Devarim 30 (Ano 11- Setembro 2016)

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Bereshit, mas não tanto

Ezrá

Bereshit, mas não tanto Treistman

Alberto

NossoRabinoExíliosIhrigeEncontrosSérgioMarguliesPai,NossoRei:

Uma Viagem no Tempo

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Uma Viagem no Tempo

Paulo Geiger

Annette M. Boeckler

De Musa Dagh a Massada Stefan NossoRabinoExíliosIhrigeEncontrosSérgioMarguliesPai,NossoRei:

De Musa Dagh a Massada Stefan

Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 11, n° 30, setembro de 2016 DEVARIM 40 Anos da Operação Entebbe Alberto Léo Jerusalmi A Revolução de Ezrá e Neemias

Rabino Dario Bialer

A

Paulo Geiger Notas sobre o Judaísmo em Kafka O Último Menino de Janusz Korczak Notas sobre o Judaísmo em Kafka Edelyn Schweidson O Último Menino de Janusz Korczak Miriam

Rabino Dario Bialer

Annette M. Boeckler Anos da Operação Entebbe Léo Jerusalmi Revolução de e Neemias

Raul Cesar Gottlieb – Diretor de Devarim

Contudo, manda a prudência não abrigar muitas espe ranças a curto prazo. Convicções muito arraigadas são ex tremamente resistentes aos fatos.

No caso do Charlie Hebdo, as provocações eram explí citas. O jornal efetivamente usa uma linguagem satírica e ofensiva para divulgar a sua forma de ver o mundo. Sendo que todas as correntes religiosas (cristianismo e judaís mo inclusive) foram, desde sempre, um dos alvos preferi dos pelo jornal.

Quando isso acontecer teremos dado um imenso pas so adiante. E se, além disso, for também entendido qual a verdadeira natureza dos terroristas que combatem o Esta do de Israel, estaremos próximos ao nirvana.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1

O Papa estava dando voz a uma linha de pensamento muito popular e também, por ser equivocada, muito peri gosa. Segundo essa doutrina, grande parte dos crimes co metidos – sejam eles maiores ou menores – se explicam não apenas pela intenção do criminoso, mas também por provocações, implícitas ou explícitas, que teriam sido co metidas pela vítima. Ou seja, a vítima tem uma parcela de responsabilidade pelo crime.

Talvez porque esteja ficando óbvio para todos que a verdadeira ofensa por trás do terror islâmico seja a pró pria existência do mundo não islâmico, com seu imenso e “ofensivo” desnível de bem-estar. Desnível este que é pro vocado pela democracia, pelo trabalho criativo, pela sepa ração entre religião e Estado, pela igualdade de gêneros e por todos os demais atributos que povoam o imenso fosso entre o mundo Ocidental e o Islã jihadista.

ma semana depois do ataque terrorista ao jornal sa tírico francês Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, o Papa Francisco justificou os assassinos ao declarar a jornalistas que o acompanhavam numa viagem interna cional: “Se o meu bom amigo Dr. Gasparri [um membro de sua comitiva que estava junto dele no momento da en trevista] ofender a minha mãe, ele pode esperar um soco no nariz. Isto é natural, você não pode provocar, você não pode ofender a fé dos outros, você não pode ridicularizar a fé dos outros”.

U

Existo, logo ofendo

Assim que, dezoito meses depois do assassinato dos jor nalistas que, segundo o Papa e muitos mais, pagaram com suas vidas o preço de ter ridicularizado a fé dos outros, o Padre Jacques Hamel, de 86 anos, foi degolado por dois terroristas islâmicos enquanto celebrava a missa para duas freiras e três paroquianos em Saint-Etienne-du-Rouvary, na Normandia, onde servia há dezenas de anos.

Inspirando-se em Descartes, talvez possamos conside rar que a paráfrase “eles existem, logo ofendem” sintetiza o impulso do terror jihadista islâmico. Talvez o assassinato do Padre Hamel traga o benefício de fazer as lideranças do mundo ocidental entender que, sendo a não existência uma não opção, é momento de traçar uma estratégia adequada para a defesa da civilização ocidental.

O atentado ao Charlie Hebdo não inaugurou a onda de atentados provocados pelo fundamentalismo islâmico, as sim como a formidável demonstração de repúdio ao atentado organizada dias depois pelo governo francês não aba teu a macabra sequência de eventos terroristas.

EDITORIAL

Em outros casos, as provocações são bem mais sutis. Os negros que eventualmente cometem crimes estariam se vingando da escravidão. A delinquência ocasionalmen te cometida por pobres é uma reação à miséria que lhes te ria sido imposta. Irresistíveis impulsos sexuais de estupra dores teriam sido provocados pela roupa da mulher e/ou por gesto supostamente convidativo. E assim por diante. Os exemplos abundam.

Não há registro de que o Padre Hamel tenha alguma vez em sua longa vida ofendido a religião de alguém. Na verdade, não há registro algum sobre o padre fora do pe queno limite de sua paróquia. O Papa, obviamente, con denou o assassinato. Mas, desta vez, ele não dividiu a cul pa do atentado com as ações da vítima.

Telefone: 21 2156-0444

Bereshit, mas não tanto Paulo Geiger......................................................................................... 60

Colaboraram neste número: Alberto Léo Jerusalmi (z´l), Annette M. Boeckler, Edelyn Schweidson, Rabino Dario Ezequiel Bialer, Miriam Treistman, Paulo Geiger, Rabino Sérgio R. Margulies e Stefan Ihrig.

Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

Notas sobre o Judaísmo em Kafka Edelyn Schweidson 25

EditoraEDIÇÃO Narrativa Um

Rabino Sérgio R. Margulies 3

RABINOS DA ARI Sérgio R. Margulies, Dario E. Bialer

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De Musa Dagh a Massada Stefan Ihrig 33

Itzchak Belfer: O Último Menino de Janusz Korczak Miriam Treistman 40

40 Anos da Operação Entebbe Alberto Léo Jerusalmi 17

Annette M. Boeckler 49

A revista Devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br (www.devarim.com.br) Administração e correspondência: Rua General Severiano, 170 – Botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ

A contracapa de Devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ. A distribuição de Devarim é gratuita, sendo proibida a sua comercialização.

Exílios e Encontros

EDIÇÃO DE ARTE Ricardo Assis (Negrito Produção Editorial) Tainá Nunes Costa

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Nosso Pai, Nosso Rei: Uma Viagem no Tempo

SUMÁRIO

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

Em Poucas Palavras 54

CONSELHO EDITORIAL Breno Casiuch, Rabino Dario E. Bialer, Germano Fraifeld, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Mônica Herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies.

Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 11, n° 30, setembro de 2016

PRESIDENTE DA ARI Ricardo Gorodovits

FOTOGRAFIA DE CAPA Dmytro Shestakov (istockphoto.com)

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A Revista Devarim informa com tristeza o falecimento de Mario Robert Mannheimer, que foi integrante do seu Conselho Editorial desde o primeiro número.

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DIRETOR DA REVISTA Raul Cesar Gottlieb

REVISÃO DE MariangelaTEXTOSPaganini (Libra Prod. Textos)

A Revolução de Ezrá e Neemias

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Rabino Dario E. Bialer 9

Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI.

De nós próprios ao nos afastarmos do que somos;

EXÍLIOS ENCONTROSE

IrComComComConsigo;osoutros;opassado;ofuturo.doexílioaoencontro é uma decisão.

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Da família ao rechaçarmos os que nos amam;

o ano de 586 a.e.c., parte do povo de Israel, notadamente a elite política, foi exilada de sua terra ancestral. Era o final do reino de Judá. Destino: Babilônia. Este exílio não significou cativeiro e, inclu sive, muitos prosperaram. Contudo, a nostalgia da terra de Israel foi intensa como revela o Salmo (137-1): “Às margens dos rios da Babilônia, lá sentávamos e chorávamos ao nos lembrarmos de Sion”.

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A narrativa de Ruth valoriza o judaísmo não de forma automática, e sim como permanente escolha. Ensina que o judaísmo é um ato de constante decisão.

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O exílio do outro

Da comunidade ao quebrarmos o que nos une como povo;

Há diversos exílios:

Na sucessão dos eventos históricos e nos pêndulos que alteram o poder, a as censão do Império Persa sob o comando de Ciro (reinado de 559 a 529 a.e.c.) deu aos exilados a oportunidade do retorno a Jerusalém e de restabelecer o Tem plo que havia sido destruído. Esse retorno foi conflituoso, pois os que retorna vam reivindicavam o poder de restaurar o Templo e, portanto, de controlá-lo. Em acréscimo, alegavam que eles, em seu exílio, preservaram a denominada pu reza do povo, enquanto os que permaneceram em Judá se misturaram através

Rabino Sérgio R. Margulies

Há diversos encontros:

Do mundo ao comprometermos o futuro das gerações.

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A narrativa de Ruth valoriza o judaísmo não de forma automática, e sim como permanente escolha. Ensina que o judaísmo é um ato de constante decisão. É possível con cluir: Se para os que optam pelo judaísmo há um ato de es

O exílio da responsabilidade

A palavra divina – tal como expressa no texto bíblico –não é uniforme. A Bíblia, pontua o professor da Univer sidade Hebraica de Jerusalém Israel Knohl, “contém uma variedade de concepções, uma variedade de costumes e uma variedade de leis”.

Os que retornavam tinham como ob jetivo criar comunidades que assegura riam uma estrutura social baseada na cen tralidade do culto e com restritivas deter minações religiosas. Esta concepção de vida judaica insular, alheia ao convívio externo e regrada pelos ditames do cul to, é fundamentada no livro bíblico Ezrá. Esta proposição intenciona garantir o ca ráter judaico. No entanto, por trás havia o interesse estratégico do Império Persa. A autorização do retorno da população ju daica intencionava fortalecer a província da Judéia como zona de segurança face à insurgência no Egito. Mas a fim de asse gurar que esta população judaica não ti vesse reivindicações políticas, é de se su por que a centralidade absoluta do culto ambicionasse su bliminar potenciais sentimentos nacionalistas.

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No entanto, é crucial que a resolução por uma con cepção não seja somente consequência de uma necessida de sociológica adaptativa e, sobretudo, decorra dos valo res compartilhados e princípios sedimentados através do estudo e da prática almejada. Se for somente uma respos ta a uma circunstância, quando outra necessidade surgir poderá se abandonar o princípio e os valores. Ainda que o pragmatismo seja importante nas decisões, os valores não devem emergir ou submergir ao sabor das circunstâncias, pois neste caso deixariam de ser decisões responsáveis. De cisões que têm impacto: opção pelo judaísmo requer o compartilhar de um destino comum.

Neste sentido, a narrativa bíblica de Ruth se distingue da de Ezrá na compreensão do vínculo com o outro. Ruth era originária de Moab, um povo não judeu. Ela junta seu destino ao povo judeu ao afirmar: “Teu povo será meu povo e teu Deus será meu Deus” (Ruth 1:16). Ruth opta por abraçar o judaísmo, sendo aceita pela comunidade es tabelecida como membro plena. Enquanto a concepção teológica preconizada pelo livro de Ezrá caracteriza o ju daísmo através de sua linhagem ancestral (e como tal pre viamente determinada), o entendimento religioso propi ciado pela história de Ruth reconhece a possibilidade de se optar por um caminho antes não traçado que conduza ao judaísmo.

O encontro com o outro

Reconhecendo a relevância dos sentimentos que a ancestralidade evoca na formação da identidade ou na sua procura, o judaísmo liberal abraça os conceitos que emer gem da narrativa de Ruth ao compreender que a virtude judaica não é inata e que a postura comunitária deve ser inclusiva. Isto é condizente com a busca de uma resposta à contemporânea realidade demográfica das comunidades judaicas inseridas na sociedade maior.

de casamentos inter-religiosos.

colha, também para os que são judeus em função de sua ancestralidade naturalmen te dada deve haver a escolha por esta con dição. Neste caso, optar significa transformar uma alegada condição inata em prá ticaApermanente.aberturaproposta pela concepção de Ruth nos provoca. Através do outro, do estranho, sugere Herman Cohen (18421918), descobrimos a ideia do judaísmo. A ideia de que não basta residirmos no conforto de um status isento de atitude, como se pudéssemos clamar uma condi ção – a de judeus – independentemente de atos judaicos. Ato judaico é o reconhe cimento da responsabilidade para com o outro. Neste sentido, o livro de Ruth en fatiza a conduta benevolente. Enquanto a observância dos procedimentos legais previstos preocupase com a preservação dos hábitos internos e foca na auto preservação, a benevolência sustenta-se na transcendência de perceber e ajudar o outro.

O texto bíblico não é uniforme. Traz distintas vozes. Mesmo o enunciador sendo único – Deus –, as vozes de Seu enunciado são múltiplas. Como igualmente são múltiplas as escutas humanas. O estudo da Bíblia impede que alguém se considere detentor absoluto da mensagem religiosa.

A exposição às distintas concepções convida-nos a estu dar ambas, neste caso Ezrá e Ruth, mas, em outros casos, tantas quanto houver para, então, por intermédio do conhecimento adquirido, decidir com autonomia e abalizar uma prática. O judaísmo liberal incentiva a capacidade do indivíduo de exercer sua autonomia enfatizando que essa autonomia é condicionada à tomada de decisões respon sáveis. Decisão responsável requer o conhecimento. Neste sentido, o rabino Jakob Petuchowski (1925-1991) afirma que somente se pode falar em judaísmo reformista se hou ver conhecimento. A bem da verdade, isto vale para o ju daísmo como um todo. Diante do ensinamento do sábio Hilel (liderança de 30 a.e.c. a 10 e.c.), que caracteriza o judaísmo como a atitude de não fazer ao outro o que não queremos que façam conosco sendo o resto comentário, Martin Buber (1878-1965) alerta que esquecemos a con tinuação das palavras de Hilel: “Vá e estude”.

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Do exílio ao encontro

zes de Seu enunciado são múltiplas. Como igualmen te são múltiplas as escutas humanas. O judaísmo que é construído a partir da interpretação do texto bíblico tampouco é monólito. O estudo da Bíblia permite apre ciar a riqueza de visões e impede que alguém (indivíduo ou grupo) se considere detentor absoluto da men sagem religiosa.

O estudo enxerga as contradições neste pluralismo, porém, ao invés de buscar anulá-las a uma artificial uni formidade, acena para desbravarmos as possibilidades e reconhecermos a diversidade. O professor Israel Knohl sugere: “Reconhecer e estudar as diferentes vozes da Bí blia, e suas múltiplas ideias que inspiram o desenvolvi mento do judaísmo, pode ajudar a trazer uma atmosfe ra de diversidade e tolerância. Expor e entender o cará ter pluralístico da Bíblia permite reconhecer que há lugar para que o ponto de vista do outro seja também um reflexo da verdade divina”.

Bibliografia e sugestões de leitura

O texto bíblico não é uniforme. Traz distintas vo zes. Mesmo o enunciador sendo único – Deus –, as vo

Seinsaltz, A., Biblical Images, Basic Book, Inc. Publishers, 1984. Schulweiss, H. Artigo: “The Stranger in our Mirror”.

Rogerson, J. e Davies, P., The Old Testament, Prentice-Hall, 1989. Knohl, I., The Divine Symphony: the Bible’s many voices, The Jewish Pu blication Society, 2003.

O encontro com a decisão

No vasto leque de interpretações que a pluralidade ju daica proporciona, há outra leitura de Ruth que isenta a tomada de decisão, num raciocínio paralelo ao pensamen to de Ezrá. Diz esta interpretação que Ruth adotou o ju daísmo em função da manifestação de uma centelha já existente em sua alma que a conectava com gerações pas sadas judaicas. De outro lado, a cunhada de Ruth, Orpa, não seguiu essa opção, pois nela não havia estas centelhas sendo a ela – Orpa – atribuída a origem de Golias, que vi ria a lutar com David, descendente de Ruth.

Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Israe lita do Rio de Janeiro–ARI.

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“ Vá e estude.” Ao estudar encontre sua decisão, íntegra e genuína, honesta e sincera consigo para que você não se exile de si próprio. E pratique as palavras comu mente lembradas de não fazer ao outro o que não quer que façam consigo. Não envie para o exílio das ideias e das opções a escolha que difere da sua. Claro, isto há de ser recíproco!

Eles deixaram um Legado Você também pode estar sempre em Israel deixando um legado ao Fundo Comunitário do Rio de Janeiro e você?

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sse é o povo do livro que carregou os mandamentos em placas de pedra pelo deserto durante 40 anos e que, carregando aquelas pedras, nos libertou do peso da ignorância.

Rabino Dario E. Bialer

O povo judeu não nasceu nem especial nem escolhido. Não é mais inteligente nem geneticamente melhor do que ninguém. Mas resulta inegável que ao longo da sua história tomou decisões fundamentais que lhe permitiram superar suas próprias limitações e conformar uma identidade nacional intrinsecamente vinculada ao estudo.

A REVOLUÇÃO DE EZRÁ E NEEMIAS

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E

“Então, todo o povo se reuniu como uma só pessoa diante da praça, de fron te à porta das águas. E disseram a Ezrá, o escriba, que trouxesse o livro da Torá de Moshé, que Deus tinha ordenado a Israel. E no primeiro dia do sétimo mês, Ezrá, o sacerdote, trouxe a Torá perante a congregação – homens e mulheres e todos os ca pacitados a escutar e entender. E ali, na praça localizada em frente da porta das águas, ele a leu, começando cedo pela manhã e seguindo até o meio dia, perante os homens e as mulheres e os que podiam compreender; e os ouvidos de todo o povo es tavam atentos à Torá.”

(Neemias, capítulo 8)

Acontecimentos como a entrega da Torá no Sinai, a saída da escravidão do Egito e o começo da jornada de Abrão são muito significativos para nós. Mas esta assembleia reunida na frente da porta das águas em Jerusalém não foi me nosOsdecisiva.livros de Ezrá e Neemias, escritos 2.500 anos atrás, descrevem como as decisões desses líderes transformaram não apenas aquela sociedade, mas todo o corpo de um novo judaísmo que começava a ser delineado.1

Ezrá e Neemias instituem a leitura pública da Torá e seu estudo, e ao fazer isso eles mudam o povo judeu para sempre. Somos todos herdeiros espirituais e também materiais dessa atitude.

Mesmo enfrentando dificuldades, Neemias tem suces so em sua missão. Os muros de Jerusalém são concluídos e

o Templo é edificado. Mas ele faz muito mais do que cui dar da proteção física dos judeus. Juntamente com o es criba e sacerdote Ezrá, que havia feito alguns anos antes o mesmo caminho dele da Babilônia para Jerusalém, ele recria a espiritualidade judaica.

