Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 10, n° 28, Dezembro de 2015 DEVARIM Navegadores do temor, timoneiros da esperança Rabino Sérgio ArnaldoAuschwitzYtzhakORabinopesadelosCompartilhandoMarguliesnossosenossoamorJosephA.EdelheitperfildeMoisésPelegnãomorreuNiskier Ha’ol: Um círculo de intelectuais de Jerusalém Rabino Dario Bialer Além de um Judaísmo IdentidadeCócegasSandraPediátricoLilienthalnoRaciocínioPauloGeigerculturaldosjudeusdaIdadeMédiaGadFreudenthal O shabat em uma sinagoga LGBT em San Francisco Artur Benchimol A Literatura Apocalíptica Judaica Adam T. Strater



Diz Morris que o conflito se desenrola em três dimensões distintas:Aprimeira
A terceira e última dimensão é a contribuição palestina na luta global que os jihadistas travam contra o “Satã Ocidental”, sendo Israel a vulnerável extensão da cultura ocidental no Orien te Médio. Para o Islã jihadista, Israel personifica todos os valo res que ele abomina – a democracia e a liberdade, a sociedade aberta, a tolerância e o pluralismo, o individualismo e o secula rismo, o pensamento crítico (incluindo o valor ausente na cul tura islâmica de expressar autocrítica), os direitos das mulheres, o liberalismo e o progresso, a liberdade sexual.
E é lamentável que muitos no ocidente e na extrema-esquer da israelense e judaica prefiram ignorar a segunda e terceira di mensões, para ver a luta palestina unicamente através do prisma da primeira dimensão: a resistência à ocupação.
É evidente que não podemos ficar indiferentes ao sofrimento de seres humanos. Mas a ação tem que ser dirigida também para a criação de ambientes sustentáveis. Apenas se conformar com a truculência dos países que produzem tragédias não é um passo para a solução. Da mesma forma como teria sido infinitas vezes melhor para o mundo que a Alemanha nazista tivesse sido der rubada em 1934-35, como advertiu em vão Churchill, o mun do democrático necessita hoje cuidar dos refugiados ao mesmo tempo em que se ocupa em derrotar a jihad islâmica e em ex pulsar as ditaduras da ONU e dos demais organismos interna cionais. Contudo, todo o foco vai para os refugiados – a parte mais visível da tragédia.
A
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intensificação nos últimos meses das mortes de judeus apenas pelo fato de serem judeus é uma boa oportunida de para abordar a análise do historiador israelense Benny Morris, que, de forma didática, preenche lacunas normalmente ignoradas nas discussões sobre o conflito imposto pelos árabes aos judeus em Israel.
Já os proponentes da jihad aspiram voltar aos dias em que a espada do Islã governava da Índia ao Oceano Atlântico e em que as minorias e os vizinhos tremiam sob sua sombra. Estes jihadis tas – e as sociedades que os sustentam e alimentam – se regozi jam sempre que um edifício desaba sobre centenas ou milhares de ocupantes ou um ônibus é reduzido a um destroço fumegan te e merecem serem chamados de “bárbaros”.
EDITORIAL
Morris fez esta análise no ano 2000, logo após o fracasso das últimas negociações promissoras para a paz entre palestinos e is
Análises que consideram apenas o que é visível ou que cau sa mais emoção parecem estar por todas as partes. Na questão dos refugiados que procuram a Europa, por exemplo. O mun do se escandaliza com a indiferença dos europeus face ao sofri mento dos que fogem do Oriente Médio e da África, contudo não há uma palavra sobre a indiferença da ONU (que foi cria da como uma aliança de países signatários dos direitos huma nos) quanto aos regimes políticos dos países afiliados, indife rença esta que está na raiz das guerras do mundo islâmico e no subdesenvolvimento da África. Assim como se fala muito pou co sobre imperiosa obrigação dos governos em manter seus paí ses estáveis e solventes.
raelenses. O ISIS ainda não existia e o World Trade Center ainda marcava a silhueta de Nova Iorque. Eu dei alguns retoques para atualizar o texto (por exemplo, no que diz respeito ao status de Gaza e aos esfaqueamentos), mas ele continua válido.
é a resistência palestina à ocupação israelense na Cisjordânia e ao fechamento por Israel de suas fronteiras com Gaza. Esta dimensão é a mais visível, também por ser a única publicamente admitida pela Autoridade Palestina.
A Torá nos adverte a não nos deixarmos levar por nossos co rações nem por nossos olhos (Bamidbar / Números 15:39), no que parece ser uma referência a conclusões derivadas de emo ções ou de aparências, sem o aprofundamento necessário. A fra se está colocada no plural, talvez para advertir também sobre o “efeito manada”, em que alguns seguem o que a maioria está fa lando sem exercer uma crítica individual.
Raul Cesar Gottlieb – Diretor de Devarim
Numa segunda dimensão se situa a guerra travada pelos pa lestinos – conforme as palavras dos porta vozes do Hamas, do Jihad Islâmico e dos militantes do Fatah – para a extinção do Es tado de Israel e para restaurar os seus “direitos” sobre toda a Pa lestina. Este esforço é claramente identificado na educação que as gerações mais jovens recebem, nos mapas que os diversos gru pos palestinos imprimem, nas falsas alegações sobre as tentativas israelenses de destruição dos lugares santos islâmicos em Jerusa lém e, mais recentemente, pelo esfaqueamento aleatório de civis.
A medida em que a transmissão das informações se torna inacreditavelmente veloz e fartamente pictórica, a advertência do nosso texto fundador ganha uma enorme relevância. Se com a tecnologia de informação da Idade do Bronze (a época histó rica dos primeiros hebreus) já era importante mediar as emo ções e aparências com o conhecimento e a racionalidade, hoje isto se torna vital.
