Devarim 32 (Ano 12- Maio 2017)

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Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 12, n° 32, maio de 2017 DEVARIM DEVARIM Halachá, Responsa e o Judaísmo Reformista Rabino Mark Washofsky Paradoxos Sinfônicos Vittorio Corinaldi Halachá, Responsa e o Judaísmo Reformista Rabino Mark Washofsky Paradoxos Sinfônicos Vittorio Corinaldi Dicionário Judaico da Crise Rabino Sérgio R. Margulies Diálogo em Tempos de Crise. Os Legados de Martin Buber e Abraham Joshua Heschel Rabino Joseph A. Edelheit Zygmunt Bauman: As Identidades Líquidas Ricardo Sichel Hineni: A Resposta Mindfulness do Judaísmo Rabino Dario E. Bialer Cócegas noPauloRaciocínioGeiger Uma Reviravolta na ONU? Raul Cesar Gottlieb Resgatando a História do Monte do Templo Renata Roitman Dicionário Judaico da Crise Rabino Sérgio R. Margulies Diálogo em Tempos de Crise. Os Legados de Martin Buber e Abraham Joshua Heschel Rabino Joseph A. Edelheit Zygmunt Bauman: As Identidades Líquidas Ricardo Sichel Hineni: A Resposta Mindfulness do Judaísmo Rabino Dario E. Bialer Cócegas noPauloRaciocínioGeiger Uma Reviravolta na ONU? Raul Cesar Gottlieb Resgatando a História do Monte do Templo Renata Roitman

Assim, assaltantes e assaltados, opressores e oprimidos, su premacistas e tolerantes são colocados num mesmo patamar, pois cada um tem o “direito” a apresentar seu relato. Mesmo quando este é amoral e mentiroso. E tem este “direito” nos fo ros mais elevados – na Unesco, no Conselho de Direitos Hu manos da ONU, etc.

sua mulher olhou para trás e converteu-se numa coluna de sal”. Com estas poucas palavras (apenas seis em he braico), a Torá relata o destino da esposa de Lot. Esta e mais centenas de outras histórias relatadas em nosso livro fundacional são aclamadas pela sabedoria expressa num estilo direto e econômico, mas, ao mesmo tempo, e talvez com mais intensidade, são ridicularizadas pelos que leem a Torá como documento histórico.

Nossa época comprova esta predileção de forma muito con tundente. O que mais importa hoje em dia é o relato. Políticos em busca de convencimento para suas teses usam e abusam de relatos, via de regra melodramáticos. Os imigrantes muçulma nos, pais de um filho que perdeu a vida em combate no exérci to, são usados para demonstrar quão sublime é a imigração, ao passo que o outro lado rebate expondo o drama da família de uma jovem assassinada por um imigrante criminoso reinciden te. A nenhum dos candidatos ocorre apresentar aos eleitores um estudo aprofundado a respeito dos efeitos da imigração ou das consequências com a tolerância à ilegalidade.

Mas, infelizmente, o mundo contemporâneo parece ter abandonado esta faceta civilizatória. Tudo o que importa hoje é o relato. A grande maioria da imprensa e muitos intelectuais se limitam a publicar os relatos dos diversos grupos e decretar que, tendo em vista as divergências, há uma “polêmica”. Poucos se aventuram a avaliar a verdade dos relatos divergentes. A identi ficar as falsificações, mesmo quando grosseiras. A pesquisar a re putação histórica dos autores dos relatos.

A prevalência do relato sobre a busca pela verdade é, a meu ver, o motivo pelo qual a discussão política se deteriora a olhos vistos. Como todos os relatos são válidos, a vitória será de quem conseguir calar o adversário na força bruta e não com argumen tos. Por isto não deveriam nos espantar os gritos que tentam ca lar debatedores, as manifestações violentas, as exclusões sumá rias, as bolhas criadas pelas mídias sociais nas quais só partici pam os que concordam com a visão do grupo. Num mundo onde a análise honesta e isenta perdeu valor é imperativo silen ciar a Estádivergência.maisdoque na hora da humanidade olhar para a dinâ mica cultural judaica e se engajar no debate ao estilo talmúdi co. A valorização acrítica do relato tem o potencial de extermi nar a nossa civilização.

EDITORIAL

“Ninguém jamais se converteu em sal!”, “Qual o valor des tas historietas infantis?”, dizem, sem perceber que muito mais importante do que o relato é a mensagem contida dentro do re lato. Em consequência, não percebem que a mensagem daque las seis palavras é objeto de inúmeros estudos acadêmicos sobre a alma humana e sobre o desenvolvimento social e político. Es tudos estes que comprovam, com o rigor científico exigido pela academia, que a fixação com o passado, a incapacidade de su perar traumas, pode vir a ser petrificante. Pensem como o nos so mundo seria diferente apenas se a Alemanha tivesse aprendi do a superar o trauma da derrota da guerra de 1914-18 sem se petrificar no desejo de vingança.

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E

Parece-me que um dos motivos para a imortalidade da Torá é justamente o uso de relatos, que às vezes parecem infantis, para conduzir mensagens poderosas. Caso os danos causados pela in capacidade de superação de traumas fosse descrito por um arti go acadêmico, poucas pessoas teriam acesso àquela verdade. Mas ao ser apresentado em formato pictórico e resumido, o ensina mento encontra um eco poderoso. Pois é inegável que os huma nos adoram historinhas.

Raul Cesar Gottlieb – Diretor de Devarim

Ou seja, não mudamos muito desde a Antiguidade. Contu do, já fomos mais sábios do que somos hoje. O judaísmo nunca ficou parado nos relatos da Torá. Os relatos fundacionais foram dissecados em busca de significado em milhares de midrashim, que deram origem aos acalorados debates da Mishná e da Gue mará, num processo que permanece vivo até hoje. É deste proces so e não dos relatos da Torá que nascem as leis comportamentais e societárias do judaísmo. O relato é um insight inicial, dispara dor de toda uma visão de mundo. A cultura judaica não deriva da validade dos relatos e sim das conclusões que emanam deles.

Mais Talmud!

EditoraEDIÇÃO

Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

Ricardo Assis (Negrito Produção Editorial) Tainá Nunes Costa

A revista Devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br (www.devarim.com.br) Administração e correspondência: Rua General Severiano, 170 – Botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ Telefone: 21 2156-0444

A contracapa de Devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ. A distribuição de Devarim é gratuita, sendo proibida a sua comercialização.

EDIÇÃO DE ARTE

Vittorio Corinaldi 21

PRESIDENTE DA ARI Flávio Korminsky

Uma Reviravolta na ONU? Nikky Haley – Um Raio de Luz na Escuridão

Resgatando a História do Monte do Templo Renata Roitman 42

Narrativa Um

Zygmunt Bauman: As Identidades Líquidas Ricardo Sichel 37

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FOTOGRAFIA DE CAPA Anna Sinitsa / iStockphoto

Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI.

REVISÃO DE MariangelaTEXTOSPaganini (Libra Edição de Textos)

Paradoxos Sinfônicos

DIRETOR DA REVISTA Raul Cesar Gottlieb

RABINOS DA ARI Sérgio R. Margulies, Dario E. Bialer

Hineni: A Resposta Mindfulness do Judaísmo Rabino Dario E. Bialer 9

Dicionário Judaico da Crise

Diálogo em Tempos de Crise. Os Legados de Martin Buber e Abraham Joshua Heschel Rabino Joseph A. Edelheit 27

Colaboraram neste número: Rabino Dario E. Bialer, Rabino Joseph A. Edelheit, Rabino Mark Washofsky, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Renata Roitman, Ricardo Sichel, Rabino Sérgio R. Margulies e Vittorio Corinaldi.

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SUMÁRIO

Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 12, nº 32, maio de 2017

Cócegas no Raciocínio Paulo Geiger 47

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CONSELHO EDITORIAL

Breno Casiuch, Rabino Dario E. Bialer, Germano Fraifeld, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Mônica Herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies.

Halachá, Responsa e o Judaísmo Reformista Rabino Mark Washofsky 15

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

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Rabino Sérgio R. Margulies 3

Raul Cesar Gottlieb 33

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JUDAICODICIONÁRIODA CRISE

C

rise em hebraico é mashber. A raiz etimológica de mashber vem da palavra quebra (sh-b-r). Crise é a quebra das referências estabelecidas.

A crise se intensifica porque diante das quebras é percebida uma traição. Algo era apresentado como sólido, mas era frágil. A confiança é quebrada. A crise tem a dimensão das segunda, terceira e quarta letras do alfabeto hebraico,

A crise se alastra porque houve desprezo à verdade. Houvesse verdade, ainda que as dificuldades pudessem aparecer, teriam sido lidadas de modo mais efetivo e os danos de seus efeitos diminuídos. Assim, no alfabeto judaico da crise, um dos fatores responsáveis pelas devastadoras quebras é a palavra que se escre ve com alef, primeira letra deste alfabeto: emet, verdade.

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A quebra é como uma placa tectônica que se rompe. Tudo que se sus tenta sobre esta placa corre o risco de afundar na fenda que se abriu e ser tragado pelas lavas que emergem desta fenda. As lavas já estavam lá. Sua erupção não deveria ser uma surpresa ou, ao menos, não deveria causar danos inesperados.

Rabino Sérgio R. Margulies

א – Alef

ד ג ב – Beit, Guimel, Dalet

“Dez provas recaíram sobre o patriarca Abrahão...” (Talmud, Capítulo da Ética dos Pais)

A crise também decorre da crença em milagres que rompem com a realidade. São alimentadas, assim, expectativas que serão frustradas. Milagre é a capacidade de trabalhar na realidade para que se produzam resultados sonhados.

ה – Hei

ח – Chet

ו – Vav

A oitava letra do alfabeto hebraico, chet, cujo som se assemelha ao de dois ‘ erres’, inicia dois verbos que têm a mes ma raiz etimológica: transgredir (chata) e errar o alvo (eh-chiti). A transgressão acontece quando um alvo é escolhido sem preocupação com os processos que levariam este alvo a ser atingido. Crise é o rompimento entre a meta a ser al cançada e o caminhar para esta meta. É a quebra entre o que se almeja con quistar e a maneira como esta conquista transcorrerá. A caminhada por quaren ta anos pelo deserto, com o povo carregando na Arca da Aliança a Torá, demonstra a relevância dos meios na busca dos fins. E dos princípios que nor teiam estes meios.

Confrontar-se é um ato de aprimoramento pessoal constantemente realizado diante da consciência de que a perfeição inexiste. Confrontar-se é uma imersão espiri tual para que emerja uma pessoa melhor no trato com os outros. Confrontar-se é perguntar ‘quem realmente sou?’ e ‘o que pretendo ser?’ Crises surgem quando a distân cia entre o que somos e almejamos ser é encurtada através de caminhos tortuosos. Isto tem relação com a déci ma letra do alfabeto hebraico: iud. Em termos de design, seu tamanho é o menor entre todas as letras, mas é com ela que escrevemos o nome impronunciável de Deus. A grandeza não precisa ser artificialmente exaltada. Deve ser genuína. Crise é também o rompimento entre o ge nuíno e o artificial.

Seguimos com a sexta letra do alfabeto hebraico, vav. O formato desta letra se assemelha ao de um gancho, pois a palavra vav significa gancho. As crises têm como uma de suas causas a quebra do gancho de conexão com o outro e, em complemento, do outro somente se aproveitando. Neste caso, o gancho é o elemento que fisga os outros de modo manipulativo. Crise é a quebra do outro, não visto como sujeito com seu potencial de contribuição e consi derado objeto de manipulação.

A sétima letra do alfabeto hebraico – zain – inicia a pa lavra zecher, lembrança Um ensinamento da nossa tradi ção afirma: a lembrança conduz à redenção, o esquecimento ao exílio. Exílio pode ser compreendido como uma que bra do lugar e do tempo vivenciado. Esquecer o que acon teceu antes é instituir, através de si ou por meio de seus atos, o marco zero. A partir de si começa tudo, como se antes nada tivesse ocorrido. Deste modo, são rejeitadas as lições que poderiam ser úteis para pavimentar o caminho do futuro com mais firmeza e, portanto, menos propenso a sofrer as consequências das intempéries.

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A quinta letra do alfabeto hebraico é denominada hei. Seu som é quase im perceptível, exigindo cuidado extremo na pronúncia e atenção especial na escuta. Seu formato se as semelha a uma orelha. Crise resulta dos diálogos quebra dos. Os espaços para troca de opinião são sugados e pirâ mides de onipotência erguidas. Esquecem-se os faraós da prepotência das pragas provocadas por sua insensível sur dez – tal como aconteceu com o faraó da Torá.

י – Iud

ז – Zain

respectivamente, beit, guimel, dalet. A sequência destas três letras compõem tan to a palavra roupa quanto o verbo trair. A relação entre roupa e traição é: o exter no não corresponde ao interno. O rótulo se revela falso, a embalagem enganosa. O conteúdo e a essência não correspondem ao que foi mostrado, seja por gráficos, pa lavras ou imagens. É a quebra da confian ça: uma trágica traição.

ט – Tet

Varrer os princípios, comprometendo os meios para se atingir um fim, impulsiona a crise. Isto remete à nona le tra do alfabeto hebraico – tet. Tet também significa varrer. Se, de um lado, romper com os princípios – como se fos sem varridos – potencializa crises, de outro lado uma var redura ajuda a evitar a repetição dos equívocos e das crises. Este é um trabalho árduo que requer disposição e exi ge vontade de confrontar-se.

A convivência das partes no todo vem acompanhada de conflitos. Crise é a tentativa de anular os conflitos atra vés da imposição de uma única solução. Em geral esta so lução favorece uma das partes e despreza as demais. Quem se julga favorecido equivoca-se se crê estar imune aos pro blemas. A mensagem judaica é contundente: se os efeitos de uma crise não lhe afetam com a mesma intensidade que aos demais, ajude aos que cambaleiam! Com a letra que se gue (14ª) – nun – escreve-se a palavra queda, e com a seguinte (15ª) – samech –, o verbo apoiar. Diante da crise, urge colocarmos em prática a mensagem de nossas orações: “Aquele que apoia os caídos”.