Em 586 a.e.c., o rei Nabucodonosor da Babilônia conquistou o Reino de Judá, destruiu Jerusalém e deportou para o seu país toda a classe dirigente judaica e grande par te do povo. Parecia que a singularidade cultural do povo judeu chegaria ao fim. Contudo, poucas décadas depois, quando a Babilônia foi, por sua vez, conquistada pelo rei Ciro da Pérsia, ele permitiu aos judeus de seu recém-con quistado reino retornar, os que assim o desejassem, a Judá para a reconstrução de Jerusalém e de seu Templo.

Picuach neshamá, dizia Heschel, é a preservação da alma. Nós a preservamos cada vez que transformamos o que parecia destino em desafio. Desafiar o estabelecido. A opressão estrangeira. E a opressão interna também.

Como se a Torá fosse “picuach nefesh” e “picuach ne shamá” simultaneamente. Aquela que preserva o corpo e a alma ao mesmo tempo.

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Assim, em 445 a.e.c., Neemias, filho de Chachaliá, um judeu que servia num importante cargo honorífico na cor te do rei persa (o que não era algo fora do normal no im pério multicultural de Ciro e seus descendentes, haja vis to a história de Mordechai e Ester na corte de Achashve rosh) obtém a licença do rei para ir a Jerusalém e supervisionar os trabalhos de reconstrução.

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Ezrá e Neemias instituem a leitura pública da Torá e seu estudo, e ao fazer isso eles mudam o povo judeu para sempre. Somos todos herdeiros espirituais e também ma teriais dessa atitude.

Ezrá e Neemias perpetuaram a continuidade de um modelo reconstruindo o Templo, ao mesmo tempo em

Um novo projeto nacional está sendo configurado e a forma com que se interpreta o versículo 2 tem muito a ver com isso, pois nele se descreve quem seria parte ativa des sa

sociedade.Ohebraico, na sua riqueza linguística, permite ler este versículo de duas formas antagônicas. Estavam reunidos todos os homens e as mulheres capacitadas para entender? Ou todos os homens, todas as mulheres e um terceiro gru po que também podia compreender a Torá (como crian ças, estrangeiros, não judeus), todos integrados nesse mo mento fundacional da nova nação?

em integrar homens e mulheres, judeus e não judeus, todos que buscam pertinên cia Oscomunitária.Murosde

Todo o povo como uma só pessoa

Homens, mulheres e todos os capacitados a escutar e entender

Quando o capítulo 8 do livro de Nee mias abre dizendo que todo o povo se reu niu como uma só pessoa na praça de fron te à porta das águas, o autor do texto não está fazendo apo logia do esmagamento das individualidades e o abando no da autodeterminação. Podemos estar ouvindo juntos e manter uma escuta diferente. Existem também momentos em que as diferenças dão lugar a um projeto comum. E esse foi um desses momentos decisivos na história.

Hoje também coexiste um judaísmo que tenta confi nar a mulher em casa, que esconde sua presença do espa ço público, que a impede de ler a Torá em público, que a segrega atrás de uma cerca, e o judaísmo que tem sucesso

universal da Torá representou uma enor me revolução. Nenhum povo compartilhava um ritual de leitura pública das leis e dos textos formadores de sua iden tidade. Assim como inédita era a obrigatoriedade de todo o povo – e não apenas uma casta – se envolver com a lei tura e a compreensão do texto.

Uma leitura sugere que aos homens adultos capacita dos a entender a Torá podem se somar as mulheres que possuem compreensão. Contudo, a outra interpretação in dica que os homens e as mulheres por igual podem e de vem se envolver com a Torá, bem como qualquer outro in tegrante da sociedade capacitado em estabelecer uma inte ração com o texto ou com os outros atores sociais.

O que está em jogo não é a disputa de um espaço pú blico e sim a identidade nacional, que vai sendo construí da, balanceando a lei, com seus impactos sociais, políti cos e Atéeconômicos.aaparição de Ezrá e Neemias os judeus eram um povo agrícola, como todos os demais povos do mundo, e a prática do judaísmo se parecia com a dos povos a seu redor. O culto sacrificial, as peregrinações ao Templo, as oferendas materiais a Deus através dos sacerdotes, são costumes religiosos compartilhados por vários povos da Antiguidade.Masaleitura

Primeiramente pensou-se que bastava seguir a injunção da Torá, que obriga os pais a ensinar seus filhos. Porém, este ensino caseiro cobria apenas os aspectos básicos de co nhecimento. Um tempo depois, uma academia de alto ní vel foi criada em Jerusalém. Com o tempo, sentiu-se a ne cessidade de alimentar essa academia com estudantes ori ginados em todas as cidades, assim que, sob a influência do presidente do Sanhedrin, Shimon ben Shetah (65 a.e.c.),

que, com o estudo da Torá, plantaram as sementes de transformação para um mo delo religioso/espiritual completamente diferente, que será chamado, séculos de pois, de judaísmo rabínico.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 11

Jerusalém, que nos tempos de Ezrá e Neemias foram símbolo de unidade, hoje são o campo de batalha entre o pluralismo e o totalitarismo religioso. Fui testemunha presencial disso quando pouco tempo atrás acompanhei as Mulheres do Muro e as reivindicações dos movimentos reformista e conservador em Israel para que se aplique o reconhecimento da Supre ma Corte em Israel de que o Muro seja um espaço plura lista para todas as correntes religiosas.

O judaísmo foi se desenvolvendo desde aqueles dias até hoje, mantendo essa duplicidade na interpretação.

A universalização do estudo foi sendo aprimorada ao longo do tempo. Cada vez que se percebia uma deficiên cia que impedia a obtenção dos resultados esperados o mé todo era reformado. O objetivo final – o estudo da Torá por todos – nunca foi perdido de vista, pois no judaísmo o conteúdo é sempre mais importante do que a forma.

O objetivo final –estudo da Torá por todos – nunca foi perdido de vista, pois no judaísmo o conteúdo é sempre mais importante que a forma”.

escolas preparatórias gratuitas para jovens de 16 e 17 anos se espalharam por onde viviam os judeus. Mas apenas as crianças que tinham obtido educação básica com os pais podiam acompanhar o estudo nes sas escolas. Órfãos e filhos de pais ilitera tos ficaram de fora do sistema ao mesmo tempo em que se identificou que 16 anos era uma idade muito avançada para intro duzir uma pessoa num sistema organiza do de Entreensino.63e 65 e.c., o sacerdote Joshua ben Gamla baixou um decreto religioso obrigando todos os pais a enviar os filhos a partir dos seis ou sete anos para uma escola primária gratuita. A grandes pro blemas nada melhor que pequenas solu ções. Assim o Talmud reconhece e perpetua essa lembran ça (numa tradução livre):

A literalidade dos judeus os fez abraçar profissões mais rentáveis que de seus vizinhos agricultores analfabetos. Então, ao mesmo tempo em que diminuíam em número, os judeus aumentavam em renda. Em paralelo – e muito importante –, o estabelecimento de um código religioso de conduta ética nos negócios fez dos judeus os financia dores ideais dos empreendimentos. A obediência aos con tratos firmados, e não a proibição da Igreja à usura, foi, segundo os pesquisadores, o motor por trás do firme esta belecimento dos judeus no mercado financeiro. Este motor é turbinado pelo exílio judaico, que criou uma imensa rede de pessoas ligadas por um idioma comum e por uma obediência às mesmas normas morais e éticas.

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E vejam que interessante. Embora o hebraico seja a língua do povo judeu, nos períodos históricos em que seu uso era basicamente ritual e não popular – como nos tem pos de Ezrá e Neemias –, eles não hesitaram em decretar que a Torá também deveria ser lida na língua falada pelo povo. Na época era o aramaico e coube a Onkelos traduzir a Torá para o aramaico. Ou seja, o importante não era en

Assim foi até que Joshua ben Gamla decretou que profes sores de crianças deveriam ser estabelecidos em todos os dis tritos e cidades e que crianças de seis e sete anos deveriam ser matriculadas nas escolas.

Joshua ben Gamla tem que ser lembrado para sempre pois se não fosse por ele a Torá teria sido esquecida em Israel.

Quando Ezrá e Neemias, numa das portas do Templo -reconstruído,recém-decidiramreuniropovoaoredordaTorá,elescriaramumsistemaquenuncaserávencidoporalgumpoderpolítico,pois,mesmoqueaterrasejaconquistadaeostemplosdestruídos,apalavracontinuaráviva.

Antes dele, quem tinha pai aprendia a Torá com ele, mas quem não tinha pai, não estudava a Torá. Foi então decreta do que professores para jovens deveriam ser estabelecidos em todos os distritos da terra. Mas os jovens entravam na escola aos 16 e 17 anos e se um professor os admoestasse eles se ressentiam e iam embora.

clusão deles é que os judeus foram forma tados pela educação mais do que a educa ção formatou os judeus.

O estudo obrigatório afastou os ju deus da agricultura, pois era muito com plicado a um lavrador mandar seus filhos para a escola na cidade. Assim, os agricultores judeus tinham duas alternativas: ou abandonar o judaísmo ou abandonar a agricultura. Segundo os pesquisadores, é falsa a percepção de que os judeus ti veram que abandonar a agricultura por que os governos sob os quais eles viviam os proibiram de possuir terras. O que a maioria abandonou foi o judaísmo e não a agricultura. Eles afirmam que a queda acentuada na população judaica desde o tempo dos romanos não se deve a perseguições, postulan do que a assimilação voluntária, pela dificuldade de man ter a obrigatória literalidade, foi maior do que qualquer outro fator de perda de população judaica. E percebam que a queda na população foi imensa! Segundo os autores, em 65 e.c. os judeus representavam 10% da população nas áreas em que viviam (5,5 em 55 milhões). Porém, em 1490 e.c. eles representavam apenas 1,14% (1 em 87,5 milhões).

Este é o primeiro registro de um sistema público de en sino e os judeus foram o único povo a manter um sistema desses até a Idade Moderna! Evidentemente que alguma consequência isto deveria provocar.

Os economistas Maristella Botticini (italiana) e Zvi Eckstein (israelense) realizaram uma enorme e interessan tíssima pesquisa para identificar como foi que os judeus se tornaram o povo que hoje são. O resultado dessa pesquisa está no livro The Chosen Few – How Jewish Education Shaped Jewish History, 70-1492 (Os Poucos Privilegiados – Como a Educação Judaica Formatou a História Judaica entre 70 e 1492, em tradução não oficial, pois o livro ainda não foi traduzido para o português), editado em 2012 pela Prince ton University Press. Como o título do livro já revela, a con

Hoje não somos mais exilados, e cada vez que volta mos a Jerusalém temos a possibilidade de ver no único muro do Templo ainda em pé não apenas a reminiscên cia do passado de um templo de santidade que não mais existe, mas também a comprovação que a preservação do estudo da Torá continua intacto. E é por isso que, quan do visitamos o Muro, não nos entristecemos pelo que foi

tender hebraico – o idioma ancestral e tradicional –, mas também, e principalmente, entender o que está escrito na Torá, pois a sua leitura, antes do que ritual, tem primeira mente função educativa.

Pensemos, por exemplo, no grande valor simbólico das cerimônias de bat ou bar-mitsvá. Celebramos o amadure cimento das crianças com a abertura e leitura de um livro; um ritual muito simples e também muito profundo. Toda a cerimônia, toda a preparação para chegar a esse momen to, toda a festa posterior, a alegria e a emoção que envol vem cada uma das famílias, tudo em volta do jovem abraça Torá e, na sua leitura pública, aceita o desafio de ser mais

Quando Ezrá e Neemias, numa das portas do Tem plo recém-reconstruído, decidiram reunir o povo ao redor da Torá, eles criaram um sistema que nunca será venci do por algum poder político, pois, mesmo que a terra seja conquistada e os templos destruídos, a palavra continuará viva. Em cada novo lugar, através do estudo e da prática, serão criadas novas expressões do ser judeu. Assim o de monstrou a história nos últimos milhares de anos.

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Agora, deixem a imaginação voar e pensem como o mundo seria hoje se as demais culturas da época tivessem adotado a obrigação da literalidade há milênios e não ape nas algumas dezenas de anos atrás.

um portador dos seus valores milenares.

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perdido, mas, ao contrário, nos alegramos por tudo o que temos e celebramos o que ainda nos falta.

• The Chosen Few – Maristella Botticini e Zvi Eckstein.

“Hoje é um dia sagrado para o Eterno, teu Deus; não se lamentem e não chorem. Pois todo o povo estava chorando enquanto ouviam as palavras da Torá [porque perce beram quão afastados estavam de seus pre ceitos]. Ele lhes disse: ‘Vão! Comam comidas saborosas e bebam bebidas doces e enviem porções aos que nada têm, pois hoje é um dia sagrado para o Senhor. Não se entristeçam; a

• Ezrá e Neemias – Tanach.

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Notas

1. Os nomes dos personagens bíblicos estão grafados confor me o livro A Bíblia Hebraica, da Editora Sefer.

alegria no Eterno é a nossa força!’”

Talvez fosse exatamente a isto que Neemias se referiu ao relatar o que se pas sava durante a leitura de Ezrá:

O Rabino Dario Ezequiel Bialer serve na ARI

-Rio de Janeiro e foi ordenado pelo Seminário Rabínico Latino Ame ricano Marshall T. Mayer de Buenos Aires e pelo Instituto Schechter de Jerusalém.

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Quando visitamos o Muro, não nos entristecemos pelo que foi perdido, mas, ao contrário, nos alegramos por tudo o que temos e celebramos o que ainda nos falta.

Leituras recomendadas

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Quatro aviões Hércules C-130, como este da fotografia, participaram da operação.

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40 ANOS OPERAÇÃODAENTEBBE

eroporto de Atenas, manhã de domingo, 27 de junho de 1976. O voo 139 da Air France, vindo de Tel Aviv, pousou para a escala em Atenas. Pouco depois o avião seguiria para Paris, última etapa da viagem.

A segurança em Atenas era bastante frouxa e uma greve relâmpago do pessoal de terra fora o suficiente para fazer com que a polícia não se preocupasse muito em fazer qualquer revista nos passageiros”.

Alberto Leo Jerusalmi z’l era jornalista e grande ativista da ARI Rio de Janeiro. Este texto foi escrito para a Devarim poucas semanas antes de seu falecimento precoce, em julho deste ano.

Momentos após a decolagem, ouvi um grito de horror. No início pensei que alguém tivesse desmaiado a bordo. De repente, vi dois homens correndo em di

Às 12h10 o comandante Michel Bacos recebeu autorização da torre de con trole, o avião da Air France começou a correr na pista e levantou voo com des tino a Paris. A bordo estavam 248 passageiros e 12 tripulantes.

Após o anúncio do sequestro, o jato da Air France segue seu voo. Os passageiros não fazem a menor ideia para onde estão indo.

Alberto Léo Jerusalmi

O que aconteceu no interior do jato francês está relatado pelo passageiro Moshe Perets, um sociólogo israelense de 26 anos que fez um diário da via gem. Seu relato foi publicado em O Globo, e também no livro 90 Minutos em Entebbe12h10::

No livro 90 Minutos em Entebbe, o jornalista William Stevenson, descreve como estava a situação no aeroporto. “Uma mulher que que tinha 30 anos estava calada ao lado do seu companheiro, um jovem discretamente vestido que viera com ela de Bahrein, no voo 763 da Singapore Airlines. Viajaram sob o nomes de Sra. Ortega e Sr. Garcia. Dois jovens com passaportes árabes também de sembarcaram do mesmo voo, mas ficaram distantes. Também iriam passar para o avião da Air France. Tinham dado seus nomes como sendo Fahim al-Satti e Hos ni Albou Waiki.

A

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Na quarta-feira, 30 de junho, como acontece em todas as manhãs, os ministros israelenses se reúnem. Cada setor faz um balanço da situação. O Ministro do Exterior está em contato com vários chefes de governo. No gabinete do primeiro ministro Yitshak Rabin é lido um breve resumo a respeito dos presos cuja liberdade está sendo exigida pe los Assequestradores.famíliasdos passageiros pedem que o governo is raelense aceite as exigências. Eles querem a liberdade de seus parentes. É uma situação muita delicada.

Nessa mesma quarta-feira os terroristas libertaram mais 47 reféns. Assim que chegavam em seus países, eram ou vidos pelos serviços secretos da França e de Israel. O pra zo para o fim das negociações terminava na quinta-feira, 1o de julho. O gabinete israelense seguia nas negociações e conseguiu estender o prazo até às 14 horas de domin go, 4 de Nessajulho.mesma quinta-feira, o serviço de Inteligência de Israel descobriu que o aeroporto de Entebbe havia sido construído por uma empresa israelense, o que possibilitava o acesso às plantas originais daquele local. Shimon Peres, ministro da Defesa, acreditava ser possível um pouso dire to em Entebbe e uma remoção rápida dos reféns. O gene

As exigências

Os sequestradores divulgaram a lista de exigências para libertar os passageiros: Eles querem a libertação de 53 prisioneiros, sendo que 40 estão de tidos em Israel, 6 na Alemanha Ocidental, 5 no Quênia, 1 na Suíça e 1 na França.

Ele diz ser o responsável pelo fato de terem sido os passageiros autorizados a des cer em Uganda.

Os terroristas separam os portadores de passaportes israelenses dos demais pas sageiros. Logo muitos se recordam de ce nas dos campos de concentração nazistas.

Em Israel chegava um comunicado: “O voo 139 com muitos israelenses a bordo sofreu um desastre ou então foi se questrado. O avião que está desaparecido é um Airbus da Air France que saiu do aeroporto Ben Gurion pouco antes das nove horas da manhã”.

Aeromoças de feições assustadas e quase histéricas saem da cabina da primeira clas se. Elas procuram tranquilizar os passagei ros, que começaram a ficar com medo. As mãos das aeromoças tremiam. Passados me nos de um minuto ouvimos a voz excitada de uma mulher no alto falante. Ela falava em inglês com sotaque estrangeiro. Disse que o avião estava em poder de um grupo ter rorista da Frente Popular de Libertação Pa lestina. A voz no alto falante ordenou aos passageiros que levantassem as mãos e não se movessem. À entrada da primeira classe havia dois terro ristas que empilhavam granadas de mão já destravadas e re volveres. Disseram que quem tivesse armas em seu poder de veria entregá-las imediatamente. Alguns passageiros estende ram em direção deles facas e garfos.

A mensagem foi encaminhada aos ministros do Trans porte e da Defesa que estão na reunião semanal de rotina. E logo chegou às mãos do primeiro ministro Yitshak Ra bin. O avião sequestrado voa em direção ao sul e chega no aeroporto de Entebbe, em Uganda, às três horas da ma nhã do dia 28 de junho.

Às 12 horas todos saem do avião. Às 17 horas, Idi Amin Dada, de boina verde, se apresenta aos passageiros.