Seção Livros 66
Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
P R ES ID ENTE DA ARI Ricardo Gorodovits
A revista Devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br www.devarim.com.br Administração e correspondência: Rua General Severiano, 170 – Botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ Telefone: 21 2156-0444
Sérgio R. Margulies, Dario E Bialer
Navegadores do temor, timoneiros da esperança Rabino Sérgio R. Margulies 3
Compartilhando nossos pesadelos e nosso amor Rabino Joseph A. Edelheit 29
Raul Cesar Gottlieb
R A B I NOS DA ARI
EDI ÇÃO
B Erlich, Rabino Rogério Z. Cukierman, Raul C. Gottlieb e Teresa C. Roth.

Ricardo Assis (Negrito Produção Editorial)
Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI.
CONSELHO EDI TO RIA L
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Colaboraram neste número: Adam T Strater, Arnaldo Niskier, Artur Benchimol, Rabino Dario Ezequiel Bialer, Gad Freudenthal, Rabino Joseph A. Edelheit, Paulo Geiger, Sandra Lilienthal, Rabino Sérgio R. Margulies, Ytzhak (Itzik) Peleg.
Identidade Cultural dos Judeus da Idade Média Gad Freudenthal 51
EDI ÇÃO D E A RTE
Além de um Judaísmo Pediátrico Sandra Lilienthal 23
F OTO GRAFIA D E CAPA
D IR ETO R DA REV I STA
Editora Narrativa Um
Breno Casiuch, Rabino Dario E Bialer, Germano Fraifeld, Henrique Costa Rzezinski, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica Herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies.
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T RADU JeanetteÇÃO
A contracapa de Devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ. A distribuição de Devarim é gratuita, sendo proibida a sua comercialização.
O Perfil de Moisés segundo a história do seu nascimento e de sua morte – Uma abordagem literária Ytzhak (Itzik) Peleg 37
A Literatura Apocalíptica Judaica Adam T. Strater 44

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ARI, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
Ha’ol: Um círculo de intelectuais de Jerusalém – Trazendo Deus para a mesa Rabino Dario E. Bialer 9
Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 10, n° 28, Dezembro de 2015

Tainá Nunes Costa
“Os céus e a terra e todas as suas cores”: o shabat em uma sinagoga LGBT em San Francisco Artur Benchimol 17
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Cócegas no Raciocínio Paulo Geiger......................................................................................... 72
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Auschwitz não morreu Arnaldo Niskier 60
SUMÁRIO
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mais pode se referir? Ao povo judeu como um todo. Às inú meras circunstâncias em que foi ameaçado, geograficamente sufocado no lugar em que estava e espiritualmente asfixiado pela falta de liberdade.
Temor e rumo
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anto quanto eu consigo me lembrar, eu lembro temor. Temor existen cial”. Assim começa o livro My Promised Land, do jornalista israelense Ari Shavit. Estas palavras se referem à realidade vivenciada em Israel. País geograficamente minúsculo, cuja dimensão não o exime de ser alvo de Temor.extinção.Aque
BARUCH SPINOZA
T
O temor não decorre da dificuldade circunstancial que poderia ser eventu almente superada. O temor é a ausência de rumo. Sem referências não há novo rumo possível, nem energia para encontrar novos caminhos ou perseguir alter nativas. O temor passa a ser a única força atuante e torna-se existencial.

Rabino Sérgio Margulies
Também a cada um de nós este temor pode se referir ao sermos reféns de situações fora do controle. Situações em que a capacidade tão almejada de ser mos condutores de nossas vidas é abruptamente retirada e nos arrasta pelos ven davais do infortúnio.
O temor recrudesce ao depararmo-nos com perguntas desprovidas de res postas: ‘Para onde ir?’, ‘O que fazer?’. O temor imobiliza. E mesmo diante da insistente tentativa de romper com esta paralisia, a ausência de referências nos deixa a esmo. Fica a evidência de que o medo é a superfície e o sintoma de um drama cuja causa é a falta de referências.
A missão judaica é prover, através do comunitário,convívioesperança ao anseio de encontrar o novo rumo. Assim, em meio às dificuldades e envoltos pelo medo, acalenta-se sempre uma esperança. Somos timoneiros da esperança que não perdem o prumo e reencontram o rumo.
“Não há esperança dissociada do medo, e não há medo dissociado da esperança”.
“
NAVEGADORES DO TEMOR, TIMO N EIROS DA ESPERA N ÇA
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Crise e referência
Diferente do temor existencial que nos sufoca, o temor reverencial reconhe ce que há algo além de nós e um propó sito transcendente. Em função deste te mor reverencial devemos evitar que que bras aconteçam de modo inconsequente, pois “saiba diante de quem você no futu ro será julgado e prestará as contas.” (Pirkei Avot).
A missão judaica é prover, através do convívio comunitário, esperança ao anseio de encontrar este novo rumo. Assim, em meio às dificuldades e envoltos pelo medo, acalenta-se sempre uma esperança. O psicanalista Erich Fromm (1900-80) ensina que esperança genuína não é ir racional, não é uma salvação apocalíptica: “Ter esperança significa estar pronto para aquilo que ainda não nasceu, e, todavia não se desesperar se não ocorrer nascimento algum durante nossa existência”.
Descarte e futuro
O temor reverencial – tal como expresso no período entre Rosh Hashaná e Iom Kipur, denominado de Iamim Noraim, Dias Temíveis – é temor celestial que preserva a referências. A preservação das referências permite o reencontro com os rumos. Os rumos não estão perdidos, o que há é um novo caminho a ser pavimentado, ainda que arduamente, para superar os reveses.
Enquanto – paradoxal e dolorido que seja – houver o desespero rogando por ajuda, ainda há esperança de que as referências não foram completamente anuladas. A pro cura de alguma ajuda demonstra a persistente vontade de encontrar um novo rumo.
way’ ocasiona a perda dos rumos. Se há somente um único caminho – ‘one way’ – não há opção de renovar estes caminhos para retomar a trajetória da vida.