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מ ל כ – Kaf, Lamed, Mem

Confrontar-se é uma disposição individual para me lhor se inserir no todo. Desta maneira seguem as 11ª, 12ª, 13ª letras do alfabeto hebraico, respectivamente kaf, lamed, mem. Lembrando que as vogais são secundárias na língua hebraica, estas três letras formam a palavra ku lam, que significa todos. Crise é a quebra das partes na composição do todo. Valorizar o todo como um con junto de relações sociais funcionais não é alienar as par tes. Quando as partes são alienadas a semente do totalitarismo floresce. O todo não totalitário preserva a di versidade que as partes propiciam. Assim, o todo não é necessariamente a uniformidade que extirpa o diferen te e pode ser o conjunto que contempla a diversidade da qual se enriquece.

Juntas, as letras nun e samech formam a palavra nes, que significa milagre. A crise também decorre da crença

ס נ – Nun, Samech

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A palavra mashber – crise – tem ainda dois significados adicionais: abertura do útero e cadeira de nascimento de uma criança. No vocabulário judaico, a adversidade imposta por uma crise não vem acompanhada pelo desespe ro e sim pela renovação que carrega a chance de uma nova oportunidade, como um novo nascer. Nascer de novo sem termos sucumbidos. Esta é a trajetória judaica. Que seja a de cada um. E exemplo para todos.

ﬠ – Ain

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פ – Pei

em milagres que rompem com a realidade. São alimentadas, assim, expectativas que serão frustradas. Mina-se a confian ça. Há uma crise de credibilidade. Mila gre é a capacidade de trabalhar na reali dade para que se produzam resultados so nhados. Milagre é a atitude de não se re signar à realidade sem, no entanto, negá -la ou falseá-la.

piatórios são criados para justificar a crise. Dedos acusatórios são apontados em ati tude derrogatória. Isto é uma perversida de que rechaça alguns e humilha tantos. A equação pode ser invertida: tudo pode ser justificável e todos os dolos isentos, como se não houvesse responsáveis e como se não houvesse algozes e ímpios, em hebrai co rashá (escrito com reish, 20ª letra).

O equilíbrio – tal como proposto por Maimônides (1135-1204) – é o caminho da virtude. Um dos meca nismos que evita sermos levados pela histeria, ou sermos conduzidos pela inocuidade da esterilidade, é a fala pon derada. Este é um dos significados da letra pei (17ª), que se associa à palavra boca (pé em hebraico). A interpreta ção da Torá afirma que Moshé [Moisés], o líder do povo hebreu, era gago. Talvez, quem sabe, ele apenas era cui dadoso com as palavras. Num mundo no qual as pala vras tornam-se petardos de ódio, vale lembrar a impor tância da ponderação.

Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Israe lita do Rio de Janeiro-ARI.

Enxergar a conectando-serealidadecomosideaisvislumbradoséapropostajudaica.Abdicardosideaiséquebrarosanseiosdeumfuturomelhor.AdverteoprofetaIrmiahu[Jeremias]:“Elestêmolhos,masnãoenxergam”.

ר ק צ – Tzadik, Kuf, Reish

ש – Shin

Shalom, paz (escrito com shin, 21ª letra), é um caminho a ser percorrido na saída da crise. A paz com o outro somen te pode ser atingida se estivermos em paz conosco. Através da busca da shalom, substituímos o radi calismo que estigmatiza o outro pela construção das pon tes de compreensão. Pontes que repararão as quebras.

ת – Tav Finalmente. a última letra do alfabeto hebraico, tav. O nome da letra é também uma palavra: sinal, nota. Uma crise pode nos pegar de surpresa, mas seus sinais existiam antes de sua eclosão. Frequentemente são como notas de rodapé, às quais não se dá muita atenção na leitura de um texto. Um cuidado maior – em que pressa pudesse ser mediada por mais zelo no detalhe – ajudaria ao menos a mi nimizar os impactos de uma crise.

O significado da próxima letra do alfabeto tsadik (18ª) sugere como reagir diante de alguns efeitos de uma crise. Tsadik é o termo para aquele que age com senso de justi ça, buscando amenizar as perversas consequências de uma crise. Um destes efeitos é o que escrevemos com kuf (19ª): kitsoniut, radicalismo, que quebra o convívio. Bodes ex

“... E ele [Abrahão] permaneceu firme diante de todas.” (Talmud, Capítulo da Ética dos Pais)

E agora?

Enxergar a realidade conectando-se com os ideais vislumbrados é a propos ta judaica. Criar uma ilusão é um rom pimento com a realidade presente. Abdicar dos ideais é quebrar os anseios de um futuro melhor. Esta é a concepção da letra ain (16ª), termo que designa o olho. Adverte o profeta Irmiahu [Jeremias]: “Eles têm olhos, mas não enxergam”. O profeta se refere aos ídolos, mas igualmente se dirige a cada um de nós que se deixa le var por soluções mágicas e ilusões que cegam a razão e fer tilizam devaneios. Crise é também a quebra entre a razão e a emoção. Sem emoção a razão fica estéril, sem a razão a emoção torna-se histérica.

Eles deixaram um Legado e você? O seu Presente é o Futuro das próximas gerações Tel:E-mail:Consulte-nosrosane@fcrj.org.br212257-2556Ramal:26Celular:99634-3575 Eles deixaram um Legado e você? O seu Presente é o Futuro das próximas gerações Tel:E-mail:Consulte-nosrosane@fcrj.org.br212257-2556Ramal:26Celular:99634-3575

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Assim responderam Adão, Abraão, Jacob, Moisés, Samuel, Isaías e tantos outros.Ohineni de Adão é de insegurança diante do desconhecido.

O de Abraão o leva a testar sua fé.

HINENI: A MINDFULNESSRESPOSTADOJUDAÍSMO

Hineni é a resposta judaica ao chamado de Deus. O hineni de Adão é de insegurança diante do desconhecido. O de Abraão o leva a testar sua fé. O hineni de Moisés o faz sair de si mesmo, do refúgio onde se encontrava, e se comprometer com a libertação dos oprimidos.

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Rabino Dario E. Bialer

Hineni é a resposta judaica ao chamado de Deus.

O hineni de Moisés o faz sair de si mesmo, do refúgio onde se encontrava, e se comprometer com a libertação dos oprimidos.

ma das últimas músicas que o incrivelmente talentoso Leonard Co hen escreveu antes de morrer fala sobre Deus e a escuridão que o ho mem sente em sua vida, para surpreender no estribilho cantando em hebraico as palavras bíblicas Hineni Adonai, hineni, Eis-me aqui, Meu Senhor, eis-me aqui.

Ele canta hineni num momento de sua vida em que sente como nunca an tes o encontro com Deus, com sua musa inspiradora recentemente falecida e, portanto, e também com sua própria morte. “Sinto que estamos tão próximos que se estenderes a tua mão poderás segurar a minha.”

U

Como traduzir hineni? Nas palavras do próprio músico, hineni é “essa de claração de prontidão, não importa qual seja seu resultado, e faz parte da alma de todos. Todos nós somos motivados por profundos impulsos e profundas vontades para servir, mesmo que talvez não sejamos capazes de localizar o que estamos querendo servir. Então, é apenas uma parte da minha natureza, e eu acho que da natureza de todos os demais, se oferecer no momento crítico em que essa emergência se articula. É somente então que conseguimos localizar essa vontade de servir”.1

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transporta para os desejos do futuro. De fato, muitas ve zes o futuro não é mais do que o passado projetado. Se al guma vez amamos, vamos querer voltar a sentir essa sensa ção outra vez. Se sofremos fazendo algo, vamos evitar fazer o mesmo no futuro para não sairmos magoados novamen te. Quando se vai do passado ao futuro e do futuro ao pas sado, se utiliza o tempo presente somente como um meio para outros fins, enquanto que o presente é o único ins tante verdadeiro. Hineni é estar presente e perceber Deus (aqueles que acreditam nele), a natureza que nos rodeia e a cada ser vivo que se comunica conosco.

O Talmud da Babilônia nos ensina que os antigos mes tres dedicavam uma hora inteira antes do começo das orações a uma espera silenciosa. Ou seja, aqueles tex tos que viriam a ser cristalizados como sendo as fórmu las fixas das orações do judaísmo emergiram de um pro cesso em que seus formuladores se sentavam isolados em seus respectivos silêncios.

Deus chamou o mundo a ser, e esse chamado continua.

Todo instante é um ato de criação. Um momento não é um fim, mas um flash, um sinal de começo. O tempo é inovação perpétua, sinônimo de criação continuada, e es tar presente é saber responder hineni ao chamado da vida.

O ato de trazer o mundo à existência é um processo contínuo.Háomomento presente porque Deus está presente.

No entanto, na maioria das vezes a nossa mente está se movendo constantemente, do passado para o futuro e do futuro para o passado. Vai até as memórias do passado e se

O hineni de Samuel instaura a profecia e o de Isaías um diálogo profundo com seu Criador.

Isso é mindfulness. Consciência plena. Estarmos pre sentes no presente.

O judaísmo tem raízes profundas na busca de estabelecer um vínculo plenamente presente, consciente e respon sável com cada elemento da Criação.

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Os patriarcas e os mestres de nossa tradição foram abençoados com essa capacidade. É por isso que respon deram hineni ao chamado da vida. Essa capacidade faz de les pessoas extraordinárias que nos inspiram a compreen der que o judaísmo chama também a nós a vivermos vidas onde estejamos preparados para responder hineni. E a chave para isso é mindfulness

Então, ó Deus, eu derramarei as palavras do meu coração diante de Tua Presença.

Possa eu expressar tudo o que está em meu coração, Falando com Ele, a quem pertenço E que a relva, as árvores e as plantas despertem na minha vinda.

Recentemente participei de uma experiência mindful ness, convidado pelo mestre e rabino Marcelo Bronstein, da sinagoga B’nai Jeshurun de Nova Iorque.

Oh! Que eles entrem na minha oração!

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Entre todas as coisas que crescem, Para lá estar sozinho e entrar em oração.

ORAÇÃO DO RABINO NACHMAN DE BRATISLAV (1772-1810 E.C.)

Acordávamos cedo, às 5h30 da manhã, e, depois de tomar um chá, começávamos o dia com uma hora de me ditação. Logo caminhávamos em silêncio até o café da manhã, que se estendia por mais uma hora de total silên cio. No início, resulta estranho estar rodeado de pessoas e ao mesmo tempo estar apenas com você mesmo. Pois é disso que se trata. A ausência de palavras no início in comoda, mas depois se converte numa oportunidade de ouvir e falar com você mesmo. Em silêncio se come mais pausadamente e ficamos mais conscientes do que inge rimos. Depois é o momento de rezar. Os homens e as mulheres que assim o desejam vestem seus talit e tefilin numa experiência religiosa em que se reza sem um sidur

Preencha a minha oração com o poder de suas vidas, Fazendo pleno o meu coração e o meu discurso Através da vida e do espírito das coisas que crescem, Feitas plenas por Tua fonte transcendente.

A oração com atenção plena é uma oração menos fixa e muito mais pessoal. Você não tem que correr. A oração judaica é um equilíbrio entre keva (o que é fixo) e kavaná (intenção). Ao fazer a oração com atenção plena, a keva é negociável, a ka vaná nunca é. Você pode realizar menos orações, mas você vai se aprofundar mais e mais para dentro do seu coração e da sua alma.

Devo confessar que cheguei morrendo de medo. Não sabia o que esperar ou como me comportar. Não era mui to o que sabia de mindfulness até esse momento, e o pou co que sabia não era muito alentador. Durante uma sema na, numa montanha afastada da civilização, e estava completamente proibido o uso de telefone ou qualquer outro aparelho. Já pensaram? Sete dias sem poder encostar no celular!? Alguém já tentou isso? Também mais da metade do dia era passada em completo silêncio. Pensar em passar tanto tempo consigo mesmo é assustador, mas muito me nos do que se passar a vida fugindo de si mesmo.

tradicional, apenas uma apostila com al guns textos que a cada dia eram escolhi dos alternativamente. Assim, cada dia tí nhamos uma reza diferente.

Mindfulness é o resultado de práticas espirituais consistentes tais como medita ção, yoga e esforços semelhantes. Quando alguém está conscientemente ciente (min dfully aware), ele está desperto para o des dobramento milagroso da vida, cultivan do a capacidade de estar presente com o que estiver acontecendo a cada instante, prestando atenção de uma forma susten tada e singular no momento presente e sem“Éjulgamento.umadasmuitas formas de medita ção, considerando meditação como qualquer forma onde nos empenhamos em (1) regular sistematicamente a nossa atenção e energia (2) influenciar e possivelmente transformar a qualidade de nossa experiência (3) estar ao serviço de realizar todo o potencial de nossa humanidade e de (4) nossas relações com os outros e com o mundo.”2

A partir das 10 da manhã e até o meio dia fazíamos o que me resultou mais difícil. Aula de dança e movimen to corporal. Os que me conhecem sabem que toda a mi nha desenvoltura no púlpito da sinagoga é inversamen te proporcional ao pânico cênico que sinto numa pista de dança. Não é só dançar, mas me dar a permissão de fazer o ridículo, de me mexer livre e solto, de que por duas horas o corpo seja livre para se mexer sem o contro-

Mestre do universo, concede-me a capacidade de estar Quesozinho.sejameu costume sair ao ar livre cada dia entre as árvores e a relva.

Eu, então, abrirei totalmente meu coração em oração, súplica e sacralização;

Quando alguém está conscientemente ciente, ele está desperto para o decultivandomilagrosodesdobramentodavida,acapacidadeestarpresentecomoqueestiveracontecendoacadainstante.

Ter participado dessa experiência me fez entender por que faz sentido se engajar regularmente com “práticas que se parecem muito a estar fazendo nada”.3

É o que sustenta a música.

A ausência é uma oportunidade para nos perguntarmos de que queremos nos preencher.

O silêncio é uma paisagem

A grandiosa premissa da religião é que o homem é ca paz de se superar, de elevar sua mente e se vincular com o absoluto. Só quando vivemos presentes e conscientes po demos atingir nosso máximo potencial para cumprir mit svot, fazer justiça e sermos artífices do tikun, de consertar tudo o que fomos destruindo no nosso mundo.

O silêncio é um local de encontro e possibilidade.”4

O principal beneficiário das mudan ças que mindfulness pode trazer à sua vida é você mesmo. Mas logicamente também, você começa a estabelecer com todos os que lhe rodeiam vínculos mais significativos e menos tóxicos. E dessa forma se constitui numa prática reparadora e integradora.

O silêncio é uma dimensão onde reside a alma.

