Devarim 29 (ano 11 - abril de 2016)

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Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 11, n° 29, Abril de 2016 A Evolução da Fé Rabino Sérgio Margulies Um Olhar Para Trás – Um Olhar Para Frente Rabino Joel Oseran A Época do Terrorismo Selfie Matti Friedman À Sombra do “Kotel” Vittorio Corinaldi KehilatRebeccaShanghaiKanthor O Talmud Rabino Dario Bialer Entrevista com Gadi Gvariahu Presidente do Tag Meir A reedição de Mein Kampf: um painel de opiniões Cócegas no Raciocínio Paulo Geiger Filantropia e Judaísmo Ruth Goldberg DEVARIM DEVARIM

N

a compaixão sem a qual a sociedade embrutece e se torna in suportável, mas sem perder de vista que a importação de va lores incompatíveis com a democracia e com a valorização do indivíduo destrói o tecido social que acolhe os fragilizados.

A literatura judaica inclui muitas outras citações que re metem à valorização do caminho do meio, não havendo nem espaço nem intenção de listá-las aqui. Mas é interessante des tacar, conforme Meltzer faz em seu texto, que a Torá nos im põe dois mandamentos contraditórios que remetem à memó ria. Por um lado somos instados repetidas vezes a não esque cer que fomos estrangeiros na terra do Egito e que, portan to, devemos ter compaixão pelos mais fracos. A mensagem da Torá é clara: “Não sejam brutos”, não construam uma socie dade baseada na opressão aos mais fracos e na supressão dos direitos dos fragilizados e das minorias.

Raul Cesar Gottlieb – Diretor de Devarim

EDITORIAL

A busca por esta fronteira tem que ser estabelecida, pois sem ela arriscamos perder a alma judaica que justifica o es tabelecimento do Estado. É fundamental que isto seja reco nhecido por todos.

um artigo para o jornal eletrônico ynetnews.com em julho do ano passado, o escritor Yoel Meltzer chamou a atenção para o “caminho do meio” que seria, segundo ele, a principal característica da abordagem judaica com relação às posturas que devemos tomar na vida.

Contudo, a Torá também relata que no processo da saí da do Egito fomos traiçoeiramente atacados por Amalek, ata que este que provoca o mandamento de jamais esquecer a ne cessidade de combater o mal, de compreender que o mun do inclui a traição, a desonestidade e a hipocrisia. Mais uma vez a mensagem da Torá se faz ouvir com clareza: “Não se jam inocentes”, não se comportem como se o mal não exis tisse e entendam que ele não será destruído ou mitigado sem o uso da força.

Claramente, a solução está entre estas duas extremida des e a nossa tragédia está mais na polarização das posturas do que na existência dos diferentes polos. Por razões que não sei explicar, mas que talvez passem pela crescente indolência na arte da leitura e pela “bolha de pensamentos” criada pela internet, cada um dos grupos exacerba gradativamente a sua característica dominante, o que impede o surgimento de um caminho do meio. É necessário ter em mente que a média é sempre uma medida meramente teórica. Uma pessoa que tem a cabeça no forno e os pés na geladeira até pode ter uma tem peratura média aceitável, mas seguramente não tem tempera tura sustentável em nenhum local do corpo.

Em conversa recente com um amigo, falamos sobre um dos versos mais bem formulados de nossas fontes: “Renove nossos dias como antigamente”, que fecha o livro de Eichá / Lamentações. Estas poucas palavras delineiam com perfei ção a busca pelo caminho do meio ao estabelecer o contras te entre o anseio simultâneo por renovação e a proximidade com o passado. Ora, renovar implica forçosamente se afastar do antigo. Contudo, renovar mantendo um pé no passado é a busca do caminho do meio, é a arte de voar sem abando nar as raízes, é o sofrido, porém necessário, equilíbrio entre o novo e o tradicional.

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Ou seja, a busca pelo caminho do meio tem que ser feita por cada pessoa e dentro de cada grupo. Uma sociedade não é sadia se for composta apenas por grupos radicalizados em po sições extremas, mesmo quando a resultante de todos os gru pos corresponde a uma postura razoável. Infelizmente, a po lítica em Israel (e em muitos outros países) não busca de for ma consistente uma agenda nacional aceita por todos e o de bate sadio em torno dos temas divergentes. O abrigo no ex tremismo acarreta a desqualificação dos oponentes, tratados como “fascistas” ou “não patriotas”, com os quais “não é pos sível conversar”, e também na tentativa de exterminar politi camente os adversários em vez da delimitação consensual da delicada fronteira entre a compaixão e a força.

Na crise dos refugiados criados pelas ditaduras islâmicas, o mundo democrático se debate entre dois polos: fazer valer

A busca do caminho do meio é a tentativa de achar um equilíbrio entre duas ou mais forças opostas, valorizando o que elas têm de bom. Esta dialética é manifesta em diversas formas e também nos níveis individual, coletivo e nacional.

O alinhamento político em Israel se dá, basicamente, dentro destas mesmas linhas. Por um lado temos os “falcões”, que só conseguem enxergar o Amalek e que têm como proposta única soluções de força para combatê-lo. E pelo outro lado se movem as “pombas” impulsionadas exclusivamente pela compaixão, o que as leva a defender propostas percebidas pelo público votante como sendo potencialmente destrutivas.

DanielTRADUÇÃOKovarski, Raul Cesar Gottlieb e Ricardo REVISÃOSichel DE MariangelaTEXTOSPaganini (Libra Prod. Textos)

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A reedição de Mein Kampf: um painel de opiniões 50

O Talmud

Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

FOTOGRAFIA DE CAPA Bestdesigns (istockphoto.com)

Rabino Dario E. Bialer 9

DIRETOR DA REVISTA Raul Cesar Gottlieb

A época do terrorismo selfie

Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI.

A luta pela alma de Israel – entrevista com Gadi Gvariahu, presidente do Tag Meir 24

Kehilat Shanghai Rebecca Kanthor 56

Colaboraram neste número: Rabino Andreas Nachama, Rabino Dario Ezequiel Bialer, Fabio Koifman, Rabino Joel Oseran, Matti Friedman, Paulo Geiger, Rebecca Kanthor, Roney Cytrynowicz, Ruth Goldberg, Rabino Sérgio R. Margulies e Vittorio Corinaldi.

A evolução da fé Rabino Sérgio R. Margulies 3

EDIÇÃO DE ARTE Ricardo Assis (Negrito Produção Editorial) Tainá Nunes Costa

Em Poucas Palavras 60 Cócegas no raciocínio Paulo Geiger......................................................................................... 64

A revista Devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br www.devarim.com.br Administração e correspondência: Rua General Severiano, 170 – Botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ

Uma questão de sobrevivência: a filantropia e o judaísmo Ruth Goldberg 39

Matti Friedman 17

Telefone: 21 2156-0444

A contracapa de Devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ. A distribuição de Devarim é gratuita, sendo proibida a sua comercialização.

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SUMÁRIO

PRESIDENTE DA ARI Ricardo Gorodovits

CONSELHO EDITORIAL Breno Casiuch, Rabino Dario E. Bialer, Germano Fraifeld, Henrique Costa Rzezinski, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica Herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies.

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

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EditoraEDIÇÃO Narrativa Um

RABINOS DA ARI Sérgio R. Margulies, Dario E. Bialer

À sombra do “Kotel” Vittorio Corinaldi 33

Um olhar para trás – um olhar para frente Rabino Joel Oseran 44

Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 11, n° 29, abril de 2016

O passo seguinte desta colocação pode ser: É assim porque Deus quer que assim seja. A crença deixa de ser a contemplação do mistério e restringe-se a

Rabino Sérgio Margulies

O crescimento

A EVOLUÇÃO DA FÉ

A crença deixa de ser a contemplação do mistério e restringe-se a definir o desígnio divino. As situações são alia-senosnãoSeexclusivamenteatribuídasàaçãodivina.assiméporqueéassim,hánadaafazer,entãoresignamos.Acrençaàsubmissão.

m bebê vem ao mundo. Brota uma indescritível expressão de ma ravilhar-se com o nascimento. A sensação pelo que os olhos veem, pelo que as mãos tocam e pelos sons escutados percorre a esfera do inacreditável. O choro de vida de um bebê recém-chegado ao mun do ecoa profundamente os mistérios da existência. Sim, a ciência explica os mecanismos da concepção e do nascimento. Como águas de um pequeno rio que desembocam na imensidão do estuário oceânico, estas explicações agora seguem para a vastidão do mistério da vida.

Deixar-se levar por este mistério é caminhar pela esfera da religiosidade. A religiosidade não substitui – e nem deve substituir – as descobertas do avanço científico que permitiram, por exemplo, compreender os mecanismos do sur gimento da vida; mas tampouco estas descobertas suprimem o deslumbramen to que cada vida proporciona.

Aquela pequena vida cresce, aprende a se exprimir, observa o mundo ao seu redor e indaga: Por quê? Os adultos – ora incapazes de responder, ora des providos da vontade de saciar esta curiosidade – respondem: Porque é assim!

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“Como me prostrarei ante o Deus Altíssimo?”

(Tanach: Profetas: Michá 6:6)

O Unascimento

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Por que Você aflige Teu povo Israel?” 3

A adolescência

E lá chega o adolescente com seu inconformismo que rejeita as referências estabelecidas. Pode ser a autoridade suprema – Deus – questionada? É possível inconformar-se com a maneira que julgamos que Deus atua?

O rabino Levi Itzchak de Berditchev (1740-1809) exclamou2:

definir o desígnio divino. Em decorrência, as situações são atribuídas exclusiva mente à ação divina. Neste sentido, se as sim é simplesmente porque é assim, não há nada a fazer, então nos resignamos. A crença alia-se à submissão.

Este inconformismo para com a autoridade divina reflete frustração de expec tativas e, para que não leve ao passo do rompimento com a fé, é preciso reelabo rar a crença.

O que Você quer do Teu povo Israel?

O adulto

De fato, a própria tradição tem se encarregado de es crutinizar seus conceitos à luz de uma fé amadurecida. Importante exemplo vem do filósofo Maimônides (11351204), que afirmou que nosso conhecimento de Deus consiste em saber apenas que não somos capazes de com preendê-Lo. Assim, sobre Deus o que podemos afirmar é tão somente o que não sabemos. É a maturidade da fé, que reconhece o limite humano incapaz de explicar a dimen são divina. Deste modo, Deus não é manipulável por fór mulas, não é uma variável de uma equação.

A infância

Adulto é quem reflete seus conceitos através de sua interação com o mundo. Compreende a fluidez das relações sen do capaz de construir uma vida plena e sincera.Aimportância de reelaborar os pi lares que sustentam a fé evita o próprio debacle da fé. Esta necessidade é alerta da pelo rabino e professor Richard Ru binstein (1924-): “A teologia tradicional judaica mantém que Deus é o definitivo onipotente ator no drama histórico. Cada grande catástrofe na história judaica tem sido interpretada como punição de Deus ao pecador Israel. Não consigo ver como esta posição pode ser preservada sem considerar Hitler e a SS como instru mentos do desejo divino... Esta ideia é simplesmente de mais obscena para aceitá-la...”.

Importante exemplo vem do 1204),Maimônidesfilósofo(1135-queafirmouquenossoconhecimentodeDeusconsisteemsaberapenasquenãosomoscapazesdecompreendê-Lo.Assim,sobreDeusoquepodemosafirmarétãosomenteoquenãosabemos.Destemodo,Deusnãoémanipulávelporfórmulas,nãoéumavariáveldeumaequação.

Aquela criança começa a perceber o seu poder. Não necessariamente mal in tencionada, desenvolve a capacidade de manipular. Não é difícil manipular os que são inseguros, os que querem agradar ou os que são dominados pelo sentimento de culpa. A criança não questiona o poder da autoridade paternal/maternal, mas tenta manipular este poder para que tenha seu desejoSimilarmente,saciado. a fé pode ansiar em ma nipular o poder divino. Ensina o rabino Harold Kushner (1935-) que, nestes ca sos, acreditamos que se falarmos as palavras certas ou exe cutarmos os atos certos Deus fará o que esperamos que faça.1 A religião reveste-se, assim, da falsa esperança de in terferir na atuação divina. Esta concepção religiosa é, na verdade, magia. Enquanto a criança no fundo sabe que há um truque na mágica, a fé infantilizada irrigada pelo fana tismo veda seus olhos para afirmar sua verdade.

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“Bom dia, a Você, poderoso Deus, Eu, Levi Itzchak, filho de Sara de Berditchev, Venho para um julgamento contra Ti, Em nome do Teu povo Israel.

Albert Einstein (1879-1955), provavelmente o maior mestre da história das equações da ciência, reconheceu que as equações não podem ser estendidas a certas regiões. De Maimônides a Einstein, além dos séculos, há uma distân cia na forma de pensar, mas ambos propõem um amadu recimento da fé. Portanto, não é de se surpreender, como observou o professor israelense Max Jammer (1915-2010), que as ideias de ambos sofreram críticas similares.4

Onisciente que seja – Deus busca o ser humano: “Onde você está?” (Bereshit/Gênesis 3:10).

Notas

O amadurecimento genuíno propicia transcendência. Transcendência é a atitude que enxerga além de suas pró prias necessidades e compreende que há um contexto de vida maior que cada um de nós capaz, ao mesmo tempo, de acolher cada um.

O parceiro

De acordo com Maimônides, Shechiná é a luz através da qual Deus reside em dado lugar para mostrar a distin ção daquele lugar.6 Segundo Albert Einstein, a velocidade da luz é o absoluto intransponível. Atingir sua velocidade implica em se desmaterializar.7

4. Jammer, Max. Einstein e a Religião: física e teologia. Rio de Janeiro, Ed. Contrapon to, 2000.

A parceria gera responsabilidade. Se Deus é a causa das causas, Sua presença entre nós é consequência da ação hu mana. A presença divina é, em hebraico, denominada She chiná. O rabino Abba bar Kahana (século 3) comenta: Inicialmente a Shechiná estava junto aos habitantes da ter-

2. Tradução livre.

A terceira idade

A vivência que constrói uma espiritualidade afetiva ex pande o potencial e reconhece os limites. O potencial é proporcionar, através das ações, o sublime absoluto da pre sença divina entre nós e conosco. O limite é a consciência de que, do que e de quem podemos e devemos controlar, sob o risco de desmaterializarmos os propósitos da vida.

7. Matt, Daniel. God & the big bang. Vermont, JLP, 1996.

O Rabino Sérgio R. Margulies serve a ARI – Rio de Janeiro.

6. Urabach, Ephraim. The Sages: their concepts and beliefs. Massachusetts, Harvard Press, 1987.

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Onipotente que seja – Deus requer a parceria humana. O enunciado divino da Torá – “Vocês são minhas testemu nhas, Eu sou Deus” – é interpretado pelo rabino Shimon Bar Iochai (século 2): “Vocês são minhas testemunhas, en tão Eu sou Deus”. Benevolente que seja – Deus requer a benevolência humana tal como Ele clama: “Me faça um santuário para que Eu more neles” (Shemot/Êxodo 25:8).

A transcendência espiritual reconhece que temos res ponsabilidade de estabelecermos uma parceria com Deus. Esperamos que Deus não nos abandone. Similarmente, cabe a nós humanos não abandonarmos Deus. O rabino Abraham Ioshua Heschel (1907-1972) recorda um episódio no qual um judeu observante, numa viagem de trem, convidou outro judeu a rezar junto dele. No entanto, o convite não foi aceito, sem que fosse justificada a recusa. Na manhã seguinte, no prosseguimento da viagem, quan do o judeu observante recitou suas orações, ele juntou-se às preces. O observante perguntou o que havia aconteci do para ele mudar de ideia. A resposta: De repente pensei o quanto solitário Deus deve estar.5

ra, mas com o pecado de Adão partiu para o primeiro céu, seguindo até o sétimo céu. O patriarca Abrahão trouxe a Shechiná de volta para o sexto céu até que Moshé [Moi sés] trouxe-a de volta para a terra. De acordo com esta ale goria, enquanto está além do nosso controle o modo de Deus atuar, reconhecemos o impacto do que efetivamen te controlamos: nossa conduta.

A paternidade

5. Heschel, Abraham. Passion for Truth, Nova Iorque, Farrar, Straus and Giroux, 1973.

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1. Kushner, Harold. ‘Who needs God?, Nova Iorque, Summit Books, 1989.

3. Tradução livre.

Se nos consideramos dignos filhos do Pai Celestial Pro tetor, Avinu She-ba-shamaim, devemos também ser pais protetores da presença divina neste mundo. Também nos responsabilizamos para que esta presença não abandone sua casa ou uma de suas casas – este mundo.

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E isso é uma pena. Pois, embora complexo, tem um conteúdo muito rico para aqueles que buscam referências sérias com o objetivo de construir marcos relevantes de discussão e de criação de práticas significativas.

O TALMUD

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O caos organizacional do Talmud lembra bastante os sentimentos levantadoscompessoaismesmahumanocontraditóriosfrequentementequeoservivencia.Daformaasperguntasseconfundemosquestionamentospelotexto.

Dario E. Bialer

Em outras palavras, se a Torá escrita é importante, a Torá oral é ainda mais decisiva para compreender o judaísmo atual. Não importa se liberal ou orto doxo, o judaísmo, tal como nós o conhecemos, é muito mais talmúdico do queNósbíblico.temos pouco a ver com a sociedade patriarcal, com o judaísmo sacer dotal e com os sacrifícios de animais que abundam na Bíblia. Em contrapar tida, somos fieis herdeiros das discussões sem fim dos rabinos que enchem de vida o Talmud, e, mesmo com a certeza de que não foram escritas por Deus, as páginas do Talmud parecem ser, muitas vezes, um lugar de encontro com Ele.

Não entanto, lamentavelmente, não é um texto que se estude na grande maioria das escolas judaicas, nem se discute muito nas prédicas dos rabinos ou grupos de estudo da maioria das sinagogas.

e a Torá é a pedra angular do judaísmo, o Talmud é o pilar que sustenta seu corpo espiritual e intelectual. Sob muitos aspectos, o Tal mud é o livro mais importante da cultura judaica. Nenhuma outra obra expressa os vários e diferentes aspectos da essência do povo ju deu, nem teve influência comparável sobre a teoria e prática da vida judaica.

S

É difícil imaginar um livro mais relevante para o pensamento moderno do que o Talmud. É um texto de vanguarda. Parece inverossímil que páginas de pergaminhos antiquíssimos abram diante dos nossos olhos hipertextos que de safiem tanto o nosso intelecto.

esordem, excitação, gesticulação veemente, idas e vindas incessantes; assim se apresenta o Beit ha’Midrash: a casa de estudos que serve também como sinagoga e, frequentemente, também de refeitório.Osestudiosos do Talmud carecem da quietude dos monges. O silêncio não é a regra; além das Guemarot, espalham-se em desordem sobre as mesas livros da Torá, de Maimônides, o Shulchan Aruch; livros aber tos e empilhados uns sobre os outros.

Esses textos elásticos, que podem mudar a qualquer momento, são exa tamente o que uma tradição interpretativa1 como o judaísmo precisa. De qualquer forma, de tempos em tempos, quando aumenta o risco que toda essa sabedoria se perca, a Torá oral é editada.

Assim Rabi Iehuda ha Nasi compila a Mishná no ano 220 e.c. São tex tos curtos, em sua maioria haláchicos e escritos em hebraico, entre os quais se destacam as discussões de Hilel e Shamai, Rabi Akiva, Rabi Eliezer e Rabi Meir, entre tantos outros.