Cântico e canto
Mas por que tantas vezes nos tornamos surdos ao alarme espiritual e descartamos o que deveríamos com zelo preservar? Porque prevalece o interesse imediato em detri mento do olhar para o futuro. O foco exclusivo no ime diato abdica do processo. As referências tornam-se secun dárias. O resultado é somente o que interessa e pouco im porta se este interesse destrói as bases que permitiriam um caminhar pleno e constante. Descarta-se o que deveria ser preservado. É a mentalidade ‘one way’. A mentalidade ‘one
O temor reverencial – tal como expresso no período entre Rosh Hashaná e Iom Kipur, denominado de Iamim Noraim, Dias Temíveis – é temor celestial que preserva a referências. A preservação das referências permite o reen contro com os rumos. Os rumos não estão perdidos, o que há é um novo caminho a ser pavimentado, ainda que arduamente, para superar os reveses. Daí a relevância do temor reverencial: faz o alarme soar constantemente em nosso es pírito para que os nutrientes mais preciosos da existência, como os valores e suas referências, não sejam quebrados.
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Prumo e rumo
O leitor pode tentar buscar a influên cia daquele que foi considerado o quinto integrante da banda, (o empresário) Brian Epstein, para substanciar a menção desta música no contexto judaico deste artigo, mas a relevância está justamente no fato do clamor pela ajuda ser tanto particular quanto universal, ser tanto sagrado quanto secular, ser tanto antigo quanto con temporâneo, percorrendo línguas e lugares.
Crise em hebraico é mashber. O ter mo mashber é escrito com as letras do ver bo quebrar. A relação ensina que crise é a quebra de referências. Sem referências fi camos desnorteados. Sem rumo. Restau rar os rumos requer resgatar as referên cias. Crise não é a dificuldade. Tampouco a adversidade. Crise é a falta de referências para transpor as dificuldades. Obstáculos inevitavelmente aparecem. Com referên cias somos capazes de traçar novas traje tórias e retomar o rumo. Sem referências há a quebra. Vida despedaçada.
“Será que estou sozinho, perdido, sem rumo?” Frequentemente nos pergunta mos aos nos confrontarmos com a soli dão. Brotam em nossa alma a indagação do Salmo bíblico: “Essá einai el-hearim, meain iavô ezri?”. “Levanto os meus olhos para as montanhas, de onde virá minha ajuda?” Um desespero que se renova desde o milenar texto dos Salmos de auto ria atribuída ao rei David até as músicas contemporâneas como a canção compos ta há cinquenta anos pelos Beatles: Help, I need somebody
Não se desesperar mesmo em ocasiões avassaladoras tem sido possível em função da esperança. Não uma esperança gerada por um devaneio, e sim esperança capaz de enxergar as referências que apontam para rumos possíveis. Mesmo que estes rumos não tenham ainda surgido ou nas cido, as referências estão presentes para que em dado momento surjam ou nas çam. Esperança é a capacidade de man ter estas referências e enxergá-las mesmo diante das névoas. Somos timoneiros da esperança que não perdem o prumo e re encontram o rumo.
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Mas por que o sol não é o corpo celestial utilizado para determinar a passagem do tempo? A explicação simbólica
Que nossos olhos não tenham se fechado definitiva mente para vislumbrar esta possibilidade. E que tampou co se iludam com a crença de que novas nimbus e névoas não voltarão a aparecer encobrindo o brilho que ressurgiu.
Lua e sol
Prumo é o instrumento que mede a profundidade das águas e também é sinônimo de esteio. Ao mantermos os esteios de nossos valores e dificuldades,profundidadereconhecemosreferênciasadasmasnelasnãoafundamos.
é porque nem sempre podemos olhar para o sol. O sol que ilumina também pode queimar a visão. As referências devem ser equilibradas como um brilho permanente, não como uma luz que aparenta ser promissora salvação, mas que pode cau sar um desastre. As referências são como a esperança, relevadoras de rumos, porém não salvações apocalípticas.
Os dias, semanas e meses do calendário religioso judai co são determinados pelas estrelas e lua. O estudo da as tronomia levou muitos judeus ao domínio das técnicas da cartografia. Isto tem tanto uma dimensão prática – conhecer os mapas e desta maneira desbravar rotas – quanto es piritual: enquanto as estrelas brilharem os rumos não es tão perdidos. As estrelas representam os valores e referên cias que nos acompanham.
Sérgio R. Margulies é Rabino e serve à Associação Religiosa Isra elita do Rio de Janeiro – ARI.
Prumo é o instrumento que mede a profundidade das águas e também é si nônimo de esteio. Ao mantermos os esteios de nossos va lores e referências reconhecemos a profundidade das difi culdades, mas nelas não afundamos.
No entanto, o ciclo solar é utilizado para ajustar o ciclo lunar do calendário e desta maneira adequar os meses às esta ções agrícolas do ano. Esta concepção de contagem do tempo, além de seu aspec to pragmático, é uma atitude de vida: demonstra a capacidade de, com equilíbrio buscar e aceitar, sem descartar, as várias fontes de ajuda. Uma fonte de ajuda, seja ao longo do dia – o sol –, seja ao longo da noite – as estrelas e lua – estará disponível. Tal vez, como frequentemente ocorre, não são visíveis. Quan do ocultos aos nossos olhos, não significa não estarem lá. As referências continuam, mesmo que em inúmeras oca siões longe de nosso alcance. Ou melhor, alcance imedia to. Cedo ou tarde as nimbus e névoas que encobrem o que brilha do firmamento celestial desaparecerão.

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reunião estava marcada para as 17 horas. Era um agradável dia de pri mavera e o local escolhido não podia ser mais emblemático: a Universidade Hebraica de Jerusalém. Pontualmente, um a um, começaram a chegar. O primeiro foi Judah Magnes, no final das contas, ele tinha marcado a reunião. Em seguida foram Martin Buber e Gershom Scholem. Ernst Simon chegou junto com Shmuel Bergman. Julius Gutman foi o último a chegar, logo depois de Yitzhak Bauer.
Rabino Dario E. Bialer
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Trazendo Deus para a mesa
Se cumprimentaram com carinho e sem muita solenidade, se olhando curio sos. Ninguém sabia muito bem de que se tratava. Era a primeira reunião da queles notáveis intelectuais.