“Silêncio é o espaço entre as notas.

Mindfulness é uma prática que oferece infinitas opor tunidades para cultivar maior intimidade com sua pró pria mente e para explorar e desenvolver os recursos interiores que temos para aprender, crescer, curar e poten cialmente transformar a compreensão de quem você é e como pode viver com mais sabedoria, com maior bem-estar e Issofelicidade.nãoseaprende lendo um livro, nem durante uma semana de retiro espiritual. Esses são o início para uma ca minhada ao longo da vida toda.

Depois do almoço se visitava um pro jeto social, solidário, comunitário e autos sustentável dos habitantes da região. Em cada um desses lugares, a possibilidade de aprender como com tão pouco é possível realizar tanto.

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Dario E. Bialer é rabino e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro-ARI.

5. Goleman, Daniel. A Arte da Meditação

Muito silêncio, muita pausa, muita atenção, respiração.

O jejum de Iom Kipur é exatamente isso. De que que remos nos preencher no ano que começa?

Como dizia Heschel, o sublime é aquilo que vemos e que somos incapazes de expressar, é a alusão silenciosa a coisas com um significado maior que elas mesmas.

1. No original: That declaration of readiness, no matter what the outcome, that’s a part of everyone’s soul. We all are motivated by deep impulses and deep appetites to serve, even though we may not be able to locate that which we are hoping to serve. So this is just a part of my nature and I think everybody else’s nature to offer oneself at the criti cal moment when the emergency becomes articulate. It’s only when the emergency be comes articulate that we can locate that willingness to serve.

Na parte da tarde um novo momen to de reflexão e introspecção e depois do jantar uma aula-conversa-avaliação do dia, para em abso luto silêncio ir a dormir até o próximo dia.

Como bem diz o Dr. Daniel Goleman, escritor e psicólogo especializado em inte ligência emocional, “Fugir um pouco da vida atribulada não basta. A mente ain da continua agitada mesmo dentro de um corpo deitado em uma praia tropical”.5

2. Jon Kabat-Zinn, Mindfulness for Beginners, p. 12.

4. Bronstein, Marcelo, “For you silence is praise”, Sabbat 11 dezembro 2015.

Notas

Só quando vivemos presentes e conscientes podemos atingir nosso máximo potencial para cumprir mitsvot, fazer justiça e sermos artífices do tikun, de consertar tudo o que fomos destruindo no nosso mundo.

A experiência de jejuar é muito mais do que a ausên cia de alimentos, da mesma forma que o silêncio é muito mais do que a ausência de som.

3. Idem, p. 15.

le da mente e dos pensamentos. Aprendi que soltar o corpo é um mecanismo muito importante para liberar a alma e que um corpo travado encerra emoções ainda não manifestadas.

O que estas e muitas outras práticas têm em comum é serem comportamentos que nos erguem de nosso estado comum de percepção e nos colocam num estado de aten ção que saúda o mundo e todas as experiências com sim plicidade, gratidão e assombro. Elas nos tiram de nossas perspectivas egoístas e nos conduzem a uma consciência maisOabrangente.judaísmonão se resume a cumprir rituais de santida de. O ser humano é a santidade. Nós somos sagrados. Se res de kedushá. E a cada respiração aprofundamos na ka vaná de estarmos abertos à vida.

E é importante destacar que a prática mindfulness acontece justamente na vida e não num retiro do mundo.

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E O REFORMISTAJUDAÍSMO

A

Rabino Mark Washofsky

Halachá é e sempre foi uma parte essencial da vida religiosa judaica reformista e a sua importância para nós só aumentará.

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halachá, a tradição da lei judaica, desempenha um papel na vida religiosa do Judaísmo Reformista? Alguns dizem “não”. Em sua opinião, a halachá é alheia ao espírito da Reforma, um movimento ancorado no princípio da autonomia pessoal, na liberdade de cada judeu de fazer suas próprias escolhas religiosas. Eles falam da Reforma como um movimento judaico “não-haláchico” ou “pós-haláchico”. Neste texto eu argumento contra essa visão. Creio que a halachá é e sempre foi uma parte essencial da vida reli giosa judaica reformista e que a sua importância para nós só aumentará. Para compor esse argumento preciso, porém, tecer alguns comentários sobre o que é halachá e sobre os textos pelos quais ela se expressa.

A palavra halachá (הכלה) aparece pela primeira vez na história judaica du rante o período dos Sábios (ou “os Rabinos”, aproximadamente 0-500 e.c.). Os Rabinos formavam uma comunidade de estudiosos que acreditavam na ideia de uma “dupla Torá”: Moisés teria recebido duas “Torás”1 no Sinai. Uma delas, a Torá Escrita, corresponde aos Cinco Livros de Moisés (Pentateuco; Chumash). A outra, a Torá Oral, era (como o nome indica) transmitida oralmente de pro fessor para estudante ao longo de muitas gerações. Outras seitas judaicas rejei taram esta doutrina. Eles sustentavam que a “Torá Oral” não era nada mais do que uma coleção de tradições legais que os Rabinos procuravam dotar de san tidade chamando-a de uma forma de “Torá”.

HALACHÁ, RESPONSA

Com o tempo, como as outras seitas desapareceram ou se separaram do povo judeu, a compreensão rabínica da Torá prevaleceu. Hoje, praticamente todas as formas de judaísmo – incluindo, como afirmo, a Reforma ou Judaísmo Progres sista – são descendentes intelectuais e es pirituais dos Rabinos e de sua religião. A Torá Oral (que, devido ao seu imenso vo lume, foi finalmente vertida para um for mato escrito) continha muitas leis que su plementavam, expandiam, modificavam ou adicionavam as mitsvot (mandamen tos) da Torá Escrita. Cada uma dessas leis era chamada halachá (plural: halachot). Estes halachot formam a base da Mishná, um livro que se apresenta como um código da Torá Oral.

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Hoje, quando rabinos ortodoxos ou conservadores falam de halachá como “autoritária”, eles querem dizer que esta literatura é a fonte de quase todas as suas decisões so bre assuntos da vida religiosa judaica: algo em particular é permitido ou proibido? Kosher ou t’reif? Necessário ou op cional? E é aqui onde a Reforma ou o Judaísmo Progres sista difere. Para nós, a halachá não determina automati camente nossa prática religiosa. Para colocar isso de outra

O estudo do Talmud é o principal as sunto da tradicional academia judaica (yeshivá). E como resultado desse estudo, eruditos judeus – que até hoje têm o título de “rabino” – produziram um cor po ainda mais massivo de literatura ha láchica. Estes textos podem ser divididos em três categorias principais: Comentá rios que explicam e interpretam o Talmud e que no processo derivam novas ideias e princípios legais; Códigos ou livros de leis que estabelecem a halachá autoriza da (já que o próprio Talmud não se apre senta, em grande parte de seu conteúdo, em uma ordem lógica e quase nunca re vela sua opinião sobre a “resposta corre ta”); e Responsa (t’shuvot), respostas por rabinos a pergun tas específicas (she’elot) sobre a prática judaica, submetidas a eles por judeus de suas próprias comunidades ou de outras partes do mundo.

tradiçãocompromissosincluemcompromissososcomajustiçasocial,comaaberturaaomundo,comaigualdadedegêneroecomaconvicçãodequeajudaicaacolheainovaçãoerespostascriativasaosdesafiosdamodernidade.

Nossos

A Mishná, por sua vez, é o documento fundamental do Talmud (ou “Talmuds” – pois há dois deles, um que surgiu na Babilônia e o outro em Erets Israel), uma maciça cole ção de discussão, debate e profundas análises lógicas dos assuntos levantados pela Mishná e por outros textos rabí nicos antecedentes. Por uma variedade de razões literárias, culturais e políticas, o Talmud da Babilônia, que foi edita do ao longo de um período de séculos de 500 a 700 (800? 900?) e.c., obteve predominância sobre a versão de Erets Israel. Por mais de mil anos esse Talmud foi reconhecido como a fonte autorizada da halachá.

Mas eles estão errados. A halachá está intimamente en trelaçada no tecido do Judaísmo Reformista. Ele constrói, colore e molda os padrões de toda a nossa prática religiosa. A estrutura da nossa liturgia – dos nomes dos serviços religiosos (shacharit, minchá, ma’ariv / ar’vit) aos elementos dos rituais (a recitação do Sh’ma, a t’filá, a leitura da Torá, o kadish, as bênçãos [b’rachot] que recitamos, etc.) – tudo é de natureza haláchica. Essas práticas estão enraizadas no Talmud e nos textos haláchicos.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 17

Nossos Shabat e festividades – kidush e motsi na refeição festiva; havdalá no fi nal do dia; o seder de Pessach; o som do shofar; a suká; a leitura do megilá; o acen dimento das velas de Chanucá – todos são haláchicos. Alguns deles já são menciona dos na Bíblia, mas sua estrutura e conteú do são estabelecidos e elaborados na lite ratura dos rabinos e da lei judaica. É a halachá, o Talmud e os subsequentes códi gos e responsas que criam e estruturam nossos rituais do ciclo de vida, as observâncias pelas quais marcamos o nascimento, a entrada na aliança, a maiorida de, o casamento, o divórcio e a morte. Isto é verdade não só para a nossa observância ritual, mas para a nossa práti ca ética também. Na medida em que os escritos reformis tas judaicos procuram aplicar valores particularmente judaicos aos reinos da ética médica, do comércio e da vida política, esses valores devem estar localizados nos textos e na literatura da halachá.

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Reservamo-nos o direito de examinar essa regra ou prática, de confrontá-la aos valores progressistas e à visão de mundo através da qualnossasestruturamosvidas.

forma, os Judeus Reformistas não agem ou recitam ou celebram de uma maneira particular somente porque a Bíblia, o Tal mud ou algum outro texto nos diz para fazê-lo. Reservamo-nos o direito de exa minar essa regra ou prática, de confrontá-la aos valores progressistas e à visão de mundo através da qual estruturamos nos sas vidas. Quando as instituições ou prá ticas haláchicas tradicionais entram em conflito com esses valores ou não nos fa lam mais com a voz da santidade, consideramo-nos auto rizados a modificá-las ou mesmo rejeitá-las inteiramente. E é por isso que alguns observadores, incluindo não pou cos em nosso próprio movimento, descrevem o judaísmo reformista como “não-haláchico”.

Em outras palavras, o fato é que a halachá está em toda parte no Judaísmo Reformista. De fato, a reforma da vida religiosa judaica dificilmente poderia ser concebida sem ela. Testemunhe a nossa extensa literatura haláchica Re formista, ou seja, os livros que publicamos ao longo dos

Se a questão tem a ver com a ação sagrada, com as ações esperadas dos judeus, com a resposta judaica à per gunta “o que a Torá nos pede para fazer?”, é a literatura haláchica que contém o material, os textos e a argumen tação com os quais os judeus tradicionalmente têm trabalhado suas respostas. Isso significa que qualquer res posta judaica autêntica a uma questão de observância deve ser desenvolvida com a ajuda dessa literatura, mes mo que essas respostas difiram das respostas obtidas pe los judeus ortodoxos.

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Mas se os judeus da Reforma não se dedicarem ao seu estudo singular da halachá, então serão aqueles outros judeus, por omissão, os que determinarão o que ela signi fica e transmite. Halachá, lembre-se, é a forma predomi nante de literatura judaica e o modo de expressão judaica em questões de observância e prática. Os judeus que não compartilham dos nossos próprios compromissos com os valores progressistas não devem ganhar o monopólio in conteste sobre a interpretação da halachá!

Tudo isso explica por que o movimento reformista con tinua a produzir sua própria literatura haláchica. Note que esta é uma literatura haláchica reformista. Enquanto con sultamos e estudamos os textos tradicionais, os lemos atra vés do filtro dos compromissos intelectuais e éticos do ju daísmo progressista. Estes incluem os compromissos com a justiça social, com a abertura ao mundo, com a igualdade de gênero e com a convicção de que a tradição judaica aco lhe a inovação e respostas criativas aos desafios da modernidade. É por esta razão que nossa responsa, citando o profes sor R. Solomon B. Freehof, z’l, é “liberalmente afirmativa”:

Notas

1. “ two Torahs” no original. O autor usa o sentido hebraico da palavra Torá, que sig nifica “doutrina” ou “ensinamento”. N.T.

Traduzido do inglês por Raul Gottlieb.

O Rabino Mark Washofsky é o Solomon B. Freehof Professor de Lei e Prática Judaicas no HUC-JIR – Instituto Judaico de Religião da Universidade Hebraica de Cincinnati, Ohio.

entendemos a halachá para dizer “sim” a novas ideias, mesmo que não evitemos di zer “não” quando a situação o exige.

A halachá progressista reflete a nossa crença de que a lei judaica acolhe a cul tura do mundo moderno, não é hostil a ela. Ao mesmo tempo, ao concentrar nossa atenção nas fontes haláchicas de nossa própria prática religiosa, nossa escrita ha láchica serve como um lembrete sempre presente de onde viemos, de que a tradição da halachá é o fundamento de tudo o que é autenticamente judaico na prática reformista.

A halachá é, portanto, um fato central da vida religiosa reformista judaica. E eu acrescentaria que o estudo da hala chá e a produção da literatura haláchica reformista são, em um sentido muito real, um dever religioso para nós. O que quero dizer com isso? Simplificando, se não aprendemos halachá e nos envolvemos em sua interpretação, essas ta refas serão realizadas exclusivamente por outros judeus, os judeus que se aproximam dos textos haláchicos com pers pectivas que diferem fortemente da nossa. Eles têm todo o direito de fazer isso, é claro.

Em vez disso, façamos do estudo da halachá uma práti ca fixa em nossas próprias comunidades, para que, ao lado de nossos irmãos judeus, possamos continuar a antiga dis cussão judaica sobre a interpretação da Torá, buscando sempre responder à pergunta: o que é que Deus exige de nós?

anos sobre temas de observância ritual ou ética. Dê uma olhada nas notas de roda pé e referências nesses volumes; você verá que seu material é fortemente extraído do Talmud e da chamada literatura ortodoxa “haláchica”. Em especial este é o caso da nossa responsa, respostas rabínicas a per guntas sobre a prática judaica, que os ra binos reformistas têm escrito há duzen tos anos. Em particular, o Comitê de Responsa da Con ferência Central dos Rabinos Americanos emitiu mais de 1.300 destes documentos desde a sua fundação em 1906. Eles constituem de longe o maior corpo de escritos judai cos Reformistas sobre questões de observância religiosa.

