem Protetora, na Faixa de Gaza.

“A formação de ‘guetos’ é natural e atende à neces sidade humana de, ao chegar a um lugar estranho, en contrar seu canto e sua turma, pelo menos até que tenha forças para alçar voo solo. A questão é que esse voo solo pode nunca vir a acontecer. O que é, aliás, uma pena, já que esse deveria ser o grande barato: inserir-se na comu nidade local”, escreveu certa vez a jornalista Miriam San ger, correspondente do jornal O Estado de S.Paulo e mo radora da Ra’ananacidade.não é a única cidade com uma comunidade brasileira organizada e pujante. Em 2015, Modi’in foi a terceira cidade do país em termos de absorção de imi grantes brasileiros, atrás apenas de Ra’anana e Jerusalém, de acordo com os líderes da comunidade Bnei Darom. Já são 70 famílias brasileiras. No entanto, a cidade não con ta com um merkaz klitá, o centro de absorção de imigran tes, o que reforça a tendência de aliot voltadas para a inte gração direta em kehilot estabelecidas e ativas.

Canadá 357 0,09 Argentina 283 0,15

Fontes: Aliá em 2016 – Agência Judaica População JudaicaWorld Jewish Population 2010 – Sergio Della Pergola, The He brew University of Jerusalem.

NÚMERO DE OLIM EM 2016

O casal Rodrigo e Gladis Wilner deixou uma vida es tável em São Paulo para recomeçar em Ra’anana com suas filhas de oito e dez anos. Bióloga e pesquisadora na área

Uma grande parte dos brasileiros que chegam a Ra’ana na abre mão do direito de hospedar-se por alguns meses no merkaz klitá, uma espécie de conjunto habitacional com apartamentos simples e minimamente mobiliados, cujo custo mensal do aluguel pode chegar a quase a metade de um imóvel na região. O ulpan6 do local, considerado um dos melhores do país, atende a todo olê chadash, residente ou não no centro de absorção.

França 4.883 1,01

África do Sul 256 0,36

A consultora de imóveis Carol Abadi é a queridinha

País de origem Aliá2016em Porcentagem da população judaica do país

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 53

Brasil 672 0,70

Em 2016, o Brasil ocupou o sexto lugar em número de imigrantes para Israel, atrás de Rússia, Ucrânia, França, Estados Unidos e Reino Unido, de acordo com dados da Agência Judaica. No entanto, foi o único dos seis que aumentou o contingente de 2015 para 2016.

“Aanos.maior dificuldade foi encontrar vagas que demanda vam as habilidades nas quais eu tinha muita experiência e conhecimento. Além disso, quando eu competia com um israelense, ele era normalmente preferido pela questão do idioma e da cultura local. Aqui temos que investir muito no networking”, ensina.

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Novo perfil brasileiro

“Há realmente um novo perfil do olê brasileiro nos últi mos anos: um grande número de famílias jovens que bus cam um futuro melhor para seus filhos; pessoas de classe média que não buscam Israel devido a problemas econô micos, e sim pela qualidade de vida; idosos que vêm jun tar-se aos filhos já aqui e que, devido aos problemas de se gurança no Brasil, escolhem Israel para viver; e ainda aque les que foram muito afetados pela situação econômica do

de câncer e endometriose, Gladis seguiu o caminho de boa parte das brasileiras re cém-chegadas: começou a trabalhar como ajudante num jardim de infância, cuidan do de crianças com idade entre cinco me ses e dois anos. O trabalho é duro, in cluindo higiene, alimentação e diversão de cerca de 12 pimpolhos. Rodrigo tra balha como segurança no shopping.