Em dois dias são liberados 148 passa geiros. Os israelenses e judeus são man tidos como reféns. Os tripulantes da Air France decidem permanecer em Uganda até que o último passageiro seja libertado.

À noite o avião decola. A bordo há uma grande expec tativa: qual será a próxima escala?

Pela janela, pode-se observar uma costa, um solo árido e uma pista de aterrissagem bem precária. Eles estão em Bengazi, na Líbia, onde ficarão parados por duas horas. Os terroristas recolhem os passaportes que são guardados num saco plástico.

Após o anúncio do sequestro, o jato da Air France se gue seu voo. Os passageiros não fazem a menor ideia para onde estão indo. O avião pousa num aeroporto.

França e Alemanha afirmam que não soltarão os terro ristas presos. Israel tem a mesma posição.

reção à cabine do piloto. Um deles, um jo vem de cabelos compridos, camisa vermelha, calça cinza e casaco bege. O outro também trajava calça cinza e camisa amarela. E ti nha um grosso bigode.

Na tarde de sábado, 3 de julho, os aviões começavam a levantar voo do Aeroporto Ben Gurion e tomavam direções diferentes para não chamar a atenção da população nem da imprensa. Os aviões voavam a baixa altitude para escapar dos radares e seguiam para Uganda.

ral-brigadeiro Dan Shomron foi nomeado comandante da missão em terra e Yonatan Netanyahu seria o chefe da uni dade que executaria a missão. Na sexta-feira, dia 2 de julho, são apresentados planos detalhados para Shomron. São fei tas várias simulações de resgate numa réplica do aeroporto, incluindo o pouso dos aviões nas pistas sem iluminação.

Sete horas depois da decolagem, os aviões já estão pró ximos de Entebbe. São 4 aviões Hércules C-130. Um ou tro avião, um Boeing 707, hospital aéreo, ficou no aero porto de Nairobi, no Quênia.

Em Entebbe

Os momentos de tensão vividos no aeroporto estão relatados no diário de Moshe Perets:

Às 23h15 várias pessoas saltam de seus leitos dizendo ter ouvido disparos. Os terroristas entram no salão e ouvem o ruído de armas sendo engatilhadas. Todos deitam-se no chão. Alguns correm para esconder-se nos banheiros. Famílias pro curam proteger-se mutuamente, deitando-se uns em cima dos outros, mães e pais em cima dos filhos. Ouvem-se tiros. Pen sei que as negociações tinham fracassado e que os terroristas iriam nos liquidar. O salão está iluminado. Ouvem gritos de terror. Alguém grita para que todos permaneçam deita dos. Alguém diz ter ouvido vozes em hebraico. Não acreditamos até que vimos um paraquedista israelense de alto fa lante portátil na mão, que nos disse para sairmos correndo do salão. “Para fora, para fora” gritava ele. Saímos e subimos nos aviões. Estamos voando. Acomodamo-nos apertadamen te numa extremidade do avião, ao lado da maca com mor tos. Ninguém está alegre, pois vimos mortos diante de nós. Adormecemos de cansaço.

Na tarde de sábado, 3 de julho, os aviões começavam a levantar voo do Aeroporto Ben Gurion e tomavam di reções diferentes para não chamar a atenção da popula ção nem da imprensa. A partida dos aviões foi autoriza da por Rabin, que ainda aguardava a posição final do ga binete. Ele tinha liberado o embarque para ganhar tem po. Pouco depois os ministros autorizaram a operação. Os aviões voavam a baixa altitude para escapar dos radares e seguiam para Uganda.

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Quando os aviões aterrissaram, imediatamente os israelenses foram em direção ao prédio dos reféns. Houve troca de tiros com os soldados ugandenses.

O piloto, de 52 anos, disse que a maior preocupação era fazer o máximo para que todos os passageiros voltas sem para suas casas sãos e salvos. Por isso decidiu obede cer disciplinadamente as ordens dos terroristas, acalmar os passageiros e manter o sangue frio.

Em entrevista a Any Bourrier, correspondente de O Globo em Paris, o piloto Michel Bacos contou detalhes do sequestro. A reportagem foi publicada na edição de 11 de julho de 1976.

“Os terroristas não fizeram diferença entre a tripulação e os passageiros. Agiram sempre com desconfiança e nos ameaça ram o tempo todo com suas armas. Pareciam estar com medo. Havia sempre alguém na cabina com uma arma apontada para mim ou para o mecânico. Os demais se encarregavam dos Sópassageiros.ficamos sabendo que desceríamos em Entebbe meia hora antes do pouso, quando nos deram essa ordem. Eu não

conhecia o aeroporto, não tinha mapa do terreno e desconhe cia as condições técnicas para uma descida perfeita. Os seques tradores me autorizaram a chamar pelo rádio um avião da African Airlines, cujo piloto me deu as características do ae roporto, comprimento da pista, etc.

Os passageiros se comportavam com calma. Não hou

Entre os mortos estava o responsável pela operação En tebbe, Yonatan Nethanyau que não resistiu aos ferimentos após ter sido alvejado por um soldado ugandense. Outros três reféns também morreram.

Aeroporto de Entebbe, 2010.

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O sequestro do avião no relato do piloto francês

Depois do pouso em Entebbe nós ficamos uma hora no fi nal da pista, com os motores funcionando. Pensei até que iría mos continuar a viagem. Acho que neste intervalo eles pude ram preparar o aeroporto para receber os passageiros. Logo depois do desembarque, eles nos enviaram para umas insta lações abandonadas. Não participei das negociações entre os palestinos e Idi Amin. Eu só intervinha quando os passagei ros necessitavam de alguma coisa. Ai dirigia-me aos seques tradores e estes transmitiam o pedido às autoridades milita res de Uganda. A única presunção que temos quanto ao auxí lio dos ugandenses aos terroristas é a presença de outros mem bros do comando em Uganda, à nossa espera. Notei também que o comando suspirou aliviado quando chegamos a En tebbe, mas não é possível dizer se isto aconteceu porque Amin era cúmplice ou se porque consideravam sua missão termina da. De qualquer forma, posso lhe garantir que os quatro ter roristas que sequestraram o Airbus não eram dirigentes, eram apenas executores.

ve pânico. Muitos ficavam nervosos, mas isto é natural. Os doentes foram tratados com carinho especial, pois desde a chega da um médico e uma enfermeira ficaram à nossa disposição. Quero ressaltar o pa pel da tripulação. Ficamos sempre ao lado dos passageiros procurando levantar o mo ral dos mais abalados. Muitos israelen ses mostravam-se pessimistas e nós procu ramos ajudá-los para evitar a depressão, estávamos sempre conversando com eles.

A imprensa

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O jornalista C. L. Sulzberger, do The New York Times, escreveu um artigo, que foi publicado também em O Es tado de S.Paulo de 8 de julho, com o título “Reavaliando método da luta contra o terrorismo”:

Na hora da operação israelense, os passageiros estavam dormindo. Eu me prepa rava também para dormir quando ouvi três disparos de metralhadora. Compreen di logo o que se tratava. A partir dai fiquei à esperaHaviadeles.indícios de que aconteceria algo assim. Os terroristas continuavam descon fiados e temerosos. Disseram-nos que en quanto os israelenses não soltassem os pri sioneiros em troca dos passageiros não fi cariam tranquilos. Por sua vez, os cidadãos israelenses do avião comentavam que os prisioneiros exigidos pelo coman do eram perigosos demais para que Israel os entregasse fa cilmente. Pessoalmente, esperava que tudo terminasse no dia seguinte, pois tinha confiança nas negociações do gover no francês e além disso o prazo do ultimato estava chegan do ao fim. Era apenas uma questão de horas. Acredito, po rém, que ninguém estava preparado para uma operação tão eficiente e rápida.

O êxito se deve a um conjunto de circunstâncias: rapidez, organização, efeito da surpresa, hora escolhida e conhecimen to do terreno.”

“...Hoje, analisando-se os argumentos pró e contra o ter rorismo, frequentemente se encontram sinais de ajudas seme lhantes, concedidas a pessoas que desejavam morrer ou ser mortas por determinadas causas.

Não seria a hora de todas as nações li vres estabelecerem entre si o acordo de fazer exceção ao seu Código Penal, permitindo a execução de terro ristas considerados culpados, para que no futuro pessoas ino centes não sejam condenadas a morrer como o foram os pas sageiros do Airbus, pelo simples fato de existirem? Isso só incita os sequestradores a retê-los como reféns, independentemen te de sua cidadania. Cada terrorista condenado que perma neça vivo na prisão aumentará a perspectiva de pessoas inocentes serem mortas no exterior”.

Sete horas depois da decolagem, os aviões já estão próximos de Entebbe. São 4 aviões Hércules C-130. Um outro avião, um Boeing 707, hospital aéreo, ficou no aeroporto de Nairobi, no Quênia. Quando os aviões reféns.direçãoisraelensesimediatamenteaterrissaram,osforamemaoprédiodosHouvetrocadetiroscomossoldadosugandenses.

Le Monde (França): Os dirigentes franceses não sabiam da intenção de Israel de executar uma operação de força em Entebbe. A atitude francesa no incidente não pode ser cen surada. A reserva de Paris demonstra o alívio experimentado

The New York Times (Estados Unidos): Israel efetuou um raid extraordinariamente ousado e corajoso para obter o que todos os mecanismos da diplomacia foram incapazes de con seguir. Contra os previsíveis e hipócritas gritos de violação da lei internacional, os israelenses têm todas as justificativas para adotar medidas para neutralizar o comportamento criminoso de piratas do ar que, rude e habitualmente, colocam em perigo vidas inocentes.

...Até o brilhante golpe desfechado pelos israelenses em Entebbe, que conseguiu impedir a chantagem dos terroristas e tam bém puni-los severamente, foram poucas as tentativas de enfrentar os aspectos moder nos do problema. No passado, a resposta usual era a guerra formal ou a diplomacia de canhoneira. Mas isso passou a equiva ler, cada vez mais, a ameaçar um mosqui to com um ...gostariamartelo.deacrescentar uma nota de sagradável no final deste artigo. Sempre me opus à pena capital. Mas é um erro maior ainda condenar inocentes desconhecidos ao risco de sequestro ou assassinato, simplesmente para servirem de peões num jogo des tinado a obter a liberdade de prisioneiros legalmente condenados, de terroristas que se acham presos. Era esse o objetivo dos seques tradores do Airbus da França.

A repercussão do resgate na imprensa internacional foi destaque na edição do Jornal do Brasil de 6 de julho de 1976.

Alberto Léo Jerusalmi z’l era jornalista e grande ativista da ARI Rio de Janeiro. Este texto foi escrito para a Devarim poucas semanas antes de seu falecimento precoce, em julho deste ano.

(Inglaterra): A ação israelense foi um admirável exemplo de colaboração internacional contra o terro rismo. O mundo civilizado se regozijará com Israel por sua façanha.TheTimes

Idi Amin Dada e o fanático coronel Kadafi, a ação do coman do israelense que resgatou os reféns no aeroporto de Entebbe surge como um lampejo de gallantry. A palavra inglesa não tem correspondente na língua portuguesa. Gallantry é mais do que coragem, é mais do que bravura, é mais do que heroís mo. É tudo isso junto e mais nobreza de alma, dom de si mes mo e, ainda, a nossa galanteria que é apenas parte disso tudo. Desde sábado, o mundo mudou. Desde sábado o fenôme no do terror adquiriu uma nova dimensão. O mundo, que permaneceu impassível na expectativa do massacre dos reféns em Entebbe, não está mais impassível depois da ação fulmi nante do comando israelense. O ato de gallantry desse grupo de homens foi uma bofetada na face dos irresponsáveis, dos cínicos e dos covardes.

Livro: 90 Minutos em Entebbe, de William Stevenson, Editora Difel, Jornais:1976.

O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Pau lo, Jornal da Tarde e Zero Hora

Le Figaro (França): Israel deu uma lição magistral, lição que consiste em utilizar a força contra a força. Israel nos en sinou em poucas horas - e na hora certa - que para os esta distas, como para os indivíduos, a verdadeira salvação resi de naDailycoragem.Express

Referências

O editorial do Jornal da Tarde, de São Paulo, na edição de 5 de julho de 1976: ...num mundo em que se proporcio na a dignidade de verdadeiros chefes de estado a homens como

Jornal do Brasil, editorial de 6 de julho de 1976: ...Fa tos como o do aeroporto de Entebbe, entretanto, deixam clara a necessidade de uma meditação séria em torno de novas es truturas para as relações internacionais. É preciso chegar-se a alguma espécie de acordo quanto ao tratamento a ser dado ao problema do terror. Que continuará a se proliferar enquanto houver nações, como a Uganda de Amin, dispostas a compac tuar impunemente com os seus objetivos.

(Inglaterra): A operação israelense, arriscada, produto de profundas deliberações, não deve ser vista necessa riamente como um precedente. Foi um brilhante ato de cora gem e imaginação, numa situação desesperadora, que mere ceu ter êxito, como o teve.

France Soir (França): Um belo feito militar é admirá vel por si mesmo, não importa suas implicações diplomáticas. Mesmo assim, não faltaram bobos que explicaram ser errado responder à violência com a violência.

Conclusão

pelas autoridades, liberadas, desse modo, da pesada responsa bilidade que assumiram.

Depois de uma semana bem tensa, Moshe Perets en cerrou seu diário: 10h00 da manhã de domingo, 4 de julho: Desembarca mos no Aeroporto de Lod. 11h30: Em casa.

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SHANÁ TOVÁ UMETUKÁ

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Sentindo-se aprisionado e expulso pelo pai, a submetê-lo a leis criadas uni camente para ele, Kafka encontrou na escrita a saída e, no judaísmo, fonte da sua profunda espiritualidade, horizontes comunitários para redefinir a relação pai e Suafilho.experiência de banimento dos domínios humanos repetia no interior da família aquela vivida pelos judeus através da história, num redobramento ao inverso do exílio diaspórico do seu povo. O mundo de Kafka é desprovido de pais que abençoam, e o filho alienado da Fé não saberia rezar o Kadish pelo descanso da alma paterna.

Estátua em homenagem ao escritor Franz Kafka em Praga, República Tcheca.

F

NOTAS SOBRE O JUDAÍSMO EM KAFKA

O judaísmo faltoso do pai os teria orfanado a ambos. Em negação do ro mance familiar, Kafka almejava um judaísmo que os reunisse, e o persegue em sua obra, toda ela um adeus sempre adiado, um prolongado despedir-se [do pai]. Na escrita, depositava-se e às queixas que os braços paternos não acolhiam. Alude ao deserto que o habita: “Ele não vive por sua própria vida, não pensa por seu próprio pensamento. Sente como se estivesse vivendo e pensando sob o domínio de uma família... Por conta desta família desconhecida... ele não pode ser liberto”. A família ancestral lhes propiciaria aceitação e reconhecimento mútuo na conti nuidade das gerações.

Em 1911, chegaram a Kafka as ansiadas raízes culturais do Leste europeu, na pessoa dos atores de teatro ídiche em tournée. Franz apaixona-se, saboreia peças, canções, atores, e se reconhece judeu ao ouvir canções em ídiche. Ativamente ajuda os refugiados de pogroms a obterem vistos de permanência.

Ilustrações: Dada Strauss

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Edelyn Schweidson

ranz Kafka (1883-1924), esta misteriosa luz de Praga de Gershom Scho lem, encontrou no judaísmo um eixo para sua vida identificada com a escrita, e um traço de união com as tradições ancestrais do seu povo. Ele as reavivou e reescreveu, tornando-se, com Freud, referência de uma tradição judaica futura.1

Strauss.Dadaartigo:doIlustrações

Ao filho queixoso, Hermann dissera que os outros pais apenas representavam o carinho demonstrado: as únicas relações verdadeiras entre pais e filhos seriam as bélicas. Em sua obra, Franz transfigura os embates entre os dois. Muitos são os personagens desterrados: o caçador Graco permanece vagando em movimento congelado, nem vivo nem morto, o viajante do balde, recusada a sua sobrevi vência, perde-se em espaços glaciais, o médico rural é con denado a um errar eterno, exposto ao mais inclemente dos tempos. Os protagonistas encontram-se em uma margi nalidade alegórica da condição judaica através da histó ria, e também daquela do autor, cuja experiência subje tiva de banimento e escravização fundou a sua escrita. A própria condição humana de exílio de qualquer revelação

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A religiosidade paterna seria um fantasma, um mero ritualismo a aparentar pertencimento a um grupo no po der. Sem nada transmitir, o pai cobrava do filho um ju daísmo sem espírito.

Oriundo de um gueto rural, a pobreza extrema impe dira uma infância2 a Hermann Kafka. O trabalho árduo e o casamento com Julie Löwy, de família abastada, per mitiram-lhe ingresso no meio dos judeus de língua alemã de Praga. Sem um centro próprio, o pai se fazia passar ora por alemão, ora por tcheco, de acordo com as conveniên cias e as necessidades de sobrevivência do momento. Im precava contra todos: alemães, tchecos, judeus, em nin guém confiando. Kafka tenta explicar a Milena: “...ameaças ameaçam os judeus...” .

Kafka não foi um pensador político. Denunciava as injustiças, e expôs a tirania paterna reveladora da estrutu ra de subjugação dos vulneráveis no império austro-hún garo. O modo dessa tirania manifestar-se em uma família judia de língua alemã em Praga é a sua experiência, que reflete aquela de escritores judeus nestas circunstâncias. Poeta, capturava as nervuras dos discursos do seu tempo, com atenção maior aos antissemitas, que incorporava em sua obra para testemunhar, responder e defletir. Hannah Arendt o considera um pária judeu, em marginalidade exposta às injustiças, a melhor percebê-las justo por sua condição de desterro, em oposição ao parvenu, em busca de nichos de poder.

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A descoberta recente de escritos até há pouco excluídos dos diários revela a simpatia ativa de Kafka pelo sionismo cultural, antes desconhecida. Em 1916, escrevera a Felice que o sionismo nunca viria a ser causa de entredesentendimentospessoasdeboavontade.

estaria sendo evocada nessa obra em que um mundo de leis inumanas se apresenta ininterpretável às suas vítimas.

“Este não é o meu pai que me fala assim... meu pai ver dadeiro ... ele me abraçaria....”, reage o filho a insultos paternos em Uma Lenda Urbana (1911). Se há influên cia gnóstica em Kafka, suas origens estariam nesta estra nheza inquietante do filho que não autoriza ao pai uma paternidade.Dirige-se a uma jovem que aconselhara a emigrar para a Palestina: “[imagine-se] uma criança que se dei xa brincar sozinha, e que se lança a uma aventura incrí vel, como subir numa cadeira ou algo assim. Mas o pai que ela esqueceu está atento, e os prospectos são melhores do que parecem. O pai pode ser, por exemplo, o povo judeu”. Acrescenta: “Isto ajuda a explicar a tenacidade da rebel dia diante da indiferença ... que parece derivar de alguma força maior ...” (1923). O apego do escritor de Praga ao judaísmo e uma certa forma de fé na Providência encon tram aqui uma rara expressão direta.