Nos ensinamentos orais, a mensagem nunca chega ao destino da mes ma forma como foi originada. Todo aquele que brincou de telefone sem fio (brincadeira que vai ter que inventar um novo nome, pois hoje os tele fones realmente não têm fios!) sabe disso. Você escutou a história de uma forma e, quando vai contá-la, já mudou alguma coisa. Pois bem, no ju daísmo, essa mudança não é traição, mas tradição. Tudo isso faz com que a história que recebi no passado só faça sentido no presente quando eu me aproprio dela, alterando o relato, mudando o enfoque e decidindo o que destacar e o que descartar.

Sabem quando perguntam a um rabino por que isso é assim, por que aquilo não se pode? E a resposta imediata é “porque assim está escrito”. Já ouviram alguma vez essa resposta? Claro que sim! Nestes casos, a meu ver, a próxima pergunta deveria ser: “Por que ele imagina que o que já foi es crito é mais importante do que a coisa nova que se está escrevendo hoje?”

Tradicionalmente diríamos que a somatória de Mishná e Guemará compõe o Talmud, mas a página talmúdica, além de entrelaçar os ensina mentos dos tanaitas da Mishná com os amoraitas da Babilônia e de Israel referidos ao mesmo tema, traz comentários escritos nas margens do texto central. Assim Rashi, tosafot, e as referências de Maimônides, entre outros, dialogam numa discussão transversal e intergeneracional.

Por mais de dois mil anos a Torá oral existe e vibra nas milhares de mentes brilhantes e de corações sábios que consagraram seus dias a estudá-la e ampliá-la. A Torá oral era para permanecer na oralidade. Nos relatos. Nada faria mais sentido no judaísmo do que um livro não escrito que pode mu dar de forma e conteúdo permanentemente.

D

Estudantes sentados e em pé, alguns com um joelho no banco, se inclinam so bre os textos um de cada lado do livro, mas, frequentemente, também um de frente para o outro. Eles leem em voz alta, balançandose para a frente e para trás ou da esquerda para a direita, marcando as articulações di fíceis do raciocínio com amplos gestos do polegar, batendo freneticamente nos livros ou na mesa e até mesmo no ombro do par ceiro de estudos, folheando febrilmente as páginas dos comentários rapidamente reti rados e devolvidos às estantes da vasta bi blioteca que rodeia a sala.

Essas são as palavras de Marc Alain -Ouaknin em seu livro “The Burnt Book” (O livro queimado, título que referencia tan to a revelação divina a Moshé no episódio do arbusto incandescente quanto a queima de cópias do Talmud pela Igreja Católica na Idade Média). ì

A Guemará é o comentário sobre a Mishná. São discussões muito mais extensas registradas em aramaico entre os séculos IV e VI e, embora seu principal objetivo seja interpretar e comentar um livro de lei, é, ao mesmo tempo, uma obra de arte que vai além da legislação e sua aplicação prática.

Os protagonistas desta guerra pela busca do sentido tentam entender, inter pretar e explicar. Raramente concordam, felizmente, sobre o significado da pas sagem estudada. Consultam o professor que explica, toma uma posição sobre a tese proposta e acalma por um momento o combate apaixonado.

Em outra mesa mais distante há o alu no que adormeceu com os braços cruza dos sobre o texto do Talmud; ao lado dele um outro sorve goles de café, fumando um cigarro com o ar meditativo e a concentra ção necessária para um estudo mais apro fundado.Tudose move! O Beit ha’Midrash conhe ce uma efervescência na qual, dia e noite, ecoam as vozes e o rumor infinito do estudo.

Felizmente, diferentemente do passado, hoje em dia é cada vez mais ha bitual encontrar estudiosos do Talmud interessados em hagadá, pois a ha gadá amplia e desafia a halachá. Enquanto a halachá nos dá normas para

Logo após encerrado, as gerações seguintes experimentaram uma fasci nação singular pelo texto do Talmud. A imensa maioria desses sábios, cha mados de Rishonim – os primeiros – e Acharonim – os posteriores –, se dedicaram quase que exclusivamente a extrair halachá do Talmud, relegan do a hagadá a um lugar secundário.

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Além disso, não sabemos qual foi a rea ção dos ouvintes e dos que ouviram a ver são dos ouvintes a respeito do que os sá bios disseram… portanto, decidi não me deixar levar pela versão de estudiosos e sim andar a pé eu mesmo pelas estradas e pelas ruas de Israel, e também pelas rue las e becos de Sura, Pumbedita e Nehar dea na Babilônia. Observar e prestar aten ção à voz da rua.

Então, não, não vimos o rosto dos mes tres enquanto dissertavam. Nós não vimos se estavam sérios, ou se suas palavras fo ram acompanhadas por uma piscadela e um sorriso. Se o que temos na nossa fren te é uma formulação sofisticada, do tipo que não se pode omitir nenhuma palavra, ou se é uma manifestação que simples mente pede a nossa reação. Se são pala vras decorrentes de forte emoção; se é um lugar comum já gasto de tanto uso ou se é um achado original.

O trabalho quase cirúrgico de identificar e extrair a halachá do texto representa o esforço desses sábios em moldar a vida conforme um mode lo fixo, enquanto que a hagadá é a expressão da luta incessante do homem que desafia as limitações que esses moldes supõem.

É por isso que abrir o Talmud sempre resulta um exercício desafiador. Milhares de páginas. Centenas de sugiot2, distribuídas em dezenas de tra tados que abrangem a vida em sua totalidade.

a ação, a hagadá dá uma visão do propósito da vida. Os relatos hagádicos trazem uma elaboração emocional, intuitiva e artística dos grandes assun tos que a halachá discute em seu formato legalista. A articulação dos dois permite uma experiência nova entre o leitor e o Talmud.

Pode parecer que não há espaço para acrescentar mais nada, depois de que tantos sábios ao longo da história fizeram seus comentários desde to dos os pontos de vista imagináveis, mas a cada dia milhares de homens e mulheres ao redor do mundo abrem o Talmud e trazem uma nova luz com surpreendentes inovações.

Cada nação tem suas leis, mas poucas nações registram sistematicamen te os processos, as discussões filosóficas e os argumentos legais que leva ram àquelas leis. Todos sabem que as leis existem por algum motivo. Mas o motivo em si não faz muita diferença no cotidiano das pessoas. Os ju deus são diferentes. O mesmo valor é atribuído ao estudo do processo pelo qual suas leis emergiram do que ao conhecimento das leis em si. Na verda

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Para entender o judaísmo, e penetrar na riqueza do pensamento talmú dico, é preciso atualizar o olhar clássico com o qual o Talmud era estudado, e perceber que entrelaçado em suas linhas há mais do que halachá e hagadá.

Hagadá e halachá estão, de fato, entrelaçadas. Desistir de diferenciá-las significa nos reconciliar com a beleza do texto talmúdico. Combi nar o que halachá tem para aportar na prática com o deleite e a inspi ração da hagadá. É um novo olhar que o Talmud e os leitores merecem. Podemos ser estudiosos profundamente absorvidos com a discussão tal múdica e, ao mesmo tempo, ser sensíveis à poesia, curiosos com os ma tizes, as ironias, os silêncios, os medos e os desejos dos sábios que habi tam a página do Talmud.

Diz o professor Shaul Liberman:

Assim vaguei de um lugar ao outro por centenas de anos. Infelizmente, as ruas es tavam quase desertas. Apenas ocasional mente vi as pessoas indo e vindo. Em con traste, as casas de estudo estavam reple tas de gente. Lá as pessoas iam para expor seus problemas e lá a suas questões eram abordadas. Ali se recolhiam os fatos da vida cotidiana até o seu mais ínfimo pormenor. ì

O que sabemos sobre Eretz Israel e a Diáspora, além de suas relações, che gou até nós através de textos: da literatura dos Tannaim e dos Amoraim e em peque na escala também pela literatura Apócrifa. A maioria das informações veio até nós atra vés da casa de estudo, pelo produto do tra balho dos escribas.

Nos últimos anos estudei Talmud com Ruth Calderon5, que faz um grande aporte para aproximar o público laico desse livro historicamente reverenciado pelos religiosos e ignorado pelos seculares.

Na nossa era pós-freudiana, os em palhamentos professor-aluno e pai-filho, às vezes sobrepostos e metaforicamente próximos, detêm grande fascínio. Pense mos no seguinte: a tradição judaica au toriza e encoraja o aluno a se erguer con tra o professor, discordar dele, provar que está errado, até certo ponto. Este é um momento freudiano, bastante raro nas cul turas tradicionais. E é também uma chave para a inovação intelectual, até certo pon to. Não sabemos se os judeus rabínicos poderiam ter encaminhado a modernida de sozinhos sem aquele poderoso empur rão do mundo exterior. Mas sabemos sim que foram capazes de ensinar ao mundo em processo de modernização uma lição em termos de boa educação questionado ra. E também – como testemunham Marx, Freud e Einstein – algo acerca de figu ras paternas fortes, rebelião intergenera cional, e o repensar de velhas verdades. ( Os judeus e as palavras , página 29). ì

O Talmud, coerente com sua origem de tradição oral, continua incor porando novas interpretações. É um texto tão vivo quanto o povo que o estuda. É símbolo de sua vitalidade.

“Os relatos talmúdicos me fascinam pelo seu colorido, pela sua crueza e pelo drama que contam. O desejável seria ler a narrativa hagádica como uma leitu ra ‘desnuda’, deixando cair a exegese, a moral da história, a ideologia e os pre conceitos. [...] Na visão desnuda há liberdade e contato direto por uma parte, e pela outra, há algo assim como uma reverência diante do sagrado, uma eleva

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Amos Oz e Fania Oz-Salzberger em uníssono:

Falaram

Para que o pensamento crítico esteja presente, disse o rabino Morde chai Kaplan, o ponto de partida da religião não pode ser o dogma nem o cumprimento da lei por imposição de Deus, e sim o entendimento do ju daísmo como uma civilização que cria cultura ao recriar as práticas social mente construídas.

de, é dito que estudá-las é mais importante do que observá-las, visto que o estudo conduz à observância.3

Mas cuidado. Essa observância não tem porque ser mecânica. “Compe te ao adulto refletir sobre a maneira em que valores, crenças e comportamentos previamente considerados sacros possam ser analisados criticamente.”4

O que faz único o judaísmo é sua capacidade de se in teressar não só pela lei, mas também pela condição huma na dos personagens do relato. Nos interessar pelo seu mun do cotidiano, como eram as estruturas familiares e as relações de poder. O que esses rabinos enxergavam desde as suas janelas, quais eram seus costumes na mesa, seus mo dos de vestir e a sua rotina diária. Tinham tempo livre? Como manifestavam sentimentos e como os percebiam? Acaso o amor, tal como nós o entendemos, tinha lugar em suas vidas? Como manifestavam seu sentimento religioso e como concebiam a divindade?

Diz

Nossos rabinos ensinaram: Uma vez, um certo pagão veio a Shamai e perguntou-lhe: “Quantas torot você tem?” “Duas”, ele respondeu: “A Torá escrita e a Torá oral”. “Eu acredito no que diz respeito à escrita, mas não no que diz respeito à Torá oral; me torne um prosélito na condição de me ensinar [somente] a Torá Escrita.” [Mas] Ele [Shamai] repreendeu-o e repeliu-o com raiva. Quando ele [o pagão] foi a Hillel, este aceitou-o como um pro sélito. No primeiro dia, ele lhe ensinou alef, bet, guimel, dalet [as letras do alfabeto]; no dia seguinte ele inverteu [as letras] para ele. “Mas ontem você não me ensinou assim!”, protestou ele [o pagão]. “Você, então, pode confiar em mim [que te ensinei on tem corretamente]? Então confie em mim também com relação à [Torá] oral.” (Masechet Peah, ve Talmud Torah ke neged ku lam – Shabat 31a)

Como cada um se apropria da tradição e quantas mitsvot cada um cumpre é algo pessoal. A tensão em manter e inovar é inerente a toda tradição vivente. Inovar demasiadamente até o ponto de perder a tradição ou não inovar em nada até o pon to de secá-la. (Rabino David Hartman)

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“Bendita é a geração na qual os adultos escutam os mais jo vens.” (Rosh Hashaná 25b)

Quando Deus apareceu a Moshé no Sinai para dar a Torá a Israel, Ele ensinou-lhe Torá, Mishná, Talmud e Agadá como está dito: “Deus disse todos estes estatutos” (Shemot 20:1) – até mesmo o que um estudante viria a perguntar a seu professor [no futuro] foi ensinado a Moshé naquele momento. Depois que ele aprendeu tudo da boca de Deus, Deus instruiu Moshé a ensinar tudo a Israel. Moshé, então, disse a Deus: “Mestre do universo, vou escrever tudo isto para eles”. Deus respondeu: “Eu não que ro dá-la por escrito, porque me foi revelado que idólatras os do minarão, irão roubá-los, e eles serão desonrados pelos idólatras. Vou dar-lhes a Torá escrita, mas a Mishná, o Talmud e a Agadá serão dados a eles por via oral. Portanto, se os adoradores de ídolos escravizarem Israel, Israel continuará a ser apartado deles”. Isso é o que Deus quis dizer quando disse ao profeta [Oséas]: “[Se] Eu escrever para eles a maior parte da Minha Torá, eles serão considerados estranhos. O que, então, vou fazer por Is rael? Vou dar-lhes a Torá escrita, e a Mishná, o Talmud e a Aga dá por via oral”. “Escreva para si mesmo estas palavras, porque com base nessas palavras eu fiz um pacto” – refere-se ao Tal mud oral que separa Israel dos idólatras. (Shemot Rabá 47:1) ì

o Talmud: “Que a Torá nunca seja para ti como um decre to antiquado, mas sim como um decreto recém-emitido, há no máximo dois ou três dias”... mas Ben Azzai disse: nem mes mo como um decreto de dois ou três dias, senão que tenha sido emitido hoje mesmo”. (Pesikta de–Rav Kahana)

O caos organizacional do Talmud lembra bastante os

ção do espírito, e não precisamente porque o Talmud seja um livro sagrado, mas porque acredito que incursionar no mun do da fantasia judaica possibilita o contato com os fundamen tos desta cultura.” 6

Moisés recebeu a Torá no Sinai e a transmitiu a Josué; Josué aos Anciãos; os Anciãos aos Profetas; e os Profetas transmiti ram-na aos Homens da Grande Assembleia. Eles sempre dis seram estas três coisas: sejam prudentes no julgamento; façam muitos discípulos; e ergam uma cerca de segurança em torno da Torá. (Pirke Avot – capítulo 1)

O que significa ser filho de uma tradição interpretativa que me desafia e me interpela permanentemente?

Me apropriar de um livro que não tem apenas a preten são de me ensinar mas também de me perguntar: O que eu penso e como eu me sinto?

4. Brookfield, Stephen. “A critical definition of adult education”, Adult Education Quarterly, Volume 36, Number 1, 1985.

Fazer essas perguntas significa, por um lado, tentar compreender melhor aquele contexto, e pelo outro lado me enxergar a mim mesmo e me perguntar o que signifi ca esse livro para mim.

Talvez, para se apropriar da herança judaica, seja preci so ter o destemor de questionar.

5. Ruth Calderon, ao assumir sua cadeira no Parlamento de Israel, pediu a palavra, abriu o tratado de Ketubot e começou a discorrer lindamente sobre uma de suas passagens, para a surpresa de todos que imaginam ser o Talmud um território ex clusivamente masculino e ortodoxo.

Notas

O Rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Is raelita do Rio de Janeiro - ARI. Completou os estudos rabínicos no Seminário Latinoamericano Marshal T. Mayer em Buenos Aires e no Schechter Institute for Jewish Studies em Jerusalém.

E assim como a discussão no Talmud não é briga –tudo o que eles tentavam era se aproximar mais da verda

1. O conceito de tradição interpretativa é do Rabino David Hartman. Ver entre ou tros seu livro “A Living Covenant”.

2. A Sugiá é uma unidade temática que começa numa Mishná e continua com a Gue mará, até a Mishná seguinte.

Questionar a tudo e a todos, mas sempre a partir de uma posição muito bem informada, num contexto de constante estudo e aprendizado, como o Talmud de fato nos ensina: “A essência da Torá é amar ao próximo. Todo o resto são comentários. Agora vá e estuda!”7

3. Freedman, Harry. “The Talmud. A biography”, 2014.

6. Trecho da introdução da versão em espanhol do livro “El mercado, el hogar, el co razon. Leyendas del Tamud”, Buenos Aires, 2014, de Ruth Calderon.

sentimentos frequentemente contraditórios que o ser humano vivencia. E assim, com a forma não hierarquizada de organização do Talmud, permite entrar e sair por qualquer parte e cada página pode ser vista em si mesma como um todo, e qualquer tratado pode ser o primeiro. Da mesma forma as perguntas pessoais se confundem com os ques tionamentos levantados pelo texto.

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O que eu acrescentaria aos ditos da mishná? Saberia o que responder aos Amoraim quando estão discutindo? O que lhes diria a minha geração? Que aporte singular estamos fa zendo em nossos dias?

7. Talmud Bavli, Shabat 31a.

de a partir da discussão – nós podemos afirmar que na crítica também afiançamos a identidade judaica.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 15 Currículo inovador: Núcleo Comum em diálogo com Cultura Judaica Tecnologia integrada ao projeto pedagógico, da Educação Infantil ao Ensino Médio Primeira escola judaica no ENEM 2014 Uma nova escola judaica: plural, vibrante e conectada. Alto rendimento nos exames de Cambridge e vestibulares Sede Laranjeiras tel 21 2156-6100 Unidade Infantil Ipanema tel 21 2513-3318 Integrantewww.eliezermax.com.brdaRededeEscolas Judaicas Pluralistas

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O efeito disto tudo foi tão perturbador que provocou estresse psicológi co semelhante ao de uma verdadeira guerra, embora o número de vítimas mal chegasse ao de uma escaramuça. Nenhum território foi conquistado ou perdi do, nem concessões exigidas. Como disse um diretor do serviço secreto, “esta mos experimentando uma autolavagem cerebral” através dos nossos computa dores e celulares. O campo de batalha mudou, quase inteiramente, para dentro de nossas próprias mentes.

uitos de nós aqui de Israel se viram, neste outono e inverno, consu mindo uma amostra lamentável de “reality show”: clips borrados de jovens muçulmanos palestinos com facas buscando a redenção por meio de assassinatos, martírios e esfaqueamentos caindo ful minados no chão, tudo devidamente capturado por celulares ou câmeras de segurança; um iman em Gaza brandindo uma faca e convidando os fiéis a nos esquartejar; um guerreiro do Estado Islâmico, nosso novo vizinho, alertando sobre a violência com que ele e seus companheiros nos tratarão.

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A ÉPOCA TERRORISMODO SELFIE

Matti Friedman1

M

No último par de meses tem ficado mais evidente que a confluência de in formação não filtrada, imagens dramáticas de derramamento de sangue e inter pretações fanáticas do islamismo têm convergido para tornar-se uma das prin cipais forças a moldar nossas vidas. Por isso vale a pena definir o momento em que esta força tornou-se séria. Minha seleção, subjetiva e baseada tão somente na minha vivência, pode ser encontrada na primeira página do jornal israelen se Maariv de 31 de outubro de 1994.

O rápido fluxo de informação eletrônica através das fronteiras deu aos propagandistas do Hezbolá de 1994 o acesso imediato a milhões de telespectadores em todo o mundo islâmico, onde o vídeo foi recebido com aplausos e admiração, enquanto que os telespectadores em Israel ficavam horrorizados.

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* * *

Mais abaixo, ainda na primeira página, uma manchete menor: “Exército chocado: soldados fogem de seu posto durante ataque do Hezbolá”. A história aparece na página seguinte com uma foto borrada de um vídeo em que um homem armado é visto cravando uma bandeira no solo.