Como a Responsa tradicional, cada um deles é uma argumentação, um ensaio destinado a persuadir seu leitor ou leitores de que essa resposta particular é a melhor interpre tação disponível das fontes da Torá no que diz respeito à questão. E a argumentação é sempre apoiada em citações e discussões de fontes talmúdicas e haláchicas. Por que isto é assim num movimento presumivelmente “não-haláchi co”? Simplesmente porque a halachá é o depósito de tex tos e de tradições judaicas que se conectam diretamente ao tema da prática religiosa.

A halachá progressista reflete a nossa crença de que a lei judaica acolhe a cultura do mundo moderno, não é hostil a ela.

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A atitude de Toscanini, ao aceitar a incumbência de reger uma orquestra desconhecida, particularmentetorna-selouvável, e se acrescenta aos atos de ousadia que caracterizam sua carreira e que o levaram a abandonar a Itália fascista, na qual se negava a reger obras que Mussolini ou Hitler ditavam.

SINFÔNICOSPARADOXOS

Com evidente consciência da alta qualidade musical do conjunto que conse guira reunir, Huberman convidou para o concerto de abertura o grande Maes tro Arturo Toscanini. Este se distinguía tanto pela severa liderança artística quanto por suas intransigentes atitudes contrárias aos regimes ditatoriais, que sistematicamente procuravam moldar toda atividade cultural em função de suas agressivas aspirações político-ideológicas ou de suas turbulentas bravatas demagógicas.Ofatode Toscanini ter anuído ao convite é já por si um gesto corajoso de convicção e de simbólica significação moral, que a seguir inspirou a trajetória musical e cívica da orquestra em todos os anos de sua existência. E é gratifi

80

anos atrás, em dezembro de 1936, Arturo Toscanini regeu o concerto inaugural da Orquestra Filarmônica de Israel, então Sinfônica de Eretz Israel (Palestina). A história da orquestra é um espelho empolgante do renascimento nacional do povo ju deu, e está carregada de episódios emocionantes, tanto do ponto de vista artís tico como do humano.

Sua fundação se deve a Bronislaw Huberman, renomado violinista que teve a iniciativa de levar músicos judeus perseguidos na Europa (onde o Nazismo se afirmava ameaçadoramente) para uma nova vida musical e material no nascen te estado judeu em embrião.

Vittorio Corinaldi

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A cidade não dispunha então de tea tros ou auditórios apropriados para o evento, que atraiu um público numeroso de trabalhadores e “chalutzim” (pio neiros), os típicos modestos mas entusiastas consumido res da cultura naquele austero período. E o concerto teve que se realizar num hangar do porto de Tel Aviv, recente mente inaugurado para substituir o da vizinha cidade de Yafo (Jaffa), que os distúrbios árabes da época tornavam inacessível ao trânsito de mercadorias e passageiros judeus.

A inspiração de Toscanini tornou-se um legado para a orquestra, e ela foi crescendo com o Estado de Israel dentro de um espírito de solidariedade e participação na épica experiência de sua criação.

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ta que frequentemente é ostentado – tal vez menos para dar um fundo respeitável à experiência musical do que para eviden ciar “status” social ou méritos políticos.

A cidade de Tel Aviv não passava então de um reduzido centro urbano, que vinha se erguendo da areia costeira com seus brancos edifícios de despretensiosa arquitetura de estilo internacional, trazi da por arquitetos judeus igualmente ex pulsos dos centros europeus que se fecha vam à sua atividade profissional.

Quem frequenta costumeiramente o ambiente musi cal conhece bem o caráter brilhante, elegante e sofistica do desses auditórios hoje, e o luxo um tanto exibicionis

cante pensar que naqueles dias a popula ção do “ishuv”(população judaica na re gião) contava não mais de 600.000 pes soas de escasso poder financeiro e de mo destas ambições materiais.

O octogésimo aniversário foi comemorado com um concerto festivo cujo programa coincidia com o concer to de fundação regido por Toscanini. Desta vez porém o evento se deu no “Heichal Hatarbut”, a condigna sede per manente da Filarmônica, tão diferente do simples hangar do porto, sob a regência de Riccardo Muti, músico que por suas qualidades pessoais e profissionais é quem mais se

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A inspiração de Toscanini tornou-se um legado para a orquestra, e ela foi crescendo com o Estado de Israel den tro de um espírito de solidariedade e participação na épi ca experiência de sua criação.

A atitude de Toscanini, ao aceitar a in cumbência de reger uma orquestra des conhecida num entorno dos mais humil des e primitivos, torna-se então particu larmente louvável, e se acrescenta aos atos de ousadia que caracterizam sua carreira e que o levaram a abandonar a Itália fas cista, na qual se negava a reger obras que Mussolini ou Hitler ditavam como enal tecedoras de seus regimes.

presta para celebrar os valores contidos no episódio de Toscanini. Ele o fez condu zindo a orquestra num desempenho im pecável, depois do qual usou de palavras lisonjeiras para a orquestra, para o públi co e para um Israel depositário daqueles característicos que nada melhor do que a música pode expressar.

E em contraste com a atitude de Tos canini, que não via com simpatia a execu ção de hinos nos seus concertos (por re flexo da imposição por ele repelida de to car o Hino fascista), fez culminar a come moração com a surpresa não programada da execução da “Hatikva”: o hino pacífico que a Filarmônica executou com uma har monia e uma comovente serena sonori dade superiores ao habitual desempenho.

Como membro de um governo de direita ultranaciona

A atmosfera de elevação espiritual e de enaltecimento cívico se dissipou po rém infelizmente logo à saída do concerto, defrontando-se com a realidade da Israel de hoje: uma realidade que segu ramente não teria encontrado o apoio de Toscanini, e que Riccardo Muti conseguiu fazer esquecer durante as três ho ras do acontecimento, fazendo uso do paralelo da música com um mundo de paz e fraternidade em nada semelhante àquilo que vem se passando no interior e ao redor do país.

A atmosfera de elevação espiritual e de enaltecimento cívico se dissipou logo à saída do Riccardoteriarealidadedefrontando-seconcerto,comadaIsraeldehoje:umarealidadequeseguramentenãoencontradooapoiodeToscanini,equeMuticonseguiufazeresquecerduranteastrêshorasdoacontecimento.

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Paradoxalmente, Israel se rege hoje em muitos setores pelos mesmos critérios e princípios que Toscanini condenava. O espírito de abertura liberal e democrática que orientava os pioneiros daqueles anos “heróicos” e que se espelhava na Or questra Filarmônica, vê-se hoje abafado por uma onda de vulgarização populis ta liderada por uma Ministra da Cultura obcecada por uma suposta hegemonia da cultura ocidental, em detrimento da ex pressão que se alimenta de fontes “orien tais” sefarditas e árabe-judaicas, particu larmente presentes em comunidades se diadas na periferia (isto é, fora da cosmo polita e liberal Tel Aviv…); ou por uma tendência de glorificação da visão místi co-religiosa nacionalista que o Ministro da Educação vem introduzindo no siste ma escolar, num processo de ostracismo do livre-pensamento e da comparação democrática de opiniões divergentes; ou por um solapamento do ainda sobe rano poder judiciário, que uma demagógica Ministra da Justiça insistentemente procura deturpar, através da ten tativa de introduzir critérios político-partidários na no meação de juízes.

Estas são situações sintomática de toda a linha que o atual governo de Israel vem seguindo, e que não é intenção des te artigo analisar em detalhe: uma linha cheia de perigosas contradições, e que –usando uma linguagem de aparência “patriótica” de ufa nismo e autonomia – arrasta o país para um campo de des respeito de direitos humanos, de deslegitimização das mi norias e do poder judiciário, de lavagens cerebrais e falsifi cações históricas; para um isolamento e uma situação geopolítica que poderão marcar o fim da experiência sionista e da vocação humana e pacífica que o povo judeu cristali zou em séculos de sofrida sobrevivência: atributos tão bem representados pela Orquestra Filarmônica.

lista com fortes inclinações religiosas ortodoxas, a Ministra Regev vem patroci nando uma política de censura da livre expressão cultural que se faz sentir em todos os setores da ação intelectual. Ela promove iniciativas provincianas de duvi doso “folclore” e acentuado teor “patrió tico”, ao mesmo tempo que administra uma distribuição discriminatória dos re cursos, canalizando somas desproporcio nais para atividade ideologicamente com prometida nos territórios ocupados.

Os concertos desta são uma ilha de estética e harmonia em meio ao desarmônico, nervoso conjunto de contrastes da sociedade israelense.

Um exemplo disto foi o recente epi sódio da apresentação do Teatro Nacio nal Habima na cidade de Ariel – um dos maiores núcleos do assentamento judai co na Cisjordânia: vários atores do conjunto se recusavam a atuar naqueles territórios, em coerência com sua con denação da prolongada e contestada ocupação. A atitu de da Ministra foi a de suspender o subsídio oficial de que o Teatro vem gozando, e que é essencial para sua sobrevi vênciaDiantefinanceira.daameaça de uma total paralisação de sua ati vidade, o Teatro acabou cedendo à imposição ministerial, apenas com a substituição de alguns atores insistentes em sua Igualmente,recusa.

o Ministro da Educação Bennet (do parti do religioso ortodoxo “Habait Haiehudi”) vem investindo grandes esforços para “injetar” conceitos de judaísmo ortodoxo nos mais variados e alheios setores do ensino, até mesmo naqueles em que nada mais do que um objetivo, racional, científico critério de pesquisa livre de preconceito se faz necessário; sob o pretexto de suposta defesa da inte gridade nacional, ele por exemplo proíbe o acesso às esco las (e portanto a uma exposição de ideias diferentes das do “main-stream” oficial) a grupos como o “Shovrim Shtiká” (“Quebrando o Silêncio”) que – no que até agora era aceito como regra conforme o costume de uma sociedade demo crática – estabelecem um contacto entre alunos em idade de convocação militar e ex-soldados recentemente dispen sados do serviço ativo, cujos relatos de experiências tidas no contato com as populações dos territórios podem des pertar dúvidas ou questões de consciência quanto à realidade dos assentamentos.

À diferença do tom por vezes cacofônico do diálogo en tre os vários componentes dessa sociedade, a linguagem da música desperta anseios de justiça e solidariedade com um vocabulário de significado universal.

Vittorio Corinaldi, arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetu ra e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do Kibutz Broch Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, planejamento e organização dentro do movimento kibutziano.

Ainda na mesma corrente de velado “Macartismo”, a Ministra da Justiça, Sha ked, não perde uma ocasião para propor à Knesset leis restritivas da autoridade ju dicial, numa evidente tentativa de reves tir iniciativas contrárias a princípios de direito com uma roupagem de falsificada “legalidade” (como no exemplo de ter ras usurpadas aos legítimos proprietários, para o estabelecimento de assentamentos como a comentada Amona).

O atual governo de Israel vem seguindo uma linha de falsificaçõesarrastacontradições,perigosasequeopaísparaumcampodedesrespeitodedireitoshumanos,dedeslegitimizaçãodasminoriasedopoderjudiciário,delavagenscerebraisehistóricas.

O setor mais equilibrado e esclarecido da população de Israel anseia por uma mudança nesse sentido. Quando ela vier, os acordes da Filarmônica voltarão a ser o mais autêntico, erudito documento de uma sociedade livre, aber ta e tolerante, portadora autorizada dos verdadeiros valo res do Movimento Sionista.

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Os legados de Martin Buber e Abraham Joshua Heschel

m 1919 Martin Buber completou o primeiro rascunho de Eu e Tu. Nessa mesma época, ele também estava muito preocupado com a cri se identitária da comunidade judaica e escreveu dois volumes a este respeito: Worte um Die Zeit (Palavras ao tempo), dedicado aos seus conceitos de uma nova sociedade, e Gemeinschaft (Comunidade), inteiramente dedicado à sua visão sobre o que a comunidade deve significar. Ele já havia se envolvido com este tema em 1901, no discurso, Alte und neue Gemeinscahft (Antiga e nova comunidade).

Mas o Martin Buber que estava articulando estas visões foi também um dos milhões de europeus que haviam sobrevivido à “guerra para acabar com todas as guerras”. Fontes relatam um total de mortes alemãs militares e civis, na Pri meira Guerra Mundial, de 2,2 a 2,8 milhões de pessoas ou seja, em torno de 4,3% da população total.

Desde o armistício em 11 de novembro 1918 até a assinatura do tratado de paz com a Alemanha em 28 de junho de 1919, os Aliados mantiveram o bloqueio naval da Alemanha para forçar os alemães a assinar o Tratado de Versa lhes. Como a Alemanha era dependente das importações, estima-se que en tre 500.000 a 750.000 civis morreram de doença ou de fome no período de oito meses após a conclusão do conflito. Outras fontes sustentam que mais de 900.000 homens, mulheres e crianças morreram de fome na Alemanha.

Buber e Heschel modelaram a liderança durante seus próprios tempos de crise e nos ensinaram que tais desafios são idealmente enfrentados com um esforço incondicional de diálogo e um compromisso renovado com os valores compartilhados.

Rabino Joseph A. Edelheit

E

DIÁLOGO EM TEMPOS DE CRISE

Buber define comunidade (Gemeins chaft) como uma unidade orgânica que se desenvolve a partir da posse comum de trabalho, moral ou crença. “A comunida de é a expressão e a manifestação original de uma, naturalmente homogênea, relação de desejo de suporte mútuo que representará a totalidade da humanidade ... A comu nidade é cultivada pelo relacionamento ...” (p. 247). Escre vendo ainda sob as sombras escuras da guerra, fome e caos político, Buber nos lembra: “O estado de irracionalidade banal em que vivemos até agora é como um tirano febril cujas cãibras e sofrimentos causaram a destruição de mi lhões ... é um fato que nós, que passamos pela época do in dividualismo, ou seja, a separação da pessoa de seu contex to social, não podemos mais encontrar o nosso caminho de volta para a vida original em comunidade” (p. 248).