O judaísmo sonhado degelaria o germanismo repres sor dos afetos, propiciando raízes protetoras.

Em universos gelados entre a vida e a morte, Kafka sente a nostalgia de uma família que os seus não habitam.

A rebelde heroína de Josefina a Cantora ou o Povo dos Ratos também se enganava ao pensar que seu povo não a compreendia: “... o povo cuidou de Josefina como o pai de um filho que lhe estende a mão pequenina”. No entanto, a

cantora queria ser admirada, e lhe repug naria a ideia de precisar de cuidados. Aqui encontramos uma das múltiplas ambigui dades de Franz quanto ao pertencimento a um nós de qualquer ordem.

Conjectura ser a língua alemã o em pecilho para amar sua mãe: “... a mãe ju dia não é uma Mutter, [palavra que] con tém a frieza e o esplendor germânicos. Cha mada de Mutter, a mãe judia parece cômi ca ... apenas as lembranças do gueto ainda mantêm a família judia, e a palavra Vater tampouco designa o pai judeu...”.

Escreve a Milena (1920): “... Se me oferecessem a possibilidade de ser quem eu quisesse, gostaria de ser um judeuzinho do Leste europeu, despreocupado num canto da sala enquanto seu pai conversa no centro com outros homens e a mãe aco moda os pacotes da viagem ...” A ocasião era a chegada de judeus russos foragidos dos pogroms a Praga, onde aguar davam o visto americano para emigrar.

Apesar das ambiguidades, Franz en controu no judaísmo os cuidados reclamados do pai em projetos comunitá rios do sionismo cultural, continuado res do socialismo libertário que desde cedoNoprofessou.entanto, em 1914 escrevera em seu diário: “Que tenho em comum com os judeus? Sequer tenho algo em comum co migo mesmo, e deveria ficar quieto num canto, contente com poder respirar”.

As ambivalências do escritor de Pra ga em relação ao judaísmo vão de par com a sua perseve rança em busca das raízes e dos horizontes judaicos. Seus sonhos de emigrar para a Palestina não se concretizaram, mas seu projeto de uma comunidade agrícola para trabalhadores sem posses continha em germe os princípios que nortearam os kibutzim. Ali advogados não seriam permitidos, para que palavras verdadeiras pudessem circular (Kafka era advogado). Que permanecesse no deser to, haveria uma Canaã para os demais.

Kafka descreveu o desespero dos escritores judeus de língua alemã: com as patas traseiras coladas no judaísmo dos pais, buscam com as dianteiras um novo terreno que não encontram, sob o olhar complacente dos pais... Pior de tudo era este olhar paterno desejoso da assimilação dos filhos... Resultavam impossibilidades: de não escrever, de escrever

A descoberta recente de escritos até há pouco excluí dos dos diários revela a simpatia ativa de Kafka pelo sio nismo cultural, antes desconhecida. Em 1916, escrevera a Felice que o sionismo nunca viria a ser causa de desenten dimentos entre pessoas de boa vontade. Mais do que isso: o sionismo seria o umbral para algo muito maior, as pes soas a cuidar. Crítico do sionismo político em seus aspec tos dogmáticos e soberbos em relação aos outros grupos, o sionismo cultural, com sua abertura a todos, como o teatro ao ar livre de Oklahoma, pareceu-lhe a ponte en tre as origens ancestrais e uma língua, o hebraico, a rea vivar e Comreflorir.Ottla, sua irmã caçula, fizera planos de irem à Palestina: ele seria encadernador de livros na biblioteca da Universidade de Jerusalém, onde seu amigo de infân cia Hugo Bergman era o diretor e o receberia. Tecera so nhos com Dora Dymant, jovem de família hassídica do Leste europeu, seu último amor, de abrirem um restauran te em Tel Aviv: ela cozinharia, ele seria o garçon. Sua saú de o impediu, mas dedicou-se a estudar o hebraico, cor respondeu-se nessa língua e, já com dificuldades de loco moção, frequentou com Dora a Academia de Estudos Judaicos em Berlim.

Sua ida a Berlim, quando de fato deixa a casa paterna, parece representar uma ida à Palestina: separava-se do pai e casava-se (ausente à cerimônia, por recusa do rabino do pai de Dora), algo do que antes se julgara incapaz, preen

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O escritor de Praga revelou e contestou o discurso an tissemita que acusava os escritores judeus de poluírem a língua alemã: seriam os escritores judeus... a remexer e rea vivar as brasas dentre as cinzas do alemão burocrático do im pério. Encontram-se também em sua obra distintas perso nificações do antissemitismo vigente: exemplo disto se en contra em Comunicação a uma Academia, onde o prota gonista imita os europeus, e seria um impostor.

As raízes chegam a Praga

Conta-lhes a história do ídiche poroso às línguas que o percorrem. Eles compreenderão o ídiche muito mais do que imaginam. Ouvindo o ídiche, não mais reconhece rão sua tranquilidade anterior: não sentirão mais medo

do ídiche, reconhecida a sua verdadeira unidade, mas de les próprios, por descobrirem nada mais terem em comum com eles mesmos. Este medo seria intolerável não trouxes se com ele uma nova autoconfiança que poria fim aos seus secretos sentimentos de inferioridade, e suas ilusões de que tudo estava tranquilo em suas vidas. Convida-os a se apro ximarem dessa língua que lhes seria materna não tivessem interposto o medo.

Em um canto do diário, Franz anota que seus pais não compareceram. O novo eixo relacional oferecido ao pai, baseado em uma tradição e língua que os reuniria, havia sido recusado. No entanto, Franz omite que também pro vocava o pai com um judaísmo das origens, do qual este se afastara na ilusão de proteger-se e à sua família. Amea ças ameaçavam.

Em 1911, chegaram a Kafka as ansiadas raízes culturais do Leste europeu, na pessoa dos atores de teatro ídiche em tournée. Franz apaixona-se, saboreia peças, canções, ato res, e se reconhece judeu ao ouvir canções em ídiche. Es tuda a história judaica, suas tradições religiosas e seculares, folclore e criações literárias. Ativamente ajuda os refugia dos de pogroms a obterem vistos de permanência, instiga Felice e amigos a lecionarem para os filhos desses refugia dos, formula programas para as aulas. Organiza um recital de poemas em ídiche e apresenta essa língua para uma plateia de judeus assimilados de Praga.

em alemão, de não escrever em alemão e... a de escrever...

Submergido por motins antissemitas incensados por acusações de assassinatos rituais nas ruas de Praga, Franz escreve a Milena ser vergonhoso permanecer onde não se é querido, como uma barata encontrada no banheiro, e en fatiza o chamado a emigrar.

Em discurso elegíaco ao ídiche – língua feita não só das palavras, como também de sua música hassídica, da emoção, dos gestos, e do próprio ser do poeta do Leste europeu que recita –, Kafka endereça-se ao medo, aparen te nos semblantes da sua plateia, desse idioma que revela suas origens comuns com seus irmãos dos guetos do Les te. Confronta-os com a repressão de suas origens no ídi che. Descreve suas vidas: “... Tudo segue seu curso calmo. Vivemos em uma harmonia virtualmente alegre, compreendemo-nos quando necessário, dispensamos a presença um do outro quando nos convém e nos compreendemos mesmo en tão”. O ídiche romperia essa harmonia alegre que pretendem ser as suas vidas.

Sionismos

A Próxima Aldeia é um conto míni mo: Meu avô costumava dizer: “A vida é surpreendentemente curta. Em minha re cordação, comprime-se tanto que mal con sigo compreender, por exemplo, que um jo vem possa decidir-se a cavalgar até a pró xima aldeia sem temer – deixando de lado incidentes infelizes – que o tempo de uma vida normal e feliz seja suficiente para uma tal viagem”.

Gershom Scholem percebe em Kafka um fazer-se ponte entre as tradições ca balísticas lurianas e o sionismo e atribui, àquele a quem denominava misteriosa es trela de Praga, os seus escritos sobre a Ca bala. Walter Benjamin contestava Scho lem quanto à religiosidade de Kafka, por pensar que a chave dos seus escritos esta ria no humor. Outros críticos aventaram este encontro entre tradição e futuro refe rir-se apenas ao domínio linguístico, com a recriação de uma língua judaica, ídiche ou hebraico. Talvez houvesse em Kafka como em Benja min, a quem influenciou, o desejo de restauração de uma linguagem adâmica, que prescindiria de referir-se apenas obliquamente ao além do mundo sensorial por só conhe cer relações de posse. A linguagem adâmica, sem lugar para relações de posse, despertaria a natureza adormecida ao nomear todas as coisas com o seu nome verdadeiro.

chendo assim um ditame central da tradição judaica. Sugere a seu amigo Robert Klopstock mudar-se para Berlim, perto, bem perto dos judeus…

Com Ottla, sua irmã caçula, fizera planos de irem à Palestina: ele seria encadernador de livros na biblioteca da Universidade de Jerusalém, onde seu amigo de infância Hugo Bergman era o diretor e o receberia.

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Kafka escreveu que ele era uma me mória que se fizera viva. Na tradição ju daica, a rememoração (Walter Benja min) é um reviver no presente do pas sado, uma vez que a memória para o ju daísmo é um modo normativo e não histórico (Yosef Yerushalmi). Kafka per gunta se o sopro da heroína de Josefi na a Cantora e o Povo dos Ratos – que ela reputava uma grande arte – não teria sido apenas uma memória ainda ela em vida, e conclui que logo Josefina en contrará a redenção na morte e será es quecida, como legiões dos seus irmãos.

Memória judaica

Errâncias

Ao perceber intimações de uma nova doutrina, uma Kabala, que perseguiria não surgisse o sionismo, Kafka acrescen tou que seria preciso um gênio inimaginá vel para enraizar-se novamente nos velhos séculos, ou recriar os velhos séculos sem de finhar com eles, mas, ao contrário, começar só então a florir.

A narrativa do avô abre a perspectiva de uma viagem sem chegada, que é, simultaneamente, a viagem às ori gens de Franz em busca do pai. Seria nesse espaço ma ravilhoso da escrita que a reunião sonhada teria podido acontecer.Ojudaísmo em Kafka está presente de maneiras in trincadas e múltiplas em tudo o que escreve. Influên cias bíblicas, de lendas e parábolas hassídicas, da mís tica judaica e do sionismo nele se encontram. Sua pro funda espiritualidade se revela sobretudo em seus Afo rismas, onde se refere ao Indestrutível que seria o nosso cerne, um atributo humano divino embora secular, e que nos une a todos através de um vínculo primevo. Ele seria uma vulnerabilidade ao sofrimento humano, sendo que a única dor que podemos nos poupar é aquela de recusar-nos a uma dor. A espiritualidade de Kafka prescinde de referências a uma divindade, e nela não há, como na

A religiosidade de Kafka encontra-se na sua aliança com a escrita, através da qual vivenciou experiências ex tremas, como ataques às últimas fronteiras terrestres e o sal to fora das linhas dos assassinos. Ao mesmo tempo, as ques tões humanas e comunitárias lhe foram sempre centrais –o seu Nada da Revelação, percebido por Scholem, teria no seu avesso, para Benjamin, um porvir comunitário. Daí

Ao despistar as múltiplas interpretações que propõe através de camadas de argumentações midráshicas, Kafka convida e impede leituras totalizantes e ideologicamente anexadoras da sua obra.

sonhar comunidades agrícolas socialistas e trabalhos manuais.

2. Esta era uma queixa paterna, que comparava a vida sem preocupações dos filhos com aquela que lhe coubera viver.

Franz recusava a interpretação freu diana do impulso religioso revelar um an seio pelo pai, mas, comenta Bloom, nun ca chegou a explicar claramente o que sig nificava com o indestrutível.

A revelação teria sido perdida, ou os estudantes não saberiam mais decifrá-la, porém iluminam-se os acusados, os lou cos, os tolos, os bichos, os seres feitos de ar, os estudantes. Os mais vulnerá veis. No teatro ao ar livre de Oklahoma, onde todos são bem-vindos, e na comu nidade agrícola judaica, entre os jovens e as crianças, quando Kafka sentiu-se no limiar da felicidade, encontram-se vis lumbres de chegadas. Benjamin percebe a infinita esperança que Kafka diz não existir para nós como a razão da sua ale gria tranquila. Reconhecendo-se fracassa do, tudo passou a dar certo para ele, como num sonho. Bloom vê Kafka e Freud a re definir a tradição judaica do futuro, ambos disputando a autoridade paterna. Kafka considerava Freud o Rashi da angústia judaica; Freud, tivesse lido as cartas de amor de Franz, iria à desforra, porque nunca houve amante mais angustiado e desastrado. Se o humor é a chave da sua obra, é que talvez sem humor não houvesse como perceber tanto. Benjamin recusa-lhe dons proféticos: quem ouve com tamanha acuidade os rumores da tradi ção, nada vê. Iris Bruce qualifica: o autor de Praga tam bém ouvia atentamente os discursos do seu tempo. A ló gica do que descreve já contém em esboço os desenvol vimentos funestos. Em A Toca, pressentiu o resfolegar da besta. Seu judaísmo seria seu modo de ser humano na sua manifestação mais vulnerável em seu tempo, daí seu Kafkauniversalismo.pediua Brod que destruísse sua obra. Assim como temera por Odradeck, talvez temesse o futuro dos seus escritos. As Preocupações de um Pai de Família refe

1. Pouco conhecidos e divulgados entre nós, os profundos liames do autor de Praga com as tradições ancestrais eram também expressão do seu universalismo na de núncia de injustiças: o povo judeu vem sendo paradigmático de injustiças sofridas através da História.

Edelyn Schweidson é doutora em Psicologia Clínica pela New School for Social Research, Nova York, psicóloga clínica com es pecialidade em clínica infantil, psicanalista, pós-doutorado por bol sa do CNPq para pesquisa-ação junto a meninos de rua e suas narrativas ficcionais. Organizadora e co-autora de Memórias e Cin zas, capítulos em livros e artigos sobre Walter Benjamin, Primo Levi, Trauma como um Acordar, discursos de incitação ao terro rismo e suas plateias, discurso de Kafka sobre o ídiche, violência ao imaginário infantil e outros, em publicações científicas nacio nais e estrangeiras.

Um fim ou um começo: Kafka e Freud iniciaram uma nova escritura ju daica quando o extermínio de todas as suas raízes e florações era ensaiado. Am bos autores são fins e começos, ambos re feridos a um pai cuja autoridade contestaram. O empenho de Kafka em dar voz às literaturas menores e às suas reivindica ções nacionais dentro do império austro-húngaro foram também razões para bus car unir as raízes a um novo florescimen to, ou restauração dos vasos partidos. Ao mesmo tempo, sonhador rebelde.

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rem-se ao inacabado daquilo que gera, e os riscos de interpretações destrutivas.

O judaísmo em Kafka está presente de maneiras intrincadas e múltiplas em tudo o que escreve. Influências bíblicas, de lendas e parábolas hassídicas, da mística judaica e do sionismo nele se encontram.

tradição judaica, preocupações com uma outra vida. Em relação ao judaísmo, es creve: ... não alcancei, como os sionistas, o último fio do xale de orações judaico, ago ra voando para longe de nós. Sou um fim, ou um começo...

Notas

Em Josefina a Cantora, como em tudo o que escreve, o povo dos ratos é e não é o povo judeu, e ele é e não é Josefina, a ratinha cantora. Com ironia agridoce, ele descreve este povo cuja árdua vida ameaçada de extermínios não permitira uma infância, e que só podia dar, e nada rece ber. O povo protegia Josefina, uma rebelde que não desejava senão que admiras sem sua arte, e que a reconhecessem como a protetora do seu povo. Porém, seus so pros e silvados colocavam os seus a desco berto de ataques.

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As fotografias desta reportagem são do memorial ao genocídio armênio em Yerevan, Armênia.

DE MUSA DAGH A MASSADA

Stefan Ihrig

Werfel foi um escritor alemão, nascido em Praga, de uma família judia. Seu romance de maior sucesso, Os Quarenta Dias de Musa Dagh, é um monumen to literário à sorte dos armênios no genocídio que teve lugar durante a Primeira Guerra Mundial. Ele relata o destino das comunidades armênias do Sul da Tur quia, que fugiram para a região montanhosa em torno da Montanha de Moisés (Musa Dagh), onde lutaram contra o exército do Império Otomano que avan çava. Os armênios sabiam o que os aguardava: genocídio. Aguentaram por 40 dias na versão de Werfel (na realidade 53 dias) e foram finalmente resgatados por navios de guerra franceses e britânicos quando as munições e os suprimentos estavam perto do fim e em seguida evacuados para Port Said no Egito. Este longo romance é uma história de matanças, desolação e sofrimento, mas tam bém de Olhandoesperança.paratrás, parece absurdo fazer uma conexão entre este romance, o Terceiro Reich e o Holocausto. Isto ocorre em parte porque até agora sabíamos

inspirou os lutadores do gueto de Varsóvia e a resistência sionista

U

Os Quarenta Dias de Musa Dagh de Franz Werfel é realmente uma poderosa advertência, não só contra o genocídio, contra políticas extremas e contra estereótipos raciais, mas especialmente contra Hitler e os nazistas. Mas por que um autor de língua alemã usaria o genocídio armênio para prevenir a Alemanha de Hitler e dos nazistas?

m apinhado lobby de hotel em Breslau, final de 1932. Pessoas se amontoavam para ver e escutar “a sensação do momento”: Adolf Hi tler, que estava em turnê pela Alemanha ao final de sua jornada em direção ao poder. Um dos espectadores no Breslau Hotel era Franz Werfel, que ficou desconcertado ao ver Hitler em pessoa. Indagado por sua es posa sobre sua impressão pessoal sobre Hitler, Werfel relutantemente admitiu: “Infelizmente não foi tão ruim”. E isso só tornou o seu projeto do momento ainda mais urgente: prevenir a Alemanha contra Hitler.

Como um romance de Franz Werfel sobre o genocídio armênio

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Werfel disse que os armênios eram seus “judeus prepostos”.1 Seus leitores entenderiam o paralelo entre a dita dura dos jovens turcos e a ditadura nazista, e entre o “an tiarmenialismo” dos turcos e o antissemitismo dos nazis tas. Assim eles veriam o genocídio dos armênios como algo pronto a ser aplicado ao caso dos judeus alemães. Embora seja uma suposição comum crer que os alemães não sabiam em 1932/1933 que a ascensão de Hitler poderia significar genocídio, Werfel (e outros de seus contemporâneos ale mães) tinha uma visão bastante divergente.