Dois possíveis cenários eram identificáveis ali, sob a forma de duas histórias. A manchete principal reportava sobre a visita do primeiro-ministro Yitzhak Rabin ao Mar rocos e seu encontro com o rei Hassan. O tratado de paz de Israel com a Jordânia tinha sido celebrado há poucos dias. A foto mostrava um caloroso aperto de mãos entre o primeiro-ministro e o rei, dois homens da mesma idade, e a manchete citava o líder israelense: “A paz é uma casa, e a economia vai mobiliá-la”. Esta época ficou conheci da como a do “novo Oriente Médio”, o título de um li vro otimista publicado por Shimon Peres no ano anterior, que previa uma região tranquila, com novas estradas levando cidadãos da Palestina para fazer compras em Israel, com turistas israelenses comprando nos mercados de Da masco, passando por velhos tanques de guerra enferrujando ao lado da estrada. Ao lado da foto havia uma análise intitulada “Um Banco, não um Tanque.”

Esta última história, já obscura na época e agora esque cida, merece uma explicação.

Dois dias antes, num sábado, uma posição do exérci to israelense em um morro no sul do Líbano começou a ser bombardeada logo após as 8h30 da manhã. Esta posi ção, chamada pelo exército de “Posto Abóbora”, era parte de uma série de posições do exército israelense com trin cheiras, metralhadoras e codinomes bucólicos tais como Cipreste, Limão, Pimenta e Manjericão. Naqueles dias, o exército controlava uma zona tampão dentro do Líba no protegendo a fronteira norte de Israel numa guerra de guerrilha contra os combatentes xiitas do Hezbolá, o Parti do de Deus. O Hezbolá não era a força poderosa que agora vemos dominando o Líbano e lutando na Síria, com 150 mil mísseis apontados para Israel. Na época, o grupo não era levado muito a sério, porém esta pequena guerra, so bre a qual quase nada foi escrito, é uma das chaves para a compreensão do atual Oriente Médio.

Um tenente, movendo-se entre os postos de guarda, teve as costas crivadas de estilhaços e foi levado a uma trin cheira onde os médicos estavam ocupados com outra pes

Membros do exército protestaram, dizendo que o inci dente não foi nada mais do que um ataque repelido. Mas eles estavam presos ao século XX, e o Hezbolá já estava no século XXI. A bandeira era uma encenação de bravura e provocação encenada para a câmera da própria organização, a única arma realmente importante daquela força de assalto. O combatente do Hezbolá não estava envolvido em um ataque real, mas numa teatralização religiosa. Ele estava dizendo a seu público: Olhe para mim, para minha bravura, veja a força da minha fé. Tema-me ou siga-me. Era uma espécie de selfie.

Hoje estamos acostumados a este tipo de filme, mas no outono de 1994 tudo era recente e emocionante, com gritos em árabe, tiros, música marcial.2 No início, a câmera está na altura de arbustos secos na encosta, abaixo do pico, onde estavam as posições israelenses, e bombas do Hezbo lá produziam nuvens de poeira. Alguém de fora da cena grita “só um minuto”. Depois mais uma bomba atinge o alvo e ouve-se “muito bom, muito bom!” Um soldado dispara um foguete de um lançador carrega do nos ombros. Quatro guerrilheiros deixam a trinchei ra e se movem morro acima em direção ao posto avança do seguidos pelo cinegrafista. Eles correm até que a subida íngreme reduz sua velocidade. Não há nenhuma resposta dos israelenses. Quando os combatentes chegam ao topo, um deles planta uma bandeira do Hezbolá triunfalmente com ambas as mãos enquanto a câmera continua filman do. É o pouso na lua Jihadi, o momento Iwo Jima do islamismo militante. Corte.

* * *

O rápido fluxo de informação eletrônica através das fronteiras deu aos propagandistas do Hezbolá de 1994 o acesso imediato a milhões de telespectadores em todo o mundo islâmico, onde o vídeo foi recebido com aplausos e admiração, enquanto que os telespectadores em Israel fi cavam horrorizados. O homem do Hezbolá plantou sua pequena bandeira em aparelhos de TV israelenses muitas e muitas outras vezes. As manchetes chamaram o incidente de “a desgraça”, e o Posto Abóbora logo tornou-se infa me como um símbolo da podridão nas forças armadas. O Hezbolá afirmou ter capturado o morro e tê-lo “purificado de sionistas”, nas palavras de um relato oficial. Na verdade, embora um soldado tenha sido morto, a guarnição estava intacta e os guerrilheiros nunca puseram os pés na base. Depois de plantar a bandeira eles fugiram, o que não foi mostrado no vídeo. O que se viu parecia ser uma vitória, e

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assim em Israel o incidente ganhou as dimensões de uma grande derrota militar. Drama com terroristas não chegam a ser uma novidade, como nos lembram os niilistas da Rússia czarista jogando bom bas, bem como não é novidade o uso de meios de comunicação para ampliar o su cesso militar. Mesmo se você não sabe o que aconteceu em Iwo Jima, você conhe ce a foto dos fuzileiros navais americanos e sua bandeira. Mas o vídeo do Hezbolá representou a semente de uma nova ideia, ou talvez o aperfeiçoamento de ideia anti ga. Já não era necessário fazer nada tão di fícil como matar o Czar, ou capturar uma ilha ou mesmo sequestrar um avião ante os olhos da mí dia mundial, como a OLP fez na década de 1970. A câ mera, naquele caso, não foi uma maneira de ampliar um sucesso, e sim o substituto de um sucesso. Aquela câmera conseguiu dissociar a exibição pública de proezas da reali zação de um objetivo tangível.

Quando os combatentes chegam ao topo, um deles planta uma bandeira do continuaenquantotriunfalmenteHezbolácomambasasmãosacâmerafilmando.ÉopousonaluaJihadi,omomentoIwoJimadoislamismomilitante.

soa, um soldado que havia perdido alguns de seus dedos. Tiros pareciam vir de todas as direções, e os soldados não podiam ver os atacantes. Várias sentinelas que guarda vam o lado oeste abandonaram suas po sições sob o fogo e, em seguida, os guer rilheiros chegaram com seu cinegrafista.

O objetivo dos combatentes em 29 de outubro de 1994 é interessante e importante porque ajuda a explicar o que seus herdeiros e seguidores são até hoje. O secretá rio-geral adjunto do Hezbolá Naim Qassem explicou em livro que a sua organização “não é apenas um grupo armado que pretende libertar um pedaço de terra, nem é uma ferramenta circunstancial cujo papel vai acabar quando o pretexto para usá-la chegar ao fim”. É antes de tudo “uma visão e uma abordagem”. A ideia é não usar a guerra como continuação da política por outros meios, mas de formar o que Qassem chama de “sociedade da resistência”, uma comunidade de fé, onde as pessoas são criadas para acre ditar que a morte em batalha não é uma infeliz necessida

Mas a guerra do Hezbolá nunca foi para apenas forçar Israel para fora do território, e Qassem se gabava em seu livro de ter rejeitado uma oferta israelense para uma reti rada negociada. Não era principalmente sobre território, e a batalha na colina em outubro de 1994 não foi pela co lina. O ataque foi concebido para fornecer uma imagem e um exemplo que iriam mobilizar apoio para uma guer ra santa que não iria acabar pois não era um fim em si. A linguagem militar é menos útil aqui do que a do teatro: a colina não era um objetivo, mas um cenário.

Novas e poderosas ideias podem, muitas vezes, apare cer em vários lugares mais ou menos ao mesmo tempo,

O ataque foi concebido para fornecer uma imagem e um exemplo que iriam mobilizar apoio para uma guerra santa que não iria acabar. A linguagem militar é menos útil aqui do que a do teatro: a colina não era um objetivo, mas um cenário.

de, mas a realização de um ideal religioso. Os membros do Hezbolá não eram radi cais, ou seja, não eram membros de uma sociedade que usa a razão para concluir que a ação extrema irá realizar a deseja da mudança dramática. Eles eram faná ticos: pessoas com uma ideia completa mente diferente do que está acontecendo, do que é a vida e de onde está o futuro. Os iranianos que começaram a dar forma, financiamento e treinamento ao Hezbolá no início da década de 1980 compreenderam o poder inexplorado dessas pessoas, o que muito poucos perceberam naque le momento.Aoserem confrontados com esse tipo de pensamento observadores ocidentais tendem a rejeitá-lo como uma retórica estranha que mascara os tipos de obje tivo que eles conseguem entender. Jornalistas gastam mui ta energia tentando explicar esses objetivos, quando sim plesmente não os inventam (é por isso que, por exemplo, se pode encontrar tanta ginástica mental para explicar que a guerra do Hamas contra Israel tem a ver com o bloqueio de Gaza, quando na verdade o bloqueio foi imposto anos depois que a guerra começou).

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Na década de 1990, nós em Israel entendíamos erradamente o Hezbolá como uma espécie de Vietcong, um gru po ideológico interessado em um pedaço de terra. Muitos observadores compartilhavam o mesmo mal-entendido. A jornalista Hala Jaber assegurou aos leitores num livro so bre o Hezbolá datado de 1997 que, “apesar de sua retóri ca, o Hezbolá sabe que a sua resistência militar terminará assim que Israel se retire do sul do Líbano”.

Nada disso era claro naquele dia de 1994. Quando os editores do Maariv se sentaram para diagramar a primeira pági na de 31 de outubro, colocaram as conversações no Marrocos naquele fim de se mana no topo, com o Posto Abóbora bem abaixo. A par tir daí a notícia migrou para as profundezas do jornal pe las próximas semanas, antes de ser esquecida – exceto pe los soldados que ali estavam e pelos novos soldados que iam e vinham do Posto Abóbora. Assim que cheguei à co lina com a minha companhia de infantaria, três anos de pois, nossos comandantes fizeram questão de confirmar a história. A imagem do santo guerreiro com sua bandeira ficou impressa em nossos cérebros sensíveis e nos mante ve despertos durante os turnos de guarda. No ano seguinte, quando eu, agora sargento, era responsável por meus próprios soldados sobre o monte, deixei-os perfeitamente a par do caso. (Passei os últimos anos entrevistando ex-sol dados e desencavando documentos para um livro sobre o Posto Abóbora que será publicado na primavera deste ano.)

Os guerrilheiros tornaram-se mais fortes e mais esper tos nos anos que se seguiram. Os israelenses não estavam realmente perdendo a guerra no Líbano – as forças não eram nem de longe comparáveis –, mas eles estavam exaus tos. Depois de uma incursão desastrosa no Líbano, em 1997, o Hezbolá exibiu partes de corpos israelenses que tinham sido deixados para trás (mais tarde ergueram um cartaz voltado para Israel mostrando um guerrilheiro se gurando a cabeça decepada de um soldado). Os israelenses começavam a se perceber sendo derrotados e a demanda para a retirada cresceu. Uma noite, em maio de 2000, cin co anos e meio após o vídeo, os soldados da minha com panhia finalmente explodiram o Posto Abóbora quando o exército se retirou do sul do Líbano.

não sendo de estranhar que, enquanto o al-Qaeda estava em incubação, o Hamas fermentava, juntamente com outros pri mos ideológicos da região. O World Tra de Center tinha sido atacado no ano an terior em um mal sucedido ataque, em grande parte considerado uma curiosida de. A “visão e abordagem” foi se espalhan do por todo o Oriente Médio em diferen tes versões sob as aparentemente estagna das ditaduras da região.

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Notas

A retirada deu ao Hezbolá o que ele queria e acabou com a guerra – ou assim pensávamos, porque ainda não entendía mos nem o Hezbolá nem a guerra. Na verdade, os vídeos de veículos israelenses recuando mostraram à audiência do Hezbolá que a “visão e abordagem” fun cionou e pode ser replicada. Poucos me ses após a retirada, no outono de 2000, os palestinos lançaram o ataque que ficou conhecido como a Segunda Intifada. Na TVI palestina vi cenas de protestos de massa em Gaza entremeados de ce nas de tanques israelenses deixando o Líbano no início da quele ano. Os envelhecidos guevaras da velha guarda da OLP recuaram e o Hamas veio à tona. O sucesso do Hez bolá, escreveu Naim Qassem, era “uma luz no fim do túnel palestino, uma esperança de que a libertação pode ser alcançada trilhando o caminho da resistência e o martí rio”. Você não teria que vencer uma batalha ou ceder algo em humilhantes negociações. Em vez disso, você poderia mobilizar apoio e desgastar o inimigo com performances dramáticas – de bravura, de crueldade, de sacrifício e, aci ma de tudo, de fé. Se a sua ideia de vitória é guerra perpé tua, você tem certeza de vencer.

1. Publicado originalmente na revista Tablet em 5 de janeiro de 2016. Reproduzido na Devarim conforme gentil licença do autor.

Matti Friedman é jornalista e escritor. Já trabalhou como repórter no Líbano, Marrocos, Cairo, em Moscou e Washington, além de co brir os conflitos em Israel e no Cáucaso. Foi correspondente da AP, especializado em religião e arqueologia, e contribui com o Tablet, o Jerusalem Report e o Times of Israel. É autor do livro The Alep po Codex (2012) e, conforme abordado neste artigo, vai lançar um livro sobre o Posto Abóbora neste ano. Nasceu em Toronto e vive em TraduzidoJerusalém.doinglês por Daniel Kovarski.

A retirada deu ao Hezbolá o que ele queria e acabou com a guerra – ou assim Hezboláentendíamosporquepensávamos,aindanãonemonemaguerra.

2. https://www.youtube.com/watch?v=LvgbtC9SpS0

Em seus formatos diferentes, e muitas vezes concor rentes, esta “visão e abordagem” tem aparecido desde en tão para preencher quase todos os vácuos no Oriente Médio – sul do Líbano, Gaza, Iraque, Síria, Líbia, Iêmen, Si nai, e outros lugares. As diferentes versões discordam bas tante, mas tendem a partilhar o gosto pela violência tea tral: facas reluzentes, um piloto sendo queimado, um jato espatifando-se em um prédio de escritórios. Como vimos neste outono em Paris, uma das mais recentes etapas deste desempenho, as coisas têm progredido tanto que os prati cantes originais agora parecem mansinhos.

* * *

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Naquele dia, em 1994, praticamente todos os interessados em Oriente Médio pensavam que o importante era o que os líderes falavam. Contudo, os desconhecidos com sua câmera do Posto Abóbora importavam mais.

Assim como os combatentes do Hez bolá sabiam que não iriam tomar o pos to naquele dia, os suicidas nas ruas de Israel agora sabem que não vão causar dano significativo à soberania israelense, nem criar um Estado independente para os palestinos, nem mudar a vida de alguém para melhor. Como os atiradores em Pa ris ou em San Bernadino, eles se movem em um mundo surreal. Eles não são sol dados, mas contadores de histórias. Junta mente com muitos outros nesta região, eles escaparam do desespero penetrando em uma cena cinematográfica agi tada, onde eles são os diretores e as estrelas e todos os ou tros são descartáveis. Todos precisamos entender este fil me, porque nele todos nós figuramos.

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CHAG PESSACH SAMEACH

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m 31 de janeiro passado Devarim esteve em Tel Aviv e entrevistou Gadi Gvariahu, ortodoxo sionista, presidente da organização Tag Meir. Gadi é uma pessoa muito especial, não definível segundo ró tulos prestabelecidos e que, além disso, vai muito além da análise de cenários, agindo ativamente para a mudança da sociedade. Ele é inegavelmente um promotor do tikun olam em nossos tempos.1

Devarim – Por favor, nos conte o que é o Tag Meir. Gadi Gvariahu – O Tag Meir é uma coalizão e um fórum que compreende 51 organizações de todo o espectro israelense, da esquerda à direita, estabeleci da há quatro anos e meio, em virtude do crescimento do racismo e dos crimes de ódio promovidos pelo grupo judaico que se denomina Tag Mechir2 [Etique ta de Preço]. Nós decidimos que já estava na hora de combater esse fenômeno.

Nosso nome provém de um jogo de palavras: Tag Meir significa “Etiqueta de Luz”, um nome foneticamente próximo ao nome do grupo racista, compos to por uma pequena minoria de judeus que mora nos assentamentos.

O Tag Mechir afirma que a violência racista é o preço [“mechir” em he braico] a ser pago pelo fato da sociedade israelense não apoiar a causa dos co lonos da forma como eles acham adequado. Trocamos uma letra e afirmamos que nossa missão é trazer a luz [“meir” significa “aquele que ilumina”] contra a escuridão do racismo.

O Tag Meir é uma coalizão e um fórum que compreende 51 organizações de todo o espectro israelense, da esquerda à direita. Pois, independentemente da opção política, a maioria dos israelenses é contrária aos atos de violência contra inocentes.

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E

A LUTA PELA ALMA DE ISRAEL

Entrevista com Gadi Gvariahu – presidente do Tag Meir

Pode ser uma mesquita que foi incendiada, ou um mo nastério grafitado, ou uma igreja vandalizada e as vezes até mesmo uma sinagoga.

Começamos com seis ou sete organizações, incluindo o movimento Reformista, o movimento Conservador e al gumas organizações ortodoxas, e hoje reunimos 51 mem bros, incluindo o movimento kibutziano, a união nacio nal dos estudantes e muitas outras. Somos muito abertos e representamos, como disse, todo o leque da sociedade israelense, que é muito diversificada. Pois, independente mente da opção política, a maioria dos israelenses é con trária aos atos de violência contra inocentes.

Demonstração do Tag Meir em Jerusalém. O cartaz diz “O povo exige compaixão”, num jogo de palavras entre nechamá (compaixão) e nekamá (vingança).

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Mas é claro que somos mais sensíveis para as coisas que nós estamos fazendo, ou seja, pelos crimes que partem da sociedade israelense. Porque, independentemente de qual quer outra coisa, nós temos que cuidar de nós mesmos, te mos que educar a nossa sociedade.

Gadi Gvariahu – Cada vez que há um crime de ódio, seja ele perpetrado pelo Tag Mechir ou qualquer outro, nós aparecemos na cena do crime, às vezes no mesmo dia, às vezes dois ou três dias depois, com o objetivo de mos trar solidariedade às vítimas e de tentar mitigar o dano causado.

Devarim – E o que vocês fazem?

Por exemplo, ontem mesmo queimaram os livros de uma tenda que era usada como sinagoga em Gush Etzion3, e então nós vamos para lá amanhã mostrar solidariedade e entregar alguns livros novos. Provavelmente foram árabes que queimaram a tenda, mas nós vamos lá assim mesmo. Não categorizamos o racismo. Combatemos ele em todas as suas manifestações. Não distinguimos entre muçulma nos, judeus e cristãos, se for um crime de ódio, nós nos so lidarizamos com as vítimas.

Gadi Gvariahu – Primeiramente, nem toda a socieda de israelense conhece o Tag Meir. O reconhecimento demora e nós começamos há apenas quatro anos e meio. Mas estamos indo bem. Estimo que 20% da sociedade sabe quem somos e o que fazemos. Isto já é bom.

Devarim – Você consegue enxergar uma resposta positi va da sociedade israelense? Como a sociedade israelense percebe o Tag Meir?

Devarim – Você realmente acredita que o racismo vá diminuir em Israel?

É complicado se responsabilizar pelos vizinhos, temos de cuidar primeiramente de nós mesmos, sermos responsáveis pelo que fazemos. Eu não gosto do que os nos sos vizinhos fazem, mas eu tenho menos responsabilidade sobre o que eles fazem.

Gadi Gvariahu – Não, eu não vejo isto acontecendo num futuro próximo. Vivemos um conflito que começou a mais de cem anos e neste momento não vejo luz no final do túnel. Então, teremos mais terrorismo nos dois lados, crimes de ódio nos dois lados, racismo nos dois la dos. Assim, infelizmente, nosso trabalho vai Mascontinuar.temos que seguir com a nossa campanha. Temos que aglutinar os interessados em am bos os lados, judeus e muçulmanos, e trabalhar juntos con tra este terrível fenômeno racista. É um processo que leva tempo.