Martin Buber acabaria por viver três guerras: a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial/a Shoah, razão pela qual ele foi exilado da Europa em 1938 aos 60 anos, e a Guerra de Independência de Israel em 1948. Criou programas educacionais e escreveu extensivamen te sobre a necessidade de concretizar a otimização da co munidade vivencial. “A comunidade em todas as suas ma nifestações deve ser reabastecida com a realidade, com a realidade das relações imediatas, puras e justas entre ho mem e homem, entre homens e homens, para que a verda deira existência comunitária possa se desenvolver a partir

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1918 é também o período de uma horrível pandemia global de gripe que matou 10-20% das pessoas infectadas. A maioria das fontes médicas sugere que um terço da população mundial foi infectada, o que resultou numa estimativa de mortes em todo o mundo na ordem dos 50 a100 milhões de pessoas.

Estes detalhes são necessários para contextualizar o texto de Buber, porque o peso dos anos de guerra, o caos absoluto de 1918-1919, seu desespero pessoal sobre ami gos mortos em prol das reformas socialistas são, em minha mente, registros essenciais do mundo a partir do qual Martin Buber ensina sobre a comunidade. Dado o quão

Comunidade veraz, escreve Buber, só pode ser fundada sobre relações modificadas entre os homens, e essas rela ções modificadas só podem ser consequência de uma mudança interior e de uma preparação dos homens que lide ram, trabalham e se sacrificam para a comunidade. Cada homem tem uma esfera infinita de responsabilidades, e responsabilidade perante o infinito. O verdadeiro local de realização é a comunidade e a verdadeira comunidade é aquela em que o divino é realizado entre os homen. “Para Buber, a comunidade autêntica é construída sobre a acei tação da alteridade, sobre a relação viva com o nosso se melhante, com uma referência comum ao um centro vi tal” (Wood, p. 76).

profundamente o mundo de 1918-1919 foi destruído, a visão de Buber de uma comunidade é mais do que profética, é uma promessa de resiliência e um ato de resistência moral!

Com o fim da Primeira Guerra Mun dial houve um desmantelamento completo das fronteiras europeias. As revoluções russas aconteceram e deram ori gem ao Estado Soviético, o primeiro governo comunista no mundo. Na Alemanha, o Kaiser havia abdicado e a Re pública de Weimar começava a tomar forma. De forma não surpreendente, durante a transição para a República de Weimar esses mesmos impulsos revolucionários surgi ram no país. O Spartakusbund revolucionário, um dos an tecessores do partido comunista alemão, provocou o assas sinato de Rosa Luxemburgo, uma líder. Um governo re volucionário de curta duração foi conduzido em Munique por dois intelectuais judeus, Kurt Eisner e Gustav Lan dauer, ambos amigos íntimos de Martin Buber.

“A grande contribuição dos profetas para a humanidade foi a descoberta do mal da indiferença.” (Martin Luther King)

Buber tinha acabado de voltar de Munique, onde se reunira com Eisner e seus companheiros revolucionários, conforme ele escreve: “Os mais profundos problemas hu manos da revolução foram discutidos com a maior fran queza: no centro dos eventos eu postulei perguntas e ofe reci respostas e houveram horas noturnas de apocalíptica gravidade, durante as quais o silêncio falou eloquentemente no meio da discussão, e o futuro tornou-se mais claro do que o presente”. Dez semanas após Buber ter postado esta carta, Landauer foi brutalmente espancado até a mor te. A expressão madura da preocupação de Buber com a percepção do divino através da comunidade veraz é o so cialismo religioso que ele desenvolveu no período imedia tamente após a Primeira Guerra Mundial. Este desenvol vimento foi decisivamente influenciado pelo socialismo do amigo de Buber, Gustav Landauer, tendo sua morte im pactado Buber profundamente.

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era um refugiado da Alemanha nazista, mas Heschel foi um rabino trazido para os EUA por um seminário. Hes chel tinha um histórico tradicional, mas, como Buber, foi educado na Alemanha. Ele é conhecido por seu tra balho em The Prophets, 1961, que ele havia escrito como sua tese de doutorado na Alemanha. Heschel pode ser o mais importante pensador judeu capaz de integrar a filo sofia dialógica de Buber na responsabilidade social americanaHeschelcontemporânea.viveueensinou com seus insights sobre os pro fetas da Bíblia hebraica: “A grande contribuição dos profe tas para a humanidade foi a descoberta do mal da indife rença“. Suas experiências na Polônia e na Alemanha fize ram o silêncio impossível, pois para Heschel há um impe rativo moral em refutar a indiferença e em instruir a respei to da imoralidade do comportamento passivo: “De acor do com nossa tradição, quem esquece até mesmo um frag mento da Torá comete um grande pecado. Quanto mais culpada é a pessoa que permanece insensível à agonia de um ser humano” (The Insecurity of Freedom: Essays on Hu man Existence, p. 267).

A insistência de que a comunidade só pode ser construí da na relação e na aceitação completa dos Outros representa a filosofia dialógica de Buber do “Eu e Tu”. Buber liga a comunidade à expressão autônoma de relacionamentos. “A autonomia não pode ser decretada. Não pode ser ergui da de outra forma a não ser por uma existência comunitá ria crescente e autoassertiva, elevando-se do fictício ao real ... Este é, no entanto, o problema do nosso tempo, onde a comunidade se dissolve na sociedade: Que o homem, se ele participa na vida pública, na res publica, o faz ficticia mente, sem estar em relação ... “ (p. 250). Buber conclui com um desafio chassídico no qual todo homem é respon sável pelo seu ambiente imediato, para resgatá-lo, e, des ta forma, a criar comunidades autênticas que conduzirão à redenção do mundo. Não é surpreendente o oferecimento de Buber deste potencial messiânico à sua visão, dado seu trabalho com os contos chassídicos. O contexto histórico dentro do qual Buber sugere que uma renovação autôno ma da vida comunitária pode se tornar messiânica é, como argumentei anteriormente, um modelo de desafio moral.

Ele falou sobre a questão do racismo em janeiro de 1963 em Chicago na mesma conferência em que o Dr. Martin Luther King foi o orador principal.

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Abraham Joshua Heschel, assim como Martin Buber,

da coexistência de comunidades verazes enquanto a roda enferrujada [da sociedade] está se desintegrando, pedaço após pedaço” (249).

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Em junho de 1963, Medger Evers, um líder do movimento de Direitos Civis foi assassinado em frente à sua casa em Jackson, Mississipi. Em agosto de 1963, o Dr. King proferiu o seu famoso discurso “I have a dram” (Eu tenho um sonho) em Washington para 250.000 pessoas. Duas semanas depois da marcha em Washington, quatro meninas afroamericanas foram assassinadas ao ser bombar deada sua igreja. Em 22 de novembro de 1963, o presi dente Kennedy foi assassinado em Dallas. Sempre me fas cinou que um rabino que fugiu do Holocausto se torna ria a consciência profética dos Direitos Civis na América em janeiro de 1963.

“Existe um mal que a maioria de nós tolera e é até mes mo culpado de: indiferença ao mal. Permanecemos neutros, imparciais, e não facilmente mobilizados pelos erros come

sigualdade para alguns termina, inevitavelmente, como desigualdade para todos.”

Ouçam essas palavras, escritas há quase 55 anos, pois ainda há uma urgência nelas, visto que essas palavras ain da nos desafiam hoje.

“Há uma forma de opressão que é mais dolorosa e mais corrosiva do que o ferimento físico ou a privação econômi ca. É a humilhação pública. O que aflige a minha consciên cia é que o meu rosto, cuja pele ocasionalmente não é escura, em vez de irradiar a semelhança de Deus, passou a ser toma do como uma imagem de afetação e de prepotência. Justifica do ou não, eu, o homem branco, tornei-me aos olhos dos ou tros um símbolo de arrogância e de pretensão, ofendendo ou tros seres humanos, ferindo seu orgulho, mesmo sem pretendê -lo. Minha própria presença é insultuosa!” “O crime de assas sinato é tangível e punível pela lei. O pecado do insulto é im ponderável, invisível. Quando o sangue é derramado, os olhos humanos veem o vermelho; Quando um coração é esmagado, é somente Deus que compartilha a dor.” “Quanto tempo eu continuarei a ser tolerante, ou até mesmo partícipe, com atos de seres humanos embaraçosos e humilhantes, em restau rantes, hotéis, ônibus ou parques, agências de emprego, esco las públicas e universidades? Uma pessoa deve se envergonhar em vez de envergonhar os demais.”

Poucos de nós parecem perceber quão insidioso, quão ra dical, quão universal é o mal do racismo. Poucos de nós perce bemos que o racismo é a maior ameaça para o homem, o má ximo de ódio por um mínimo de razão, o máximo de cruelda de por um mínimo de pensamento.” “Quantos desastres tere mos que passar para perceber que toda a humanidade tem in teresse na liberdade de uma única pessoa; que sempre que uma pessoa é ofendida, todos somos feridos. O que começa como de

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tidos contra outras pessoas. A indiferença ao mal é mais insidiosa do que o próprio mal; É mais universal, mais contagiosa, mais perigosa. Uma justificação silenciosa, torna possível uma erupção do mal como uma exceção tornando-se a regra e sendo, por sua vez, aceite.”

Quando as pessoas querem abraçar uma visão pluralista que revitaliza as comunidades e a vontade comunal de criar que se combina com a garantia de benefícios compartilha dos, perguntamos quem irá prover a esperança profética para levantar os corações e as mentes das diversas respostas comunitárias para os graves problemas do nosso mundo.

Traduzido do inglês por Raul Gottlieb.

em seus refúgios adotados de Israel e da América. Ambos os homens entenderam que ter uma filosofia, uma ideia, era in suficiente. Eles tinham que, como Hes chel ensinou, rezar com os pés! Eles ti nham que andar a falar, eles tinham que ensinar e depois viver modelando as palavras de suas ideias. O diálogo, as relações, a aceitação do Outro e o engajamento co munitário são os legados mais citados de Martin Buber e Abraham Joshua Heschel. Mas mais do que seus textos inestimáveis são as vidas proféticas que viveram, seu desafio ao desespero, sua renovação do diálogo e ao engajamento diante de cada crise que nos inspiram profundamente.

Estes dois homens desafiaram as crises de suas origens europeias, e as crises posteriores que cada um enfrentou

O Rabino Joseph A. Edelheit é professor emérito de estudos reli giosos e judaicos, St. Cloud State University em Minnesota, EUA, e da PUC do Rio de Janeiro, Brasil.

• Bem-aventurados aqueles que olham nos olhos dos abandonados e marginalizados e mostram-lhes a sua pro ximidade.•Bem-aventurados os que veem Deus em cada pes soa e se esforçam para fazer com que os outros também o descubram.Heschel

• Bem-aventurados os que permanecem fiéis enquanto sofrem os males infligidos sobre eles por outros e os per doam em seu coração.

Buber e muitoensinaramHeschelquealiderançarequermaisdoqueumacessoaopoder,elaassumeacapacidadeúnicadeequilibrarumavisãoancoradanaconfiançaeumapresençaqueiluminaodesejodeservir.

Nosso mundo precisa de líderes, mas não há nenhum, exceto talvez o papa Francisco. A corrupção, o isolacio nismo, o extremismo religioso e muitas antigas formas de ódio étnico alimentam novas políticas populistas e, na au sência de líderes confiáveis, nossas instituições democráticas estão sendo testadas. Essa ausência de liderança permi te que os falsos profetas da desgraça ofereçam seu constan te coro de medo que alimenta os velhos ódios.

faz eco a Buber: “A maior heresia é o desespe ro, o desespero do poder dos homens para o bem, o poder dos homens para o amor. ”

“A grande contribuição dos profetas para a humanidade foi a descoberta do mal da indiferença.” “Alguns são culpados, mas to dos são responsáveis. Se admitimos que o in divíduo é, em certa medida, condicionado ou afetado pela opinião pública, o crime de um indivíduo revela a corrupção da socie dade. Numa comunidade não indiferente ao sofrimento, impassível com crueldade e falsidade, a discri minação racial seria pouco frequente e não comum.”

Não o Papa João XXIII, mas o Papa Francisco – novas bem-aventuranças: o mesmo tom de inclusão:

“Deus é o pedigree de cada homem. Ou Ele é o Pai de todos os homens ou de ninguém. A imagem de Deus está em cada homem ou em nenhum homem.” “O que precisamos é do en volvimento de cada um de nós como indivíduos. O que pre cisamos é de inquietação, da consciência constante da mons truosidade da injustiça.” “Nas palavras do Papa João XXIII, ao abrir o Vigésimo Primeiro Concílio Ecumênico, ‘a Provi dência divina está nos conduzindo a uma nova ordem de re lações humanas’. A história fez de nós todos vizinhos. A idade da mediocridade moral e da complacência acabou. Este é um tempo para o compromisso radical, para a ação radical.”

Lembremo-nos de como Buber e Heschel modelaram a liderança durante seus próprios tempos de crise e nos en sinaram que tais desafios são idealmente enfrentados com um esforço incondicional de diálogo e um compromisso renovado com os valores compartilhados. Buber e Heschel ensinaram que a liderança requer muito mais do que um acesso ao poder, ela assume a capacidade única de equili brar uma visão ancorada na confiança e uma presença que ilumina o desejo de servir.

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Raul Cesar Gottlieb

Por conta de uma breve e muito bem-sucedida carreira no mundo empre sarial, Nikky ingressou aos poucos na política, tendo sido primeiramente indi cada para a Câmara de Comércio de Orangeburg (pequena cidade na Caroli na do Sul). Dali foi indicada para a mesma Câmara em Lexington (uma cidade maior no mesmo Estado), depois se tornou tesoureira, e mais tarde presiden te, da Associação Nacional de Mulheres Empreendedoras. Em 2004 se candi datou à Câmara dos Deputados da Carolina do Sul e em 2011 foi eleita gover nadora do Estado, cargo que ocupou até 2017.

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N

NA ONU?

Nikky Haley – um raio de luz na escuridão

imrata “Nikky” Randhawa Haley nasceu em Bamberg na Carolina do Sul, de uma família de imigrantes indianos Sikh. Ela nunca foi uma pessoa fácil de ser colocada em padrões estereotipados. Aos cin co anos de idade ela disputou o concurso de “Miss Bamberg”, mas foi desclassificada pois os juízes consideraram impossível encaixá-la nas categorias “negra” ou “branca” que definia as candidatas. Ela praticou o Sikhismo duran te anos, tendo se convertido ao Cristianismo pouco depois de seu casamento e antes do nascimento de seus dois filhos.