“Kiryat Yam é perto de Haifa. O merkaz klitá é na praia e os apartamentos são maiores, apesar de precisarem de re forma e manutenção. Não são perfeitos, mas não esperávamos por perfeição. As aulas de hebraico acontecem no ulpan aqui dentro, temos uma ótima professo ra e estamos numa turma de 30 alunos, onde metade é brasileira e a outra me tade é composta de russos e ucranianos. Temos una convivência muito boa”, con ta Mauro.“Atéo momento, nosso objetivo é fi car por aqui, mas tudo vai depender do trabalho. Nossos diplomas estão no pro cesso de revalidação. Talvez eu tenha que fazer até cinco provas para poder traba lhar, mas preciso de um bom hebraico. Minha esposa pretende atender pacientes de pediatria e geriatria”, explica. Mesmo fora da área de saúde, dar sequência à carrei ra que se tinha no Brasil não é tarefa fácil. Moradora de Ra’anana, Denise Faldini levou nove meses até assumir a posição de executiva de contas para a América Latina em uma start-up. O processo foi árduo e até desanima dor em alguns momentos, conta a engenheira, que aban donou São Paulo em 2016 em busca de qualidade de vida e segurança para ela, o marido e os dois filhos de cinco e nove

“O maior desafio de todos é a língua. Estudamos os quatro em escola judaica no Brasil, mas nem de longe é suficiente para se comunicar no dia a dia. Estamos fazendo ulpan. Tenho que revalidar o meu diploma para fazer uma prova, para a qual um bom hebraico é imprescindível. Não tenho condição agora, mas daqui a um ano espero poder ingressar na minha área”, conta Gladis.

Diploma: luta pela revalidação

O reconhecimento do diploma brasileiro é um dos obstáculos enfrentados por muitos. No fim de junho, um grupo de profissionais da área de saúde exigiu na Knes set7 o direito a exercer a sua profissão. Muitos dentistas, psicólogos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos estão impedidos de trabalhar por causa da demora da validação dos seus diplomas pelas autoridades competentes, que alegam que a carga horária dos estudos universitários no Brasil não é “Nóssuficiente.queremos ajudar o Ministério da Saúde a estabe lecer uma comparação detalhada e uma equivalência ma temática, incluindo pós-graduações e estágios em comu nidades que muitos brasileiros têm”, explica a advogada Osheria Franjovits, que é filha do rabino Eliezer Stauber, da Sinagoga de Copacabana, e defende os profissionais não reconhecidos.Moradores de Kiryat Yam, cidade de 40 mil habitan tes no litoral norte do país, o contador Mauro Seiner e a médica geneticista Renata Zlot sabem bem o que é isso e traçaram um planejamento familiar até obterem a autori zação para exercer suas profissões. Chegaram a Israel em 2016 com seus filhos de três e seis anos e aproveitaram o benefício de residir no merkaz klitá, que acolhe hoje dez famílias brasileiras.

Voluntário do Beit Brasil em Kiryat Yam, o engenhei ro de software Hayim Makabee estima que residam cer ca de 100 brasileiros na cidade. Ele concorda com Gladis e afirma que o brasileiro que hoje faz aliá não é o mesmo de anos atrás.

“O futuro dos brasileiros em Israel não é sionista, mas sim de refugiado econômico. Se a situação do Brasil con tinuar a piorar, a consequência é o aumento da aliá. Se o Brasil melhora, a aliá diminui e, se melhorar bastante, muita gente voltará ao Brasil. Outra coisa: se houver uma guer ra aqui, muita gente pode voltar por não saber lidar com a realidade ou por pressão das famílias”, acredita Hayim.

7) Parar de buscar emprego quando já está trabalhando

5. Sabra é o nome dado à fruta de um cactus muito comum em Israel. Diz que os is raelenses são “sabras”, indicando que são espinhentos (agressivos) por fora e doces (solidários) por dentro.

7. Knesset é o Parlamento do Estado de Israel.

8) Acompanhar obsessivamente as notícias do Brasil

6) Aceitar qualquer subemprego

Futuro

10 PECADOS DO OLÊ CHADASH BRASILEIRO

2. Chadashim, singular chadash, significa “novo”. Imigrantes recentes (até 2, 3 anos) são denominados “olim chadashim”.

Marcus M. Gilban é jornalista, carioca, correspondente da agência de notícias Jewish Telegraphic Agency (JTA) há 20 anos. Fez aliá em 2016 e vive com a família em Ra’anana.

4) Tentar manter em Israel o estilo de vida brasileiro

Em 2016, o Brasil ocupou o sexto lugar em número de imigrantes para Israel, atrás de Rússia, Ucrânia, Fran ça, Estados Unidos e Reino Unido, de acordo com dados da Agência Judaica. No entanto, foi o único dos seis que aumentou o contingente de 2015 para 2016.