Gadi Gvariahu – Nas escolas nós en sinamos como tratar do racismo. Principalmente nas es colas religiosas. Porque às vezes você pode cometer erros quando você é religioso. Você pode pensar: “Eu sou reli gioso; eu sou um judeu religioso; a minha religião é a me lhor religião; a religião deles é a pior religião; eu faço par te do povo escolhido”, e assim por diante.

as portas das escolas, adere à causa e contribui de alguma Esperançosamente,forma.no futuro não ha verá mais Tag Mechir e tudo vai ficar bem.

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Além das visitas de solidariedade, de senvolvemos também atividades educati vas. Trabalhamos com escolas, com alu nos e com professores. Trabalhamos com jovens antes e depois de eles servirem o exército. Procuramos atingir toda a sociedade israelense.

Gadi Gvariahu – No começo eles negligenciaram completamente. O terror judaico começou nos anos 1980, bem antes do Tag Mechir. Eram poucas pessoas, mas eram perigosas. Colocaram uma bomba no carro de quatro pre feitos palestinos, tinham planos de explodir a mesquita de Al Aksa, dentre outras coisas. A reação do governo sempre foi tímida e inadequada.

Até que, há um ano e meio, os palestinos sequestra ram e assassinaram três garotos israelenses4 e, em vingan ça, terroristas judeus sequestraram, espancaram e incen diaram vivo um garoto palestino.5 A partir daí, o governo acordou para o problema. E, quando mais tarde houve o atentado contra a família Dawabsheh6, todos entenderam

É claro que somos mais sensíveis para as coisas que nós estamos fazendo, ou seja, pelos crimes que partem da sociedade israelense. É complicado se responsabilizar pelos vizinhos, temos de cuidar primeiramente de nós mesmos, sermos responsáveis pelo que fazemos.

Devarim – E qual é a reação do governo de Israel com relação ao Tag Mechir?

Devarim – O que vocês fazem nas escolas?

Às vezes as pessoas trilham o caminho errado dentro da religião. Pensam que, por serem do povo escolhido, podem tratar os demais como não sendo seres humanos e queimar as suas mesquitas e as suas igrejas.

Fizemos muitas atividades, estivemos na televisão, Ca nal 1, Canal 2, Canal 10, então as pessoas estão nos co nhecendo cada vez mais. E as respostas são muito posi tivas. Temos muito apoio. A grande maioria das pessoas que toma conhecimento do que fazemos nos apoia, abre

Então nós trabalhamos nas escolas, com os professo res, mostrando como evitar estas visões, mostrando e rea firmando que a tradição judaica é humanista e que ela não demoniza nem despreza nem humilha os não judeus.

O Tag Mechir começou em 2006, incitado pelas mes mas pessoas que fizeram parte do terror judaico dos anos 1980. Grafitaram mesquitas, destruíram oliveiras, incen diaram carros. E o governo ignorou o assunto, não deu a devida atenção. Nós fomos a estes lugares e fizemos baru lho. Alertamos o país dizendo: “Agora são mesquitas e oliveiras, amanhã serão casas e depois seres humanos”. Mas não nos escutaram.

E o engraçado é que as pessoas que condenam dar este tratamento aos palestinos, desta vez ficaram caladas. Por outro lado, quem condenou o tratamento da polícia nes te caso são os que apoiam o tratamento violento contra os palestinos. Parece que nenhum dos dois grupos é a favor dos direitos humanos universais. Ambos são a favor de di reitos, mas apenas para a parcela dos humanos com a qual eles se solidarizam.

Devarim – Qual o tamanho do terrorismo judaico?

Gadi Gvariahu – É um erro contar o terror pelo nú mero de aderentes. Porque apenas uma pessoa pode cau sar um dano enorme. Apenas uma pessoa matou o primei ro ministro Rabin. Apenas uma pessoa matou 29 pessoas e feriu 125 enquanto rezavam na caverna de Machpelá [o túmulo dos patriarcas]. Apenas uma pessoa, talvez duas, matou a família em Duma.

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que o assunto era sério. Este evento realmente despertou a sociedade israelense.

Depois disso o governo estabeleceu uma unidade espe cial da polícia dedicada exclusivamente aos crimes nacio nalistas judaicos. É uma unidade grande e competente. E os resultados estão aparecendo. Há duas semanas a Abadia da Dormição em Jerusalém foi vandalizada e eles prende ram os terroristas em dois dias.7

Eles também mantêm presos os terroristas judeus sem permitir a presença de advogados, interrogam violenta mente, enfim, tratam os judeus da mesma forma como tra tam os palestinos. Coisas que não são bonitas e que só se faz numa democracia em condições de grave ameaça. En tão, eu penso que o governo agora reconhece que a amea ça do terror judaico é comparada ao do terror palestino. E isso é um bom sinal. Eu não gosto de nada do que está acontecendo, mas isso é um bom sinal.

Replantando oliveiras na aldeia palestina de Beitilu; na parede ao fundo se vê a palavra nekamá (vingança) grafitada pelo Tag Mechir. Gadi Gvariahu é o segundo agachado, da direita para a esquerda.

Nós tentamos censurar esse livro junto ao Procurador-Geral, mas perdemos. Fomos à Suprema Corte e perde mos lá também. A Suprema Corte ratificou o entendimento do Procurador-Geral de que o livro é apenas “clarifica ção haláchica” e não incitamento. Isto foi um erro terrível.

Devarim – Finalmente, fale um pouco de você.

Encontro em Qalansawe, uma cidade árabe.

Gadi Gvariahu – Eu não sei dizer com certeza. Quan do vamos lá somos tratados com muito respeito. Ao longo do tempo nossas visitas de solidariedade fizeram com que ganhássemos muitos amigos e apoiadores. Penso que estes amigos são sinceros, que eles não pensam que estamos lá apenas para fazer os israelenses parecerem bonzinhos, que eles reconhecem a nossa angústia sincera e que concordam com a nossa agenda.

Devarim – E os palestinos, como eles veem vocês?

cia. Não entendo por que Israel não consegue tratar ade quadamente a nossa religião.

Mas eu também sei que existem os que não querem contato conosco, porque, com o nosso trabalho, nós aju damos a sociedade israelense a parecer melhor. Então al gumas pessoas na sociedade palestina me dizem: não que ro cooperar com você porque eu não quero que Israel pa reça melhor. Então não quero saber de você!

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Você percebe que os extremistas falam o mesmo idioma. Os extremistas de ambos os lados tentam abafar os moderados, pois eles não querem uma solução, eles que rem apenas luta.

Gadi Gvariahu – Eu sou da oitava geração de judeus poloneses que vieram para Jerusalém em 1810. Estudei na faculdade de agricultura em Rechovot, fiz o meu dou

E há também os que incitam, que são basicamente ra binos da extrema direita judaica. Eles estão por trás disto tudo. Há um livro terrível, chamado Torat Hamelech (A Lei do Rei), que fala que é permitido fazer praticamente qualquer coisa com pessoas que não são judias, inclusive com as crianças. O livro diz que “é bom matar os inimi gos” e que o ideal é fazer isso enquanto ainda são crianças. É uma coisa horrorosa!

A sociedade israelense sabe como tratar os corruptos. Não tem medo deles. O [ex-Primeiro Ministro] Olmert está preso e o [ex-Presidente] Katzav está preso e possivel mente em breve haverá um ex-Rabino-Chefe na cadeia. Mas inexplicavelmente a sociedade tem medo destes rabi nos extremistas de direita, que há anos incitam a violên

E veja que existem diferentes círculos. O dos que ma tam e fazem o trabalho sujo é muito pequeno, talvez umas 200 pessoas no máximo. Mas os que apoiam são milha res e milhares e estes estão crescendo, porque as pessoas têm medo dos palestinos, porque há uma guerra. O Ha mas e o ISIS atuam a favor do terrorismo judaico. Um ali menta o outro. Há muitas semelhanças entre o Hamas e o Tag Mechir.

Entregando flores em Jerusalém.

Mas hoje não sou mais um cientista. Depois que Rabin foi assassinado eu de cidi focar em educação, porque entendi que esta era a luta realmente significativa a favor do Estado de Israel. As galinhas são importantes, mas a luta pela educa ção é Fuiprimordial.eaindasou muito ativo. Fundei um grupo escoteiro religioso em Recho vot porque não queria que meus filhos fossem para o [movimento juvenil ortodoxo] Bnei Akiva. Eu entendi antes mesmo do assassinato de Rabin que era fundamental pro mover uma educação mais aberta, mais moderada. Parti

Temos que seguir com a nossa campanha. Temos que aglutinar os interessados em ambos os lados, judeus e muçulmanos, e trabalhar juntos contra este terrível fenômeno racista. É um processo que leva tempo.

cipei da fundação de uma escola religiosa moderna em Kiriat Ekron, que hoje tem 400 alunos; depois me envolvi numa ye shivá em Rechovot e também fundei o movimento Yod Bet Be’Cheshvan [12 do mês judaico de cheshvan, ou seja a data judaica do assassinato de Rabin em 4 de novembro de 1995], que tem o objetivo de promover a tolerância no contexto or todoxo.Sevocê não quer acordar uma manhã e descobrir que seu filho é um louco fanático e racista, você tem que fazer algu ma coisa.

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torado sobre a correlação entre fisiologia e comportamento nas galinhas e o meu pós-doc sobre o enriquecimento alimen tar dos animais de fazenda, que é uma área nova e muito interessante.

Veja que a ortodoxia em Israel se move em diversas direções. Não é nada simples definir tudo o que está acon tecendo. O Shovrim Shtiká8 foi iniciado por soldados sio nistas ortodoxos. Eles são uma organização tremendamen

Oração pela paz dos três jovens sequestrados em Alon Shvut. Gush Etzion, 2014.

Uma ativista do Tag Meir na casa incendiada da família Dawabsheh em Duma, logo após o atentado em junho de 2015.

6. No final de julho de 2015 a casa da família Dawabsheh, na aldeia palestina de Duma, foi atacada com bombas incendiárias por terroristas judeus, resultando em três mortes, inclusive de um bebê de 18 meses de idade.

7. Venerada pelos cristãos por ser o local da morte da Virgem Maria.

Recentemente dei uma palestra no movimento kibutziano. Eles me parabe nizaram e disseram que era muito impor tante que os religiosos resolvessem o pro blema do fanatismo e do racismo em Is rael. Eu disse a eles que não era bem as sim. Que a responsabilidade é de todos e que enquanto não for entendido que a sociedade israelense não pode agir em assuntos fundamentais de forma sectária, com vários grupos que não colaboram, nós não vamos a lugar algum. Ou ainda pior, que nós vamos perder o Estado. A respon sabilidade é de todos. Por isso estou muito feliz pelo Tag Meir ser uma coalizão grande, com organizações de todas as vertentes.Omaisimportante de tudo é que a luta contra o ra cismo em Israel é uma luta pelo futuro do Estado de Is

4. Em 12 de junho de 2014, três jovens judeus foram sequestrados num ponto de ônibus em Alon Shvut, Gush Etzion. Em 30 de junho os três corpos foram encon trados. Eles foram assassinados logo após o sequestro.

5. Um dia após o enterro dos três jovens judeus sequestrados em junho de 2014, dois jovens judeus sequestraram e assassinaram um jovem palestino em Jerusalém. A au tópsia revelou que ele foi queimado enquanto ainda estava vivo.

Os extremistas de ambos os lados tentam abafar os moderados, pois eles não querem uma solução, eles querem apenas luta.

Notas

rael. Esta é uma luta a favor dos judeus em todo o mundo.

8. “Quebrando o Silêncio”, organização que denuncia os episódios de violação de éti ca no exército israelense.

2. Tendo em vista o sutil jogo de palavras no nome dos dois grupos é importante notar que o “ch” nas palavras em hebrai co deste texto deve ser lido com o som de “rr”. Isto é váli do mesmo quando o “ch” estiver no começo de uma palavra.

3. Gush Etzion é um território que fazia parte de Israel pelo plano de partilha de 1947. Foi conquistado pela Jordânia em 1948-9 e reconquis tado por Israel em 1967.

te patriótica. Tenho uma enorme aderência filosófica com eles.

1. Ações para a melhoria do mundo.

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O Kotel não é uma “sinagoga a céu aberto”.

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Vittorio Corinaldi

R

ecebi o exemplar número 28 (dezembro de 2015) de Devarim num momento em que uma notícia fora do âmbito dos acontecimentos atuais causava sensação aqui em Israel: após anos de debate e confronto, o governo decidiu oficialmente destinar o setor meridional do Muro das Lamentações às orações e concentrações de grupos e ritos não ortodoxos, numa área que – tem que ser dito – está carregada de obstáculos de ordem arqueológica e política, mas que esperamos, com uso de criatividade e bom-senso, possa efetivamente vir a preencher a lacuna de longa data.

A decisão refere-se à presença conjunta e sem separação de homens e mu lheres; à condução das rezas por mulheres em igualdade de hierarquia com ra binos homens; e à celebração pluralística dos serviços religiosos segundo ritos livremente adotados pelos participantes – portanto assumindo, entre outras, a legitimidade das comunidades Conservadora e Reformista.

A notícia é sensacional, porque finalmente põe fim à hegemonia ortodoxa neste setor e à anacrônica concepção que vê no Muro ume espécie de “sinago ga a céu aberto”, onde regem costumes que não correspondem à natureza pú blica, civil e universal do local. E, portanto, não serão toleradas imposições ar bitrárias na esplanada que o fronteia e que tem que acolher todos aqueles que desejam a seu modo celebrar sua crença no logradouro que, mais do que sede de rotina religiosa, é um monumento nacional de amplo significado.

DOSOMBRA“KOTEL”

Creio no judaísmo como uma doutrina moral de comportamento social e individual, como um inédito legado de abstração da divindade manifestado no Monoteísmo, além de uma cultura secular que tem que ser mantida e cultivada.

À

É verdade que – com todo o regozijo pela notícia – a intransigência orto doxa levou a uma solução de compromisso, que oficializa a divisão, em vez de

promover uma desinteressada e igualitária união do povo judeu. E, portanto, quanto esta medida possa ser vista como um pre núncio de mudança também nos demais setores em que o domínio ortodoxo esta belece uma obsoleta e revoltante autori dade sobre a população civil (como nas questões do shabat, da kashrut, do casa mento ou da conversão) ainda está para ser Masdemonstrado.omomento é propício para uma reflexão sobre o significado e o alcance dessa abertura, bem como sobre a relação Israel-Diáspora que os movimentos Re formista e Conservador põem em prática: questões que bem se refletem nas páginas de Devarim.

Sobre isto, tomo a liberdade de exprimir uma opinião que – partindo de uma básica identificação com a linha da revista quanto à interpretação do judaísmo – denota também um certo desapontamento pela escassa presença do fator israelense no material (sempre de alto nível) apre sentado pelo periódico, e pelo acento exagerado que a meu ver é dado a questões de comportamento individual e de consciência ou projeção espiritual, em sacrifício da ten dência que reconhece na realização sionista o mais impor tante fator de renovação do judaísmo na época moderna.

Confesso também que a questão da condução das re zas, a leitura da Torá e o uso do talit ou tefilim por mu lheres não está no centro de meu interesse pelo esforço de abertura e atualização que aqueles movimentos lideram: creio no judaísmo como uma doutrina moral de compor tamento social e individual, como um inédito legado de abstração da divindade manifestado no Monoteísmo, além de uma cultura secular que tem que ser mantida e cultivada. É nestes setores que vejo uma função essencial, de for mação e educação, para a mulher; não em gestos demons trativos que mais se parecem com um geral protesto femi nista do que com um autêntico desejo de modificar o obs curo monopólio da religião pelo setor ortodoxo: mono pólio que forçosamente cria no público um autêntico an tagonismo por tudo que se apresenta como procedimen to clerical coercivo.

Neste ponto, porém, forçoso é reconhecer que muito da responsabilidade pela relativa alienação das comunidades judaicas da Golá para com Israel cai sobre ele próprio. A contribuição de Israel no momento presente como líder do judaís mo mundial é absolutamente negativa.

O Sionismo, como movimento de re denção nacional e territorial do povo ju deu, nascido da ligação histórica com a Terra de Israel e fortificado em sua jus tificação ética pelos séculos de discriminação e perseguição e pela catástrofe da Shoá, tendo se constituído como a verda deira renovação criativa do judaísmo, não pode existir sem o coeficiente de justiça e absoluta hones tidade cultural, política e social. Israel não tem razão de existência, a não ser como “Or lagoim”, “Luz para os po vos”, entendida sem qualquer intenção elitista. A mensa gem moral, bem como a experiência de um passado de so frimento, é um imperativo de conduta insubstituível e vi tal para a sobrevivência do Estado, tão importante como a garantia de segurança.

Em contraste com esta vocação, o judaísmo ortodo xo fez brotar de suas fileiras uma corrente fanática, que transporta a intransigência religiosa para terrenos de ativismo messiânico, inspirador dos assentamentos na Ju déia e Samaria. Esta ação, que eles vêm como um “desíg nio divino” que se abriu com a conquista de 1967, exorta os colonos desses assentamentos a recursos falsos e ilegais de apropriação de território. Para atingir sua meta, não hesitam em recorrer à mentira, à invasão e destruição da propriedade, ao desrespeito de elementares direitos hu manos e a repugnantes ações de violência. Instigados pela doutrinação de rabinos traidores de sua verdadeira tare fa, eles adotam como norma seja um arrogante compor tamento de donos do espaço seja a tese da legitimidade da ocupação militar, em que a função do exército seria a de defender seu assentamento com vistas à “Grande Is rael” de seus sonhos, menosprezando a presença de ou tro povo e de uma existente população, e portanto exi gindo de soldados (dentre os quais muitos que se opõem a essa prolongada ocupação e ao papel de policiais a que são obrigados) uma atividade alheia aos objetivos pelos quais são convocados.

Toda opinião equilibrada deve condenar a trágica caricatura de judaísmo que hoje emana dos círculos oficiais de Israel: não somente no plano litúrgico, senão também no comportamento político que afeta o verdadeiro espírito judaico.

Tenho esta impressão embora ciente de que a WUPJ, da qual Devarim é um autorizado porta-voz, tenha o Sio nismo como um dos pilares de sua ação.

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Este quadro só poderia germinar numa realidade polí tica que o encoraja: o governo de direita, que na atual ges tão atingiu um grau de extremismo sem precedentes. O nacionalismo vulgar que o caracteriza casa-se muito bem com o fervor messiânico dos partidários dos assentamen tos. E a manifestação mais evidente deste casamento é a desproporcional inversão de recursos nesses assentamentos, em prejuízo de inúmeros setores da ação nacional ne cessitados de apoio e desenvolvimento. A fervorosa prega ção dos rabinos radicais numa linguagem que contesta ve lada ou abertamente a autoridade civil constituída combi na com a campanha de lavagem cerebral e de censura do pensamento livre, que cada vez mais ganha terreno com a legislação restritiva implementada pela coalisão parlamen tar (de estreita maioria, mas sem uma efetiva oposição).

Numa descarada falsificação dos fatos históricos, eles repetidamente procuram comparar sua ação com a dos “chalutzim” dos anos 30 e 40, que em condições adversas de grande sacrifício lançaram as bases para o futuro Estado, e se estabeleceram em terras legitimamente compradas e redimidas de um desolador secular desleixo, num perío do no qual era o Mandato Britânico, e não um governo judeu, que regia o uso do solo.

Manipulado por pressões interesseiras dos membros de seu governo, e orientado por obsessivo conceito da infali bilidade de sua liderança, mas ao mesmo tempo do sola pamento desta por parte de todo aquele que diverge dela, Netaniahu vem se lançando a inescrupulosas campanhas de legitimação: das opiniões de esquerda, da minoria ára be, do livre-pensamento da intelectualidade, do poder ju diciário milagrosamente ainda independente.