O tópico do dia seria “O que é a Torá para nós?”, e as discussões deveriam ser guiadas pela fé, mas não pela religião, pois quando se diz religião – ele acre ditava – implicitamente está se expressando que o caminho já foi achado e você esta já comprometido com as crenças e mandamentos oficiais de uma certa tra diçãoQuemreligiosa.abriu o debate foi Gershom Scholem (1897-1982):
Interpretar as palavras de Gershom Scholem certamente não é tarefa fácil. Ele parece se contradizer em algumas partes (o que em si mesmo não representa problema nenhum; a Torá fala por meio de diferentes vozes frequentemente contraditórias), como quando declara que não há Torá sem uma tradição autoritária – que demanda obediência e fidelidade –, e ao mesmo tempo ele diz que não há Torá escrita sem Torá oral, que é fruto da criatividade do ser humano.
HA’OL : U M CÍRCULO DE I N TELECTUAIS DE JERUSALÉM
O primeiro a tomar a palavra foi Judah L. Magnes (1877-1948), rabino re formista americano que se tornou o primeiro chanceler da Universidade He braica em 1925. Explicou que o propósito do grupo seria criar um programa para renovar o judaísmo, para estabelecer uma relação viva com a tradição de Israel e que fosse a base ideológica do sonho do Estado que ainda não existia.
A
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Qualquertradicional.coisa no mundo, até mesmo uma pessoa, pode ser “Torá”, mas nunca há Torá sem autoridade superior.
A Torá é o som de uma voz superior que obriga a pessoa de uma forma ab soluta. Ela não reconhece a autonomia do indivíduo. A Jeremias foi prometida uma “Torá desde o coração”, mas ape nas no final dos dias. Também os chassi dim fizeram uma tentativa de preparar “uma Torá desde o coração”, inspirados em Deuteronômio 17. “E ele deverá es crever para si uma Torá”. Mas esta con cepção autônoma da Torá, contudo, não é [de forma alguma] compatível com a concepção
Interpretar as palavras de Scholem certamente não é ta refa fácil. Ele parece se contradizer em algumas partes (o
Não há Torá escrita sem a Torá oral. Se nós viermos a restringir a Torá apenas à Torá transmitida por escrito, nós não seríamos capazes de ler nem mesmo o Pentateuco, mas apenas os dez mandamentos. Em consequência, até mes mo a Torá [isto é: as escrituras] já é a Torá Oral (...) e ape nas através da mediação da Torá oral ela é compreensível.
que em si mesmo não representa proble ma nenhum; a Torá fala por meio de di ferentes vozes frequentemente contradi tórias), como quando declara que não há Torá sem uma tradição autoritária – que demanda obediência e fidelidade –, e ao mesmo tempo ele diz que não há Torá escrita sem Torá oral, que é fruto da criati vidade do ser humano.
Não entanto, Gershom Scholem sabe que a palavra de Deus por si só, para muitos, já não é mais suficiente como fonte legitimidade.
A Torá é o diálogo do Criador com o homem, a reza é o diálogo do homem com o Criador.
Rosenzweig se opõe à leitura ortodoxa que acentua a obrigação do judeu em cumprir a lei assim como também renega o liberalismo que deixa o judeu sem o jugo das mitsvot. Rosenzweig dirá que cada judeu tem o dever de cumprir as mitsvot que o seu compreenda.intelecto
O primeiro a responder foi Julius Guttman (18801950):
A Torá como emblema identitário que nos define. Ro bert Maynard Hutchins, filósofo da educação, dizia que é através dos “grandes livros” que acessamos ao espírito da nossa civilização e que são o meio para entender a socieda
A consequência disto é que [o nosso entendimento] da Torá evolui e muda e, conforme, a sua própria natureza [isto é: a Torá como a entendemos através da evolução cons tante da Torá oral], ela não pode ser transformada num sistema estático. Em vez disso, a Torá é uma continuidade de perguntas e respostas. Contudo, apesar deste desenvol vimento, não há absolutamente nada de arbitrário nela. [Apesar de que] cada geração deseja que a “sua” Torá seja a voz da revelação divina, não há lugar para a liberdade de decisão individual. Em princípio, portanto, a Ortodo xia está correta. Mas no que respeito a nós, somos incapa zes de aceitar a Torá oral da Ortodoxia. Já no que diz res peito à Torá escrita é nosso dever lembrar que nada nela é fixo sem a exegese da Torá oral. Devemos, portanto, aguar dar pela nossa própria Torá oral, que deverá ser manda tória para nós, não deixando espaço para decisões livres e não autorizadas. Não há Torá sem revelação (matan Torá) e não há Torá sem heteronomia, e não há Torá sem uma tradição autoritária.
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Essa é a antiga disputa entre heterono mia e autonomia, palavras utilizadas por Scholem, mas que parecem pronunciadas por um sujeito oculto que, sem estar sen tado na mesa, resulta tao presente. Estou me referindo ao filosofo alemão Imma nuel Kant, que fustigava a toda religião que se guiasse pela heteronomia (qual quer imposição externa) por sobre a consciência moral au tônoma do individuo. Em Kant fica perfeitamente claro que a heteronomia se apresenta em toda sua expressão na obediência divina aos mandamentos simplesmente por ser a exigência de uma autoridade externa. A visão ortodoxa das escrituras é exatamente isso. Elas são a palavra absolu ta e literal de Deus, que contém um sistema absoluto de referências e uma base comum impostiva à qual todo pen samento judaico futuro deve se referir.
A posição de Scholem leva a um subjetivismo absolu to. Segundo ele, a Torá oral é uma função sem um conteúdo específico. Como pode uma Torá destas ser propriedade de um coletivo? Nós somos obrigados ao conteúdo da Torá [escrita] [isto é: das mitsvot].
O dilema que ele traz – e que as considerações de seus colegas tentaram desvendar – é como manter a legitimi dade da Torá e ao mesmo tempo a sua relevância, através da coexistência entre heteronomia e a autonomia, caso tal coisa seja possível.