9) Levar para o lado pessoal as diferenças culturais

5) Isolar-se na comunidade brasileira em Israel

Notas

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 55

Brasil, o custo de vida e a qualidade dos planos de saúde”, explica a consultora Gladis Berezowsky.

10) Não entender que as dificuldades são temporárias

começar do zero. Devem saber que Israel é um país dife rente do Brasil e que promete um futuro melhor a todos”.

4. Sochnut, literalmente “agência”, é como se denomina de forma coloquial a Agên cia Judaica para Israel, organismo do governo israelense que coordena as ativida des de imigração dos judeus.

1) Não se preparar antes de fazer aliá

6. Ulpan, literalmente “estúdio”, é como se denominam os cursos de hebraico para os olim chadashim

Por: Hayim Makabee | Fonte: www.bneidarom.org

“É também uma realidade o formato de família onde apenas um cônjuge é judeu. Boa parte das mulheres não judias não passaram pelo processo formal de conversão e, por esta razão, os filhos do casal não são judeus”, observa.

Em maio, Hayim promoveu um encontro entre os olim brasileiros e o prefeito da cidade a fim de abrir um canal de comunicação com a crescente comunidade verde-e-amare la. O político arriscou até anunciar uma sessão com livros em português na biblioteca municipal.

Para Yigal Palmor, da Agência Judaica, o olê brasileiro não difere muito dos demais, e tem até algumas vantagens: “Os olim brasileiros, como todos os demais, tendem a vi ver próximos uns dos outros, a fim de preservar a sua cul tura e o idioma em comum. Eu diria que os brasileiros, em geral, têm uma imagem coletiva positiva entre os israelen ses, praticamente sem estereótipos negativos, o que deve tornar a sua absorção um pouco mais fácil”.

3. Shelichá, literalmente “enviada”, é o nome dado à pessoa que vai trabalhar fora de Israel em nome do governo israelense.

3) Morar em cidades caras para ficar perto dos amigos

Diretora da nova ONG Olim do Brasil, Gladis Berezo wsky diverge: “A quem pode, recomendo fazer uma visita a Israel e conversar com quem já está aqui. Para quem não pode, consulte bem essas pessoas. É indispensável que todo olê chadash saiba um mínimo de hebraico para não precisar

“Apenas uma pequena parte dos olim tem o sionismo como motivação da aliá. A grande maioria está fugindo para Israel porque não tem opção de ir para outro lugar. Outros vêm com a mentalidade de ‘se der certo, ok; se der errado, eu volto’. Não ter qualquer base do idioma leva aos subempregos braçais, pesados, muito abaixo da sua capa cidade intelectual e profissional. A tendência é essa situa ção durar anos. Grande parte da culpa é deles mesmos, que não se esforçam o suficiente”, alfineta Hayim.

1. Olim, singular olê, significa literalmente “aqueles que sobem”, é como se define a pessoa que emigra da Dispersão para Israel. Deste termo deriva “aliá” que designa a imigração de judeus para Israel.

2) Parar de estudar hebraico quando termina o ulpan

Paulo Geiger

O mundo, como ‘sociedade de nações’, parece que ficou mais ‘reacionário’, não no sentido de resistir a mudanças (geralmen te conduzidas pela esquerda), mas no de reagir mais do que agir. E como cada rea ção provoca uma cadeia de reações con trárias, o processo passou a ser não o de construir um modelo de convivência entre homens, nações, ideias e a natureza (e o universo, já que a Terra já não basta para al guns), e sim de negação, e as subsequen tes negações de negações. Sabemos o que não queremos (eles sabem o que não que rem), seja estar na União Europeia, que me xicanos entrem no país, que a oposição ven ça as eleições, que a Ucrânia seja indepen dente, que a secularidade prevaleça sobre a religião em política, que o ‘progresso’ seja prejudicado por considerações ecológicas, enfim, NÃO queremos abrir mão do que te mos hoje, ou do queremos ter hoje, dane-se o resto. E a reação é tão forte, tão ancora da, que se transforma automaticamente em radicalização, e quem não pensa como eu passa a ser meu inimigo, nós e eles, patrio tas e traidores, coxinhas e mortadela, I first, etc. etc. Aonde leva isso, no outro lado do sinal de igualdade da equação? Zero.