Em paralelo, sua sabotagem “de fato” de toda tentativa de negociação com os palestinos conduz ao estado bina cional, no qual a extrema direita vê uma irresponsável ilu sória supremacia judaica assentada na força e manifestada num verdadeiro regime de segregação que viria oficializar uma situação já de há muito existente: Estado binacional que seria o fim da experiência sionista, o desperdício de uma realidade histórica que não mais se repetirá, a morte do sentido de renovação que eles conferiram ao judaísmo moderno, outrossim condenado ao desaparecimento pela assimilação demográfica e cultural.

Esta é a realidade que se apresenta sempre menos enco rajante para quem convictamente abraçou o ideal de um Estado judeu liberal, justo, aberto, moderno, progressis ta. E é o quadro que só pode afastar os judeus da Diáspo

Este afastamento, ou a consciência da necessidade de lhe opor resistência, abre o caminho para um retorno à religião: um caminho capaz de dar fáceis respos tas dentro do enganoso cômodo terreno da sociedade gentia, sem necessidade de assumir posições de verdadeira responsabilidade, sob a li derança de bem-intencionados orientadores espirituais, ou (o que infelizmente é o caso mais comum) de “falsos pro fetas” de seitas e correntes imbuídas de maior ou menor misticismo, maior ou menor segregação voluntária da rea lidade de nossa época.

Por isso, se de um lado é louvável o cultivo de valores religiosos atualizados através de um debate autêntico e eru dito, como é o que se apresenta aos leitores de Devarim, é preciso que este cultivo se apoie na indispensável centrali dade de Israel na vida judaica contemporânea. E toda opi nião equilibrada deve condenar a trágica caricatura de ju daísmo que hoje emana dos círculos oficiais de Israel: não somente no plano litúrgico, senão também no compor tamento político que afeta o verdadeiro espírito judaico; que reflete sobre a vida pessoal de cada um em Israel tan

Contrariamente a quanto procura di fundir a opinião oficial, é lícito que as comunidades judaicas no mundo se ex pressem e se manifestem sobre o que se passa em Israel e sobre como o mundo nos vê. E não é uma concordância automática com a atuação de nosso governo, nem uma classificação de qualquer crítica ex terna como antissemita ou como oposta à praxe diplomática, que expressa a solidariedade dos judeus do mun do com JudaísmoIsrael.Progressista e Israel genuinamente democrática são duas faces de uma mesma figura. Fatores como De varim são veículos de suma importância para a colocação de ambos na consolidação de nosso povo dentro de sua verdadeira vocação.

to quanto na Golá; que destrói o prestígio e o bom nome de Israel no mundo; que falsifica obscenamente os valores hu manos da realização sionista.

Vittorio Corinaldi é arquiteto formado pela FAU-USP. Mora em Is rael desde 1956 e atuou como arquiteto no quadro do escritório central de planejamento do movimento kibutziano, tendo sido seu arquiteto-chefe por dez anos.

O Sionismo não pode existir sem o coeficiente de justiça e absoluta honestidade cultural, política e social.

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ra – e em especial os jovens – da identificação com Israel.

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F

UMA QUESTÃO SOBREVIVÊNCIADE

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alar sobre filantropia significa falar da história da humanidade e da evolução da praxis do cuidado do homem com o próprio homem e do homem com o seu ambiente. Significa compreender e explorar a responsabilidade dos indivíduos nos âmbitos pessoal, moral e coletivo, sem perder de vista as diversas referências históricas, filosóficas e religiosas.

A filantropia e o judaísmo

No Brasil, o investimentotermosocial privado foi criado para destacar o cuidado mais dirigido, planejado e monitorado na geração de resultados relevantes a partir do repasse voluntário de recursos privados para fins públicos.

Dentro do judaísmo, cada uma das histórias da Bíblia Hebraica, do Talmud e das inúmeras produções literárias traduz uma mensagem importante a ser des vendada relacionada às responsabilidades individuais e coletivas. Identifica-se uma busca constante pela santificação da vida, pela chamada à responsabilida de, pelos valores de honestidade, de lealdade, de ética e pela luta pela liberdade dos oprimidos e por alcançar a justiça.

Ruth Goldberg

Faz-se, portanto, necessário compreender o contexto histórico desde os tem pos bíblicos até os dias de hoje e o papel que indivíduos, organizacões sociais e organizações políticas exercem em cada momento.

Filantropia, do grego, “amor à humanidade”, foi um termo criado para con correr com o conceito de caridade, uma das virtudes do cristianismo, muito as sociado a uma abordagem assistencialista. No Brasil, o termo investimento so cial privado foi criado justamente para destacar o cuidado mais dirigido, plane jado e monitorado na geração de resultados relevantes a partir do repasse vo luntário de recursos privados para fins públicos, prevendo resultados sustentá veis de impacto e transformação social.

Dispersão Busca de Foco Resultado do Processo Impacto Social Estado de Bem-Estar Empoderamento dos Indivíduos

• Nível 1: Permitir ao ser humano tornar-se autossufi ciente. Oferecer empréstimo, presente, emprego, socie dade ou ajuda para encontrar trabalho.

• Nível 2: Preservar o anonimato. O doador não sabe a quem doou e o beneficiado não sabe de quem recebeu a doação.

Amadorismo Profissionalização

Relações Hierarquizadas Co-criação

No judaísmo existem alguns termos que traduzem a prática filantrópica e que reforçam o pacto de solidarieda de humana tão disseminado desde os antigos tempos até os dias de hoje: Tzedacá (justiça), Chessed (compaixão, amor) e Tikun Olam (aperfeiçoar o mundo). Uma das mensagens mais poderosas da Bíblia Hebraica é que as civilizações so brevivem não pela força, mas pela forma como atendem os fracos, não pela riqueza, mas por seu cuidado com os po bres, não pelo poder, mas por preocupar-se com o impo tente. O que torna uma cultura invulnerável é a compai xão que se tem pelo vulnerável.

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DE PARA Abordagem Assistencialista Filantropia Estratégica

• Nível 7: Oferecer menos do que é solicitado e doar de maneira amável.

Atualmente, até as empresas estimulam ações filantró picas no relacionamento com as suas partes interessadas (comunidades do entorno, cadeia de fornecedores, cola boradores, sociedade em geral). Pesquisa recente analisou o perfil do investimento social no Brasil e encontrou os se guintes achados:

• Nível 6: Ajudar o necessitado quando este solicita aju da.

Individual Alianças e IntersetoriaisParcerias

• Nível 4: O beneficiado conhece o doador, mas o doa dor não conhece o beneficiado.

Maimônides (médico, filósofo, matemático e talmudis ta do séc. 12), defensor da ideia do pacto de solidariedade humana, escreveu, com clareza, os oito graus de Tzedacá:

O nível de contribuição financeira para a filantropia, realizado por organizações, tem aumentado nos últimos anos, enquanto o nível de doação de indivíduos continua muitoSãobaixo;poucos os incentivos fiscais (a maioria com foco em cultura), porém, poucas organizações e pessoas se uti lizam desta prerrogativa e há muitas oportunidades a seremAexploradas;estruturalegal brasileira permite formar organizações facilmente, mas não exige a utilização de boas práticas.

• Nível 8: Doar de má vontade.

A filantropia no Brasil é desenvolvida por organizações independentes ou comunitárias (são aproximadamen te 300 mil organizações sem fins lucrativos), por empresas de todos os portes e segmentos, por institutos e fundações empresariais e familiares e por indivíduos;

Estes conceitos e práticas progrediram significativamente ao longo do tempo, e hoje o setor filantrópico, tam bém conhecido como terceiro setor, ou setor sem fins lu crativos, está bastante consolidado, profissionalizado, mo biliza um volume espantoso de recursos financeiros e in cide nas mais variadas áreas (educação, cultura, saúde, di reitos humanos, meio ambiente etc.), além de contar com um grande contingente de voluntários.

• Nível 3: O doador sabe a quem doou, mas o beneficia do não conhece o doador.

• Nível 5: Ajudar o necessitado antes que ele peça ajuda.

Num quadro evolutivo, podemos destacar os seguintes aperfeiçoamentos na prática da filantropia:

Se Tzedacá implica em doar algo material, Chessed (compaixão, amor) é o ato de doar a si mesmo. Doar tem po, trabalho e talento para pessoas e causas de interesse so cial. Também é traduzido como benevolência, bondade e significa amor, expresso pela ação. São os pequenos ges tos de ajuda, compreensão, apoio e amizade que só exis tem quando existe emoção, empatia, capacidade de sen

Tzedacá, uma das obrigações mais importantes do judaísmo, é explicada como a realização de atos de justi ça. Desde as remotas eras rabínicas consta na história que existiram instituições como o Tamchui (cozinha móvel) e Cupá (fundo comunitário) que distribuía alimentos e di nheiro aos pobres (viúvas, órfãos, peregrinos). A doação de Tzedacá ordenava aos judeus doar 10% de sua renda para promover a justiça social (Maasé).

Revista da Associação Religiosa Israelita- | |

• Socialites (conveniência, círculos sociais exclusivos)

Atualmente, até as empresas estimulam ações filantrópicas no sociedadecomrelacionamentoassuaspartesinteressadas:comunidadesdoentorno,cadeiadefornecedores,colaboradores,emgeral.

• Investidores sociais (convicção, filantropia como um Háinvestimento).quemdefenda a ideia de que chegamos ao está gio da Filantropia 4.0. Aquela de alcance global. Aque la orientada para resultados, com ativa participação dos filantropos, e de todos os atores, com uso das habilida

Influenciado pelos ensinamentos de A. J. Heschel (1907-1972) e Martin Buber (1878-1965), o rabino Mar shal Meyer (1930-1993), na tentativa de combinar o par ticular com o universal, os ensinamentos bíblicos com no vas interpretações, estimulou a praxis do ativismo social e político à espiritualidade. Ele antecipou tendências como a preocupação com a ecologia, o diálogo inter-religioso, a promoção dos direitos humanos e as iniciativas colaborativas. Sem dúvida, estes movimentos já estão fazendo história.

O termo Tikun Olam tem origens místicas. Significa consertar, melhorar, aperfeiçoar o mundo, em parceria com D’us.Independentemente de religião, cul tura, nação ou civilização, somos todos seres humanos interconectados por um destino comum, que nos aproxima a cada geração. Salvar apenas a si, nem a si mes mo salva, segundo os aprendizados extraí dos da Bíblia Hebraica. Por outro lado, salvar o mundo e negligenciar os próprios filhos pode ser um descuido irremediá vel. Aqueles aos quais estamos mais próximos têm o direito de esperar que serão as nossas priori dades, mas isto não implica em descuidarmos dos proble mas do mundo.

• Comunitários (atores sociais dentro de um espaço ou comunidade específicos)

Ruth Goldberg é diretora-executiva da Fundação ARYMAX.

• Herdeiros (legado familiar)

des e competências empreededoras, criativas, empáticas e de grande apetite ao ris co. Aquela que percebe a centralidade da política na busca pelas importantes trans formações sociais que o mundo precisa. Já passamos pela filantropia 1.0 (criação de infraestrutura, bibliotecas, hospitais, es colas); 2.0 (criação de fundos patrimo niais); 3.0 (inovações e participação ati va dosComodoadores).forma de dinamizar o judaís mo e se adaptar às novas circunstâncias da vida (globalização, multiculturalismo, demandas sociais e políticas, moderniza ção), mantendo lealdade com o passado e compromisso com o futuro, novos movimentos religio sos surgiram e ampliaram a perspectiva judaica a partir de uma leitura pós-moderna da ética judaica.

• Altruístas (valores internos)

tir o outro e felicidade em poder ajudar.

São inúmeras e particulares as razões e motivações que nos fazem atores do processo de aperfeiçoamento do mun do. Recente estudo americano caracterizou as chamadas sete faces dos filantropos:

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• Devotos (influência religiosa)

Para concluir, apesar do crescimento, da pujança do setor social, das diversas informações e dos conhecimen tos sobre filantropia, ainda são muitos os desafios que temos pela frente e certamente, dentro das fontes judai cas, podemos buscar ensinamentos e coragem para conti nuar praticando Tzedacá, Chessed (Guemilut Chassadim) e Tikun Olam.

• Retribuidores (dívida pessoal em função de alguma ajuda recebida)

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Tive o grande privilégio de ser parte da equipe que lidera a WUPJ, para a qual entrei em 1986. Durante estes 30 anos o ritmo da mudança no mundo em geral tem sido sem precedentes, impactando também em mudanças sem prece

O

Ao longo destes últimos 90 anos, o Judaísmo Progressista tornou-se a maior denominação religiosa judaica no mundo, com 1,8 milhão de adeptos em 50 países. A sede organizacional e programática da WUPJ também se desenvol veu – de Londres em 1926 para Nova York em 1959 e, em seguida, para Jeru salém, em 1973, onde irá, sem dúvida, permanecer, refletindo a centralidade de Israel na vida do povo judeu de todas as partes do mundo.

Rabino Joel Oseran

UM OLHAR PARA TRÁS – UM OLHAR PARA FRENTE

ano de 2016 marca o 90º aniversário da fundação da União Mun dial para o Judaísmo Progressista (WUPJ). O mundo judaico “Progressista” (neste artigo, a palavra Progressista é usada como sinôni mo de Reformista / Liberal) era muito diferente de 90 anos atrás. Seu centro se situava na Europa – na Alemanha, o local de seu nascimento no século 19, e na Grã-Bretanha (Londres), seu centro organizacional a partir do início do século 20. Em 1926, a Hon. Lily Montagu, juntamente com Clau de Montefiore e o Rabino Israel Mattock convidaram a Londres mais de cem pessoas, representando oito países (Alemanha, França, Grã-Bretanha, Romê nia, Tchecoslováquia, Suécia, Índia e Estados Unidos) para implementar a criação de um organismo mundial com a missão de promover os interesses do Judaísmo Progressista.

Reflexões sobre trinta anos de história com a WUPJ

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Será que conseguimos imaginar um mundo judaico hoje sem a apaixonadooliderançaasdasOlam,dedosProgressistainsistêncianamensagemProfetas,noimperativojustiçasocialeTikunnaabsolutaigualdademulheresemtodasesferasdavidaedajudaicaesemnossocompromissoporIsrael?

Lição número um: A relevância de nossa mensagem

A resposta que eu tive foi notavelmente consistente: “Eu não estou interessado em definições ideológicas ou teológicas. Eu não sei o que significa ser judeu e muito me nos o que é ser um judeu progressista, pois nunca me foi

dentes no mundo judaico. Lá nos idos de 1986, quem po deria ter imaginado a queda do comunismo, com a consequente oportunidade de renovação da vida judaica na an tiga União Soviética e Europa Oriental, depois de mais de meio século de repressão? E quem poderia ter imaginado o crescimento sem paralelo da Reforma na América do Nor te que a posicionou como a maior e mais influente deno minação judaica nesta região-chave do mundo? Igualmen te, que a vida judaica na Ásia floresceria com uma congre gação Progressista modelar em Hong Kong e comunidades em Pequim, Xangai, Cingapura e Bangkok? E não menos relevante que tudo isto, quem poderia ter imaginado em 1986 que, em 2016, a porcentagem de judeus israelenses que se identificam com o judaísmo Progressista e Conser vador chegaria a quase 10%?

Quais lições destas três décadas nos ajudam a fazer sen tido às mudanças dramáticas a que assistimos? E o que de vemos fazer nas próximas décadas para garantir que as li ções que aprendemos apoiem a formação de um futuro ainda mais promissor para o judaísmo progressista e para o povo judeu?

Quando, no final dos anos 1980, a URSS estava derre tendo eu viajei para Moscou, Kiev e Minsk para fazer uma pergunta simples aos judeus de lá: você consideraria parti cipar de serviços religiosos, programas culturais e educati vos e colônias para jovens realizadas sob a bandeira do Ju daísmo Progressista? Em outras palavras, teriam os judeus da antiga União Soviética (FSU em inglês) a mente aber ta para uma expressão do judaísmo originada na Europa Ocidental e que jamais havia se enraizado naquela região? Sendo uma organização construída sobre os valores do Ilu minismo, a WUPJ não poderia supor que os “Judeus do Silêncio” (como Eli Wiesel descreveu os judeus da URSS) aceitariam naturalmente o Judaísmo Progressista e seus en sinamentos de igualitarismo, de justiça social e de escolha individual quanto ao cumprimento das mitsvot.

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Ao longo dos últimos 90 anos, o Judaísmo Progressista tornou-se a maior denominação religiosa judaica no mundo, com 1,8 milhões de adeptos em 50 países.

Enquanto a sombra escura de iluminado,espalhafundamentalistacrescentementeultra-Ortodoxiaumaintoleranteesepelomundo,apromessadeumjudaísmoliberalhumanistaecentradoemvaloresnuncafoitãonecessária.

permitido aprender nada sobre isto. Mas eu amo Israel, eu amo o hebraico, eu amo as tradições e a cultura judaicas e preciso de ajuda para voltar a viver uma vida ju daica. Se você me apoiar, vou aprender contigo”. A partir desse estado de espíri to, aberto para uma abordagem não orto doxa e não haláchica da vida judaica, os judeus da FSU constituíram, junto com a WUPJ, mais de 40 congregações progres sivas, inclusive construindo grandes edi fícios comunitários em Moscou, São Petersburgo, Kiev e Minsk . O maior mo vimento juvenil religioso judaico ativo hoje na FSU é a nossa juventude Netzer Olami. E tudo isso foi conseguido com apenas seis rabinos Progressistas nativos, numa região onde moram mais de um milhão de judeus!

A lição que nós judeus aprendemos tarde demais para salvar seis milhões de nossos familiares durante a Shoá é a que mais devemos aprofundar em nossa consciência hoje: o Estado de Israel é a úni ca terra natal e ancestral do povo judeu, cujas portas deverão estar sempre abertas para acolher-nos. O povo judeu está en raizado na alma e no solo1 da terra de Is rael (uma frase que aprendi com meu professor e mentor Rabino Richard Hirsch) e o nosso futuro está intimamen te ligado à criação de um Estado judeu nacional, demo crático, moderno e pluralista nesta pátria.

Lição número dois: A centralidade de Israel – A importância de uma diáspora forte

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Será que conseguimos imaginar um mundo judaico hoje sem a insistência Progressista na mensagem dos Pro fetas, no imperativo de justiça social e Tikun Olam, na absoluta igualdade das mulheres em todas as esferas da vida e da liderança judaica, no compromisso para com os es tudos judaicos, no respeito às muitas verdades que apren demos de todas as fontes de conhecimento e sem o nos so compromisso apaixonado de Israel como lar nacional, democrático e pluralista do nosso povo? Enquanto a som bra escura de uma ultra-Ortodoxia crescentemente intole rante e fundamentalista se espalha pelo mundo, a promes

Tive o privilégio de ter servido a WUPJ nestas últimas três décadas a partir de Jerusalém, que foi e continua a ser o centro das operações para os judeus em necessidade do mundo. Na década de 1970 (ainda estudante rabínico) eu

sa de um judaísmo liberal iluminado, humanista e centrado em valores nunca foi tão necessária.

O que está por trás do sucesso do Judaísmo Progressista na FSU é o fato de que, apesar da grande maioria dos ju deus na região terem ficado isolados por séculos dos valores e das ideias modernas, uma vez que os ensinamentos do Ju daísmo Progressista se tornaram uma opção real, eles foram rapidamente absorvidos. Foi a nossa mensagem e não o nosso orçamento que atraiu os judeus da antiga União So viética. Os judeus do mundo moderno pós-iluminista são surpreendentemente similares, independentemente de sua localização geográfica e de suas normas culturais e históri cas. Eles apreciam a tradição, eles querem aprender e pra ticar, mas não aceitam a insistência ortodoxa na observa ção da Halachá como o pré-requisito para uma vida judai ca plena e significativa. Isto é verdade não só para os judeus da FSU, mas para os judeus da América do Norte, Europa, Austrália, América Latina, África do Sul e de Israel.