UMA REVIRAVOLTA

Apesar das trocas nada amistosas que travaram durante a campanha pre sidencial, em 20 de janeiro de 2017 o recém-empossado Presidente Donald Trump encaminhou ao Senado sua nomeação como representante permanen te dos Estados Unidos da América na ONU, tendo sido aprovada por 96 votos contra 4 (uma votação muito expressiva, tendo em vista o atual estado confli

“A abordagem preconceituosa das questões israelenses e palestinas não favorece o processo de paz e não tem qualquer relação com a realidade do mundo que nos rodeia.”

Estou aqui para dizer que os Estados Unidos não vão mais fechar os olhos a isso. Estou aqui para ressaltar o apoio decidi do dos Estados Unidos a favor de Israel.

“Estou aqui para enfatizar que os Estados Unidos ONUenfrentardeterminadosestãoaoviésdacontraIsrael.”

Eu sou nova aqui, mas entendo que é assim que o Conselho tem operado mês após mês, durante décadas.

Defendemos a paz. Apoiamos uma solução para o confli to israelense-palestino que seja negociada diretamente entre as duas partes, conforme o presidente Trump reiterou ontem em seu encontro com o primeiro-ministro Netanyahu.

Em vez disso, vamos focar nas ações para conter as ameaças reais que enfrentamos no Oriente Médio.

O Conselho de Segurança deveria discutir sobre como manter a paz e a segurança internacionais.

Após sua primeira reunião no Conselho de Segurança sobre o Oriente Médio, ela fez o pronunciamento a seguir, que Devarim transcreve na íntegra, a partir de uma posta gem de 22 de fevereiro no YouTube:

tuoso das relações dos partidos de situação e oposição nos EUA).

As resoluções escandalosamente tendenciosas do Conselho de Segurança e da Assembleia-Geral só fazem a paz mais di

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Em seu primeiro discurso na ONU, Nikky teceu comentários muito duros contra a ocupação russa da península da Criméia (parte da Ucrânia) e contra as su cessivas tentativas russas de desestabiliza ção da integridade deste país, manifesta das por seu apoio aberto a milícias sepa ratistas ao leste do país.

Nós nunca repetiremos o erro terrível da resolução 2334 nem permitiremos resoluções unilaterais do Conselho de Se gurança para condenar Israel.

Estou aqui para enfatizar que os Estados Unidos estão de terminados a enfrentar o viés da ONU contra Israel.

“O Conselho de Segurança acaba de terminar sua reu nião mensal sobre as questões do Oriente Médio. É a primei ra reunião deste tipo que eu assisti e tenho que dizer: foi um tanto estranho!

foi sobre como responsabilizar Bashar Al-Assad pelo massacre de centenas e milha res deNão.civis.Em vez disso, a reunião se concentrou em criticar Israel, a única verdadeira democracia do Oriente Médio.

Mas no nosso encontro sobre o Oriente Médio a discussão não foi sobre o acúmulo ilegal de foguetes do Hezbollah no Líbano; não foi sobre o dinheiro e as armas que o Irã fornece aos terroristas; não foi sobre como derrotaremos o ISIS; não

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O mundo está mudando em relação a Israel. Israel está construindo novas relações diplomáticas; mais e mais países reconhecem o quanto Israel contribui para o mundo; eles estão reconhecendo que Israel é um bastião de estabilidade numa região conturbada; e que Israel está na vanguarda do em preendedorismo inovador e da descoberta tecnológica.

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O Conselho de Segurança não hesitaria em condenar um ataque como esse em qualquer outro país. Mas não para Is rael. A declaração foi bloqueada, o que é francamente ver gonhoso.Israel existe numa região onde outros exigem sua comple ta destruição e num mundo onde o antissemitismo está em ascensão.Estas são as ameaças que devemos discutir nas Nações Unidas, ao mesmo tempo em que continuamos trabalhan do para um acordo abrangente que ponha fim ao conflito israelense-palestino.MasforadasNações Unidas há boas notícias.

Há poucos dias, os Estados Unidos pediram sem êxito que o Conselho de Segurança condenasse um ataque terrorista em Israel, no qual os terroristas abriram fogo contra pessoas que esperavam um ônibus e depois esfaquearam outras.

fícil de obter, por desencorajar uma das partes a ir à mesa de negociações.Incrivelmente, o departamento de assuntos políticos da ONU tem uma divisão inteira dedicada aos assuntos pa lestinos!Imaginem isso! Não há divisão dedicada aos lançamentos de mísseis ilegais da Coréia do Norte. Não há divisão dedi cada ao patrocinador número um do terror no mundo: o Irã.

A tendência anti-israelense da ONU já deveria ter mu dado há muito tempo! Os Estados Unidos não hesitarão em se manifestar contra esses preconceitos e em defesa de nosso ami go e aliado Israel.”

Ainda é muito cedo para tirar conclusões. Manda a prudência aguardar fatos concretos, pois o caminho do inferno é pavimentado por belos discursos de políticos. Mas a disposição do presidente Trump em chamar as coi sas pelo seu devido nome: para ele, atos de terror cometi dos por muçulmanos em nome de uma visão intolerante do Islã é “terror islámico” e não um genérico “ataque con tra a humanidade e os valores universais que todos com partilhamos”, aliado ao repúdio de sua diplomacia à infa me resolução 2334, que tornou o Muro das Lamentações parte dos “territórios palestinos sob ocupação”, dão a es perança que o conflito árabe-israelense possa, finalmente, ser encarado de frente e que uma solução negociada entre as partes seja encontrada.

Raul Cesar Gottlieb é diretor de Devarim.

A abordagem preconceituosa das questões israelenses e pa lestinas não favorece o processo de paz e não tem qualquer re lação com a realidade do mundo que nos rodeia.

Torço por Nikky Haley. Sua origem de imigrante mu lher indiana, nem branca nem negra, nem católica nem protestante, que fez grande sucesso empresarial e político num dos Estados rurais do sul dos EUA (onde, por inicia tiva dela, a bandeira Confederada de batalha, remanescen te da guerra civil americana, foi removida do alto do Capi tólio Estadual onde tremulava desde os anos 1960 em pro testo contra o movimento pelos direitos civis), nos dá espe rança de uma visão imparcial do conflito árabe-israelense e de uma postura que conduza a ONU a retomar os hoje desprezados princípios que motivaram sua fundação, ou seja, a defesa da democracia no mundo.

Os padrões duplos são de tirar o fôlego!

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ZYGMUNT BAUMAN: AS LÍQUIDASIDENTIDADES

Após perseguição política ao final dos anos 60, patrocinada pelo gover no polonês, com viés antissemita, emigra para Israel, onde passa a lecionar na Universidade de Tel Aviv, antes de aceitar a cadeira de sociologia na Universi dade de Leeds, em 1971. Esta nova imigração é fruto de seu desapontamento com os rumos da política em Israel, onde ele fala não querer mais uma vez ser vítima do nacionalismo. Esta repulsa também vem a ser sentida por sua espo sa, Janina Bauman, sobrevivente do Gueto de Varsóvia, levando a família Bau man a uma nova imigração.

m 9 de janeiro do presente ano, faleceu em Leeds o sociólogo Zyg munt Bauman z’L. Nascido em 1925, na cidade de Poznan, na Polônia, fugiu do nazismo em 1939 para a União Soviética. Participou do exército polonês no exílio, organizado pela URSS. Com o fim da guerra, retorna a Varsóvia, onde estuda sociologia e ciência política na Acade mia de Ciências Políticas e Sociais, tendo completado, em 1954, seu mestrado na Universidade de Varsóvia, onde se tornou professor até 1968.

Ricardo Sichel

A compreensão da necessidade de coexistência é um marco de seu pensamento. A solidariedade humana assume em seu estudo um elemento crucial, ele se torna cético do individualismo e do liberalismo econômico, apontando para o crescimento da miséria e da injustiça social.

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A obra de Bauman é densa. Um de seus temas é a crítica ao processo de globalização, uma análise do problema dos refugiados, em 2016, na Europa, como também uma análise da vida em comunidade e da relação de seus mem bros. Observa, em outro estudo, o Sionismo, estabelecendo uma análise críti ca. Em uma de suas visitas a Israel, em entrevista publicada no jornal Haaretz, de 16/02/2013, observa:

E

A compreensão da necessidade de coexistência é um marco de seu pensamento. Nesta mesma ocasião, ele an seia por confluir a moralidade com a sociologia. A solida riedade humana assume em seu estudo um elemento cru cial, onde se torna cético do individualismo e do liberalis mo econômico, apontando para o crescimento da miséria e da injustiça social.

Vim para Israel durante o trágico episódio do breve gover no de Rabin – o tempo da esperança que a nação iria adqui rir sentido, parar a decadência e seguir um caminho para fora do impasse”, ele lembra. “Porém, o episódio terminou violenta mente pouco depois – não por uma bala palestina, mas judaica. Desde então, em eleição após eleição, a maioria dos israelenses expressaram sua aprovação pela dureza em lugar da sanidade, colocando no poder pessoas que asseguraram que a coexistên cia pacífica entre israelenses e palestinos não estaria no mapa”.1

Para Bauman, a Comunidade representa um local es tável e seguro de se estar. Segundo ele, em sua obra A Co

munidade (p. 8), é neste espaço que podemos contar com a boa vontade dos outros. Caso venhamos a cair, seremos ajudados. Bauman dá valor a sua existência e compreende que o homem deve viver em seu meio, estabelecendo re lações de confiança, que, entretanto, em face das mudan ças do mundo atual se tornam cada vez mais líquidas. Em suma a sua existência remete a uma coisa boa.

A liquidez das relações importa em “derreter os sólidos” (Modernidade Líquida, p. 10). Baseia Bauman sua análi se em uma visão de Max Weber, na qual a empresa bus ca se libertar dos grilhões e dos deveres para com a famí lia, derretendo as relações sólidas, deixando uma complexa rede de relações sociais no ar. Trata-se de um processo de corrente da desregulamentação, da flexibilização e do des controle dos mercados. A rigidez anterior dá espaço à vo latilidade. O mundo se relaciona de forma mais superfi cial, criando um espaço para a denominada modernidade. Ele encontra-se em constante transformação; a solidez das relações existentes no passado dá lugar a uma constante e profunda mutação.

Por outro lado, Bauman aborda o Holocausto. Ana lisa a sua causa, os fatos que o propiciaram, buscando uma compreensão do mesmo. Para ele, conforme estu do publicado por Francisco J. Guedes de Lima, na revis ta Argumento:

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1. “I came to Israel during the tragically brief episode of Rabin’s government − the time of hope that the nation was about to come to its senses, stop the rot and follow the road out of the impasse,” he recalls now. “That episode, though, was brought to a violent end shortly after − not by a Palestinian, but by a Jewish bul let. Since then, in election after election, the majority of Israelis have expressed their approval of high-handedness over high-mindedness, voting into power peo ple who made sure that peaceful Israeli-Palestinian coexistence is not on the cards.”

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esta racionalidade, ou também a banalidade do mal, como ob serva Hannah Arendt, traduz a capacida de humana de perpetrar crimes, de forma racional e metódica. A civilização ocidental, baseada em métodos, cria uma má quina mortífera e Bauman observa que a sua modernida de foi condição necessária para o Holocausto.

O Holocausto foi um teste para a modernidade, um experimento, no dizer de Franciso G. de Lima, do ilimi tado e sanguinário de uma ideologia totalitária. O uso das ideias como elemento que catalisa a sociedade, estabele cendo uma hierarquia, cuja obediência cega leva ao co metimento de graves crimes, acaba por ser citado em sua obra, baseando-se em observações de Hannah Arendt:

“O silêncio diante da desumanidade or ganizada foi o único ponto a unir as igre jas, normalmente em total desacordo. Ne nhuma delas tentou reclamar sua autorida de ridicularizada. (Hitler nunca deixou a Igreja católica, nem foi excomungado). Ne nhuma sustentou seu direito de fazer jul gamentos morais sobre o rebanho e de im por penitência aos desgarrados.” (Bauman, 1998, p. 135)

Bauman alerta a sociedade para os riscos de regimes autoritários, que classificam pessoas conforme sua origem ét nica, religiosa ou orientação sexual. A discriminação destas é o primeiro passo para a prática de atos mais truculentos, por meio dos quais direitos humanos são desrespeitados. Nesse sentido, em sua obra sobre os refugiados aponta o sociólogo para o risco de sentimentos xenofóbicos, basea dos no receio ao estrangeiro, em uma busca de seguran ça, em detrimento da liberdade, onde o outro se transfor ma em uma ameaça e em uma justificativa para o fracas so de modelos.

“Estas pessoas que estão vindo agora são refugiados que não são famintos, sem pão ou água. São pessoas que, ontem, tinham orgulho de seus lares, de suas posições na sociedade, que, frequentemente, tinham um alto grau de educação e assim por diante. Mas, agora eles são refugiados. E eles vêm para cá. Quem eles encontram aqui? O precariado. O precariado

Os somosmedos.personificamsimbolizam,refugiadosnossosOntem,erampessoaspoderosasemseuspaíses.Felizes.Comonósaqui,hoje.Mas,vejaoqueaconteceuhoje.Elesperderamsuascasas,perderamseustrabalhos.

solidariedade. Tal desumanização explica as maiores crueldades feitas em nome da ciência. Por seu turno, há uma crítica aos demais setores da sociedade, que se man tiveram inertes ante a barbárie:

A organização e o preconceito do passado ressurgem no presente. A onda migratória, decorrente de conflitos regionais ou ainda de um processo colonizador no conti nente africano, que foi fatiado sem levar em conta os diversos traços culturais, mas sim o objeto exploratório, tem sua repercussão nos dias de hoje. O refugiado não é bem visto por ser diferente, é equiparado ao terrorista, constituindo, portanto, em uma ameaça, na visão daqueles que não perceberam que a cultura diversa é fonte de riqueza. Em sua abordagem sobre os refugiados, esclarece Bauman:

Bauman aponta que a primeira ação perpetrada pela ditadura nazista foi a de isolar os judeus do restante da so ciedade, usando para tanto fundamento de uma alegada base da racionalidade, dentro de uma lógica de purificação racial. Era uma questão de higiene pública. Uma condição adicional foi acrescida, no sentido de retirar o caráter hu mano das vítimas, de forma a se evitar questionamentos de ordem ética e moral na dizimação, passava a ser uma questão técnica. Uma vítima não humana estava no mes mo nível da coisa e, portanto, não sugeria o surgimento de

“[...] o Holocausto não foi simplesmen te um problema judeu nem fato da história judaica apenas. O Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e ra cional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural huma no, e por essa razão é um problema dessa so ciedade, dessa civilização e cultura.” (Lima, 2014, p.