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de e a nós mesmos. É por isto que, para eliminar o seu es pírito, não é necessário queimar os livros, basta não lê-los por gerações para que suas tradições se percam, pois ape nas o estudo pode converter antigos documentos do pas sado em palavras vivas do presente.3
A visão de Scholem pode ser resumida desta forma: Tivesse Deus nos trazido ao Monte Sinai, mas não tivesse nos dado a Torá [isto é: as mitsvot], Dayeinu! Nós deveríamos
ficar satisfeitos. [Na minha opinião, contudo,] nós devemos ver as mitsvot como um eco das palavras de Deus. [Por outro lado,] não podemos abrir mão de nossa autonomia. Se alguém me demonstrar que a lei Oral entende que o man damento “não matarás” se refere a uma proibição contra a matança apenas de judeus, eu não aceitaria esta explica ção do mandamento e iria confiar na minha autonomia.
Franz Rosenzweig (1886-1929), que além de grandíssi mo filósofo, foi um genial educador, propõe o estudo dos textos clássicos do judaísmo, mas não desde a perspectiva de Hutchins dos “grandes livros”, que só servem para se rem lidos e aprendidos sem deixar espaço para a criativida de e aporte pessoal do leitor. Rosenzweig se opõe à leitura ortodoxa que acentua a obrigação do judeu em cumprir a lei assim como também renega o liberalismo que deixa o judeu sem o jugo das mitsvot. Rosenzweig dirá que cada judeu tem o dever de cumprir as mitsvot que o seu inte lectoAssimcompreenda.chegamos à colocação de Ernst Simon (18991988):
Para que o pensamento crítico esteja presente, o pon to de partida da religião não pode ser o dogma, o cumpri
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Essa última colocação é fundamental pois entrelaça a religião com a consciência individual da pessoa, que é um adulto, que, como tal, pode fazer a suas escolhas e refletir a forma em que valores, crenças e comportamentos previamen te considerados sagrados podem ser analisados criticamente.4
O pensamento crítico parte da premissa que não há uma verdade única, senão valores, crenças e comporta mentos que são relativos e cambiantes conforme cada pes soa. E se falamos de pensamento crítico fica impossível não pedir uma licença literária e trazer Mordechai Kaplan (1881-1983), o criador do judaísmo reconstrucionista, a esta mesa de intelectuais:

mento da lei por imposição de Deus, senão entender o judaísmo como uma civilização que cria cultura ao recriar as práticas socialmente construídas.
Não é à toa que Buber foi tão próximo a Rosenzweig. Em sua obra Estrela da Redenção, Rosenzweig já tinha afirmado:
E se já me dei a licença de trazer Kaplan, não posso fazer A. J. Heschel (1907-1972) faltar nessa conversa. O

Certamente a revelação não provê a lei. Ela é apenas isto: revelação. O conteúdo primário da revelação é a própria revelação. ‘Ele desceu’ [do Sinai] - isto conclui a reve lação. ‘Ele disse’ é o começo da interpretação.
Já Martin Buber (1878-1965) se pronunciou da se guinte forma:
que ele acrescenta referente à revelação é que “a Bíblia em si é um midrash” . Tradicionalmente nós entendemos o mi drash como uma interpretação posterior do texto bíblico. Mas, segundo Heschel, até mesmo a Bíblia é uma interpretação humana de uma revelação anterior, ou mais pri mitiva, que está além da compreensão humana.
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Não é necessário assumir que a fonte da Torá oral te nha que ser a exegese. A Torá oral pode ter sua fonte numa [única] palavra
Para Buber, o ato em si mesmo de Deus se revelar ao homem é o único que verdadeiramente importa. O res to são elementos intermediários que atrapalham um dia logo genuíno.
Resulta interessante que seja precisamente Heschel, co nhecido como o profeta contemporâneo, quem traz a refe rência da Torá como um midrash em si mesmo, pois em essência aqui estamos falando de dois modelos alternati vos para se relacionar com a Torá: o modelo profético e o exegético. Os profetas recebiam e transmitiam textual mente a mensagem do Deus de Israel. Numa aproxima ção altamente mística, a palavra de Deus é revelada de for ma Oliteral.modelo exegético é aquele que se vincula com o tex to desde a dialética que possibilita ampliar, continuar, alte rar e até discordar com o texto. O escritor israelense Amos Oz o descreve maravilhosamente bem quando diz em Os Judeus e as Palavras:
O Midrash em Shemot Rabá ensina que não apenas a Torá escrita e a Torá oral (a Mishná e a Guemará) foram reveladas no monte Sinai. Mas que também todas as con versas posteriores entre os rabinos e seus alunos foram re veladas no Sinai.
Ruth Calderon diz que “Estudar com outra pessoa faz você ouvir como o outro vê você. É como ouvir a tua voz num gravador. Não se parece a como você se escuta, mas é você. É uma auto revelação e, ao mesmo tempo, a reve lação da Torá e de Deus neste mundo.
Buber: Na verdade não há política messiânica. É im possível dizer que isto prepara a vinda do Messias e aquilo não. Bauer está certo, contudo, quando ele sugere que as ações dos homens provocam [uma nova] revelação – e que a revelação também pode vir de dentro da sociedade. A re velação não precisa ser necessariamente transmitida ape nas por uma voz, ela pode vir pelo meio de alguma coisa, de um evento.
Cada um dos intelectuais que formaram Ha’ol têm algo único a dizer sobre as ideias que reverberam a colocação inicial de Gershom Scholem.
Como substâncias químicas que não reagem até que se jam colocadas juntas no mesmo experimento, essas pessoas se transformaram quando se reuniram. Esse é o ato da re velação que é resultado do que os talmudistas chamavam Shakla v’taria, a ida e volta da troca interpessoal que o es tudo possibilita.
interpretaçãomidrashnósTradicionalmenteentendemosocomoumaposteriordotextobíblico.Mas,segundoHeschel,atémesmoaBíbliaéemsiéummidrash,umainterpretaçãohumanadeumarevelaçãoanterior,oumaisprimitiva,queestáalémdacompreensãohumana.