Esta lição em nada minimiza a importância de uma vida judaica forte e dinâmica na Diáspora. Como um america no-israelense que viveu quase metade da vida em Israel, eu vejo, mais claramente agora do que nunca, a profunda rela ção entre o centro (Israel) e a periferia (Diáspora). Eu digo até mesmo que o futuro de um depende do futuro do ou tro. Ao longo da nossa longa história como povo, estes dois pontos focais nunca foram autossuficientes. Um sempre necessitou do outro. A história judaica moderna reforçou claramente essa lição. Sem os judeus da diáspora, o Estado de Israel não teria vingado. Sem o Estado de Israel, os mi lhões de judeus cativos do comunismo na Europa Oriental e na União Soviética (os ossos secos da passagem do Profe ta Ezequiel) teriam murchado e perdido a sua identidade judaica. Sem o Estado de Israel, os milhões de judeus que construíram os impressionantes centros de vida judaica da Europa Ocidental e da América do Norte perderiam sua âncora fundamental para com a coletividade universal ju daica levando a uma maior assimilação e à diluição da nos sa natureza essencial como uma civilização religiosa.

sediada em Israel e está comprometida com o desenvolvi mento do judaísmo progressista aqui, porque o futuro do povo judeu repousa num Estado de Israel que seja demo crático e pluralista.

Lição número três: Os judeus Progressistas devem acreditar em si

O vínculo entre Israel e Diáspora é a chave para se compreender o desenvolvimento do Judaísmo Progressis ta em Israel e sua importância para o futuro dos judeus em todo o mundo. Para que o Estado de Israel cumpra a missão de ser a casa do povo judeu, temos de assegurar que os judeus de todas as origens e orientações religiosas sejam reconhecidos em Israel e que tenham igual condi ção de observar e praticar o seu judaísmo. A WUPJ está

conheci “refuseniks”2 nos parques escuros e sombrios de Moscou e Kiev alimentando suas almas e esperanças, num esforço orquestrado a partir de Jerusalém. Trabalhando a partir de Jerusalém, em cooperação com organismos judai cos internacionais e do governo de Israel, eu ajudei a plan tar as sementes do Judaísmo Progressista para centenas de milhares de “membros da família” que emergiam para a luz da liberdade religiosa. Junto com rabinos israelenses e professores talentosos publicamos livros de oração, tradu zimos o Chumash do Plaut e estabelecemos o maior movimento juvenil judaico da FSU (Netzer Olami).

Ao mesmo tempo, foi o esforço e a dedicação genero sa dos judeus Reformistas da América do Norte, do Reino Unido e de outros centros da WUPJ que permitiu que o trabalho baseado em Jerusalém prosperasse. Sem a lideran ça (laica e rabínica) da WUPJ e os recursos da Diáspora, o renascimento da vida judaica na FSU e Europa Oriental nunca teriam acontecido. Sem o apoio generoso da WUPJ para com congregações emergentes na Ásia, América Lati na e em Israel, milhares de judeus permaneceriam margi nalizados em suas raízes e identidade judaica.

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Quem poderia imaginar que em 2016 a porcentagem de judeus israelenses que se identificam com o judaísmo Progressista e Conservador che garia a quase 10%?

Partilho esta terceira lição com algum pesar. Mesmo conhecendo inúmeros líderes Progressistas apaixonados e comprometidos com a causa, percebo que existem dema siados judeus que não são suficientemente informados so bre a tradição judaica, que são ambivalentes sobre a legi timidade do Judaísmo Progressista e que são muito facil mente convencidos a abrir mão para a ortodoxia, incluindo aí o Chabad, do controle sobre os assuntos comunitários. Deixem-me ser perfeitamente claro – como um plura lista, não tenho nada contra e tenho muito respeito para com os nossos irmãos ortodoxos que acreditam firmemen te na sua abordagem judaica fundamentada na Halachá. Porém este respeito deve ser mútuo – e nós do movimento Progressista não podemos permanecer em silêncio quando a nossa abordagem liberal é discriminada por organismos comunitários. Devemos ter coragem e autoconfiança para exigir a equanimidade na distribuição dos recursos comu nais. Devemos apaixonadamente acreditar em nossos ca minhos – pois como podemos esperar que os demais nos reconheçam se nós mesmos hesitamos em acreditar que somos verdadeiramente merecedores de reconhecimento?

Lição número quatro: Precisamos de mais rabinos Progressistas no mundo

Os judeus Progressistas devem lutar essa luta juntos. Os que estão na linha de frente precisam acreditar na jus tiça e na legitimidade desta batalha. Aqueles mais afasta dos também devem ter preocupação pela justiça. Se dei xarmos de crer na necessidade indiscutível e na legitimi dade da nossa abordagem progressista vamos deixar de ser um farol de luz para a grande maioria dos judeus aliena dos de sua tradição religiosa que nos procuram em seu ca minho de volta para casa.

A crítica acima pode parecer injustificada no contexto da América do Norte, onde a Reforma é de longe a maior e mais influente das denominações judaicas. Contudo, nas comunidades onde o Judaísmo Progressista é minoritário não é simples exigir nossos direitos enfrentando organis mos comunais, histórica e/ou legalmente afiliados às lide ranças rabínicas ortodoxas. Não é simples alcançar os ju deus dessas comunidades quando nos é negado o acesso aos recursos comunitários (e, em alguns países, governa mentais) necessários para promover a nossa mensagem e atrair os não afiliados para a religião e o estudo.

todoxas. O que mais prejudica a nossa capacidade de al cançar mais judeus e ajudá-los a retornar ao judaísmo é a falta de Muitasrabinos.vezesbrincamos que não há nenhum canto do planeta onde um rabino Chabad não esteja trabalhando com afinco (geralmente com sua esposa e um pequeno exército de crianças), construíndo vidas e comunidades ju daicas. É realmente muito simples. Um rabino Chabad ge ralmente chega a uma comunidade com fundos suficientes para um ou dois anos de trabalho. Após esse período inicial, ou ele afunda ou sobrevive. E ele encontra formas de levantar fundos, de atrair discípulos e de criar perspectivas de crescimento. Será que ele tem a mensagem vencedora? Na verdade não. Será que ele tem a vantagem de, estan do no local, de influenciar pessoas no dia a dia com com promisso, criatividade e compaixão? Definitivamente sim.

Uma das lições que aprendi no início de meu traba lho com a WUPJ e que foi confirmada ano após ano é uma simples verdade: o maior obstáculo que enfrenta mos não é falta de dinheiro, nem a falta de edifícios, nem a falta de reconhecimento por parte das instituições or

Permitam-me ser perfeitamente claro: os rabinos do Chabad raramente conseguem mudar a mente das pessoas a respeito de ideologia e observância ritual. A maioria dos judeus que encontram o seu caminho nas casas do Chabad em todo o mundo não se “convertem” ao judaísmo ortodoxo. Eles normalmente se tornam “aderentes” ao judaís mo e se unem num formato organizacional menos buro crático. O rabino está lá para acolhê-lo – para ligá-lo com a Torá, para alimentá-lo e para estar junto em momentos de necessidade. E quando isso acontece, com frequência a pessoa também está lá para o rabino, independentemente dela realmente compartilhar a posição teológica ou ideo lógica do rabino.

A WUPJ foi fundada em 1926 com a missão de promover os interesses do Judaísmo Progressista.

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Mas nosso movimento não visualiza o recrutamento, a formação e o subsequente estabelecimen to estratégico de rabinos como um objetivo supremo. Nós separamos completamente a formação de rabinos do “esta belecimento” de rabinos. Os nossos seminários são respon sáveis pelo recrutamento e formação e as nossas congrega ções são responsáveis por empregar os graduados. Nossos seminários atuam de forma semelhante às escolas de di reito ou de engenharia, como uma instituição de forma çãoContudo,profissional.rabinos

Mas então eu me lembro como nos sas congregações têm sido fundadas em todo o mundo. De Tyumen, Rússia, para Xangai, China; de Roma, Itália, para San Jose, Costa Rica; de Hameln, Alemanha, para Rosh Pina, Israel. Cidade após cidade, bastou apenas uma pessoa para criar a comunidade e inspirar outras pessoas a participar dela. Foi meu privilégio ao longo destes anos ter trabalhado com tantos desses “Uns”, almas comprometidas, dedicadas e apaixo nadas por seu judaísmo e pela necessidade de criar uma comunidade. É simplesmente incrível o que uma pessoa pode fazer quando, como se diz em hebraico, a pessoa é “meshuga l’davar” (louca por algo). Então, muitas vezes, uma mudança real no mundo ocorre apenas porque uma pessoa se dedicou a fazê-lo.

No Brasil e na Argentina, em particular, a falta de rabinos progressistas têm sido o principal fator deletério no crescimento do JudaísmoJudeusmovimento.naAméricaLatinanecessitamdodinamismodoProgressista.

Eu vi na WUPJ que onde quer que tenhamos rabinos competentes lideran do congregações temos comunidades de grande sucesso. No Brasil e na Argentina, em particular, a falta de rabinos progres sistas tem sido o principal fator deletério no crescimento do movimento. Judeus na América Latina necessitam do dinamismo do Judaísmo Progressista e da experiên cia comprovada de nosso movimento em trabalhar com as famílias inter-religiosas e com os desafios da assimilação. Se o nosso movimento tivesse mais dez rabinos na AL, nosso movimento ganharia força para uma grande mudança na região.

Lição número cinco: O Poder do Indivíduo

Eu também aprendi ao longo dos anos quão instru mental pode ser apenas um doador que garanta a imple mentação de projetos criticamente importantes. Fui abençoado por conhecer muitos desses indivíduos. E mais fre quentemente do que não, estes “Uns” se tornam amigos e inspiram não apenas os profissionais, mas também outros líderes a se tornarem um outro “Um”.

Ao olhar para trás, em meus 30 anos com a WUPJ, o meu maior prazer foi ter atendido a esses “Uns”. Esses lí deres surpreendentes, esses doadores comprometidos. Es ses amigos inspiradores que, juntos, formam a família da União Mundial para o Judaísmo Progressista.

2. Nota do tradutor: os cidadãos soviéticos que aplicaram para imigração e tiveram seu pleito negado pelas autoridades.

são necessários onde quer que vivam judeus e não apenas onde haja uma congregação que pode pagar o salário do rabino. Ou seja, primeiro vem o rabino e em seguida vem a congregação.

Se queremos que as futuras gerações de judeus perma neçam comprometidas com o judaísmo, devemos prover rabinos para liderar o caminho em Israel, Europa, Amé rica Latina e na FSU. E temos de criar formas para ga rantir que esses rabinos sejam devidamente remunerados. Não assumindo o modelo do Chabad, mas usando o nos so próprio engajamento e criatividade para desenhar mo delos que garantam mais rabinos servindo as comunidades judaicas que os demandam.

Talvez a lição mais inspiradora que eu aprendi nos meus 30 anos de serviço à WUPJ é a lição que eu chamo O Po der do Indivíduo.3 O poder do indivíduo de fazer a dife rença – muitas vezes contra todas as probabilidades. Mui

Notas

3. Nota do tradutor: “The Power of One” no original.

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O Rabino Joel Oseran é vice-presidente de Relações Internacio nais da WUPJ. Ele vai se aposentar em agosto de 2016.

Traduzido do inglês por Raul Cesar Gottlieb.

1. Nota do tradutor: em inglês “soul and soil” no original, duas palavras foneticamen te próximas.

tas vezes nos desiludimos com a aparente complexidade do mundo e compramos a ideia de que uma pessoa sozinha não tem chances contra o sistema. Que para fazer a diferença necessitamos de dinheiro, de poder e de um grande time de apoiadores.

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A REEDIÇÃO DE MEIN KAMPF: UM PAINEL DE OPINIÕES

Rabino Andreas Nachama

estes últimos dias dois livros, bastante distintos, entraram em domínio público na medida em que seus autores faleceram há 70 anos: Mein Kampf, de Adolf Hitler, e o Diário de Anne Frank. Ambos os livros são comercializados pela internet em versões não autoriza das. Enquanto a bem-feita escrita de Anne Frank relata de forma tocante a vida e as expectativas de uma vítima do terror nacional-socialista, o primeiro livro expõe o racis mo causador daqueles crimes e, em função da baixa quali dade no uso do idioma, é uma leitura difícil.

Constitui uma provação para o leitor a leitura do pri meiro volume do Mein Kampf, publicado pela editora Landsberg: Era necessário que a Inglaterra abrisse mão das colônias e do transporte marítimo, o que diminuiria mui to a concorrência britânica ao comércio alemão. E a par tir desta observação vem a pretensão de conquistar a In glaterra, através de medidas restritivas, seja pela via maríti ma, bem como por parcerias comerciais. Disso surge a ilu são da criação de um espaço político misturado com insa nidade racista: o grande estado do Oeste (no caso a União Soviética) estaria no ponto de colapso. O término do do

N

Ele ressurge

mínio judaico na Rússia determinaria o seu fim. Nós nos vemos sujeitos ao destino, como testemunhas de uma catástrofe para implementação de uma insana teoria racial. São 780 páginas – porém poucos conseguiram lê-las com pletamente na época em que o livro foi escrito, o que me parece ser um fato que irá se repetir nos dias atuais. Não acredito que o livro se preste para conquistar, nos dias de hoje, pessoas para o ideal nazista.

Assim, Mein Kampf encontra-se no comércio nova mente. Ele aparece, de forma comentada, pelo Instituto de História Atual (Institut für Zeitgeschichte), uma das instituições de pesquisa mais renomadas no século XX. Deve ser dito que já existiam versões parciais comentadas ou monografias, como a de Sven Felix Kellerhof, através da obra A carreira de um livro (Die Karriere ei nes Buches), que documentou a loucura do texto de Hi tler e quão pouco críveis são suas ideias. Óbvio que nós historiadores poderíamos, para fins científicos, obter a obra em bibliotecas ou arquivos, bem como encomen dá-la sem muito ônus financeiro. Então por que o alar de pelo lançamento do livro? Ou perguntando de outra

Kellerhoff observa que, das 780 páginas, cerca de 600 se referem ao ódio contra os judeus. Por seu turno, ele também aponta que esse preconceito pode ser respondido através de argumentação, de uma forma que faça o antis semitismo ser completamente restringido. E é exatamente aí que se coloca o problema do texto. Ele é – assim como os Protocolos dos Sábios de Sião – uma obra fundamental para os antissemitas. Estes não vão se sensibilizar por me lhores que sejam os comentários. Como pano de fundo, eis que existe um antissemitismo crescente no meio da so ciedade e, levando-se em conta um racismo sempre laten te e uma nova modalidade de antissemitismo, importada do Oriente Médio, o conteúdo do livro pode sim se tor nar um símbolo de ódio.

Publicado no jornal Jüdische Allgemeine, 7 de janeiro de 2016. Tra duzido do alemão por Ricardo Sichel.

forma: com todo o conhecimento e esclarecimento históricos que amealhamos, qual grande ameaça pode de correr do lançamento dele?

penais o acompanhamento da distribuição do livro. Com a expiração dos direitos autorais cresce o perigo que esta obra apareça com força no mercado. Conversando com so breviventes da Shoá, temos, na maioria das respostas, um ressentimento profundo pela nova publicação desta obra.

Ao término do primeiro quadrimestre poderemos ter uma avaliação inicial de como a sociedade alemã, bem como a internacional, reagiram à obra comentada pelo Instituto de História Atual. Como historiador tenho a convicção de que da forma como preconizada pelo livro, o antissemitismo, o racismo e o militarismo não ganharão guarida, porém como rabino tenho a consciência de que a maioria que sofreu ante ao terror nazista esteja receosa e preocupada com esta obra de Hitler.

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Andreas Nachama é Rabino, historiador e editor.

Nesse sentido, a avaliação pela Confederação Judaica (Zentralrat der Juden) tem sido difícil: ela advertiu quanto a uma versão sem comentários, exigindo das autoridades

E isto já é ruim o suficiente. P

Capas de revistas numa banca de jornais do Rio de Janeiro – foto de Fábio Koifman.

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Por outro lado, mesmo considerando a notoriedade do autor, que dispensa maiores apresentações e comentários, ou da obra, que também é de péssima qualidade em todos os sentidos, trata-se de um texto que ofende, difama e que tem por fim explicitamente a incitar o ódio contra todos os judeus. A quase totalidade do livro foi escrita com esse esforço e propósito. Nos dias de hoje, nenhum editor pen saria em publicar uma obra de equivalente conteúdo ofen dendo, difamando e incitando o ódio contra qualquer ou tro grupo humano. Tal iniciativa seria enquadrada pela lei e o livro seria recolhido.

O provável interesse das editoras no Brasil em publicar Mein Kampf é explicado por seu potencial de venda. Levando-se em consideração o mercado editorial de revis tas de diferentes naturezas, é possível dizer que “os maiores vendedores” de revistas, ou seja, os rostos que mais apare cem nesse tipo de publicação são os de Hitler e Jesus. Nos últimos cinco anos tenho registrado sistematicamente, por meio de fotografia, quantas vezes a imagem de Hitler figu ra nas capas de revistas nas bancas de jornais. E, por esse meio, posso afirmar que os dois personagens citados são os que aparecem de maneira mais acentuada e recorren te, sendo que o rosto do líder nazista é aquele que é visto com maior incidência.

Apenas cito como exemplos de publicações ofensivas que me ocorrem por se tratarem de incitação ao ódio e, es sencialmente, material propagador e justificador de injus tiças e tentativas torpes de demonizar pessoas ou relativizar a violência contra inocentes já massacrados por cruéis opressores. São propaganda e mentira, como Minha Luta é essencialmente um panfleto de propaganda e mentira.

Na Turquia há um museu no qual é reproduzida a versão de que não só o genocídio armênio não ocorreu, mas também algumas teorias nas quais um número significa tivo de turcos foram, na mesma época e locais, assassinados por armênios. O museu vende livros com textos e fo tos reiterando essa versão dos fatos.

O tema da repulsa, da intolerância, da falsificação da verdade e da incitação ao ódio é de interesse universal, pois infelizmente essas violações dos Direitos Humanos foram e seguem sendo recorrentes nas sociedades. Os ju deus generalizadamente atacados por Hitler na obra de 1925 estão muito longe de serem o único povo a sofrer com tal infâmia.

O objetivo da demonização dirigida às vítimas de ho micídios, crimes terríveis e graves violações dos direitos humanos, ou tão somente a gente diferente, é algo que a História demonstra merecer a atenção da sociedade.

A

A reedição de Mein Kampf

Os exemplos acima estão muito longe da dimensão que Hitler, o nazismo e a ideologia iniciada e previamente anunciada com a publicação de Mein Kampf representaria na vida de milhões de judeus.

entrada em domínio público da obra Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler, naturalmente tem despertado debate. Já há muitos anos não é difícil adquirir um exemplar desse livro no Brasil em livrarias e feiras de livros. Com o advento da internet, a compra ficou ainda mais fácil e até o acesso gratuito é possível por meio de pdf, entre outros meios.

O interesse econômico relacionado ao potencial de venda é compreensível para uma obra cujos dez por cento de praxe que seriam recolhidos aos detentores dos direitos autorais da obra hoje passam a integrar o lucro da edito ra que resolver publicá-la. Penso que polêmica e, especial mente, censura sejam ótimas contribuições – muitas ve zes involuntárias – para marketing. Considerando que no caso específico a censura é inútil, tamanha facilidade em ter acesso ao conteúdo desse livro. Assim que foge à lógi ca advogar a sua não circulação.