Exatamente283)

“Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irres trita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomar o poder e decorre da alegação, já conti da em sua ideologia, de que a organização abrangerá, no de vido tempo, toda a raça humana.” (Arendt, 1989, p. 373)

‘Precariado’mantê-la vem da palavra francesa précarité que, em livre tradução, significa andar em areias movediças. Agora, surgem estas pessoas da Síria e da Líbia. Elas trazem esta ameaça de países distantes para nossas casas. De repente, eles aparecem ao nosso lado. Não consegui mos omitir suas presenças.

vive na ansiedade. No medo. Nós temos pe sadelos. Tenho uma ótima posição social e quero

Ricardo Sichel é advogado, conselheiro da ARI, doutor e mestre em Direito pela Westfälische Wilhelms Univ, Münster, Alemanha, procu rador federal e professor de Direito da Unirio.

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Os seus ensinamentos deveriam ter uma importância especial para o povo ju deu. Desde há muito tempo ele se viu obrigado a fugir para sobreviver. A comunidade judaica, por dever de leal dade a seus antepassados, não pode ficar indiferente ao drama dos refugiados e se não tomar uma ação positiva, sob o manto de que há o risco à segurança, estará estigma tizando um grupo e passando, infelizmente, para a con dição de algoz, esquecendo o seu passado e renegando as suasAvítimas.importância de Bauman para as ciências sociais e para a humanidade é manifesta. Ele analisa e conceitua a fluidez dos tempos pós-modernos. Ele se torna um crítico das relações sociais dos tempos atuais, nos quais a fragili dade destas justifica a conceituação de liquidez das mesmas. Foi autor de inúmeras obras, sob o foco das ciências sociais, tendo sido testemunha das profundas alterações que ocorreram no século XX, desde da barbárie do Holo causto, passando pela Guerra Fria até a queda da URSS e de todo o bloco da Europa Oriental.

homenageadotovisão,tulohumano,11/03/2017)gos/zygmunt-bauman-o-medo-dos-refugiados,(http://www.fronteiras.com/artiacessoemAsuaanálisedasociedade,docomportamentodosersetornaevidentecomsuarecusaemaceitaroróde“pós-modernista”,namedidaemqueeste,nasuasefechaaodebate,fugindodestaformadoelemencrítico.Nessesentido,alémdeemLeeds,tambémfoicomoprofessoreméritodaUniversidadede

A comunidade judaica, por dever de lealdade a seus antepassados, não pode ficar indiferente ao drama dos refugiados.

Os refugiados simbolizam, personificam nossos medos. Ontem, eram pessoas poderosas em seus países. Felizes. Como nós somos aqui, hoje. Mas, veja o que aconteceu hoje. Eles per deram suas casas, perderam seus trabalhos.

O choque está apenas começando. Não existem atalhos para o problema. Não existem soluções rápidas. Então, pre cisamos nos preparar para um tempo muito difícil que está chegando. Esta onda de imigração que aconteceu ano pas sado não foi a última. Há mais e mais pessoas esperando. Precisamos aceitar que esta é a situação. Vamos nos unir e encontrar uma solução.”

Varsóvia, deixando, juntamente com ou tros cientistas sociais, um legado inesti mável para a compreensão das intrincadas relações humanas e como estas, de uma forma tão concatenada, podem levar ao desprezo dos direitos humanos.

Israel é um dos locais mais arqueologicamente ricos do mundo. O país reú ne artefatos e informações de vários períodos históricos, desde o neolítico até os dias de hoje. São muitas escavações e artefatos a serem encontrados e mui tas pessoas, de todas as partes do mundo, vêm a Israel para trabalhar como vo luntários nas escavações. Atualmente, existem 41 projetos que aceitam volun tários acontecendo no país.

Renata Roitman

RESGATANDO A HISTÓRIA DO MONTE DO TEMPLO

Um grande arqueológicoachadode2016 foi uma sinagoga na Galileia, que tem o potencial de mudar algumas noções existentes hoje. Esta sinagoga teria existido antes da destruição do Segundo Templo.

O projeto arqueológico de Peneiragem do Monte do Templo convida brasileiros a participar da empreitada

42 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

ou paulista e formada em jornalismo. Por meio de um programa do MASA, me arrisquei nesta aventura de viver em Israel para experi mentar a vida em um país muito diferente do Brasil. Apesar dos pro blemas, a qualidade de vida aqui é muito boa. Israel tem realidades, conflitos e quotidianos muito diferentes do Brasil.

S

Além dessas, muitas outras escavações e pesquisas arqueológicas são condu zidas pela Autoridade de Antiguidades de Israel, que autoriza e supervisiona es tas atividades. No país, antes de qualquer construção ou reforma ser iniciada, a Autoridade de Antiguidades realiza escavações na área, para a retirada de possíveis artefatos históricos. Isso é necessário já que a região é riquíssima historica mente e pode-se “tropeçar” na história em qualquer parte de Israel.

Devido aos achados arqueológicos de 2016, o país esteve em destaque nos noticiários. Um importante exemplo disso são novos fragmentos dos Manuscri tos do Mar Morto, do período do Primeiro Templo, que mencionam o nome

O Projeto de Peneiragem do Monte do Templo

Israel é um dos locais arqueologicamente mais ricos do mundo.

Jerusalém é uma das cidades mais escavadas do mundo. Por esta razão, é incrível que o Monte do Templo nunca tenha sido escavado. Isso acontece em boa parte porque o Waqf (instituição muçulmana que controla o local) nunca autorizou pesquisas arqueológicas na região. O mais pró

Juntamente com estes fragmentos, foi encontrada tam bém uma rara inscrição romana, mencionando a provin cia da Judéia e o nome de um governador romano, já co nhecido, e que, aparentemente, governou a província pou co antes da Revolta de Bar-Kochba. Esta descoberta ocor reu durante uma pesquisa submarina em Tel Dor, no Mar Mediterrâneo.Emnovembro de 2016, foi descoberto um raro escon derijo de artigos em ouro e prata, datados de 3.600 anos, em Gezer (sítio arqueológico localizado entre Tel Aviv e Jerusalém). No local também estavam estatuetas de deuses, produzidas pelos cananeus. Os deuses e o dinheiro foram encontrados dentro de um vaso de barro nas fundações de um edifício, levando à teoria de que o pote foi colocado ali como uma oferta aos deuses para abençoar a construção.

Outro grande achado arqueológico do ano foi uma si nagoga na Galiléia, que tem o potencial de mudar algu mas noções existentes hoje. Esta sinagoga teria existido an tes da destruição do Segundo Templo, que, supostamente, deveria concentrar todas as atividades religiosas judai cas da época. Não há certeza quanto ao uso dado ao novo espaço, sendo possível que este fosse apenas um local para reuniões, porém se for identificado que o local era usado para culto religioso teremos uma demonstração que nem todas as atividades religiosas aconteciam no Templo. Estes poucos exemplos de descobertas de 2016 mostram a im portância da região para a arqueologia.

Jerusalém e que foram encontrados no final do ano. Estes manuscritos nunca foram encontrados em sua integra lidade, apenas em pedaços. O achado dá esperança de que mais partes ainda possam ser descobertas, dando aos pes quisadores maior compreensão daqueles textos.

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Jacek_Sopotnicki/istockphoto.com

No canto sudeste do Monte do Templo, existe uma grande estrutura subterrânea, conhecida como “Os Es tábulos de Salomão”. Este espaço foi construído duran te o Período Islâmico Anterior, em cima das ruínas do Se gundo Templo, e foi usado como estábulo pelos Cava leiros Templários durante as Cruzadas, quando ganhou o nome. Entre 1996 e 1999 o Waqf converteu o local em uma nova mesquita. Em novembro de 1999 maquinaria pesada foi usada para criar uma nova entrada para a mes quita, demolindo uma grande área do Monte do Templo. Estas obras foram realizadas sem qualquer supervisão ar queológica, desrespeitando as leis da Autoridade de Anti guidades, que exige a realização de escavações arqueológi cas antes de qualquer obra.

Decidi fazer estágio no Projeto de Peneiragem do Mon te do Templo porque considero a iniciativa muito impor tante e interessante. O projeto pode realmente fazer a dife rença. A área do Monte do Templo é inacessível a arqueó logos e a peneiragem resgata objetos de grande valor his tórico. Além disso, o programa convida e recebe pessoas

Além disso, o programa convida e acolhe pessoas de todo o mundo para participar, o que não é comum. Ao longo de seus 12 anos de existência, o projeto cresceu como iniciativa de relevância internacional. Com a ajuda de mais de 200.000 voluntários, centenas de milhares de valiosos achados foram descobertos. Sendo assim, o Pro jeto de Peneiragem age como um programa educacional, ensinando a história do local e convidando pessoas ao re dor do planeta a serem parte desta pesquisa e da história deste local sagrado.

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Além destas reformas, uma grande área aberta no les te do Monte do Templo foi demolida para a construção de novos pavimentos. Cerca de 400 caminhões retiraram 9.000 toneladas de solo da região, saturado de artefatos ar queológicos de todos os períodos históricos do Monte do Templo. Esta terra foi despejada em diferentes locais, prin cipalmente na região do Vale do Cedro.

ximo que já se chegou de uma escavação na área é o nosso Projeto de Peneiragem do Monte do Templo, que peneira terra retirada de dentro do Monte.

O professor doutor Gabriel Barkay, um dos mais im portantes arqueólogos de Israel, decidiu se juntar à Dvira e eles estabeleceram um projeto de peneiragem sistemática do solo retirado do Monte. Assim surgiu o Projeto de Pe neiragem do Monte do Templo. A iniciativa permite uma pesquisa aprofundada sobre a história do Monte do Tem plo, de Jerusalém e de Israel, nunca antes possível. As in formações trazidas pelo projeto podem confirmar teorias existentes além de dar origem a novas, podendo mudar to dos os estudos arqueológicos relacionados a um dos locais mais sagrados do mundo.

em Arqueologia. Isto gerou um grande debate acerca do assunto, o que levou o tema para a imprensa.

Os então estudantes de arqueologia da Universidade Bar-Ilan, Zachi Dvira e Aran Yardeni ficaram intrigados pelo ocorrido e decidiram examinar o solo despejado. Os estudantes divulgaram alguns objetos encontrados na pe neiragem durante uma conferência sobre Novos Estudos

À esquerda, Frankie Snyder, especialista em pisos antigos decorados, que utilizou cálculos geométricos para reconstruir os padrões que existiam no Monte do Templo. À direita, parte da equipe do Projeto de Peneiragem do Monte do Templo durante o trabalho.

do mundo todo a fazer parte, o que não é comum.OProjeto de Peneiragem do Monte do Templo encontra diariamente artefa tos dos mais diversos períodos históricos e povos que passaram pelo local, não ape nas judeus, mas também romanos, bizan tinos, árabes, cruzados, entre muitos ou tros. O Monte do Templo é sagrado para as três maiores religiões monoteístas do mundo, e, portanto, para bilhões de pes soas. Numerosos artigos de muitos ti pos são encontrados, tais como fragmen tos de vasos de pedra, cerâmica, moedas, joias, uma rica variedade de contas, figurinhas de terracota, pesos, pontas de fle chas e outras armas, a maioria datada do período do Primeiro Templo em diante (século 10 a.C. até os dias de hoje).

O Projeto de Peneiragem ajuda a desmentir também outra teoria, refe rente à ausência de ocupação do Mon te do Templo durante a época bizantina. Nossa peneiragem encontrou numerosos fragmentos de elementos arquitetônicos do período Bizantino. Graças à comparação com edifícios existentes em outros locais, pudemos comprovar que nossos achados são consistentes com a arquitetura da Encontramos,época. por exemplo, fragmen tos de mosaicos tesserae (os pequenos ele mentos coloridos usado nos mosaicos), telhas, objetos Coríntios e obras de arte de igrejas, todos condizentes com o pe ríodo Bizantino. Nossos achados incluem também artigos em cerâmica, tais como lâmpadas a óleo, algumas com inscrições gregas, outras com uma cruz e também lâmpadas decoradas com alças estilizadas em for ma de cruz. Também achamos numerosas moedas. Todos estes achados contradizem a afirmação que durante esse período não houve atividades de nenhuma ordem no Monte do Templo e que o local era deserto e totalmente desprovido de estruturas. Os achados mostram que exis tiam estruturas bizantinas no Monte do Templo e que elas foram destruídas e posteriormente substituídas por estru turas islâmicas, construídas por califas desconhecidos, du rante os séculos 7 e 8 d.C.

Grande parte da cerâmica encontrada pelo Projeto de Peneiragem data dos períodos do Primeiro e Segundo Templos. Boa parte destas peças são fragmentos de jarros, mas também de cálices, pratos e outros tipos de objetos. Esta cerâmica data dos períodos entre o século 10 a.C. até a destruição do Templo em 586 a.C. Muitos destes acha dos são da época do Rei Salomão, que construiu o Primei ro Templo, e seus sucessores (séculos 10 a 9 a.C.). Tais des cobertas são raras em Jerusalém e geram um debate acir rado sobre o tamanho da cidade nesta época. Muitos estu diosos duvidam que o Monte do Templo tenha sido parte de Jerusalém no século 10 a.C. Eles acreditam que Jerusa lém era, na verdade, uma pequena vila e não uma grande cidade. Nossos achados contradizem esta afirmação minimalista e confirmam o relato bíblico sobre o tamanho de Jerusalém naquele período.

O Domo da Rocha foi construído em 685 d.C. e a Mesquita de Al-aqsa em 705 d.C., ou seja, ambas duran te o Período Islâmico Anterior, que durou de 638 a 1099 d.C. Nossos achados dessa época incluem fragmentos de mosaicos dourados, que foram parte da cúpula do Domo da Rocha, cerâmica com inscrições, incrustações em madrepérola (inclusive uma com o desenho do Domo da Rocha), joias, peças de jogos, muitas moedas, algumas de ouro, pedras com inscrições e fragmentos arquitetônicos.