Hácompletas.defatoalgo muito bonito, muito especial e muito judaico, em se sentar ao redor da mesma mesa e estudar com outros, discutir, discordar... sempre instigando ao ou tro a pensar. Essa interação é revelação.
A continuidade judaica é basicamente textual, e cada novo livro é um convite a repensar as velhas verdades.
Nós somos uma linhagem que não é de sangue mas de texto. Uma linhagem feita de palavras. De ideias. Pertencemos a uma terra, mas quando nos negaram esse direito, durante milhares de anos, habitamos no livro (...) A continuidade judaica sempre se articulou em palavras proferidas ou escritas, num sempre ex pansível labirinto de interpretações, de bates e discordâncias, e numa interação humana única. Na sinagoga, na escola, e acima de tudo, em casa, esta interação sempre envolveu duas ou três gerações em conversas profundas.
Bauer: A questão teológica é de impor tância secundária. O que é importante é a responsabilidade do homem diante de Deus e a condução de sua vida conforme esta responsabilidade. A Torá exige retidão e justiça. Esta é a tarefa que está na nossa frente: a criação de uma orga nização social que esteja de acordo com a [concepção] judaica de justiça. É possível se preparar para os dias do Mes sias. Se não construirmos a terra [de Israel] com retidão e justiça, tudo estará perdido. Esta é a conclusão a ser derivada da nossa história.
Toda nação tem suas leis. Mas poucas nações (ou tal vez nenhuma outra) registram sistematicamente os proces sos, as discussões filosóficas e os argumentos legais, como faz o judaísmo. Assim, O “povo do livro” escreveu biblio tecas
A autoridade não está apenas na ori gem, mas nas mãos em quem recebe e interpreta.
A Torá acontece quando ela emerge da boca de um ou tro que, por sua vez, revela para nós uma nova camada de pensamento e sabedoria.
Cada geração tem de ser parceira dessa revelação. Esta é uma responsabilida de histórica.Enessesentido se expressam Ytzhak Bauer (1888-1979) e Buber.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 13
O que isto significa? Que cada vez que nos sentamos para discutir e ouvir as idéias dos outros, a conversa bri lha e cria e inspira e traz à tona a Torá que vive dentro de nós. Isto é sagrado e isso vem do Sinai. Nós somos parte do processo de revelar a sabedoria e a presença de Deus no mundo. Este é o processo de revelação que os rabinos pas saram no Talmud. Sentavam-se no Beit Midrash a argu
mentar uns com os outros, a discordar e produzir argumentos a partir da Torá es crita. Devido a esse processo, temos um incrível corpo de literatura, de Halachá, e Agadá, que é o elemento vital de estu do do nosso povo. Assim que o estudo da Torá não é passivo. Nós somos os klei kodesh (instrumentos sagrados) a partir dos quais a Torá é revelada.
1 Ha’ol significa “o jugo”, em alusão ao midrash que postula que Deus colocou so bre os filhos de Israel o jugo celestial (Sifrei, Deutronômio, 32/29)

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3 Hutchins, Robert Maynard, Great Books: the foundation of a liberal education (1954)
sua colocação propiciara, para finalmente acrescentar e en cerrar a sessão:
4 Como referência nesse assunto, recomendo a leitura de Stephen Brookfield: “A cri tical definition of adult education”, Adult Education Quarterly, Volume 36, Num ber 1, 1985.
2 Esse texto está baseado num artigo de Paul Mendes Flohr , publicado em Jewish Spirituality, Volume II , editado pelo rabino Arthur Green (1989)
O Pirkei Avot (1:1) diz que Moisés recebeu a Torá de Deus no Sinai e a transmitiu a Josué, Josué aos Anciãos e os Anciãos aos Profetas e os Profetas aos membros da grande as sembleia. Esta Torá que foi transmitida é ao mesmo tem po idêntica quando transita de uma boca à próxima, mas também completamente nova, conforme a inspiração pes soal de cada ser humano.
Até um certo grau, nós somos todos anarquistas. Mas nosso anarquismo é transicional, por que nós somos o exemplo vivo de que isto [nosso anarquismo] não nos re move do judaísmo. Nós não somos uma geração sem mits vot, mas uma na qual as mitsvot não têm autoridade. Eu não tenho um sentimento de inferioridade com relação aos que obervam [a lei]. Não somos menos legítimos do que nossos antepassados (...) Talvez nós sejamos anarquistas!, mas nos opomos à anarquia.
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Esta é a essência judaica. Quando a discussão é ele vada com santidade, nos acedemos a novas formas de conhecer ao Divino. Claro, podemos estudar sozinhos, mas, quando duas pessoas se sentam em uma mesa, este é um convite para que Deus também se sente e partici pe. Esses intelectuais, mais religiosos, menos religiosos, mais observantes, menos observantes, sonharam uma so ciedade na qual Deus esteja sentado ao redor da mes ma mesa. Nem por cima, nem por baixo. Juntos. Parcei ros. Sócios nessa criação. Eu imagino Scholem sorrindo, cheio de satisfação, quando viu o debate acalorado que a
Notas
O Rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Is raelita do Rio de Janeiro - ARI. Completou os estudos rabínicos no Seminário Latinoamericano Marshal T. Mayer em Buenos Aires e no Schechter Institute for Jewish Studies em Jerusalém.
Eu acredito em Deus, esta é a base da minha vida e da minha fé. Todo o resto [do judaísmo] é sujeito a dúvidas e está aberto ao debate.
As mesmas palavras são proferidas, mas a mensagem, o significado, o Midrash de cada pessoa é diferente. A trans missão não pode ser unilateral. Não é que Moisés ditou as palavras e Josué se ocupou em memorizá-las. Imagino Jo sué fazendo perguntas e a Moisés ensinando, fazendo pau sas, enfatizando alguns episódios, se emocionando com outros, e Josué escutando e se apropriando do relato e as sim se inspirando para o desafio.