Há muito esquecido pela história, um grande e impor tante debate sobre o genocídio ocorreu na Alemanha após sua derrota na Primeira Guerra Mundial.

Durante quatro anos a opinião pública alemã esteve às voltas com o que tinha acontecido aos armênios durante a guerra, quando a Alemanha fora próxima aliada do Im pério Otomano. Muitos militares serviram em posições de topo em território otomano atuando como uma espécie de facilitadores da violência otomana contra os armênios des de a década de 1890.

muito pouco sobre a interligação das histórias judaica e armênia no contexto da história alemã e sobre o papel do geno cídio armênio antes da Shoá. O foco nos horrores singulares da Shoá, em combina ção com o negacionismo da Turquia, ge rou a impressão de haver imensas distân cias, no tempo e no espaço, entre os dois genocídios. Mas, para pessoas como Wer fel, havia grande proximidade e não afas tamento. Ao final de 1932, ele se apressa va a terminar seu romance armênio, que ele esperava se tornar um grande alerta para a Alemanha a respeito do que Hitler seria capaz.

Mas este esquecido debate sobre o genocídio era apenas parte do cenário histórico para a advertência de Werfel. A outra parte do que teria levado Werfel a pensar que os ar mênios poderiam servir como seus “judeus prepostos” era a tradição alemã de perceber os armênios como os (verda deiros) “judeus do Oriente”. Desde os massacres sob Ab

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Werfel escrevia contra Hitler e contra o relógio; e ele perdeu duplamente. Hitler foi nomeado chanceler no início de 1933, apenas algumas semanas após os dois homens se cruzarem em Breslau. Em maio de 1933, superexcitados nazistas (estudantes, tropas de assalto, bibliotecários e outros) empilharam livros de autores alemães “não patriotas” e atearam fogo para comemorar a vitória de um “novo es pírito”. Isso sinalizou muitas coisas, uma delas, é claro, que as ideias representadas pelos autores e por estes livros não eram bem-vindas na Alemanha. Os livros de Werfel es

Werfel começou a escrever em 1932. Nesse mesmo ano ele fez as primeiras leituras de seu ainda inacabado manuscrito e é por isso que ele estava em Breslau quando viu Hitler no hotel. Hitler estava lá para arrastar a Alema nha atrás dele, enquanto que Werfel estava lá para prevenir a Alemanha contra Hitler e suas ideias. Naquela noi te, ele havia lido publicamente o capítulo de seu livro em que, durante o genocídio, o maior defensor dos armênios, o pastor Johannes Lepsius2, pede a Enver Pashá, o minis tro otomano da guerra, que intervenha em favor dos armê nios, fazendo cessar a tragédia em andamento.

tavam entre eles. Sua grande advertência contra Hitler, Os Quarenta Dias de Musa Dagh, não estava concluída, muito menos publicada. Parecia improvável, se não impossível, que seu romance armênio viesse a atingir o público-alvo alemão.

Em 1919, o ministério do exterior alemão publicou uma coleção de documentos sobre o genocídio armênio, fornecendo todos os detalhes de sofrimento e morte. A coleção foi planejada para exonerar a Alemanha das alega ções de que ela havia instigado o genocídio armênio. Em bora o termo “genocídio” ainda não fora inventado, a publicação impulsionou um debate público sobre a gravida de, a intenção, as ramificações e motivações desse “assassi nato” ou “aniquilação de um povo”. O assassinato de Ta lat Pashá, ex-ministro otomano do interior e grão-vizir em Berlim em 1921, revitalizaria ainda mais esse debate, que continuou na Alemanha até o Tratado de Lausanne, o qual estabeleceu a moderna Turquia em 1923.

Os Quarenta Dias de Musa Dagh de Franz Werfel é realmente uma poderosa advertência, não só contra o genocídio, contra políticas extremas e contra este reótipos raciais, mas especialmente con tra Hitler e os nazistas. Mas por que um autor de língua alemã usaria o genocídio armênio para prevenir a Alemanha de Hitler e dos nazis tas? Como ele poderia supor que aquela seria uma narrati va eficaz e que ele estaria fazendo bom uso de seu tempo?

Quando Os Quarenta Dias de Musa Dagh foi publicado no final de 1933, apenas alguns leitores alemães tiveram oportunidade de comprar o livro antes que fosse banido e as cópias apreendidas.restantes

Perante esse cenário, fazia sentido a Werfel supor que os alemães iriam entender sua advertência. Efetivamente, numa pequena resenha sobre as leituras de Werfel no in verno de 1932, um crítico considerou que Lepsius não es tava falando com Enver Pashá, mas sim com o público da palestra, com os alemães.

O livro de Werfel foi traduzido para o hebraico já em 1934. Numa resenha anterior à sua publicação pelo Yishuv

Contudo, como advertência para os alemães contra os perigos de Hitler e do nazismo, a novela armênia de Wer fel foi quase que totalmente ineficaz. Quando, surpreen dentemente, Os Quarenta Dias de Musa Dagh foi publica

dul Hamid II na década de 1890, o público alemão tinha se acostumado não só a desculpar a violência contra os ar mênios por razões de política externa e de realpolitik, mas também devido à percepção da diferença racial: os armênios nunca foram entendidos como um outro povo cris tão, mas sim como sediciosos, traiçoeiros, pertencentes a uma remota raça parasitária. O “antiarmenialismo” ale mão, que tomou forma na década de 1890, parece uma cópia fiel do antissemitismo que também se tornou impor tante naqueles anos. Nas quatro décadas anteriores ao ro mance de Werfel sobre o genocídio armênio, os jornalis tas, diplomatas e escritores de manuais raciais visualizavam os armênios como equivalentes ou piores que os judeus.

Os leitores de Werfel, descobriu-se, não eram alemães, mas judeus. Seu romance viria a desempenhar um papel significativo na vida e na identidade judaicas na Europa e na Palestina nas décadas de 1930 e 1940, rivalizando com relatos da própria Shoá. O historiador israelense Yair Au ron, que tem trabalhado extensivamente sobre o impacto do romance, aponta que “o leitor deste romance extraor dinário vai achar que é difícil acreditar que o livro foi es crito antes do Holocausto”.

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do no final de 1933, apenas alguns leitores alemães tive ram oportunidade de comprar o livro antes que fosse bani do e as cópias restantes apreendidas. Uma das muito pou cas pessoas dentro do Terceiro Reich que obteve uma cópia foi um jovem alemão “Flakhelfer” (ajudante da Força Aé rea), Karl H. Schlesier. Ele lembra em suas memórias que, para o seu aniversário de 17 anos, ele recebeu Os Quaren ta Dias de Musa Dagh de presente de seus pais – seu pri meiro e único presente! Ele sabia que tinha sido difícil ob tê-lo pois os livros de Werfel tinham sido queimados e ba nidos. Sua mãe o havia obtido de um bibliotecário que se cretamente não os destruiu.

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judeus nos guetos nazistas devorando as histórias de resistência, esperança e salva ção de Werfel. Antes do início da guerra, o livro já havia sido traduzido para o po lonês e o ídiche. Existem muitos testemu nhos vindos de guetos da Europa Orien tal que mostram como sua distribuição e influência cresceu depois do início da guerra. Um desses testemunhos veio de Marcel Reich-Ranicki, de longe o mais famoso crítico literário alemão das últi mas décadas. Ele recorda seu tempo de prisioneiro do Gueto de Varsóvia onde o livro “teve um sucesso inesperado no gueto, sendo passado de mão em mão”. Testemunho mais detalhado vem de William Mi shell, que descreveu a vida no Gueto de Kovno, na Lituâ nia, em 1942:

Mais tarde, já durante a Segunda Guerra Mundial, o li vro obteve sucesso imediato na Palestina. O famoso Africa Corps, de Erwin Rommel, parecia invencível e o Yishuv te mia uma possível invasão nazista. Uma das formas de ação consideradas pela resistência judaica consistia em concentrar todas as forças no Monte Carmel, e de lá resistir aos exércitos do Terceiro Reich. O plano teve muitos nomes: “Programa do Norte”, “Plano de Carmel”, “Plano de Ma sada” – e também “Plano Musa Dagh”. Como planeja vam se defender em uma montanha, a história dos armê nios defendendo-se numa montanha serviu de inspiração direta. Yair Auron relata como Meir Batz, um dos funda dores das milícias de autodefesa judaica, Haganá e Palma ch, foi questionado se ele tinha lido ‘Os Quarenta Dias’. Quando ele respondeu que tinha, foi-lhe dito: ‘Queremos transformar o Monte Carmel no Musa Dagh do judaísmo palestino’. Na mesma noite, em uma patrulha, Batz con jecturava a respeito de “uma Musa Dagh Judaica a assegu rar o futuro do Yishuv e garantir sua honra”.

Com relação ao gueto de Sosnowiec, Inka Wajsbort re corda o quanto o livro era lido por ela e por outros membros adolescentes do Hashomer Hatsair: “O livro passava de mão em mão. Ele me cativou completamente. Duran te quatro dias inteiros eu fiquei absorta no livro, sem conseguir me afastar dele. Eu mesma estive em Musa Dagh; eu estive prisioneira; eu fui um dos armênios condenados à morte. Se levantei os olhos do livro foi apenas para ou vir o grito – Mamãe, como isto pode ser verdade? O mun do sabia e manteve-se em silêncio. Não era possível que crianças de outros países iam ao mesmo tempo para a es cola, que as mulheres se enfeitavam, que os homens cui

Assistíamos à maioria dos concertos e líamos muitos livros no gueto. Um deles era Os Quarenta Dias de Musa Dagh, de Franz Werfel, que nos deixou uma impressão indelével. O massacre sangrento e cruel de mais de um milhão de armênios pelos turcos em 1915, com pleno conhecimento do mundo in teiro, lembrou-nos do nosso destino. Os armênios morriam de fome, tiros, afogados, torturados até a exaustão e abandona dos no deserto para morrer de insolação e desidratação. Nós comparamos o seu destino com o nosso, a indiferença do mun do para com eles, e o abandono completo das pessoas nas mãos de um regime bárbaro, tirânico. Concluíamos que, se o mun do não veio ao resgate dos armênios que eram cristãos, como poderíamos nós, os judeus, esperar ajuda? Sem dúvida Hitler sabia tudo sobre esses massacres e sobre a negligência crimi nosa por parte do mundo livre, e estava convencido de que ele poderia agir com impunidade contra os judeus indefesos.

O romance viria a desempenhar um papel significativo na vida e na identidade judaicas na Europa e na Palestina nas décadas de 1930 e 1940, rivalizando com relatos da própria Shoá.

Para além do Yishuv, o livro Os Quarenta Dias de Musa Dagh tornou-se parte direta da história da Shoá, com os

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(a comunidade judaica na Palestina), a partir de extratos publicados no exterior, Dov Kimchi escreveu, entre outras coi sas, que “nós leitores judeus ... vemos nes te livro sobre os armênios a nossa própria tragédia”. Um ano mais tarde, em 1934, uma outra avaliação, por R. Seligmann em Hapoel Hatsair, expressou sentimen tos semelhantes, observando que “o livro é muito interessante para o leitor em ge ral, mas o leitor judeu vai achar que é de especial interesse. O destino deste grupo armênio recorda, em vários detalhes importantes, o desti no do povo de Israel. O leitor judeu descobrirá vários mo tivos familiares, tão bem conhecidos para ele a partir da vida e da história de seu povo”. Em 1936, Moshe Beilin son escreveu uma análise mais crítica, irritado pelo fato de um judeu erguer tal monumento ao sofrimento de outro povo. Mas ele, ao menos parcialmente, entendeu as inten ções de Werfel: “Isto não é mais do que uma casca, pois na verdade este é um livro judaico, não só porque foi escri to por um judeu, mas num sentido menos abstrato, mais simples e concreto, o autor fala de nós, do nosso destino, da nossa luta”.

2. Johannes Lepsius (15 de dezembro de1858, Potsdam, Alemanha – 3 de fevereiro de 1926, Merano, Itália) foi um missionário protestante, orientalista e humanista com interesse especial na prevenção do genocídio armênio pelo Império Otomano.

muito jovens, Yossi e seus amigos leram o livro de Franz Werfel, Os Quarenta Dias de Musa Dagh, sobre a revolta armênia nas montanhas da Anatólia. Eles encontraram nesse livro um código moral. Escondido dentro dele, o livro continha dor e bra vura, lealdade e isolamento, e ganhou os corações dos jovens judeus da Palestina”. Aparentemente, quando ele partiu em sua viagem para salvar e resgatar sobreviventes do Holocausto embalou apenas algumas coisas para co mer e “três itens para ‘reforço ideológico’ – a Bíblia, os poe mas de Hannah Senesh e Nathan Alterman e Os Quaren ta Dias de Musa Dagh de Franz Werfel”. Navegando à noi te ao longo da costa da Palestina, Harel ficava no convés a olhar para fora, para os picos de Musa Dagh, enquanto refletia sobre o seu papel na saga de sobrevivência judaica. Depois do Holocausto o romance de Werfel recuou para o fundo da consciência do mundo; tornou-se, talvez de novo, apenas uma história armênia. Mas, como Beilin son escreveu em 1936, ele também era um livro judaico. Seu papel como um aviso presciente contra Hitler e como inspiração para os judeus que lutaram foi esquecido. Isto é, em parte, devido à forma como lembramos e contextualizamos o Holocausto, bem como ao sucesso do nega cionismo turco. Ambos em conjunto têm reforçado a im pressão não histórica de uma grande distância no tempo e no espaço entre o genocídio armênio e a Shoá. Cem anos mais tarde, é tempo para uma leitura mais integrada das duas grandes tragédias do século 20.

1. “Stand-in Jews” no original – nota do tradutor.

davam de suas vidas como se nada estivesse acontecendo”.NoguetodeVilna, na Lituânia, tam bém, o livro teve um impacto similar, como lembraram muito bem duas bi bliotecárias. Uma delas, Dina Abramo wicz, escreveu que era um dos livros mais populares na biblioteca do gueto, e ela ex plicou porque: “A ideia de uma aniquila ção total de um grupo racial, o método de destruição, a impotência das vítimas e a futilidade dos es forços diplomáticos de resgate mostravam semelhança tão surpreendente para com a nossa situação que líamos o livro com um estremecimento, percebendo-o quase como uma visão profética a revelar para nós nosso destino inevitável”.

Traduzido do inglês por Daniel Kovarsky. Este texto foi publicado originalmente na revista eletrônica Tablet, em 18 de abril de 2016. Sua tradução e reprodução em Devarim foi expressa e gentilmen te autorizada pelo autor.

Quando os lutadores da resistência no gueto de Bialystok debatiam o que fazer, consideravam três opções: revolta, salvamento ou fugir para lutar nas florestas.

Mesmo após a guerra, o livro continuou a incutir um senso de urgência, heroísmo e esperança. Yossi Harel, o ho mem que, também com o navio Exodus, traria mais de vin te mil sobreviventes da Shoá, furando o bloqueio britânico da Palestina, foi um dos cativados pela história de Wer fel. Como seu biógrafo Yoram Kaniuk mencionou, “ainda

Quando os lutadores da resistência no gueto de Bialys tok debatiam o que fazer, consideravam três opções: revol ta, salvamento ou fugir para lutar nas florestas. Herschel Rosenthal depôs: “Nosso destino está selado. Portanto, ficamos com apenas uma possibilidade, a organização de re sistência coletiva no gueto a qualquer preço; o gueto seria nosso ‘Musa Dagh’, e para adicionar um capítulo de hon ra para a história do gueto de Bialystok e para a história de nosso movimento”. Da mesma forma, Yair Auron cita Yitshak Zuckerman, um dos líderes do gueto de Varsóvia, conforme um de seus colegas: “Quando ele queria nos es clarecer melhor dizia que era impossível entender a revol ta do gueto de Varsóvia sem ler Os Quarenta Dias de Musa Dagh de Franz Werfel”.

Stefan Ihrig é historiador. Ele é Polonsky Fellow no Instituto Van Leer em Jerusalém e autor dos livros Justifying Genocide: Germany and the Armenians from Bismarck to Hitler, publicado em 2016 pela Harvard University Press, e Atatürk in the Nazi Imagination, publica do em 2014 pela Harvard University Press.

Mas nem todos preferiam entender a história de Werfel de maneira tão pessimista. Para muitos judeus era uma po derosa história de esperança e resistência contra um desti no quase impossível. A colega de Abramowicz na bibliote ca, Rachel Margolis, mais tarde uma lutadora da Resistên cia, escreveu: “Obras de maior procura eram as que des creviam algo semelhante ao que nos ocorria, por exemplo, Os Quarenta Dias de Musa Dagh sobre a perseguição e o massacre dos armênios na Turquia em 1915. As pessoas se inscreviam na lista de espera para esse livro”.

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Notas

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ITZCHAK BELFER

Contudo, eis que 93 anos depois encontramos o outrora pequeno Itzcha kale de Varsóvia em Tel Aviv, irradiando uma alegria contagiante e exultando pela vida criativa e cheia de realizações que lhe coube. Uma história de supera ção? Sem dúvida. Mas com uma surpreendente “pegadinha”. Pois é justamente a sua infância em Varsóvia que evoca suas mais doces lembranças e é sobre ela que ele conversa com mais gosto. E Itzchak é um falante contumaz!

Janusz Korczak (Varsóvia 1878 – Treblinka 1942) é o pseudônimo do mé dico pediatra Henryk Goldszmit. Ele foi um dos principais pedagogos dos nos sos tempos e uma das mais dramáticas perdas provocadas pela Shoá. Os revo lucionários orfanatos coordenados por ele se baseavam num método de edu cação fundado na construção da autonomia da criança, no respeito à realidade infantil e na valorização da vida em coletividade. Para isso pressupunha prin cípios de trabalho, como a autogestão das crianças, a educação pelo trabalho, um sistema de recompensas e punições estabelecido pelas próprias crianças e a profunda integração entre as atividades lúdicas e educativas. Apesar de haver organizado os orfanatos segundo suas ideias, a humildade de Korczak atribui

No topo da página seguinte: Obra de Itzchak Belfer exposta em galeria na cidade de Tel Aviv.

923 não foi um ano bom para se nascer judeu e em Varsóvia, pois o nazismo se aproximava, apesar de ninguém suspeitar disso naque le momento. Tampouco era auspicioso nascer numa família pobre, e menos ainda perder o pai aos cinco anos de idade. Porém, ninguém escolhe onde e quando nascer, assim Itzchak Belfer nasceu em 1923, com a possibilidade de ter uma infância terrível e uma vida adulta dramaticamente curta, como tantos outros judeus poloneses que nasceram naquela época.