Do mesmo modo, no Tibet a versão oficial do ocu pante chinês relacionada aos conflitos que determinaram as mortes, o exílio, o transfer populacional maciço e a des truição de templos e monastérios segue os argumentos de monizadores e desqualificantes das publicações oficiais que a China ali publica e distribui, em um Estado no qual hoje os tibetanos são minoria da população residente.

Fábio Koifman

Essas publicações de propaganda todas, mesmo com

Nos dias de hoje circulam pela internet um número significativo de artigos altamente ofensivos à totalidade dos muçulmanos, com teorias difamatórias em relação ao Profeta Mohamed e textos com comentários preconceituo sos e distorcidos em relação ao Corão.

Quando eu era criança e jogava futebol na escola, alguns colegas eram muito ruins no esporte. Deles diziam que não seria necessário “marcar”, ou seja, um outro jo gador acompanhá-lo ao longo do campo de defesa, pois “a natureza marca”. Nem livres teriam competência para marcar um gol.

Mein Kampf é uma obra patética como o autor. “A na tureza marca.” Nos dias de hoje, quem encontra ali inspi ração para odiar os judeus ou acredita nas imputações que são atribuídas ao povo judeu é porque tal convicção já exis tia antes de abrir a primeira página do livro. P

Fábio Koifman é historiador, professor da Universidade Federal Ru ral do Rio de Janeiro (UFRRJ), autor de Quixote nas trevas: o em baixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo e de Imigrante Ideal: o Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945), entre outros.

A luta dele Paulo Geiger

Mas reivindicar o mesmo respeito que merece qualquer outro cidadão a não ser acusado de ter nascido como portador de genes malévolos é um direito que assiste a qual quer pessoa. Entretanto, pessoalmente penso que a publi cação essencialmente não muda nada em relação aos potenciais leitores do livro ou em relação aos judeus que vi vem no país no qual a obra circula.

Uma abordagem que simplifica muito a questão espe cífica de Mein Kampf. Na verdade, não simplifica, e sim permite ver a questão de Mein Kampf em toda a sua sim plicidade.Paraisso também é preciso ler Mein Kampf, e não só discutir os princípios como teoria apenas. Eu li. Não uma edição atual, comentada, pasteurizada, o autor morto, seu regime de 1.000 anos desfeito após 12 anos e uma guer ra com 50 milhões de mortos, dos quais 6 milhões de ju deus industrialmente assassinados; e não vou reler agora, com suas ideias aparentemente fossilizadas por um ilusó rio soterramento da história, facilitando a minimização de sua capacidade de, mais uma vez, convencer. Eu o li numa edição brasileira da época do nazismo, e do getulismo, da

Como um judeu então deve se posicionar em relação à publicação de um livro que o demoniza? Propor a censu ra de algo que não tem como ser censurado? Pleitear a so lução encontrada pela Alemanha de publicar a obra desde que comentada? O esclarecimento de pé de página é su ficiente para esclarecer a dimensão do que é proposto em um livro como Mein Kampf?

Legalmente, duas categorias distintas: a livre expres são de ideias e conceitos, como parte do conceito de liber dade em si mesmo. E a ação ou instigação para ação efe tiva contra indivíduos ou grupos, como agressão a direi tos alheios, uma violação de princípios legais e constitu cionaisPortanto,vigentes.não deveria haver contradição quando um regime democrático proíbe a proibição do direito de se te

rem ideias como ideias, e quando o mesmo regime proíbe o ‘direito’ de se infringir o direito alheio de ter suas pró prias ideias, suas próprias crenças, ou seus próprios genes, mediante discriminação ou violência. Não deveria haver e não há contradição. Sociedades democráticas ratificam seus princípios democráticos ao honrarem o direito de ex pressão e ao combaterem a violação de direitos alheios pela discriminação, violência ou incitação à violência.

potencial de venda, não convenceriam nenhum editor a arriscar-se a publicar. Temeria por sua reputação e por ser enquadrado em crime de ódio.

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A

momentosa e tormentosa questão criada pela entra da em domínio público (ou seja, o direito legal de se publicar livremente um livro após 70 anos da morte do autor) de Mein Kampf suscita novamente a recorrente questão do conflito entre a liberdade de expressão [prin cípio tão justamente caro e cultivado nas democracias, ir removível, segundo muitos, ante o perigo de um ressurgir do cerceamento de ideias e de sua divulgação, que é apa nágio dos sistemas totalitários] e a necessidade, também com base em princípios democráticos, de não se permi tir, legal e constitucionalmente, o proliferar de incitação, agressão, discriminação ou qualquer forma de violência contra indivíduos ou grupos, especialmente por motivos de opinião, cultura, religião, raça, etnia etc.

época em que gritos de Anauê ecoavam os Heils. Em que mães judias no mundo temiam ter mais filhos por não sa berem que destino teriam caso as ideias de Mein Kampf realmente vingassem.

Minha Luta: a discussão além de liberar ou proibir

Roney Cytrynowicz

Conforme Hannah Arendt, o Holocausto e os crimes nazistas foram crimes contra a Humanidade, crimes con tra a diversidade humana e a própria ideia de Humanida

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acirrado debate jurídico em torno de liberar ou proibir a edição de Minha Luta é consequência dos terríveis significados que a presença deste livro e de seu autor têm na história do século 20. É um texto que sintetiza as ideias do nazismo e cuja publicação e circula ção incitou diretamente, por meio da ação do seu autor, a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a ocorrência do Holocausto e a morte de mais de 40 milhões de pessoas entre 1933 e 1945 (incluindo os crimes do programa de “eutanásia”).Emsociedades comprometidas com a democracia e a memória dos crimes nazistas, especialmente em países que sofreram diretamente a ocupação nazista e para os grupos que foram vitimados, é evidente que Minha Luta não é apenas um livro, mas um símbolo, talvez o símbolo máxi mo, do nazismo e de seus crimes.

de. Portanto, a discussão não é apenas sobre um livro, mas sobre um texto que incita ao ódio, ao racismo, à destrui ção do diferente, à guerra, à conquista e à subjugação to talitária de outros povos, considerados inferiores. Esta é a visão de história e de sociedade expostas no livro. Foram editados dezenas de outros livros nazistas, mas sem dúvi da este se tornou o nefasto símbolo-mor.

Ver Minha Luta na vitrine de uma livraria, e o nome de A. H. como autor, é como voltar a 1933 e ver a pro paganda nazista circulando livremente. Ofende a memó ria dos assassinados no Holocausto, ofende qualquer pessoa ou grupo comprometido com a democracia, a diver sidade, os direitos humanos, ofende afro-brasileiros, ofen de imigrantes e seus descendentes em geral, LGBTs, ciga nos, Testemunhas de Jeová, católicos, protestantes (recor dando, inclusive, os que se opuseram ao nazismo). Ofende pessoas com deficiências as mais variadas, lembrando que o programa “eutanásia” exterminou alemães com as mais diversas doenças e o que considerava deficiência física, en

A questão se apresenta, portanto, ainda antes da defe sa de princípios democráticos de livre expressão, não che ga até lá, porque Mein Kampf não se enquadra no caso. O princípio democrático da livre expressão é um direi to inalienável, contanto que não vá de encontro ao di reito alheio, portanto NÃO se aplica a Mein Kampf. Isso não é uma conveniência retórica. Conveniência retórica é considerar Mein Kampf um simples livro de expressão de ideias. P

A tentativa de transformá-lo hoje, 91 anos depois de lançado, num simples texto de proposta filosófica ou po lítica, com base em sua suposta inofensibilidade à luz da

Paulo Geiger é formado em desenho industrial, é editor de obras de referência, trabalhou como editor executivo em dicionários e en ciclopédias e é tradutor do inglês e do hebraico. Também é colabo rador de Devarim e membro de seu conselho editorial.

Mein Kempf não foi um livro de exposição de ideias. Não suscitava divergências e discussões filosóficas, cultu rais, históricas. Mein Kampf é a composição de um concei to subjacente a um plano de ação, a pré-justificativa de um programa. É a plataforma teórica unilateral, autoinspirada, retroalimentada, cuja única consequência lógica possível não pode vir da dialética de um debate, mas da consecução inevitável de sua premissa, pelo instrumento do poder e do domínio totalitário. Não pode ser enquadrado no concei to de uma ‘ideia’ combatível por outra. É o embrião teó rico da efetiva discriminação, rejeição, perseguição e violência contra o direito, no caso existencial, de outros. Não cabe no conceito democrático da liberdade de expressão.

O

realidade atual, choca-se violentamente com a realidade documentada de sua consecução factual, palavras até per nósticas para definir o que Hitler fez com suas ideias entre 1933 e 1945. E choca-se com a sombra nefasta do renas cimento (reaparecimento) de radicalismos teóricos e efeti vos de todos os tipos.

Mas se esta edição for feita, é razoável explorá-la co mercialmente? Não há resposta simples a esta questão e às complexas ambiguidades e contradições que ela embu te. Por isso, seria desejável que o livro tivesse uma edição pública de referência, por exemplo de uma universidade, com todos os prefácios, notas e cuidados. Este livro pode ria ser distribuído a bibliotecas e servir aos que querem ler para pesquisa e informação ou curiosidade.

Um jornalista, defendendo o princípio da liberação, comparou a liberdade de editar e ler a visitar os campos de extermínio. Mas o que visitamos em Dachau ou Ausch witz, por exemplo, não são os campos de concentração e de extermínio, mas o museu e o memorial do campo que

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tre eles epilépticos, cegos, surdos, pessoas com lábio leporino, pessoas com síndrome de Down, pessoas com doen ças mentais e assim por diante. Para engendrar um mun do ariano, o reich de mil anos, os nazistas destruíam tudo e todos que não se encaixavam.

A despeito de o Brasil ter participado diretamente da Segunda Guerra Mundial com a FEB, a memória da Se gunda Guerra Mundial e do nazismo é fraca, rarefeita, no Brasil, e isso gera certa indiferença ao tema, tratado como uma “questão dos judeus” e a discussão sobre a proibição do livro é entendida como tentativa de “censura”, sem ne nhuma sensibilidade ou interesse pela dimensão e singularidade dos crimes nazistas. Por isso, a atuação isolada de entidades judaicas para proibir o livro pode, inclusive, re forçar esta ideia, o equívoco de que “apenas” os judeus são atingidos. A legitimidade política das entidades judaicas em atuar na linha de frente deveria ser razão a mais para procurar aliados nesta causa e reforçar a ideia do Holocaus to como um crime contra a Humanidade.

Assim, uma vez que cópias do texto integrais circu lam livremente, como sempre circularam, e não há tecni camente como impedir isso, então o desafio é “como pu blicar”. Para isso, entendo que o livro deve ser transfor mado em documento histórico. Documento da barbárie. Documento da expressão do ódio, do racismo, do antis semitismo e da destruição totalitária. Ou seja, não se trata de publicar o livro Minha Luta, mas de publicar um livro que contém o documento histórico com este nome. Não é um jogo de palavras. É uma distinção fundamental. Mi nha Luta deixa de ser o título e A. H. deixa de ser o autor do livro e a edição passa a ser a de um livro que apresenta o documento e a história em torno dele.

Oufetiche”.seja,deve-se mediar a visita e a leitura, deve-se oferecer ao visitante e ao leitor instrumentos que expliquem. No caso da edição, seria um livro de estudo, com notas e comentários, entendendo, claramente, que não existe uma leitura do documento Minha Luta que não deva ser devi damente contextualizada pela história da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto. O livro é um documento des ta história e não, jamais, uma versão da história a ser lida, como se houvesse uma versão nazista da história que es tudantes e outros devem conhecer para saber os supostos “dois lados” desta história.

Assim, diante da impossibilidade técnica de impedir a circulação do texto, é fundamental o imperativo ético de cuidar de sua edição como documento histórico, para que a sua edição e circulação não sejam jamais convite ou in citação às ideias que levaram o mundo à guerra e ao Ho locausto. Um texto que esteve no epicentro de uma guerra que matou mais de 40 milhões de pessoas. Mais importante do que a batalha judicial entre liberar ou proibir, é lem brar de Auschwitz e do extermínio de milhões de pessoas como crime contra a Humanidade, e entender que esse li vro é uma síntese das ideias que levaram a isso.

abrigam os antigos campos, devidamente “museologizados”, ou seja, mediados por exposições e painéis que ex plicam o que se vê. Até porque o que se vê é terrivelmen te banal. Uma câmara de gás é uma sala fechada com um chuveiro em cima, mas deste chuveiro saiu o gás que as sassinou milhões de pessoas. Então, como em Minha Luta, a questão não é o que se lê e o que se vê. A questão é en tender o que foi a ideologia do racismo e do extermínio, como o nazismo ascendeu ao poder e assim por diante, e não apenas visitar a câmara de gás, o que seria apenas uma “visita

Se, de um lado, não faz sentido, tecnicamente, impedir a circulação de qualquer livro no mundo digital, por ou tro, o centro da discussão não deve ser apenas entre libe rar ou proibir, entre os princípios da liberdade irrestrita e os que aceitam alguma restrição, como no caso da expres são de racismo. Os argumentos de juristas e advogados dos dois lados têm fundamentação e soam convincentes e uma proibição formal aumentaria a circulação “ilegal”.

Roney Cytrynowicz é historiador e editor.

(Publicado originalmente no site Publishnews em 222-2016). P

Rebecca Kanthor

KEHILAT SHANGHAI

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A história da comunidade judaica na China é longa e fascinante. Vocês sa biam que havia judeus na China desde os idos da Dinastia Song (ou seja, 9601279 e. c., em torno de mil anos atrás)? Eles viviam em Kaifeng, Província de Henan, e constituíram uma próspera comunidade de comerciantes. Alguns pensam que os primeiros judeus daquela comunidade chegaram na China atra vés da Índia. Eles viveram para a China por gerações e se assimilaram à cultu ra local. Havia um bairro judeu com uma sinagoga, ao lado do bairro muçul mano. Hoje muito pouco de seus descendentes ainda vivem na China. Alguns imigraram para Israel [veja box]. Outros assimilaram-se tanto à tradicional cul tura chinesa que seus descendentes já não se consideram judeus.

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A história da comunidade judaica na China é longa e fascinante

Desde o início dos anos 1900 até o final da Segunda Guerra Mundial um grupo diferente de judeus tornou-se bem conhecido na China –mercadores sefarditas que vieram da Europa, da Índia e do Oriente Médio.

ma das canções favoritas da minha filha canta “Wherever you go, there’s always someone Jewish” (Aonde quer que você vá, sempre há algum judeu). Adicionem Xangai à lista de lugares onde vocês serão calorosamente recebidos pela comunidade judaica.

Em 1949, quando a China se tornou um país comunista, o governo reco nheceu 55 grupos étnicos minoritários diferentes, mas deixou de reconhecer os judeus como tal. Os judeus passaram a ter duas alternativas: identificar-se como a etnia majoritária Han ou como a minoria étnica muçulmana. Tendo perdi do a condição de se identificar como judeus, suas comunidades não foram re conhecidas ou sustentadas.

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Avançando o filme mais de 50 anos, vemos que hoje existem cerca de três mil judeus em Xangai. A maioria de nós são americanos e franceses, mas também há israelen ses, canadenses, britânicos, australianos, sul-americanos, europeus e alguns chineses. Quase todos são estrangeiros.

Mas o “bebê” do grupo é, talvez, o seu integrante mais interessante. Kehilat Shanghai é uma congregação refor mista, liderada por judeus laicos, que vem sendo lenta e or

Alguns são pessoas de negócios que vivem com suas famí lias aqui numa etapa de sua vida profissional. Muitos têm feito de Xangai a sua segunda casa, ao se casar com chine ses e criar raízes aqui. Como o judaísmo não é uma reli gião reconhecida na China, ser judeu aqui não é algo que se possa assumir naturalmente. Somos extremamente gra tos pela permissão que nos é dada para ter acesso às anti gas sinagogas e realizar eventos ali, mas temos que ter mui to cuidado em todas as nossas atividades, inclusive nas te filot, para evitar sermos mal interpretados e qualificados como missionários.

As opções de vida judaica em Xangai são diversas. Há o Chabad, que tem sido ativo em Xangai há décadas e agora possui três centros espalhados em nossa metrópole. Tam bém temos uma sinagoga sefardita ortodoxa que está ativa há aproximadamente dez anos.

Desde o início dos anos 1900 até o final da Segunda Guerra Mundial um grupo diferente de judeus tornou-se bem conhecido na China – mercadores sefarditas que vie ram da Europa, da Índia e do Oriente Médio. Famílias ri cas, como a família Sassoon, construíram uma série de edi fícios que compõem a orla marítima de Xangai. A eles se juntou um outro grupo, composto por refugiados da Se gunda Guerra, originários da Rússia, Alemanha e Euro pa Oriental. Estes ficaram em Xangai durante a Segunda Guerra Mundial, basicamente porque nenhum outro lugar os deixava entrar. Os anos que passaram em Xangai foram difíceis, mas eles conseguiram criar vida vibrante para si. Depois da guerra, a maioria deles saiu para ir para as Amé ricas do Norte e do Sul [veja box], além de Israel.

Já Gao Ychen deu uma resposta mais simples do que a de sua colega de via gem. Ao ser perguntada sobre sua emo ção na chegada ela disse: “Parece má gica!”Eparece mesmo.

Ao chegar, as cinco imigrantes foram entrevistadas pela mídia israelense, que se surpreendeu por receber algumas das respostas em hebraico! Isto porque duas delas já tinham passado uma temporada de estudos em Israel.

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ganicamente construída por mais de cinco anos. Ela começou devagar, com jantares nos chaguim (festas judaicas), onde cada um trazia um prato, sem maiores compromis sos além do encontro cultural e festivo. Uma nova cente lha foi acesa quando o Rabino Joel Oseran veio em 2011 e liderou os primeiros serviços religiosos de Iamim Noraim [Grandes Festas] da Kehilat Shanghai.

Achronot em 29 de fevereiro de 2016 anunciou que cinco mulheres chi nesas da comunidade medieval judaica de Kaifeng na China chegariam a Israel naquele dia com o intuito de fazer aliá (se estabelecer definitivamente em Israel).

O site da organização Shavei Israel, que é a responsável por trazer as mulhe res a Israel, dá mais detalhes:

Um ponto de inflexão crucial foi a doação, pela ARI do Rio de Janeiro, no ano passado, do primeiro Sefer Torá de nossa comunidade. Jeanine Buzali, que neste momento é um dos membros do nosso comitê diretivo, foi ao Rio para receber o Sefer e trazê-lo para Xangai. Alguns meses mais tarde, fizemos nossos primeiros serviços de Grandes Fes tas usando aquele Sefer Torá, e todos os que se reuniram imediatamente sentiram a excepcionalidade da ocasião. O impulso criado pela doação do Sefer revigorou nossa con gregação. Uma lembrança particularmente especial para a comunidade aconteceu nos primeiros serviços das Gran

Disse Ji Ling, uma das imigrantes: “Fa zer parte do povo judeu é uma honra por causa de sua herança e de sua sabedo ria”. Numa visita anterior ela colocou uma nota no Muro das Lamentações. “Agora as minhas preces foram atendidas”, ela disse ao jornal.

DESDE A DINASTIA MING

Notícia do jornal israelense Yediot

Depois disso, o israelense Arie Schreier fundou a Kehi lat em 2011 e tem sido, desde então, a força motriz do de senvolvimento da congregação. Mas, como ele disse em uma recente reunião anual da congregação, a força da co munidade vem crescendo com os esforços de cada membro que se junta às tefilot, lidera uma atividade ou parti cipa de uma refeição de Shabat. “Nos últimos cinco anos crescemos fortemente, tendo nos desenvolvido a partir de um grupo que se reunia ad hoc para comemorar feriados judaicos até o momento atual, em que somos uma organi zação que conta com um grupo de voluntários muito ativo

e estruturado. Enquanto a população estrangeira em Xangai é altamente transitória, o envolvimento contínuo de um grupo de judeus e de rabinos visitantes, além de outros profissionais, manteve as brasas da Kehilat Shanghai bri lhando. Hoje, a comunidade está crescendo rápida e fre neticamente com eventos, programações variadas e cele brações das datas do calendário judaico”.