No ano passado, nós fomos capazes de reconstruir os padrões dos pisos dos Tribunais de Heródes que ficavam no Monte do Templo, graças aos azulejos coloridos em for mato geométrico que encontramos durante a peneiragem. Nossa pesquisadora, Frankie Snyder, especialista em pisos antigos decorados, utilizou cálculos geométricos e se ba seou em exemplos de pisos semelhantes, encontrados em outros locais, para reconstruir os padrões e descobrir os di ferentes pisos coloridos, que existiam no Monte do Tem plo. Isto é algo jamais visto na história da arqueologia.

Infelizmente, nos últimos anos, por razões políticas, tem crescido um movimento de negação da ligação de ju deus e cristãos com o Monte do Templo. Os defensores deste movimento dizem que apenas muçulmanos têm li gação com o local e que não há provas da ligação de judeus e cristãos. Em outubro de 2016, a Unesco aprovou uma resolução apoiando este movimento de negação. O texto

Com a ajuda de mais de 200.000 voluntários, centenas de milhares de valiosos achados foram descobertos. O Projeto de Peneiragem age como um programa educacional, convidando pessoas ao redor do planeta a serem parte desta pesquisa e da história deste local sagrado.

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Renata Roitman é jornalista formada pela FIAM (Faculdades Inte gradas Alcântara Machado). No laboratório do Projeto de Peneira gem ela trabalha com Relações Públicas, Assessoria de Imprensa e Mídias Sociais. O principal objetivo do seu trabalho é levar infor mações e conhecimento sobre o projeto para países de língua por tuguesa ou espanhola, principalmente o Brasil, a fim de atrair doa dores e voluntários.

Sítio arqueológico na cidade de Jerusalém, em local onde escavações são permitidas.

Entretanto, para que o Projeto de Peneiragem conti nue, são necessárias doações, que são nossa principal fon te de recursos. Os valores arrecadados serão utilizados na publicação dos artigos sobre pesquisa e manutenção da ini ciativa por mais um ano. Sem eles, corremos o risco de fe char as portas e encerrar nossas atividades.

Fontes consultadas http://digs.bib-arch.org/ – acesso em 3 de janeiro de 2017 http://www.haaretz.com/archaeology/1.761814 – acesso em 3 de janeiro de http://www.biblicalarchaeology.org/daily/news/top-10-biblical-archaeology-discove2017ries-in-2016/–acessoem3dejaneirode2017

Johnsonbaugh/istockphoto.comLinda

questiona a conexão de judeus e cristãos com o Monte do Templo e enfatiza apenas a conexão com o Islã, utilizan do inclusive apenas os nomes em árabe do local. O Proje to de Peneiragem demonstra como esta resolução é falsa, pois o projeto encontrou milhares de artefatos antigos da tados do Primeiro e Segundo Templos no solo do Monte do Templo. Nossa pesquisa tem o poder de derrubar esta campanha, demonstrando e provando o quanto ela distor ce a história do Monte do Templo e de Jerusalém.

Caso seja publicada, a pesquisa irá demonstrar para o mundo que existe sim uma forte ligação entre judeus e cristãos e o Monte do Templo. Muitas pessoas não sabem que o povo judeu já estava na região muito antes da criação do Estado de Israel (os judeus estão na Palestina há mais de 4.000 anos). Nós podemos mudar isso.

partilhada com a comunidade científica e o público é des cartada como se nunca tivesse sido realizada. O Projeto de Peneiragem precisa do apoio dos brasileiros e do resto do mundo para completar sua responsabilidade como guardião da história do Monte do Templo. As doações podem ser feitas on-line em http://half-shekel.org/pt-br/. Para sa ber mais sobre a pesquisa, acesse nossos sites em inglês e português: https://templemount.wordpress.com/ e http:// www.pt.tmsifting.org/

A pesquisa arqueológica que não é publicada e com

(Este texto complementa, acrescenta e repete um pouco, inten cionalmente, e num contexto específico, o do Devarim anterior, Occupy world)

SIONISMO 2.0

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 47 cócegas no raciocínio

A nação consolidada, o estado-nação judaico, existe, e abriga cerca de metade do povo judeu. A outra metade, no momento, no mundo inteiro, não está em marcha. As comunidades em pe rigo, e a maior parte dos judeus que aspiravam a uma vida nacio nal plena num estado judaico já estão lá. Herzl realizou seu pro grama, e a vez é de Achad Haam. A alma judaica dos que NÃO estão lá sabe que já tem um corpo, mas o vê como uma possi bilidade futura, ou como um abrigo garantido em qualquer mo mento mais difícil. O que foi uma visão religiosa, mística, esca tológica, heroica, pioneira de Sion e da volta a Sion é hoje uma realidade terrena, um objeto real, um estado democrático, com seus próprios problemas, que também é o estado de seus ci dadãos não judeus, cujos interesses vitais, talvez, nem sempre, coincidam com o de todo judeu em qualquer parte do mundo. Surgiu um novo movimento que tem ‘sionismo’ no nome: o pós-sionismo. Que diz: o sionismo acabou, cumpriu seu papel, o que temos agora é um estado e seus cidadãos, e suas prioridades, que não coincidem sempre, e em tudo, com as dos judeus que são cidadãos de seus estados não judaicos. Gostem de nós, se quiserem, deem seu apoio, se quiserem, mas não se metam na nossa vida, aqui quem tem voz é a sociedade israelense, o go verno

É a continuação do sionismo, e a continuação do sionismo é o caminho lógico do povo judeu. Sionismo não é uma invenção intelectual ou política que possa ser desfeita por declarações ou teses ou intenções. Sionismo é a vontade do povo judeu e dos judeus e de cada judeu de ser um povo só, com uma história co mum, uma religião comum, e um futuro comum. A história judai ca é sionista. Foi sionista na aliança abraâmica que se estendeu a todas as gerações seguintes; na decisão naassé venishmá; no percurso de quarenta anos no deserto em direção ao próprio destino; na conquista de Canaã; no pranto nas margens dos rios da Babilônia; nas lutas contra helênicos e romanos; em Massa da e em Iavne; nas comunidades, que são territórios virtuais ju daicos na dispersão; nas preces do sidur e do machzor; na de claração final da Hagadá; na poesia de Iehuda Halevi e Bialik; na cultura, nas lendas e nos mitos do povo judeu. Israel é UMA das conquistas do sionismo. Sionismo é a decisão individual de todo judeu que assim decidir, do povo judeu, enquanto assim de

Sionismo 2.0 é uma proposta para a continuação desse mo vimento a partir da realização, já consolidada, da fase 1.0. Uma

Paulo Geiger

pelo título, o que é sempre um bom começo. Sionismo 1.0 refere-se ao movimento nacional de um povo planetário e multimilenar, que, por ter perdido seu lugar de ori gem, de formação e de vida, ancorou a sobrevivência de sua identidade (por meio de religião, cultura, misticismo, e, na era dos direitos individuais e nacionais, por meio deste movimen to nacional moderno) na visão de seu retorno e da reconstrução de uma vida nacional plena na ‘Terra Prometida’. Sionismo 1.0 é a evolução do antigo sionismo [dos exilados na Babilônia; do ri tual religioso diário que evoca o retorno a Sion como a realiza ção do destino judaico; dos sonhos e visões messiânicos e es catológicos; dos poetas, escritores, rabinos e líderes comunitá rios; do shtetl e das metrópoles; da renovação do presente e do futuro judaico pela confirmação da identidade nacional e religio sa do passado (Chadesh Iameinu Kekedem)] para um movimen to moderno, inspirado nessa tensão milenar do Retorno, mas agora baseado nos direitos do homem e dos povos, um direito internacionalmente reconhecível e irrefutável. Sionismo 1.0 é o coroamento da pertinência religiosa e cultural, que sempre teve caráter nacional, num movimento nacional moderno, numa ideo logia, num programa de ação e em sua realização. É ‘o povo ju deu em marcha’, nas palavras de seu primeiro grande líder, Theo dor Herzl. É a presença do povo judeu no mundo, como nação, no concerto das nações.

continuação que parte de uma realidade totalmente diferente, que exige um movimento, inclusive literal, numa direção diferente.

Comecemos

Masisraelense.essaproposta contradiz toda a história judaica. Uma res posta a essa realidade que seja consentânea com a histórica ju daica seria o Sionismo 2.0.

Sionismo 1.0 é, pois, a visão e o processo da extração dos ju deus – do povo judeu – de sua dispersão no planeta para con centrá-lo numa entidade nacional sólida e estrutural, um estado-nação, com ideais consentâneos com a visão ética do judaísmo. Um processo de diluição da identidade planetária para a conso lidação de sua presença individual e soberana como nação se nhora de seu destino. Um país que nasceria da redenção do de serto, da volta do povo judeu à terra e ao trabalho obreiro, da criação pioneira (chalutziana) de comunas e cidades. Um movi mento, também no sentido literal da palavra. Ele partiu, portanto, da realidade de um povo disperso, unido por seus valores, ca talisado pela perspectiva do Retorno, para recriar a nação físi ca, com sede própria. Para isso, os judeus puseram-se em mar cha e criaram esta sede. A alma, preservada, recriava um corpo.

cócegas no raciocínio

1. DNA metafórico, não biológico, referindo-se aos componentes do tripé ‘for mador’ da identidade judaica pela decisão do naassé venishmá: 1) pertinência ao grupo (agora povo); 2) o conteúdo identificador do povo (cultura, filosofia, ética e estética, religião e os consequentes comportamentos; 3) percepção e perseguição de um futuro comum na terra de origem e de destino, conforme a aliança inicial abraâmica.

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são abismos, lacunas ou muros, exer cendo a vocação judaica que define o povo judeu como mamlechet kohanim, um reino de sacerdotes a serviço da humanidade, solidário com os proble mas da humanidade e partícipe deles como parte da solução.

cidir, de ser um povo só, esteja em seu estado-nação ou em qualquer estado onde seja também cidadão. Por tudo isso, a ideia de que sionismo se esgo te com o advento do estado-nação ju daico é absurda. O estado-nação ju daico é mais um bastião do sionismo, um músculo do sionismo, faz parte da visão sionista inicial, é a prova de seu acerto e de sua vitalidade.

Mas a marcha (se Herzl tinha razão, para onde, ou o quê, marcha o povo judeu hoje? para o quê deveria mar char?), ou seja, o movimento de Sio nismo 2.0 deve ser, se não o oposto, o simétrico ao de Sionismo 1.0. A rea lidade atual é a de um estado-nação judaico e de um povo judeu que são, ao mesmo tempo, partes de um planeta ameaçado, por estar sendo tão abusado e espoliado quanto eram os povos ví timas de colonização e imperialismo (e planeta em perigo é pe rigo para todos que nele habitam), a realidade de uma globaliza ção que enfrenta – ou favorece? – o ressurgimento de precon ceitos, racismos, isolacionismos, fechamentos, brexits, Wilders, Trumps, Le Pens, Putins, Erdogans, Maduros, Kim Jong-uns, et caterva, uma realidade em que, mais de setenta anos após o Ho locausto, ressurgem e avultam preconceitos de todos os tipos, especificamente o anti-israelismo e o antissemitismo. Nessa rea lidade, volto a perguntar: Se sionismo é o povo judeu em mar cha, para onde, ou para o quê, devem marchar hoje o povo ju deu, os judeus que a ele pertencem, e o estado-nação do povo judeu (pois pelo seu próprio DNA1 e sua própria história, reli gião e cultural, eles sempre marcham juntos, e nenhum pós-sio nista é capaz de negar ou evitar isso)?

Sionismo 2.0 é a continuação da história judaica, da qual Sion, por ser promessa divina desde a raiz, ou por ser raiz necessária, acalentada, perdi da e reavida, é parte integrante. É a marcha do povo judeu, suas coletivi dades e seu estado, juntos, pois são um só (ou não existiriam mais), e jun to com a humanidade, com o planeta que ela habita, pela sua salvação (da humanidade e do plane ta) física e moral, pela convivência, pela justiça e equanimidade (que são a essência da moralidade judaica). É o movimento de retorno, agora ao berço comum de todos, à solidariedade com todos os oprimidos (por exploração, por preconceito, por totali tarismos, por demonizações, por prepotências econômicas, po líticas, religiosas...), os esquecidos, os menosprezados. É o mo vimento de uma luta comum contra terrorismo, fanatismos, into lerâncias, fundamentalismos, isolamentos, muros, desmatamen tos, torcidas violentas (e todas as demonizações do ‘outro’), po luição, superexploração de recursos, degradação. É a busca de novas solidariedades, por parte de uma nação que tanto care ceu de solidariedades em toda a sua história e que agora tem a oportunidade e a capacidade de exercê-la, pois mais do que nin guém sabe o que ela significa. Solidariedade com todos que, pe quenos e indefesos como fomos ao longo do tempo, têm seus próprios sionismos como sonho e instrumento de redenção, se jam esquimós, baleias em extinção, povos indígenas, ou a pró pria Terra, lar de todos nós. E isso não é novidade, no fundo, está nas raízes profundas do judaísmo, nas palavras dos profetas.

O movimento de Sionismo 1.0 foi para a retirada dos judeus de seus nichos de inserção, guetos, shtetls, metrópoles, socie dades, cidadanias, culturas, para mobilizá-los na recriação da nacionalidade institucional, do instrumento de governança de seu próprio destino, naquilo que se chamou de autodetermina ção. O povo judeu pôs-se em marcha e, apesar de tudo, apesar de ser mal-recebido, de encontrar resistências internas, apesar do (e não graças ao) Holocausto, apesar de pogroms, de sete ou oito guerras, de terrorismo e boicote (até hoje), levou avante a ideia sionista de ser um só povo (na dispersão E em seu es tado nacional –, uma só cultura (a religiosa e a secular), um só futuro. Diante da realidade de hoje, Sionismo 2.0 é o movimen to de retorno dos judeus, do povo judeu, do estado judeu, jun tos como sempre estiveram, a sua inserção planetária: a ser par te integrante dessa sociedade maior, em que as fronteiras não

Se Sionismo 2.0 reunir a força, a decisão, a energia, a capa cidade de ação do Sionismo 1.0, nada disso será utopia, como demonstra a incrível história da recriação da nação judaica em sua terra. E com Sionismo 2.0 reafirma-se a vocação judaica de ser mamlechet kohanim, e a vocação de Sion, o Estado de Is rael, de, junto com povo judeu do qual faz parte, contribuir para a humanidade e o planeta. Ki miTsion tetse Torá.

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Devarim 32 (Ano 12- Maio 2017) by ARI - Associação Religiosa Israelita - Issuu