Itzchak Belfer aos 93 anos, durante a entrevista em Tel Aviv.

O último menino de Janusz Korczak

Ele teve a sorte de ser acolhido no orfanato de Janusz Korczak, levado para lá pela mãe, pouco após a morte do pai, para dar chance a ela de trabalhar e sustentar os demais filhos.

Miriam Treistman

1

“Nós nunca usamos a palavra orfanato”, me contou It zchak. “Para nós, Krochmalna 92 [o endereço do orfana to] era apenas e simplesmente a nossa casa. Era assim que chamávamos o local. Não éramos órfãos, éramos crianças e, principalmente, éramos pessoas.”

Eu estudei a fundo os livros de Janusz Korczak para o meu trabalho de fim de curso de graduação. Suas obras Como amar uma criança e O direito da criança ao respei to ensinam a valorizar a criança pelo que ela é no presente e não pelo que será no futuro. Mas uma coisa é ler e ou tra é falar com uma testemunha que viveu intensamente a experiência. Ouvir Itzchak tratar o orfanato como uma casa e não um abrigo de vítimas, e principalmente ouvir ele discorrer sobre como a prática de Korczak considera va as crianças como iguais e não como tendo menos voz ou menos direitos e obrigações que os adultos, me fez per ceber que o que eu tinha lido de Korczak e sobre Korczak era “Fiqueiverdadeiro.nove anos na casa. Saí aos 15 anos, porque esta era a idade limite para viver lá”, continuou Belfer. “Ima gine uma casa grande, de quatro andares, onde viviam e trabalhavam 107 crianças – 56 meninas e 51 meninos –e apenas dois adultos. Não havia ninguém para cuidar da disciplina ou da limpeza. Tudo era feito pelas crianças. E

“Imagine uma casa grande, de quatro andares, onde viviam e trabalhavam 107 crianças e apenas dois adultos. Não havia ninguém para cuidar da disciplina ou da limpeza. Tudo era feito pelas crianças. Sentíamos que estávamos trabalhando de uma forma natural e não por obrigação, por nós mesmos e pelos nossos amigos.”

Perguntei se nunca houve um caso de crianças com comportamento incompatível com as regras coletivistas da casa. Belfer explicou que ele soube de alguns poucos casos – um ou dois em todo o tempo do funcionamento da casa. Mas que o regulamento ajudava o arrependimento. Uma criança expulsa poderia requerer o seu retorno à casa num período de seis meses depois da expulsão. No requerimen to ela tinha que convencer o tribunal que estava arrependi da e que iria se comportar adequadamente dali para frente.

tudo era feito de forma voluntária. Cada criança escolhia as tarefas que queria fazer e as cumpriam em turnos de meia hora por dia. As tarefas dependiam da idade da crian ça e também de sua força física. Tínhamos uma liberdade absoluta, algo que não dá para acreditar! E eu era muito, muito feliz. Servíamos a mesa, lavávamos os pratos, laváva mos a roupa, varríamos e limpávamos a casa, tudo isso era voluntário, nada era obrigatório. Sentíamos que estávamos trabalhando de uma forma natural e não por obrigação, por nós mesmos e pelos nossos amigos. Você podia inclu sive resolver não trabalhar. Nesse caso você estava abrindo mão dos seus direitos e não podia participar do tribunal ou votar na assembleia. Fazia sentido – se você não queria ter o ônus de pertencer ao esforço coletivo também não tinha o bônus. Mas a verdade é que eu não me lembro de nenhu ma criança nessa situação. Todos participavam.”

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Pedi para ele falar sobre o tribunal. Como era e como funcionava?

todo o mérito conquistado ao longo dos anos exclusiva mente às crianças. Segundo ele, a casa de órfãos era uma obra delas e não dele.

Mulheres e crianças fogem dos nazistas para sobreviver, na pintura de Itzchak Belfer.

nentemente para a qual a criança se dirigia com o intuito de formular a reclamação. Essa comissão classificava as re clamações por um número – de um a dez, depois de dez em dez até cem e depois de cem em cem até mil. Mil era a reclamação máxima, que requeria a expulsão da crian ça, mas nunca houve um julgamento desse grau nos meus anos na casa. Depois do julgamento, as reclamações con sideradas procedentes tinham seus números somados e o ‘escore’ semanal era afixado no quadro de avisos. Quan to mais baixo o ‘escore’ da semana melhor a nossa socie dade havia se comportado. As reclamações julgadas pro “O tribunal superimportanteera no funcionamento da casa. Ele garantia os nossos direitos e cobrava as nossas obrigações, inclusive as de tratar os outros de forma adequada. O tribunal funcionava no sábado de manhã. Na sexta-feira, depois do banho e antes da refeição qualquerumapodiacincoescolhiam-sefestiva,porsorteiojuízes.Qualquerumapresentardemandacontraoutro.”

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“O tribunal era superimportante no funcionamento da casa. Ele garantia os nossos direitos e cobrava as nossas obrigações, inclusive as de tratar os outros de forma adequada. O tribunal funcionava no sábado de manhã. Na sexta-feira, depois do banho e antes da refeição festiva, es colhiam-se por sorteio cinco juízes. E no sábado, numa sala grande, com todo mundo assistindo, eles julgavam as demandas que haviam sido feitas na semana. Qualquer um podia apresentar uma demanda contra qualquer ou tro. Bastava formular a reclamação e a publicar no quadro de avisos. Havia uma comissão que funcionava perma

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cedentes geravam consequências para as crianças – recla mações formais, pedidos para a não repetição da atitude, coisas que envergonhavam os infratores. Ninguém queria passar pela humilhação de ser julgado e muito menos con siderado culpado. A questão moral e da honra era muito importante para nós.”

“Veja, meidale [termo afetivo para “mocinha” em ídi che – ele me chamou assim durante toda a entrevista], um dia aconteceu algo sensacional! Uma menina de uns oito anos e meio acusou o próprio ‘doktor’. Ela levou um com portamento de Janusz Korczak ao tribunal e ele foi con siderado culpado! O caso foi assim: a menina não queria deixar Korczak sair de perto dela, ela queria ficar com ele, ela queria ter toda a atenção dele. Ele explicou para ela que

Estávamos conversando no Studio Shuki Kook, uma

Pinturas de Itzchak Belfer sobre a Shoá: à esq., Janusz Korczak, Stefa e as crianças antes da deportação; à dir., um retrato afetuoso de Korczak.

tinha que ir trabalhar, que precisava cumprir as obrigações dele, mas ela continuava segurando-o pela mão e não dei xando ele se mexer. Então ele a pegou com as duas mãos e a sentou num banco alto, do qual ela não conseguia des cer sozinha. Ela pediu para descer chorando – estou com medo! – mas ele não a baixou de lá. E ela disse que ia pro cessar ele! Foi à comissão, fizeram uma queixa contra Korc zak e ele foi julgado culpado no sábado. O tribunal reque reu por escrito que ele não mais repetisse aquele compor tamento. Todo mundo começou a rir, foi muito engraça do. Por alguns meses, até o assunto ser esquecido, passa mos a chamar ele de ‘Cem’ (o número do artigo do qual ele havia sido considerado culpado). O tribunal era mui to importante porque garantia o direito de todos, indis criminadamente, pequenos e grandes, fortes e fracos, eliminando brigas e ofensas”.

E de repente Belfer começa a rir e me conta um dos episódios que ele se lembra mais vivamente em seus anos de Krochmalna 92:

Foi a Shoá que encerrou a experiência pedagógica do orfanato, assassinando seus idealizadores e as crianças. A casa da rua Krochmalna 92 já estava vazia, pois desde o estabelecimento do gueto de Varsóvia os nazistas haviam

“Um dia, Stefa [Stefania Wilczynska – a colaborado ra de Korczak, sua ‘cúmplice’ nas doutrinas pedagógi cas. Eles trabalharam juntos durante quase toda a vida de ambos, compartilhando as realizações e o destino. Ela é a segunda adulta que vivia na casa, à qual Belfer se refe re acima neste texto] chegou para mim e disse: ‘Itzcha kale, eu sei que você gosta de desenhar. Toma, aqui tem papel, lápis, pincéis e tintas, você pode desenhar e pin tar o quanto quiser, pode usar aquele quartinho como seu estúdio’. E eu realmente adorava desenhar! Eu nunca quis ser bombeiro ou policial como a maioria dos meni nos. O que me encantava era o desenho. A partir daí co mecei a desenhar e a pintar em todos os momentos livres que tinha. Eu não participei das discussões políticas, não me envolvi nos assuntos administrativos, na organização, no conselho. Eu era o artista da casa. Eu desenhava e eu sonhava. Cada vez que precisavam de um desenho para uma festa ou para ilustrar alguma coisa eu fazia. Este era o meu papel lá dentro.”

“Tenho uma posição especial com relação à Shoá. Não pinto sobre ela. Pinto de dentro dela. Do que eu vivi.” A exposição se chama “Entre Dois Mundos”, sintetizando a vida de Belfer entre o mundo da Shoá e a atualidade israelense na qual ele vive hoje. Ele me contou que logo após a Shoá não conseguia desenhar sobre o que havia aconteci do. Mas ao conviver e conversar com outros sobreviventes ele entendeu a necessidade de usar a arte como um instru mento de superação, como uma forma de lidar com o que aconteceu. A necessidade de expor a realidade dos horro res do nazismo, dos guetos, dos campos de extermínio e da guerra para poder confinar isso em sua obra e conseguir viver uma vida sadia sem essas assombrações.

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galeria de arte em Tel Aviv, pertinho de Yafo. Era o último dia da mais recente exibição das obras referentes à Shoá de Itzchak Belfer. Sim, porque o ex-“menino de Korczak” ti nha se transformado num artista, ele desenhou, pintou e fez esculturas durante toda a sua vida. Suas obras o susten taram espiritual e financeiramente, foi com elas que criou as raízes de sua família em Israel, para onde veio logo após a guerra, vivenciada lutando na Rússia. Perguntei para ele sobre suas obras, sobre sua vida de artista. E assim a con versa entrou num outro rumo, mas sem jamais sair da casa.

“Stefa intuiu a minha vocação e me abriu uma porta. Eu entrei por ela e me encontrei no mundo. Depois da guerra voltei para a Polônia, mas a enormidade do que ti nha acontecido não me permitiu viver lá e já no caminho para Israel eu desenhava o tempo todo. Em 1957 entrei na academia de artes aqui e descobri que poderia viver disso. Pintei, desenhei e esculpi sobre tudo, adoro as luzes, as for mas, as cores. Nesta exposição só colocamos obras sobre a Shoá, porque a Shoá é o crime mais terrível que houve e também a coisa mais importante que aconteceu aos judeus em muitos séculos, mas eu tenho obras sobre tudo, sobre Israel, sobre as pessoas, sobre o mundo.”

Estátua homenagemem a Janusz Korczak em Varsóvia, Polônia.

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Chegando no campo de concentração, mais de uma vez tentaram persuadi-lo, oferecendo-lhe a liberdade, mas o fiel e idealista educador se recusou a deixar as crianças sozinhas, mesmo que por um momento, naquele lugar. Dessa forma, no dia 5 de de agosto de 1942, com 64 anos de idade, Korczak é assassinado em uma câmara de gás no campo de concentração de Treblinka no Norte da Polônia, junto com Stefa e com as crianças, que eram a razão de ser da sua vida. Ele nunca teve filhos seus, talvez porque ama va a humanidade mais que a si mesmo.

O direito da criança ao respeito – de Janusz Korczak.

Como seria o mundo hoje se Janusz Korczak não ti vesse sido apagado pelo horror nazista? A pedagogia será capaz de recuperar a sua formidável intuição a respeito da infância, que gerou uma prática capaz de moldar seres hu manos maravilhosos como o artista Itzchak Belfer? O juri ainda está deliberando, mas as perspectivas de curto prazo não são muito animadoras.

“Nunca houve nada igual à casa de Korczak e de Stefa. Sou testemunha disso. As crianças nadaliberdade.Adquirimosautoadministravam.responsáveiserameseEuviviissotudo.segurança,autoconfiançaeEusabiaqueninguémpodiafazercomigoporqueeuvivianumambientedejustiçaedeamor.”

Como amar uma criança – de Janusz Korczak, a descrição minuciosa da prática dele.

Quando assassinaram Korczak não assassinaram “ape nas” mais um judeu. O seu assassinato silenciou uma potencial revolução educacional que acabou não vindo à luz até os dias de hoje. A maioria dos sistemas educacionais do mundo continua a ser tremendamente conservadora, com métodos centenários repetidos à exaustão. O aluno continua a ter um papel passivo. A infância continua a ser tratada como um mero momento de passagem para a vida adulta, sem ser valorizada por si só.

Miriam Gottlieb Treistman é pedagoga formada pela UFRJ do Rio de Janeiro, com mestrado em Sociologia da Educação pela Univer sidade de Tel Aviv. Vive em Tel Aviv há dez anos.

vivi isso tudo. Adquirimos segurança, autoconfiança e liberdade. Eu sabia que ninguém podia fazer nada comigo por que eu vivia num ambiente de justiça e de amor.”Saioda galeria para a rua estreita do sul de Tel Aviv, com meu amigo Ricky Niskier, que filmou e fotografou a entre vista. Ao me encantar sobre Korczak nas atividades do movimento juvenil Chazit Hanoar e nas minhas leituras, eu ja mais sonhara um dia encontrar alguém que tivesse vivenciado a experiência pe dagógica mais relevante e mais bem suce dida na longa história da educação infan til. Experiência que foi brutalmente sub traída à humanidade pelo racismo e por uma ideologia supremacista e consequen temente assassina.

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“Nunca houve nada igual à casa de Korczak e de Ste fa. Sou testemunha disso. Muitos me interpelam nas pa lestras e alegam que estou inventando, que aquelas coi sas nunca aconteceram, que elas são fruto da minha ima ginação de criança. Que um orfanato é sempre triste e muitas vezes ruim. Que é impossível gostar de um orfa nato. Que é impossível uma casa de centenas de crian ças funcionar através da autodisciplina e do senso de responsabilidade das crianças. Mas aconteceu sim! As crianças eram responsáveis e se autoadministravam. Eu

transferido o orfanato para um novo endereço dentro da área segregada aos ju deus. A Gestapo – que meses antes ha via oferecido um posto de médico num hospital militar a Janusz Korczak, pro posta rejeitada por ele – chega ao orfa nato no momento do café da manhã. Os oficiais mandam todos se levantarem e sairem. Korczak pensou em dizer para as crianças que iriam para um acampamen to de verão, porém como não fazia par te da sua prática pedagógica a mentira, e como nem ele mesmo sabia ao certo qual seria o destino, pois de Treblinka nunca havia voltado ninguém para lhes contar, falou para as crianças que iriam para um passeio de trem. Sobreviventes do Gueto contam que ele saiu de casa calmamente de mãos dadas com duas crianças. Uma das sobreviventes do gueto, descreveu a cena:

“Eu nunca me esquecerei dessa cena. Isso não era uma marcha para os trens, e sim um protesto mudo, com olhos cheios de desprezo para esse regime assassino”.

Leituras recomendadas

Quando voltar a ser criança – um incrível romance de Janusz Korczak, escrito sob o ponto de vista de uma criança.

Belfer encerra a conversa comigo. Seu filho chega e eles estão atrasados para um outro compromisso:

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Vamos viajar no tempo. Vamos viajar para trás em nossos pensamentos e observar o Avinu Malkeinu. E vamos aprender algo sobre Avinu Malkeinu em cada período de tempo.

Se pudéssemos viajar

500 anos para trás para experimentar um serviço no século 16 ficaríamos muito surpresos, talvez não fôssemos capazes de reconhecer quase nada, porque não apenas as melodias seriam diferentes como também alguns textos das rezas. Somente a Torá duranteexatamentepermaneceuamesmatodososséculos.

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Somos acostumados à nossa liturgia, quero dizer, a uma atmosfera típica. Mesmo que só apareçamos uma vez por ano, reconhecemos: sim, esta é a mi nha sinagoga. Só quando um dia nos deslocamos a um outro país notamos as diferenças na liturgia, mesmo para o mesmo serviço.

NOSSO PAI, NOSSO REI: UMA VIAGEM NO TEMPO

O mesmo pode ser dito sobre os nossos antepassados. Se pudéssemos viajar 500 anos para trás para experimentar um serviço no século 16 ficaríamos mui to surpresos, talvez não fôssemos capazes de reconhecer quase nada, porque não apenas as melodias seriam diferentes como também alguns textos das rezas. Somente a Torá permaneceu exatamente a mesma durante todos os séculos, pelo menos desde quase 500 a.e.c.

À

s vezes congregações me pedem para liderar um serviço religioso. Quando eu não os conheço de visitas anteriores, sempre procuro me informar quais melodias eles normalmente usam. Então, quando fui uma vez a uma congregação antes do Iom Kipur, eu lhes perguntei: “Qual é a vossa melodia para o Avinu Malkeinu?”. Eles cantaram e eu fiquei muito surpresa. Uma melodia realmente bonita, mas que eu nunca tinha ou vido antes (era uma tradição da Suíça). Eu disse: “Que melodia linda!”. E eles me responderam: “Como isso é possível? Você não conhece a melodia para o Avinu Malkeinu!?”. Eu disse: “Bem, conheço sete outras, mas esta nunca ouvi”. Para eles foi uma grande surpresa saberem da existência de outras melodias além daquela que eles cantavam.

Annette M. Boeckler

Nosso Pai e nosso Rei, faze por aqueles que foram massa crados por [invocar] Tua Unicidade.

Os Rabanan começaram a difamar-lhe [Eliezer], mas uma voz disse: “Não é porque Akiva é mais importante do que Eliezer, mas porque ele tem a alma generosa1”.

Podemos aprender duas coisas sobre a reza Avinu Malkeinu nessa narrativa: No início, o Avinu Malkeinu era muito curto. Era quase só a última linha do nos so texto de hoje: Avinu Malkeinu, chonenu veanenu, ki en banu maassim. Asse imanu tsedaka vachesed vehoshie inu (“Nosso Pai, nosso Rei, concede-nos graça e atendenos! Pois carecemos de boas ações. Mostra-nos caridade e amor e Aprendemossalva-nos.”)uma outra coisa nessa narrativa: O que fará Deus ouvir a oração? Como se Deus tivesse preferido Akiva, não tendo ouvido Eliezer. Eliezer terá sido menos importante? Os sábios no Talmud debateram essa questão. Especialmente nas Grandes Festas, é uma pergunta impor tante: o que faz Deus ouvir-nos? O Talmud conta (depois do episódio que citei acima):

Nosso Pai e nosso Rei, faze por aqueles que foram mortos por [invocar] Teu santo Nome.