para a página em branco e fico pensando sobre o que escrever, que faça cócegas no raciocínio dos leitores. Como se hoje em dia faltassem assuntos, em qualquer lugar deste planeta, a qualquer momento, em qualquer contexto... Mas este é exatamente o problema atual de quem se dispõe a escrever uma crônica, uma aná lise, um protesto, um esquete humorístico sobre o que está acontecendo ou prestes a acontecer: é que tudo está acontecendo ou prestes a acontecer ao mesmo tempo, des de os confins do universo até o nosso pró prio quintal. O problema é que em nossas equações de funcionamentos e comporta mentos há cada vez menos coeficientes fi xos (coisas tipo responsabilidade, equani midade, probidade, humanidade) e cada vez mais variáveis (quem nos conduz, quais ideias prevalecem, que interesses atuam), tornando imprevisível o que vem depois do sinal de igualdade. Aonde estamos sendo levados, ou melhor, aonde estamos levan do a nós mesmos e nossos descendentes?

[-b ± √ (b 2 - 4ac)]/2a - x = 0

Ainda há tempo de reformular a equação. Reforçar os coeficientes fixos, que expres sem nossa vontade do que queremos que seja, e não só nossa oposição ao que não queremos. Mas implica também querer não só o que hoje é vantajoso para nós pessoal mente, para nossa família, nossa nação, nos sa geração, mas principalmente o que per mita uma existência honrosa, estável, con fortável, pacífica, para todos, todas as famí lias, todas as espécies, todas as nações, to das as gerações, sempre. Pois se isso va ler para todos, com certeza valerá para nós. E se não valer para todos, talvez estejamos entre os perdedores, por mais que pense mos ou pretendamos ser os vencedores.

Olho

modo que sua sobrevivência se prolongue na maior parte do tempo de vida desse pla neta, que é finito, decidem ser ‘contra’. Con tra o que os incomode hoje. Que os prive, não dos confortos de que já usufruem, mas de continuar ampliando a exploração dos re cursos da Terra para mais acúmulo de ‘rique za’, de poder (ou de sensação de poder).

cócegas no raciocínio

Kaer_istock/istockphoto.com

ax 2 + bx + c = 0

como sustentáculo e alimento de si mesmo (e de seus dirigentes eventuais). As ideolo gias, sejam de direita, de esquerda, ou ‘li beral’, não resistiram ao modelo, as variá veis variaram demais e submeteram os coe ficientes. A equação desandou.

O Brasil de hoje seria uma boa metáfora para essa perplexidade, se o absurdo das variáveis não fosse tão grande e concre to que transforma a metáfora em vida real. No início, eram fatos, descobertas, even tos que chocavam em sua veracidade nua e crua. Hoje, sabemos que são bolhas, ine vitáveis quando a caldeirada ferve. Não são fatos isolados, não é ‘só’ corrupção, empo deramento, interesses escusos, predação, é toda uma concepção de relacionamen to entre estado e sociedade (e a natureza) que está em jogo. E não basta prender ou cassar, ‘empoderar’ outros, desjudicializar a política ou despolitizar a justiça, trata-se de adotar um modelo que, por sua própria na tureza, não permita que isso aconteça. Um estado que seja a própria sociedade assu mindo as rédeas de si mesma, e não um po der ‘acima’ da sociedade, que a manipule

Na visão cosmológica, se alguma inteli gência extraterrestre estivesse observando o mundo e a humanidade, nesse processo de variação das variáveis, o zero correspon de à autodestruição. Os habitantes de um minúsculo ponto entre bilhões de outros, um momento numa história de milhares de anos comparados a milhões de bilhões de anos de evolução, em vez de acomodar num pla neta vulnerável, de recursos limitados, de

Deixo a questão da equação israelense para outra ocasião. Já temos falado sobre ela, mas as variáveis continuam mudando.

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Que x e y (os corruptos, os radicais, os chauvinistas, os predadores) sejam resolvi dos por a, b, e c. (nós).

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Devarim 33 ( ano 17 - Agosto 2017) by ARI - Associação Religiosa Israelita - Issuu