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“A Bíblia se preocupa mais com o tempo do que com o espaço. Ela vê o mun do através da dimensão do tempo. Presta mais atenção a gerações, a eventos, do que a países, a coisas; está mais preocupada com história do que geografia.”
Rabi Abraham Joshua Heschel (Te Sabbath, p. 6, FSG Books)
9
de Tammuz de 5775: o mundo mudou bastante. Saímos de férias no princípio do verão. O dia é agradável em uma cidade conhecida por seu clima ameno, que é quente de dia e fresco pela noite e nós cami nhamos por bairros com seus cafés e parques. O início de um fim de semana atípico se desenha à nossa frente. A cidade está lotada. A multidão mal cabe sentada na grama do parque que a congrega nos mais inusitados eventos. NãoOsabíamos.Orgulho Gay de São Francisco se transforma em um fim de semana re pleto de eventos e, no meio da tarde, inicia-se a Marcha dos Sapatões – a “Dyke March”. Sem convite ou programação (assim são as férias, não?), nós dois sen tamos no meio fio para assistirmos a passagem do “bloco”.
O shabat em uma sinagoga L G BT em San Francisco
Meninas, senhoras, mulheres, amigos, parentes, uma variedade de gente vai desfilando pela nossa frente, enquanto irremediavelmente comentamos as ex centricidades no nosso seguro português e nos animamos e nos juntamos ao apoio dado pelos transeuntes que observam conosco da calçada. São assobios, gritos, acenos, todos muito amigáveis. Estamos contentes. É bonito de ver e tão mais bonito quando se está de férias.
“Hoje em dia muitas sinagogas aceitam a comunidade LGBT. As pessoas não precisam mais vir aqui para rezar. Estamos virando uma sinagoga de bairro, tem até uma porção de casais hétero frequentando. Precisamos renovar um pouco para nos adaptarmos aos novos tempos e manter a comunidade ativa”.
I
“ O S CÉUS E A TERRA E TODAS AS SUAS CORES”
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Artur Benchimol
Aos poucos vão chegando mais pessoas. Aos mon tes. Todos se conhecem e vão se abraçando efusivamen te. Nós vamos sorrindo e nos alegrando ao ver que Ke vin não nos enganara: algo especial deve estar acontecen do hoje mesmo.
De acordo com o jornalista Johann Hari, em torno de 5731, em uma das primeiras marchas de orgulho gay de Londres, o resultado do pacífico protesto foi o espanca mento e a prisão de todos participantes.

O último grupo atrasado, de braços dados e atitude cantarolante passa por nós e os nossos olhos momentane amente se desviam da marcha para o prédio do outro lado da rua. Surpresa: há, na fachada, um escrito em hebraico: Sha’arEmZaav.5775,
acordo. O recado foi dado. Estamos dispostos e subimos ao santuário.Simplíssimo. Um salão de madeira, adaptado, com um Aron Hakodesh e bancos largos que acomodam quatro ou cinco pessoas, dispostos em semicírculo. Nos sentamos em meio às dez ou 12 pessoas que já estão ali e nos preparamos para um serviço esvaziado, pois nossa experiência nos EUA é que o serviço mais frequentado é o de sábado de manhã.
II
Ao nosso lado senta um casal. Myriam, que compar tilha o banco conosco, se apresenta. Contamos nossa his tória e ela comenta que nunca tinha escutado sobre juda ísmo brasileiro e faz muitas perguntas. Conversamos um pouco sobre a vida judaica no Rio de Janeiro, a curiosa cul tura judaica de Copacabana e ela pergunta se nós estamos sabendo “das notícias”.
“A natureza da injustiça é que nós nem sempre a percebemos nos nossos tempos”.
o ano do Facebook e do iPhone, é fácil des cobrir o que há por trás de qualquer letreiro. Digitamos a localização em nossos aparelhos e descobrimos que es tamos diante de uma das primeiras sinagogas LGBT do mundo.Nas férias, é costume esquecer o dia da semana, e o mesmo apetrecho que me diz agora “sinagoga”, me lembra que é shabat. Estamos em pleno embaraço com a situação, pegos com as calças na mão e oportunidade se faz irrecusá vel. “Vamos entrar e ver?”. Estamos de acordo, atravessamos a rua, abrimos a porta com insegurança e expectativas.
Obergefell v. Hodges, Suprema Corte dos Estados Unidos, 576 U.S. 11 (2015)
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Kevin não hesita. Para ele, a oportunidade já se deu e todos ficamos aliviados quando ele repete o rito de toda si nagoga que preza por seu nome e insiste que fiquemos: ex plica que hoje é um shabat especial e que o serviço é mui to animado e que nós somos extremamente bem-vindos. A palavra “animado” vem com uma ênfase nova e nos si naliza. É o teste da parte dele e todos nós entramos em
É uma sinagoga bem comum. Com cartazes de cha guim, eventos, doações, cursos, creche, nada excepcional. Na entrada, Kevin, um homem no princípio de seus 40, muito simpaticamente nos recepciona. Explicamos a situ ação: dois turistas perdidos do Brasil, andando pela rua, viram o letreiro e, como é shabat, resolveram entrar. Mas não sabem se estão vestidos direito e, você sabe, Kevin, não querem incomodar etc, etc… Pequenos testes.
No fim, uma última homenagem à rabina, que se des pede, no centro cantam uma última canção e convidam
Em uma ocasião semelhante, o chefe de polícia de Los Angeles, comentou: “No que me diz respeito, dar autorização a um grupo de homossexuais para desfilar pela Hollywood Boulevard seria a mesma coisa que dar uma autorização a um gru po de ladrões e bandidos”.
Começa o serviço. Ao começar as primeiras rezas, no tamos que há diferenças no Sidur. Não há tempo de in ternalizar todos as nuances do livro, mas é claro que hou
Os abraços calorosos vinham de todos os lados. Não era somente o shabat que aquecia o coração daquelas pes soas, havia algo mais. Havia o alívio de que, depois de tan to tempo, uma notícia boa tivesse chegado, finalmente.