Os acréscimos mais recentes são os pedidos em rela ção ao ano-novo:

A lista é mais longa, muitos pedidos foram adiciona dos. Súplicas que exprimiram exatamente o espírito da época; algumas estritamente pessoais, outras, para a con gregação. Os livros de rezas ortodoxos preservaram mui tas linhas da Idade Média. Existem machzorim ortodoxos com 23 linhas (tradição Luso-Espanhola), com 38 linhas (ritos da Alemanha do Sul), com 44 linhas (ritos da Polô nia/Alemanha do Norte; e também no machzor ortodoxo brasileiro organizado por Jairo Fridlin).

pessoas generosas morreram nas Cruzadas; era como se Deus não as ouvisse. Por isso, eles então disseram: “Deus, veja este nosso grande sofrimento! Não tendes piedade de nós? Se sim, ouvi-nos AGORA!”.

Nosso Pai e nosso Rei: afasta de nós todo opressor e ad versário.Nosso Pai e nosso Rei: cala as bocas de nossos inimigos e daqueles que nos acusam.

Nosso Pai e nosso Rei: inscreve-nos no livro da redenção e daNossosalvação.Pai

Nosso Pai e nosso Rei, vinga-Te pelo sangue de Teus servos.

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Nosso Pai e nosso Rei: inscreve-nos no livro da vida boa.

Nosso Pai e nosso Rei: inscreve-nos no livro da indulgên cia e do perdão.

Aprendemos aqui mais coisas sobre o Avinu Malkeinu. As pessoas que viviam na Idade Média pensaram que não seria suficiente ser generoso. Porque obviamente muitas

e nosso Rei: inscreve-nos no livro da manuten ção e do Nossosustento.Paienosso Rei: inscreve-nos no livro dos méritos.

Tudo começa no primeiro século da era comum. O Talmud conta (em Tratado Taanít, na página 25b): Uma vez (durante uma seca) aconteceu que Rabi Eliezer parou diante da arca e disse 24 bênçãos (rezas para o dia de je jum que estavam fazendo pedindo chuva); e ele não foi ouvido. Em seguida, Rabi Akiva veio diante [da arca], e disse: “Nos so Pai, nosso Rei (Avinu Malkeinu), conceda-nos a Tua justi ça”. E imediatamente começou a chover.

Essa lista se desenvolveu por causa da imagem em que Deus nos inscreve no livro da vida, quer dizer que Deus nos dá a vida por mais um ano. A vida é tão frá

Vejamos o século 14, no tempo da peste. Em muitas cidades da Europa Central ocorreram pogroms contra os judeus. O Avinu Malkeinu tinha se tornado uma podero sa litania de esperança, uma possibilidade para expressar as dores mais profundas e os maiores medos. Por isso se manteve um texto vivo ao longo dos séculos e mais linhas foram adicionadas, pedindo coisas como:

Viajemos um pouco mais no tempo até o século 12. Es tamos agora no tempo das Cruzadas, na Europa. Como a oração Avinu Malkeinu original havia sido usada para sal var da morte, os judeus no tempo das Cruzadas também rogaram a Deus por ajuda através dela. No primeiro sécu lo, a morte era causada pela seca, já no século em questão eram as perseguições religiosas que punham a vida em pe rigo. Os judeus da Idade Média adicionaram umas linhas à oração do Rabi Akiva:

Nosso Pai e nosso Rei: afasta a peste, a espada, a fome, o cativeiro, a destruição, a iniquidade e o extermínio dos filhos do TeuNossopacto.Pai e nosso Rei: impede a epidemia contra a Tua herança.Nosso Pai e nosso Rei: perdoa e desculpa todos os nossos pecados.[...]

Nosso Pai e nosso Rei, faze por aqueles que padeceram no fogo e na água pela santificação do Teu Nome.

O livro de rezas mais famoso no judaísmo progressista clássico, que se chamou Einheitsgebetbuch, tinha ape nas 29 linhas do Avinu Malkeinu. Isso foi a base para o

Muitas são só repetições. No século 19 não soava bem mencionar todos os márti res das Cruzadas, os tempos eram outros. No século 19 éramos otimistas. E será que Deus intercederia por nós por causa dos mártires da Idade Média? Quem crê nis so? Os rabinos tinham reuniões e deba tiam sobre quais são as linhas mais im portantes e sobre quais linhas seriam rele vantes para aquela época. Isso foi possível porque apenas a Torá é um texto que não se muda, o livro de rezas é a nos sa expressão; a reza é a nossa resposta à Torá. E isso muda em cada época. Talvez algumas das coisas que os nossos an tepassados eliminaram no século 19 hoje em dia têm re levância de novo e outras perderam a sua relevância desde então. Um livro de reza sempre é a expressão de uma co munidade num lugar específico, num tempo específico.

O nosso serviço religioso... é a expressão plena das convicções profundas, a apresen tação completa de todas as inspiradoras ver dades da fé, todas as emoções oriundas dos pensamentos.2

de novo, com uma perspectiva completa mente nova. Era o século da iluminação, do racionalismo.Precisamosrealmente de tantas linhas?

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gil. Tem tanta coisa além do nosso con trole. É importante saber, mas também não ter Abandonandomedo. a Idade Média, viaja mos um pouco mais no tempo, desta vez até ao século 19. Paramos na Alemanha, no tempo em que o judaísmo progressista começou. No ano de 1868, diz o profes sor alemão, Dr. Abraham Geiger:

Aprendemos uma outra coisa nessa narrativa: O que fará Deus ouvir a oração? Os sábios no Talmud debateram essa questão. Especialmente nas Grandes Festas, é uma importante:perguntaoquefazDeusouvir-nos?

Um mundo novo. Os judeus tinham deixado de vi ver nos guetos ou judiarias e tinham alcançado a possibilidade – pelo menos no papel – de viverem como cida dãos do país (nesse tempo, na França ou Alemanha) tal como todos os outros. Desde o ano de 1810 o serviço re ligioso judaico tinha mudado. Tinha sido modernizado. Sermões regulares haviam sido introduzidos, e também o órgão, rezas na língua do país. O serviço em geral havia sido resumido para obter mais concentração. Nesse tem po as pessoas começaram a pensar sobre o Avinu Malkeinu

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primeiro machzor progressista na língua portuguesa: Machzor, Livro de Rezas para os Dias Sagrados de Rosh Hashaná – Yom Kipur, editado pelas entidades Congrega ção Israelita Paulista de São Paulo, Asso ciação Religiosa Israelita do Rio de Janei ro, redigido no Rito Liberal e traduzido por seus rabinos, os doutores H. Lemle e Fr. Pinkuss. A primeira edição foi lança da em 1949, tendo havido mais duas edi ções. A terceira edição foi em 1966, onde o Avinu Malkeinu tem 37 linhas (3ª ed., p. 136-140), porque as linhas sobre os mártires que os pais (apenas eles naquele tempo) do judaísmo progressista haviam eliminado foram reintegradas no Brasil, depois da Shoá. O machzor usado no Rio de Janeiro e em São Paulo hoje em dia tem um Avinu Mal keinu com 39 linhas. E considero por agora suficientes es tes exemplos para que tenham a noção de que existem muitas versões do texto do Avinu Malkeinu, com vários números de linhas e várias ordens de bênçãos.

A primeira versão é a versão antiga, como sempre foi feita nas sinagogas reformistas no Reino Unido, com 20 bênçãos. A segunda versão publica o texto da composição musical de Max Janowski (a melodia que foi cantada por Barbara Streisand). Algumas congregações gostam muito dessa canção tão popular, mas o texto não é o texto tra dicional e a ordem não é a ordem de um livro de rezas. É uma composição nova baseada num texto dos EUA. Para as congregações que gostam dessa melodia, o livro de rezas fornece esse texto. As outras duas versões refletem o pro blema grande que nós temos hoje em dia relativamente a esse texto: Avinu Malkeinu quer dizer “Nosso Pai, nosso Rei”. Mas Deus, será ele masculino? De onde nós sabe mos isso? Não é permitido fazer uma imagem fixa de Deus. Mas parece que durante os séculos uma imagem se estabe leceu muito fixa nos pensamentos de muita gente. Numa reunião dos editores do novo livro de rezas inglês, mui tos rabinos e rabinas dizem: esse texto, Avinu Malkeinu,

Notas

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Voltamos à nossa viajem no tempo até aos dias de hoje. No ano passado, o movimento reformista da Inglaterra lançou uma edição de teste para um novo machzor de Rosh Hashaná, onde figuram quatro Avinu Malkeinu se guidos! Realmente, vários pelos quais escolher!

Escrito em português com a ajuda da Congregação Progressista Ohel Jacob, Lisboa.

Vejamos o século 14, no tempo da peste. Em muitas cidades da Europa Central ocorreram pogroms contra os judeus. O Avinu Malkeinu tinha se tornado uma poderosa litania de esperança, uma possibilidade para expressar as dores mais profundas e os maiores medos.

E finalmente eles oferecem a versão antiga do judaísmo reformista, a Ver são do Templo de Hamburgo do sécu lo 19, na verdade um texto da tradição sefardita. Essa versão não tem as palavras “Avinu Malkeinu”, todas as linhas começam com Eloheinu shebashamaim – “Nosso Deus, que está no céu” – que não tem definição de gênero. Então, não só existem várias melodias para o Avinu Malkeinu como também existem várias versões do tex to. Mostra que as nossas rezas não são somente expressões da nossa tradição, mas igualmente expressões da si tuação do momento e que cada geração tem que buscar suas próprias palavras, conectando o passado e exprimin do o presente num lugar especial.

1. A palavra no original em hebraico significa uma pessoa que perdoa o erro dos ou tros. Uma pessoa indulgente. Optei por “alma generosa” porque me pareceu mais coloquial.

2. Unser Gottesdienst ... ist der volle Ausdruck der tiefinnersten Ueberzeugungen, die umfassende Darstellung aller anregenden Glaubenswahrheiten, aller das Gemüth ergreifenden Ahnungen.“ - Abraham Geiger, Unser Gottesdienst. Eine Frage, die dringend Lösung verlangt. Breslau, 1868, p. 1.

A doutora Annette M. Boeckler cresceu na Alemanha e vive atual mente na Inglaterra. É professora de Liturgia e Bíblia no Leo Baeck College em Londres. É autora de vários artigos sobre Liturgia Ju daica, por exemplo, nos livros da série “Prayers of Awe”, de Lawren ce A. Hoffman. Tem interesse especial na história da Liturgia Ale mã e sua evolução.

é um grande problema. Contudo, outros dizem: Mas as pessoas estão tão acostu madas a ele, imagine a comoção que seria mudar o Avinu Malkeinu!!!

Então os editores tentaram criar uma versão com diferentes imagens de Deus, masculinas e femininas, por ordem alfabética. Esse Avinu Malkeinu começa com as palavras Avinu Malkeinu – “Nosso pai, nosso rei”. Mas depois nunca mais usa essa imagem e continua com Goaleinu Somcheinu – “Nosso Redentor, o nosso apoio” –, Hodenu Peereinu – “Nossa co roa, nossa glória” –, e assim por diante.

nome meio complicado de se pronun ciar sejam judeus.

E já que estamos rindo da estulti ce do nosso “esquerdista bem infor mado” vale a pena visitar duas outras lendas a respeito do suposto fabuloso poderio judaico, pinçadas de divertido artigo de Yair Rosenberg:

Osite vermelho.org.br (cuja sigla é “Portal Vermelho: A Esquer da Bem Informada”) publicou por uns dias e depois, provavelmente arrepen dido, tirou do ar um texto do professor Thomas de Toledo, no qual ele afian çava que o impedimento da presiden te Dilma Rousseff era obra de agentes sionistas e norte-americanos infiltra dos no ComoBrasil.evidência desta douta aná lise da conjuntura, ele enumerou os três judeus que fariam parte do primei ro escalão do governo de Michel Te mer: o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Sér gio Etchegoyen, o ministro da Defesa, Raul Jungman, e o presidente do Ban co Central, Ilan Goldfajn.

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Atribuir todos os problemas – reais ou imaginários – aos judeus não é um delírio muito original. Antissemitas têm feito isto há séculos e não há porque duvidar que o Brasil também conte com a sua cota de racistas e de luná ticos que percebem conspirações ju daicas por todos os lados.

Em junho do ano passado Asghar Bukhari, um inglês e fundador do Mus lim Public Affairs Committe, chutou inadvertidamente um de seus sapatos para debaixo da cama. Ao não encon trá-lo na manhã seguinte culpou os ju deus: “Os sionistas estão tentando me intimidar!”, declarou ele no Face book. “Ontem à noite alguém conse guiu entrar na minha casa sem arrom bá-la e roubou um dos meus sapatos enquanto eu estava dormindo. O ob

jetivo dos judeus é me fazer sentir vul nerável dentro da minha própria casa”, concluiu. A tirada provocou uma onda de respostas debochadas e hilárias, mas Bukhari não deu o braço a tor cer e postou um vídeo de 15 minutos reafirmando as suas acusações. Sus peitamos que quando, dias depois, achou o sapato tenha mais uma vez atribuído sua devolução aos judeus: “Ficaram pressionados pela comoção que a minha denúncia causou e tenta ram apagar o crime cometido!”

Já o Hamas nos divertiu ao anun ciar ter capturado um golfinho trei nado por Israel para espionar a Faixa de Gaza e para assassinar seus habi tantes. O animal está preso até hoje. Suspeita-se que eles estejam tentan do fazê-lo confessar, mas o golfinho

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É claro que devemos nos preo cupar com o discurso antissemita e combatê-lo (aliás, com toda a proprie dade, a Fierj abriu um processo con tra o autor do texto). Mas algumas ve zes, como neste caso, também é pos sível rir um pouco. Isto porque nem Etchegoyen nem Jungman são ju deus. O que nos leva a crer que o professor Toledo imagina que todos os brasileiros que divirjam politica mente de suas visões e tenham um

SERIA CÔMICO SE NÃO FOSSE DRAMÁTICO

EM POUCAS PALAVRAS

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 55

Yankel ler um jornal antissemita. “Por que você lê este lixo?!”, indigna-se o primeiro. Ao que Yankel responde: “Porque o jornal judaico que você lê descreve as nossas muitas agruras, enquanto que neste aqui eu leio que controlamos as finanças do mundo,

sistentemente o que qualquer país fa ria: defende-se dentro de sua melhor capacidade.Guerras,assim como lutas corpo rais com bandidos armados, são epi sódios violentos e nem sempre é pos sível dominar o adversário de forma não letal. Contudo, existem os que li mitam o olhar apenas ao lado que so fre as piores consequências, sem atentar para quem agride e para a agressão em si.

Temos a predisposição de imagi nar que os que criticam as ações de fensivas de Israel são movidos pelo antissemitismo ou pela desinforma

que somos astutos, fortes, poderosos e imortais. É muito mais divertido!”

ção. Mas o drama vivido pela família de Ana Hickman mostra que, na ver dade, não podemos desprezar a des confortável tendência atual de deslegi timar a legítima defesa. Tendência que é agravada nos casos em que a parte que se defende obtém sucesso, pois aí ela aparenta ser a parte mais forte, o que agrava a situação, pois existe um forte impulso natural dos humanos de se solidarizar com os aparentemen te mais Devemos,fracos.é evidente, lutar contra essa tendência. Mas sem deixar de exercer permanentemente o nosso di reito à autodefesa. ü

iStockphoto.com/Scar1984

Não temos como saber quantas pessoas endossam a crítica ao cunha do de Ana. Mas sabemos que dentre elas se encontra o promotor Francisco Santiago, do Ministério Público de Mi nas Gerais, que denunciou o cunhado da modelo. Contrariando a recomen dação da Polícia, o promotor Santia go não caracterizou a legítima defesa pelo fato de o tiro ter atingido a nuca do Aassaltante.opiniãodo promotor traz à tona a dificuldade que o Estado de Israel tem em expor para o mundo a sua política de defesa. Acossado desde 1948 por um nacionalismo árabe que não acei ta a sua existência e se empenha se riamente em destruí-lo, Israel faz con

Conforme acompanhamos pela im prensa, a modelo Ana Hickman e sua família foram vítimas de um aten tado que terminou relativamente bem para os assaltados mas que, infeliz mente, causou a morte do assaltante. Como é normal em situações que en volvem celebridades, vários comen tários foram postados nas redes so ciais. A maioria deles se solidarizavam com a modelo e sua família, contudo, ao menos um tinha um ponto de vis ta peculiar:“Espera aí”, dizia a mensagem, “evi tar um assassinato com um assassina to?”, questionava a pessoa, não con cordando com a reação do herói des te incidente, o cunhado de Ana, que, após ver sua esposa levar dois ti ros, felizmente não fatais, conseguiu se agarrar ao assaltante, desarmá -lo e matá-lo, numa ação que envolveu enorme risco para a sua vida.

Tudo isto dá razão à anedota dos velhos tempos do judaísmo polonês, que relata o espanto de Itzik ao ver

A DESLEGITIMIZAÇÃO DA LEGÍTIMA DEFESA

Caso Yankel fosse brasileiro e con temporâneo ele seguramente seria assinante do tal “Portal da Esquer da Bem Informada” e leitor assíduo do professor Thomas de Toledo. ü

permanece mudo e resistente ao tra dicional método de tortura por afoga mento simulado. Os interrogadores já não sabem mais o que fazer.

É bem verdade que a democra cia não foi inventada pelos judeus, ela é uma invenção grega, reformada na Idade Moderna por pensadores laicos. Contudo, a democracia carrega den tro de si fortes genes judaicos.

56 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI JUDAÍSMO E DEMOCRACIA

justiça é o que irão buscar, para que possam ocupar a terra que o Eterno, seu Deus, lhes dá, e nela prosperar”.

vida e da individualidade … A nature za tribal dos judeus é às vezes consi derada um obstáculo à democracia. Mas o exato oposto é verdadeiro: jus tamente por não terem universalizado a sua religião os judeus não têm pro blemas em conviver com os outros. A democracia exige o justo equilíbrio en tre a autossuficiência e o reconheci mento respeitoso dos outros. Por suas próprias dificuldades, os judeus co nhecem a difícil autodisciplina requeri da pela civilização”.