Segundo o jornal, estima-se que a co munidade judaica de Kaifeng tenha sido fundada nos séculos 8 ou 9, por merca dores de origem iraquiana ou persa. Uma sinagoga, construída em 1163, ainda existe hoje em dia. Acredita-se que a co munidade chegou a ter cinco mil mem bros durante a dinastia Ming (13681644), mas decresceu a algo entre qui nhentos e mil membros devido à assimi lação massiva.

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Então, em apenas um ano muita coisa mudou. “Um ano atrás, estávamos tentando descobrir onde fazer o bar mitsvá do meu filho”, diz Jade Ellis, uma nova conselhei ra da comunidade. “Uma vez que encontramos a comunidade Kehilat Shanghai com a sua Torá recém-inaugu rada, entendemos que só poderia ser aqui.” Há um senti mento de emoção e uma energia renovada para construir a comunidade.ScottPollack, um dos primeiros membros e organiza dor da Kehilat, que neste momento também participa do

o chazan Ahronson sem pre foi uma figura imponente e de extrema competência. Parecia infatigável com seu vozeirão, enchendo todos os espaços da grande sinagoga com as lindas melodias da tradicional Reforma alemã, compostas em sua maioria por Louis Lewandowski. Um estilo que a ARI ainda adota em mui tas partes de suas tefilot.

Em 1949 chegou ao Rio de Janeiro o casal Joseph e Hilde Ahronson, ju deus alemães que lograram refúgio do nazismo em Xangai.

DA ALEMANHA AO RIO, VIA XANGAI

Então, se vocês estiverem na China, esperamos que ve nham a Xangai, que entrem em contato conosco, para que possamos dar-lhes uma recepção calorosa e compartilhar com vocês o nosso passado, presente e futuro.

O professor Ahronson, como era cha mado por seus alunos, instruiu milhares de crianças do Rio de Janeiro em seus bnei mitsvá, sempre com um sorriso, mas também de forma exigente para com a lei tura da Torá. As crianças eram induzidas a chegar na hora ao seu pequeno aparta mento na Rua Barata Ribeiro em Copa cabana por uma pilha de “gibis” que pa recia infindável. Quem chegava antes do

horário podia se entreter com as revisti nhas. Ahronson tinha um esquema muito simples e eficaz para manter a sua invejá vel coleção: a criança podia levar uma re vista para casa, mas tinha que trazer duas de volta na semana seguinte. Assim que, por anos a fio, a juventude da ARI apren deu Torá lendo as peripécias de Bolinha, Luluzinha e do Capitão Marvel, fora todos os Nooutros.púlpito,

Rebecca Kanthor compõe o conselho da Kehilat Shanghai e é jor Traduzidonalista. do inglês por Raul Cesar Gottlieb

comitê diretivo, diz: “É claro para aqueles de nós que estiveram envolvidos com KS desde o início que estamos numa encruzilhada – é hora de tirar as rodinhas, estabele cer o curso para frente e andar com convicção!”

1. Nota do tradutor: quando o texto faz referência à comunidade, a grafia corres ponde à forma como a comunidade grafa seu nome em letras latinas: “Kehilat Shanghai” (em hebraico “kehilat” significa “comunidade de”). Quando o texto re ferencia a cidade a grafia é em português: Xangai.

Da Alemanha ao Rio, via Xangai. O mundo judaico pertence a muitos luga res, mas sempre com o mesmo coração e o mesmo conjunto de valores.

Notas

Lá, Joseph estudou canto litúrgico ju daico num seminário instituído pela co munidade ashkenazi que se consti tuiu durante a guerra e foi como chazan que ele foi contratado pela ARI no mes mo ano em que chegou ao Rio, servin do à comunidade com o pomposo títu lo de “Cantor-Mór” até a sua aposenta doria em 1975.

des Festas conduzidos na antiga sinagoga Ohel Moshe, que agora é um museu dedicado à história dos refugiados ju deus em Xangai. O rabino visitante David Wolfman con duziu um serviço altamente emocionante ao ler de nossa nova Torá. Nos meses subsequentes ao das Grandes Fes tas temos tido uma onda crescente de atividades. A afilia ção formal mais do que duplicou, o conselho cresceu em tamanho e Arie passou a tocha para um comitê diretivo.

durante o nazismo, e Josef Schuster, presidente da Confederação Judaica na Alemanha. Eles aproveitaram o mo mento histórico para estabelecer, junto com o governo da Baviera, acordos necessários para o fortalecimento das comunidades judaicas na região.

“Agora nós estamos aqui.” Com esta afirmação, o embaixador Yakov Hadas-Handelsmann se referiu à abertura do novo Consulado-Geral de Israel em Munique. A men ção se refere a um local carregado por fatos do passado, onde ficava a sede do partido nazista e aonde foi assinado o Acordo de Munique de 1938, pelo qual a Inglaterra, a França e a Itália covardemente concordaram em entregar a então Checoslováquia à Alemanha de Hitler. O imóvel foi alugado ao Estado de Israel pelo governo da Baviera.

EM POUCAS PALAVRAS

Ocupando o prédio de Hitler

O representante do governo bávaro foi enfático, duran te a cerimônia, em informar que não existe espaço para an tissemitismo na Alemanha. No ato de inauguração estive ram presentes Charlotte Knobloch, presidente da Comu nidade Judaica da Baviera, que relatou como sobreviveu

Trata-se de mais um marco de relevância, em especial quando observado o desenvolvimento havido nos últimos 25 anos, durante os quais a população judaica registrada na Alemanha passou de 28 mil para 100 mil pessoas, em função da corrente imigratória originada na antiga União Soviética. A abertura da representação diplomática de Is rael nesse local tem um óbvio simbolismo muito especial e reafirma que o objetivo da solução final nazista não foi alcançado.

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Isto porque a IBBLS pagou uma taxa para o rabinato, mas a Paneco não fez o mesmo. O fato de ambas serem fa bricadas e manipuladas da mesmíssima maneira não é im portante. O que importa é que uma pagou por um selo que a outra não pagou. O rabino do conto chassídico deve ter se desesperado lá de onde ele estiver…

A esposa do rabino assistiu aos dois diálogos e, depois que a segunda senhora saiu de vista, interpelou o marido: “Como você disse coisas diferentes para elas, quando você sabe muito bem que ambas as galinhas provêm justamen te do açougue sobre o qual você tem muitas dúvidas a res peito dos procedimentos?” Ao que o rabino, piedosamente, respondeu: “A segunda mulher pode comprar outra ga linha, já a primeira não tem dinheiro para isto”.

Aquele rabino entendia com perfeição que o bem-es tar de sua comunidade estava muito além das minúcias haláchicas. E esta era uma das principais e mais poderosas mensagens do chassidismo.

Mas tudo evolui. Esta história dificilmente se repeti ria hoje. Pelo menos foi o que foi possível concluir ao ler

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a notícia do ynetnews.com, de 18 de agosto do ano passado, a respeito da kasherut do whisky Black Label em Israel.

Um dos mais delicados contos chassídicos discorre sobre um rabino que, ao ser consultado de forma indepen dente por duas mulheres, numa mesma sexta-feira, sobre se a respectiva galinha que estavam levando para casa era kasher, respondeu positivamente para uma e negativamen te para a outra.

O rabinato declarou que as garrafas de Johnnie Walker Black Label importadas pela importadora Paneco Group não eram kasher. Contudo, as mesmas garrafas, quando importadas pela importadora IBBLS, eram kasher e po deriam ser consumidas sem medo pelos fiéis (tendo o cui dado apenas de não exagerar nas doses).

A conclusão é que quem hoje em dia imagina que ka sherut é uma questão meramente alimentar está engana do. Em alguns casos há uma questão comercial que ultra passa os ditames haláchicos.

É fato que tudo evolui. Mas, tristemente, nem sem pre para melhor.

A evolução da Kasherut

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Antes que Booth pudesse responder, uma pessoa que ouviu a conversa denunciou o convite feito, a polícia in

… a montanha vai a Maomé, diz o ditado, cuja mo ral é que se alguma coisa não acontece naturalmente você tem que se mexer para que ela aconteça.

Houve a oferta porque existem jornalistas que as acei tam. Em Jerusalém, e em muitos outros locais habitual mente visitados por jornalistas, existem times de provoca dores em prontidão que entram em ação assim que chega a cobertura da imprensa.

terveio e conduziu todos para a polícia, onde foram inter rogados e soltos uns 40 minutos depois.

Provavelmente não foi este ditado que William Booth, o chefe do escritório do prestigioso Washington Post em Jerusalém, tinha na cabeça quando, na manhã do dia 16 de fevereiro deste ano, saiu com sua equipe em busca de notícias. Mas a situação que aconteceu pouco depois faz lembrar

Até que uma senhora se aproxima da equipe dele e per gunta: “Estão procurando uma notícia?” “Posso ajudar. Se você me der uns tantos shekalim eu peço para aque les meninos ali jogarem pedras nos soldados. Os israelen ses vão revidar, os meninos vão correr e vocês terão belas fotos para tirar”.

Foramdele.ao

Não saberemos jamais o que Booth responderia se ti vesse tido tempo para isto. Provavelmente, sendo um jor nalista sério, teria rejeitado a oferta. Mas duas coisas ficam evidentes no evento:

No mundo todo é comum a imprensa ampliar o im pacto dos acontecimentos, por exemplo, quando filma ou fotografa uma demonstração de 20 pessoas em ângulo bem fechado, dando a impressão que havia uma multidão no local. Mas em Israel isto é ainda mais “sofisticado”. Em muitos casos, a imprensa não apenas amplia, ela também cria a notícia. Ela não corre para o local da notícia logo de pois que um evento acontece. Ela se antecipa, fica de pron tidão esperando o que vai acontecer, sem perceber (ou será que percebendo?) que a sua própria presença é um dos ca talizadores dos distúrbios.

Se Maomé não vai à montanha…

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Portão de Damasco da Cidade Velha de Jerusalém. Nos últimos dias alguns atentados à faca tinham acontecido ali. Quem sabe eles não teriam a “sorte” de ver mais um atentado em primeira mão e poder noticiar com exclusividade um novo episódio das inquietudes na Ter ra Santa!Mas não tiveram sorte. Tudo estava quieto. Gente indo, gente vindo, nada demais.

A imprensa deveria aprender que se Maomé não vai à montanha não deve ser ela a empurrar a montanha à Maomé.

É uma lástima que o B’Tselem não cuide de direitos humanos em geral e sim apenas dos direitos dos humanos que concordam com sua agenda. Assim como é uma lástima que o governo de Israel iguale todos por conta das ações e das escolhas de um. Esperava-se que judeus tives sem mais sensibilidade na questão da culpa coletiva e das generalizações grosseiras.

O programa revelou conversas mantidas por Ezra Nawi, um dos mais importantes membros da ONG is raelense B’Tselem, que luta pelos direitos humanos dos palestinos nos territórios conquistados em 1967, com uma pessoa que gravava a conversa sem o conhecimento de Nawi.

Além disso, o conceito moderno de direitos humanos se baseia na individualidade das pessoas. Cada um de nós tem direito a fazer suas escolhas. Uma organização que luta pelos direitos humanos não pode de forma alguma tratar indivíduos como meros peões de grupos políticos ou na cionais sem trair o fundamento principal sobre o qual re pousa a sua atuação.

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/RAndreyiStockphoto.com

A eternização do conflito está brutalizando a socieda de israelense. Isto deveria ser entendido por todos e com batido por todos os grupos do espectro político israelen se o quanto antes.

Esta frase foi fatal para Nawi, para o B’Tselem e, indiretamente, para os grupos que lutam pelos direitos huma nos nos Independentementeterritórios. do que possamos pensar sobre a ocupação e sobre a moralidade (além da validade estraté gica) de construir cidades num território que não perten ce a Israel e que é mantido ocupado por, justificadas ou não, razões de segurança, é claro que ninguém merece ser torturado ou morrer.

No começo de janeiro deste ano o programa Uvdá (“fato” em hebraico), apresentado pela jornalista Ilana Da yan no Canal 2 da TV de Israel, exibiu uma reportagem que causou comoção.

Direitos Humanos seletivos

Ezra Nawi errou e errou feio. E com isto, infelizmen te, arrastou todas as organizações de direitos humanos de Israel para um atoleiro. Pois o governo de Israel, que apoia os colonos, “fez a festa” com as revelações do Uvdá e, de forma infeliz, usou o acontecido para avançar uma agen da onde iguala todas as organizações de defesa dos direi tos humanos, propondo sanções ao seu funcionamento.

E o que Nawi falou foi efetivamente chocante. Ele contou que já tinha sido procurado por palestinos que ofereciam terras à venda para judeus, o que é considera do um crime punido por morte pela Autoridade Nacio nal Palestina. E que ele passava regularmente os nomes destes palestinos para a ANP, mesmo sabendo do risco de vida que corriam.

“Eles merecem morrer”, diz Nawi, num certo momen to do vídeo gravado clandestinamente.

Ao fazer isto o governo de Israel cometeu o mesmo erro do B’Tselem. Ele também generalizou e colocou todas as organizações num mesmo saco, sem individualizá-las.

Mas não é este o sistema que foi concebido por seus criadores. Israel é um projeto nacional que deu certo. É motivo de orgulho para seus cidadãos e seu povo. Enfrenta as impossibilida des existenciais que lhe querem ser impostas de fora. Mas ao empregar as energias de seu sistema desordenado (pela ameaça existencial) na necessária manutenção do sistema, mesmo com essa desordem, corre perigo (já com feição de fato) de conceber-se como sistema entrópi co, mais ocupado em resistir e manter-se nes sa eventual desordem entre projeto e possibili dade do que em construir um futuro sonhado, pensado e planejado segundo os valores funda mentais da ética judaica. Futuro cercado, hoje, de impossibilidades, é verdade.

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cócegas no raciocínio

Mais complicado e difícil é vislumbrar isso com clareza quando as possíveis consequên cias estão mais no futuro, e quando tudo indi ca, ou parece indicar, que essa sinergia de ma nutenção do sistema é realmente necessária no presente, devido à situação atual. Estou me re ferindo, é claro, a Israel. Sem entrar agora nos motivos que me fazem enquadrar Israel nesse quadro (tenho-me referido a isso direta e indire

E esta é exatamente a natureza da utopia: uma possibilidade cercada de impossibilidades, mas o único fundamento possível para um futu ro desejável e exequível.

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Paulo Geiger

Em termodinâmica, diz-se que entropia é a medida de grau de desordem de um siste ma, no qual, devido a essa desordem, parte das energias existentes no sistema não se transfor ma em trabalho, e se perde. Aplicando-se o con ceito a sistemas sociais, políticos e econômi cos, pode-se facilmente inferir, sem o rigor das regras da física, mas com boa dose de percep ção e imaginação, que um sistema social, po lítico ou econômico desordenado pode ter de consumir boa parte de seu potencial energético para manter existente o próprio sistema, e com isso não produzir “trabalho”, que no caso pode-se ler como bem-estar, segurança, perspectiva de um futuro estável e seguro, preservação do meio ambiente etc. etc. (e são muitos os etcéte ras). E, dada a natureza desses sistemas, o con ceito de ‘desordem’ estaria relacionado com o desequilíbrio interno entre os elementos que os compõem. Seria o caso de algum sistema que, em vez de ser equilibrado (mesmo que alguns de seus componentes sejam dominantes), seja um sistema em que essa dominância é preser vada à custa da energia criadora que o siste ma poderia engendrar, e que é desviada para manter o sistema, mesmo estando em desequi líbrio. É da natureza do totalitarismo, do predo mínio do Estado sobre a sociedade, das ideo logias radicais dominantes, exercer seu domí nio às custas de energias positivas potenciais.

Resumindo, a diferença entre a entropia do presente (preservação de um sistema em dese quilíbrio ou desordem) e o equilíbrio (paz, se gurança, convivência) do futuro está em usar o tempo, a energia e a criatividade para que a pos sibilidade vença a impossibilidade, pois futuros só se constroem com base em possibilidades.

Mas há componentes que fazem com que se desgastem as energias aplicadas na manu tenção de um sistema em desequilíbrio: são processos cujo eixo é o tempo, e cujos fatores são a instabilidade que vem do desequilíbrio e a consequente reação em busca do equilíbrio. Isso vale na termodinâmica e na sociedade. Es tamos vendo na América do Sul algumas fases desse processo na Argentina, na Venezuela, no Brasil, talvez na Bolívia, onde as consequências do desvio de energias de um sistema para a ma nutenção de seu desequilíbrio (ou desordem) começam a se manifestar no presente.

tamente em muitos artigos neste espaço), o que seria matéria para mais de um ‘Cócegas’, ilustro essa dicotomia, ou dilema, com uma lembrança: Há muitos anos, num seminário de fim de se mana do Fundo Comunitário do Rio, um convi dado (o recém-falecido Manuel Tenenbaum, z’l) palestrou sobre as alternativas atuais de Israel. Eu, sobre perspectivas futuras para Israel e o povo judeu. Ele descreveu o quadro de Israel como o leão de Judá, isolado, sozinho na flores ta, temido por seus inimigos. Eu evoquei a pro fecia de Isaías, do leão que convive com o cor deiro, e das espadas transformadas em pás, ou arados. Ante uma reação no público que, dian te dos fatos, considerava a primeira imagem real e a segunda uma utopia, eu chamei a atenção para a diferença nos títulos das palestras: o pre sente e o futuro. No presente reagimos às im posições de realidades que nos obrigam a solu ções que são defensivas mesmo quando adqui rem formatos ofensivos; temos de gastar ener gias na preservação de um statu quo de dese quilíbrio. Mas para se construir uma visão de um futuro desejável e exequível não se pode ser reativo, temos de saber o queremos ser e ven cer impossibilidades para sê-lo. Como eu disse então, o futuro que devemos querer construir para nós não deveria ser o de um leão de Judá isolado (demonizado), mas o do equilíbrio utó pico da visão de Isaías. Se não for assim, essa terá sido a maior vitória de nossos inimigos: dei xarmos de ser quem fomos e somos.

Pondo em miúdos no que isso tem a ver com Israel: apesar de seu incrível progresso em to dos os setores, principalmente em ciência e tec nologia, apesar da estabilidade de sua demo cracia, não obstante os problemas e tensões existenciais que o acompanham desde o início, apesar de se manter como a expressão nacio nal do destino histórico do povo judeu, Israel é, a meu ver, um sistema potencialmente em desordem, portanto potencialmente entrópico, capaz de orientar a maior parte de sua ener gia em manter o sistema, sem criar fatos no vos em direção a um futuro desejável e dese

ENTROPIAS E UTOPIAS

jado. Em desordem porque nele se confundi ram e conflitaram os parâmetros que foram sua diretriz conceitual, desde os profetas, passan do pela visão europeia de Herzl (leia-se O Es tado Judeu), pela visão socialista de seus pio neiros, pela sociedade solidária e de coexistên cia por eles criada nos anos de construção e de luta pela independência. A desordem em Israel está em aceitar a perda dos valores permanen tes evocados pela visão sionista e escatológi ca de Isaías, que constituem o âmago concei tual do judaísmo, pela visão eventual, isolacio nista, instrumental, impositória do leão domina dor e temido. Dominador até das divergências internas de opinião. Hoje, quem pensa diferen temente do establishment corre o risco de ser chamado de traidor e de ser posterizado atrás da mira de uma arma.

66 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

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