Faz todo o sentido do mundo deba ter a democracia e lutar por seu apri moramento, conforme fizemos em ju nho passado no encontro do Movi mento Reformista de São Paulo. Este é nosso dever como cidadãos e como judeus ancorados na modernidade. A nossa constante referência aos valo res tradicionais judaicos como pon te para o presente resulta num aporte fundamental para o todo. ü

Otema

Diz a professora Ruth Wisse: “Os gregos desenvolveram a ideia de de mocracia pensando sobre como go vernar uma cidade. Já entre os judeus, ela começou com a santificação da

A começar pela igualdade de to dos perante a lei, característica que, diga-se de passagem, era ausente da democracia grega, apenas os ci dadãos da polis tinham os seus direi tos garantidos. A Torá repete deze nas de vezes o mantra: “Uma mesma lei terás para ti e para o estrangeiro que habita junto de ti”. Além disso os juízes devem seguir o ordenamento: “Vocês não julgarão injustamente; não demonstrarão parcialidade; não aceitarão subornos, pois o subor no cega os olhos do discernimento e perturba o pleito do justo. Justiça,

A atribuição de uma mesma ori gem aos seres humanos e a defe sa da dignidade para todos, visto que todos foram criados à semelhan ça de Deus, também são valores ju daicos aderentes aos regimes de mocráticos, ecoados em documen tos tais como a Declaração de Inde pendência dos Estados Unidos. As sim como a liberdade de expressão que permitiu aos profetas admoes tarem os reis pelas ruas das cidades do Israel bíblico sem que sofressem sanções de ordem legal. O Talmud registra as posições majoritárias jun to com as minoritárias, num proces so que, além de não abafar a voz dos dissidentes, ainda permite a reanáli se das decisões à medida que cená rios e premissas se modificam.

E de um ponto de vista eminen temente pragmático é forçoso reco nhecer que apenas as democracias garantem a existência pacífica dos grupos minoritários. Assim que é de nosso interesse estratégico defen der e promover a democracia em to dos os cantos do planeta, participan do do jogo democrático como cida dãos. É de nosso interesse partici par da vida dos nossos países a par tir do exercício de nossa identida de particular, inclusive de sua funda mental faceta judaica.

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Não obstante estes fatos, é cer to que a lei religiosa judaica – a hala chá – se baseia num sistema radical mente não democrático, onde pou cos luminares – algumas vezes ape nas supostos – decidem a respeito da evolução e da aplicação da lei judai ca. Contudo, a grande maioria dos ju deus da atualidade não segue a hala chá em sua totalidade e não reconhe ce sua autoridade em todas as deci sões que tomam.

do mais recente encon tro do Movimento Reformista na América Latina – A Continuidade De mocrática como Valor Judaico – cau sou alguns estranhamentos. É possí vel que um sistema político seja conti do num valor cultural ou religioso?

Ou seja, o mérito dos soldados é o de ter provocado a intervenção divina e é esta a verdadeira responsável pelo sucesso da operação que encantou o mundo. Deus modificou o desfecho da operação, que se mostrava som brio (fadado ao fracasso), não obstan te o planejamento e treinamento dos soldados.Deusestá ausente do livro de Es ter, mas mesmo assim alguns atri buem a Ele os méritos pelo engenho de Mordechai que habilmente mano bra os agentes políticos a seu alcan ce e com isto logra salvar os judeus na corte da Pérsia. O texto desse ra bino é um fiel herdeiro desta tradição que relega ao homem o único méri to de saber provocar a ajuda divina. O seu livre arbítrio, a sua capacidade de análise, a sua ousadia, a sua criativi dade, a sua coragem, a sua bondade e todos os demais atributos do ser hu

mano são apenas instrumentos para a atração (ou rejeição) da ajuda divina.

Mas não é apenas o esforço do ho mem que tem o dom de mobilizar o socorro de Deus. Alguns apetrechos materiais também são úteis, visto que, segundo o rabino, esta é a lição prá tica do ocorrido em Entebbe: “É hora de rever e aumentar a nossa prote ção, ou seja, verificar se as nossas mezuzot estão kasher”.

Como se diz na gíria: “Então tá”. Aprendemos mais uma. Isto tudo sem entrar nos meandros mais com plicados da questão da ajuda divina, que trariam à tona qual o demérito das vítimas de crimes, guerras, po groms e de tantas outras situações. Eles não tinham mezuzot ou não usa vam capacetes? ü

A MEZUZÁ E O CAPACETE

iStockphoto.com/Leonardo255

O rabino tinha uma resposta pron ta para este questionamento. Em seu post seguinte ele explicou que a me zuzá é como o capacete de um mo tociclista. Estar defeituosa não pro voca o acidente e seu bom estado não o previne. Mas quando está per feita protege a pessoa absorvendo parte do impacto na cabeça do mo torista. O rabino não escreveu nem uma palavra sobre a possibilidade da mezuzá remeter à lembrança do compromisso de obedecer os man damentos judaicos tanto em casa quanto na rua, tanto na intimidade como em público.

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Os 40 anos da operação de En tebbe originaram um grande nú mero de matérias – grandes e peque nas – na imprensa judaica em todo o mundo. Uma delas inclusive está nes ta edição de Devarim, escrita pelo jornalista Alberto Léo Jerusalmi z’l poucos meses antes de seu precoce falecimento.Umrabino do Rio de Janeiro distri buiu um mail por sua lista de assinan tes louvando a operação, mas sem atribuir seu sucesso à ousadia, à cora gem e ao planejamento dos que a rea lizaram. Lê-se em sua mensagem: “Es ses jovens solteiros ou recém-casa dos que aceitaram arriscar as suas vi das pela salvação de dezenas de ju deus a milhares de quilômetros de sua terra natal têm um mérito enor me ... e a maior prova do mérito deles é o fato da intervenção Divina ter tor nado uma missão fadada ao fracasso numa das operações de maior suces so de nossa história. Não houve nos últimos tempos um milagre maior do que esse! …”.

Algumas pessoas reclamaram do rápido salto do rabino, que partiu de uma brilhante operação militar num aeroporto no centro da África direta mente para as nossas portas e ques tionaram se era plausível acreditar que todas as mezuzot dos sequestra dos estavam inadequadas. E também se era plausível acreditar que apenas as mezuzot dos sequestrados esta vam inadequadas. Pois, dos milhões de judeus que viajam de avião, apenas aquele punhado de pessoas tinha so frido a provação do sequestro.

história da humanidade, visto a popu lação palestina crescer ano após ano. Também não se entende como o de sinvestimento no Estado de Israel pode contribuir para o aprimoramento da ação da polícia ou para a situação econômica dos negros da América. Também porque os problemas apon tados pelo documento do BLM preda tam de muito a criação de Israel.

a torna obsoleta. O exemplo mais re cente é o manifesto do movimento ne gro norte-americano Black Lives Mat ter. Em 1º de agosto, o BLM divulgou uma plataforma de objetivos e exigên cias para, segundo eles, corrigir a con duta policial, o sistema educacional e a inadequação econômica nas comuni dades negras dos Estados Unidos.

O significado dessa imagem? Sim ples: “O judeu só pensa em dinheiro”.

A diferença entre elas? Simples também. A imagem da esquerda tem as letras hebraicas BS’D no canto su perior, acrônimo do aramaico para “Com a Ajuda dos Céus”. Já os nazis tas eram ateus. ü

vemos o clássico ju deu do ideário nazista, gordo, narigu do e de lábios grossos, sentado so bre um imenso saco de dinheiro, saco este que nem consegue abrigar toda a sua riqueza, que se esparrama pelo chão. Em suas mãos um livro com uma Maguen David simboliza o Tal mud e, ao fundo, na porta da Bolsa de Valores, grupos de judeus ortodo xos com seus chapéus e capotes con fabulam. O texto abaixo da imagem diz “O Deus dos judeus é o dinheiro” e mais um monte de lixo antissemita.

No outro lado temos um Geor ge Washington tal como ele aparece nas notas de um dólar, com um sorri so maroto e uma sobrancelha levanta da em seu rosto verde-dólar, a apontar para o convite ao seminário que se in titula: “O Problema da Reforma”. Logo

abaixo se lê: “Pergunta: Acaso é legí tima a tomada de controle pelos Re formistas sobre o Muro das Lamenta ções, conversão, exército e banhos ri tuais?” Resposta: Isso depende de se eles são uma corrente do judaísmo ou um desvio para fora do judaísmo so bre as asas do dólar”. Como pano de fundo encontramos uma esmaecida

O que fica sim muito claro é que os judeus (e talvez também os ciclistas) continuarão por muito tempo a serem culpados por todos os males percebi dos por pessoas não orientadas pelo bom senso e pelos fatos. ü

Numa conversa de bar uma pessoa revela: “Todos os males do mundo são culpa dos judeus!”. “Você está cer to”, responde um dos interlocutores, e completa: “Dos judeus e dos ciclistas”. O primeiro se espanta: “Ciclistas!? Por que os ciclistas?”. O interlocutor encer ra a conversa: “E por que os judeus?”

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Aimagem que ilustra esta nota, co loca lado a lado duas gravuras de épocas diferentes. À direita, uma cria ção nazista dos anos 1930 e, à es querda, o convite deste ano para um seminário na Yeshivá Ateret Yerusha laimNo(Jerusalém).ladodireito

OS CICLISTAS

Um genocídio que, se estiver acon tecendo, é o mais incompetente da

GOEBBELS DE KIPÁ

Contudo, o fato de ser surrada não

Uma das exigências listadas no do cumento é o desinvestimento dos USA ao Estado de Israel, que, segun do o documento, os torna “cúmplices no genocídio do povo palestino”.

Esta anedota é antiga e muito repe tida. Ela faz graça do ódio gratuito aos judeus que povoa a mente dos que vi vem duplamente obcecados por teo rias de conspiração e por racismo, fe nômeno também conhecido pelo rótulo mais direto de antissemitismo.

cédula de um dólar. O significado des sa imagem? Simples: “O Judeu Refor mista só pensa em dinheiro”.

Porque ele jamais humilha al guém, principalmente em público. E

ele sempre julga os demais com ho nestidade.Estetipo de conversa simplesmen te não existe. A religião é medida hoje em dia em termos de observância ri tual. Se um judeu é conhecido por não observar o shabat e a kasherut, esta pessoa é classificada como não religiosa, mesmo se o seu comporta mento ético for exemplar. Neste caso as pessoas vão dizer: “Infelizmente ele não é religioso, mas é uma ótima pessoa!”. Contudo, se uma pessoa que guarda shabat e kasherut é deso nesta em seus negócios, ninguém vai dizer que ele não é religioso. Ao con trário, dirão: “Ele é religioso, mas infe lizmente não é ético”.

PRECISAMOS DE MAIS HILEL

Será que Hilel está sendo ignora do? À primeira vista esta questão pa rece ridícula. Hilel é provavelmente o rabino mais conhecido do Talmud e até mesmo pessoas com escasso co nhecimento judaico estão familiariza das com a história dele ensinando a essência do judaísmo para um não judeu enquanto este se apoiava em apenas um pé.

Hilel é o protagonista de uma das histórias mais citadas do Talmud: Ao ser procurado por um não judeu que lhe pediu para convertê-lo de forma sumária (“enquanto ele se apoiava apenas sobre um pé só”, diz o texto), Hilel não desanimou e disse: “O que te for odioso não faças a outrem. Esta é toda a Torá, o resto é comentário. Agora vai e estuda”. Ou seja, se a pes soa se comportar de forma socialmen te adequada ela pode se incluir en tre os judeus, mas apenas isto não é tudo, há muito o que estudar também.

Digitalgenetics/iStockphoto.com

No último capítulo do livro, Telush kin expõe um pensamento muito va lioso sob o título: “Porque precisamos

O texto segue, lamentando que ao mesmo tempo em que colocamos Hi lel no pináculo de nossa coleção de sábios, usamos muito pouco de seus ensinamentos e de suas práticas. Chegando à conclusão que precisa mos urgentemente reformar o judaís mo colocando os ensinamentos de Hi lel em primeiro lugar. ü

Oprofícuo e brilhante rabino ame ricano Joseph Telushkin publi cou em 2010 um pequeno e delicioso livro sobre Hilel, o conhecido rabino que viveu há aproximadamente dois mil anos. O livro descreve a essência de sua visão, sua abertura acolhedo ra para com o mundo e sua firme con vicção de que a ética está no primeiro plano da observância religiosa.

de Hilel mais do nunca”. Vale a pena ler o começo deste texto:

Mas o fato da história ser bem conhecida não significa que a men sagem esteja sendo lembrada. Os ensinamentos centrais do judaís mo, segundo Hilel, são os de agir eticamente e de manter um apren dizado contínuo. Implícita nesta fór mula está a ideia de que fé e reli gião importam imensamente, mas que elas não são o ponto de parti da de uma jornada religiosa. O fato de Hilel relegar Deus e ritual à cate goria de “comentário” não é o mes mo que qualificá-los como “notas de rodapé”. Os comentários importam muito. Contudo, não há como deixar para trás a simplicidade do ensina mento de Hilel que apoia o edifício religioso sobre uma fundação éti ca. Seria de imaginar que se a figura mais proeminente do judaísmo apre senta o sumário do judaísmo desta forma, ela iria influenciar permanen temente como os judeus entendem a religiosidade judaica.

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Mas isto é verdade? Até os dias de hoje se dois judeus estão falan do a respeito de um terceiro e um de les pergunta se o terceiro é religioso, a resposta vai se basear em seu nível de observância ritual e não na obser vância ética. É impossível ouvir uma conversa do tipo:

Oh, sim, sem sombra de dúvida!

Fulano de tal é religioso?

Como você sabe disso?

a Bíblia, a primeira coisa que se constatou logo após a criação do céu e da terra, na segunda frase do texto, foi a exis tência do caos. E todo o processo de criação que se seguiu foi o de criar ordem no caos, o que significou não só criar o que não existia, mas principalmente harmonizar tudo que pas sava a existir, em suas totalidades e em suas diversidades. Porque a um Criador digno des se nome não basta fazer surgirem coisas alea toriamente, a existência em si mesma não é su ficiente para configurar fruição, a fruição só ad vém da coexistência, que pressupõe equilíbrio, troca,Independentementeinteração. de aceitar ou não o criacionismo bíblico como explicação para a origem do universo como um todo e de nos so planeta como o palco natural e biológico da história que conhecemos, podemos apren der na estória da Criação uma lição necessária aos criadores que continuaram o trabalho de pôr ordem no caos a partir de então, e que em milênios não conseguiram completar um servi ço que deveria durar seis dias.

Segundo

É a resposta de um n-lhão de dólares, li bras, reais, shekalim... Simples de conceber e aparentemente impossível de concretizar. Pois aparentemente seria tarefa divina a de recriar do caos um universo, um mundo, uma huma nidade de equilíbrio e felicidade que já não se bastará com a tranquilidade do Éden e com a ignorância da árvore do conhecimento. Um equilíbrio e uma felicidade que sejam compatí veis com computadores, inteligência artificial, realidade virtual, nanorrobôs, informação glo bal e instantânea, confortos e benesses inima gináveis, mas também compatíveis com uma distribuição equitativa, preservação do meio ambiente, sustentabilidade, relacionamento interespécies e inter-reinos da natureza. Tare fa de Homo deus?

Parece que o problema começou quando, culpa da serpente ou não, os novos criadores trocaram o equilíbrio e a felicidade do paraí so pela liberdade de saber e de agir. Para en curtar as metáforas e os simbolismos, parece que o rompimento do equilíbrio de origem di vina deu lugar a um novo caos de origem hu mana, caos que depois de quase seis mil anos na contagem criacionista ou milhões na con tagem evolucionária ainda não cedeu lugar ao equilíbrio entre tudo que foi sendo criado em quantidades e diversidades.

Lugar e hora para a ação do criador, para pôr ordem no caos, para retomar o projeto ori ginal: a felicidade do equilíbrio MAIS a liber dade de conhecimento e de ação.

Não é necessariamente tarefa para Homo deus. Não é preciso regredir ao caos total e recomeçar tudo a partir do zero. Não é preciso a tabula rasa das espécies animais, como no Dilúvio, nem a da Terra como um todo, como nos cataclismos nucleares ou climáticos que o cinema tanto explora. Não é preciso abrir mão da liberdade de conhecimento e de ação, nem do que essa liberdade criou no decor rer de milênios ou “milhênios”. Só é preciso reencontrar o equilíbrio. Equilíbrio entre os ho mens (coexistência, equanimidade, diversida de), entre os homens e a natureza (sustenta bilidade, respeito ao meio ambiente), entre o desejável e o possível levando em conta o fu turo, o da natureza e o das gerações humanas e nãoSim,humanas.eudisse ‘só’. Porque ‘só’ se precisa retomar o projeto, repensar a utopia, redirecio nar a intenção. O resto já existe. Não só resis tiu ao caos como às vezes se alimentou dele, e é nesse círculo vicioso que reside o princi pal problema. Mas o inverso do caos é o equilí brio, o do conflito é a coexistência das diferen ças. As ferramentas estão prontas, as existên cias foram criadas, o conhecimento foi adquiri do, assim como a liberdade de saber e de agir. O paraíso existe, e está ao alcance do criador e das criaturas.

dade de saber (conhecimento, ciência, tec nologia) e agir (progresso, perspectiva e qua lidade de vida) num sistema de coexistência e convivência e de equilíbrio social e ecológi co, ou seja, de felicidade terrena, já que não mais paradisíaca?

Vaiehi or

Paulo Geiger

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/BestdesignsiStockphoto.com

Estamos hoje – em Israel, no Brasil, no mundo – num ponto em que parece que o pro jeto inicial de busca de equilíbrio (entre os ho mens e entre o homem e a natureza) e de feli cidade (para todos) com liberdade de conheci mento e de ação (ciência, progresso, qualida de de vida) desandou em conflitos de não coe xistência, crise ecológica, desigualdades cres centes. Um desequilíbrio que configura, ao me nos em parte, as condições de caos, de exis tências cada vez mais numerosas e mais so fisticadas e cada vez mais desequilibradas, o

céu e a terra multiplicados, assim como o tohu vavohu

cócegas no raciocínio BERESHIT, MAS NÃO TANTO

Por quê? Considerando os níveis de co nhecimento, de entendimento, de experiên cia, que aumentam e se acumulam em milê nios ou “milhênios”, levando em conta que as causas de desequilíbrio são conhecidas, que já se aprendeu na história o que não dá certo e como se desenrolam os processos, o que impede os novos criadores (segundo o his toriador israelense Yuval Noah Harari, Homo deus) de reassentarem o que existe para in tegrá-lo num sistema harmônico de felicidade COM liberdade para saber e para agir? Ou melhor, inversamente, reassentarem a liber

Não necessariamente. Lembro que me re feri em outro artigo à ideia de que às vezes a única solução para um processo que se des virtua em relação a seus objetivos é – não ten tar uma mudança de direção como continua ção corrigida, e sim – recomeçar a partir de um ponto anterior, antes da subversão do mode lo. Mencionei isso em relação a Israel, e apro veito para reiterá-lo, sem argumentar. A lógica simples tem elementos de obviedade: é me lhor voltar a um ponto em que a realidade cor respondia ao projeto e continuar na direção certa a partir daí do que corrigir uma dinâmica desvirtuada a partir de um ponto desvirtuado.

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