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Pirke Avot, 5:19
III “Todo amor que depender de alguma coisa, quando acabar a coisa, acabará o amor. E se não depender de al guma coisa, não terminará para sempre”.
As rezas são intercaladas com can ções cantadas em hebraico por um grupo de três homens muito afinados que cantam os salmos mais melódicos a ca pella. A congregação escuta em silêncio e aplaude cada canção. São cantores ma ravilhosos.Arabina
Angel sobe ao púlpito. Além de tudo, é a sua despedida. Conta sobre a sua história como rabina e como a comunidade foi im portante para que ela se sentisse à vontade para exercer o seu judaísmo, encontrar uma namorada judia, construir uma família judaica. Não foi fácil, ela descreve como a re lação com seus pais, a sociedade e o seu judaísmo foi difí cil. Mas são outros tempos. Lágrimas, sorrisos e aplausos. Está feita a despedida.
ve um empenho muito grande em trazê-lo à Ovida.livro é cuidadosamente dedicado a distanciar-se dos gêneros, o que é um desafio gigantesco devido à natureza da lín gua hebraica, onde todo verbo carrega in formação de gênero. Algumas vezes nos perdemos na reza, pronunciando uma pa lavra em hebraico que estamos acostuma dos e que eles trocam. Mas não estamos tão preocupados com isso e preferimos nos ocupar com um comentário no Sidur que cita Yehuda Amichai.
O grupo a capella retorna ao palco, para a hora do Adon Olam. Escutamos os primeiros acordes e a vontade é de começar com “First I was afraid, I was petrified”. Mas não, é Adon Olam. Alguns vão de Asa Branca, eles esco lheram I Will Survive. A canção preenche o espaço, pal mas animadas por todos os lados e cantamos junto ao rit mo. A mensagem se preserva: o ritmo muda, os tempos mudam, e nós sobrevivemos.
A sinagoga estava lotada e nós estávamos de férias.
“Qual amor dependia de alguma coisa? O amor de Am non e Tamar. E que não dependia de alguma coisa? O amor de David e Jonathan.”
O Orgulho Gay de São Francisco se transforma em um fim de semana repleto de eventos. Meninas, parentes,mulheres,senhoras,amigos,umavariedadedegentevaidesfilandopelanossafrente.Oúltimogrupopassapornóseosnossosolhosmomentaneamentesedesviamdamarchaparaoprédiodooutroladodarua.Surpresa:há,nafachada,umescritoemhebraico:Sha’arZaav.
A Amidá que segue é bem no estilo reformista. Um convite à meditação sem muita gente grudada no sidur. Termina e ao virarmos a página vemos que o Kadish Yatom contém uma parte suplementar em lembrança das ví timas do HIV. A rabina lê, o silêncio surge repentinamen te e a solenidade toma conta do salão.
Em 14 de Av de 5775, em Jerusalém, Shira, filha de Uri e Mika, de apenas 16 anos, foi golpeada mortalmente, junto a outros cinco feridos que marchavam na parada gay daquela cidade. As razões e o nome por trás do crime permanecem incompreensíveis e merecedores de es quecimento.9deTammuz de 5775 foi o dia em que o tribunal mais importante dos Esta dos Unidos, a Suprema Corte, decidiu em uma votação apertada de cinco a quatro que nenhum estado da federação poderia negar a seus cidadãos o direito de se uni rem, mesmo se fossem do mesmo sexo. A decisão foi seguida de um previsível turbilhão na Internet e na mídia e portanto…
IV
Bereshit 2:1-3
Se houver alguma relação, então Deus não teria con templado “os céus e a terra e todas as suas multidões”, mas sim contemplado “os céus e a terra e todas as suas cores”. A imagem é bonita.
Não seria o caso de “Tzevahot” em hebraico ter alguma relação com a palavra “cores”? Tzevahot, tzeva. Não é a mesma palavra, mas é muito parecido.
Nos despedimos com a certeza de que fomos numa si nagoga tão sinagoga como tantas outras, com seu passado e seu presente e sua vontade de futuro. Afortunados pela data e inspirados pela história, saímos à rua enquanto con versamos sobre o texto de Bereshit.
Artur Benchimol é publicitário.
“Agora estavam completos o céu e a terra e todas as suas hostes. No sétimo dia, Deus completou o trabalho que vi nha fazendo, cessando então no sétimo dia todo o traba lho que tinha feito. Então Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, e cessou todo o trabalho de criação que [de cidira] fazer.”
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Terminamos um pouco zonzos. Myriam gentilmente nos oferece que comamos um pouco dos quitutes que es tão no salão ao lado. Cada um trouxe algo de casa e, ao pensarmos na taxa de câmbio em 5775, aceitamos o convite prontamente. A comida está ótima e ela nos pergunta o que achamos do serviço, se foi muito diferente do que estamos acostumados.
Talvez tenha alguma relação, talvez seja coincidência. Não temos um dicionário à mão, já não temos vontade de Google. 10 de Tammuz de 5775 começa e preferimos caminhar pela rua contentes com a certeza ignorante de que, do alto de seu trabalho, Deus parou naquele primei ro de Tishrei do primeiro ano, não para contemplar mul tidões, hostes ou exércitos, mas para desfrutar da diversi dade magnífica das cores.
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que todos façam uma corrente humana, tocando as pesso as à sua frente em direção ao púlpito. Num mundo onde ser invisível e intocável é tão frequente, ser tocado é o sím bolo escolhido da inclusão.
Não foi não, respondemos. É um serviço de shabat co mum, reconhecível. Perguntamos se eles são ligados a al gum movimento e Myriam responde: “Quando fundamos a comunidade, apenas os reformistas nos aceitavam. Até hoje, somos ligados a eles”.
Comentamos que a realidade não parece ser mais essa, ao que ela concorda e fala: “Sim, hoje em dia, mui tas sinagogas aceitam a comunidade LGBT. As pesso as não precisam mais vir aqui para rezar. Estamos viran do uma sinagoga de bairro, tem até uma porção de ca sais hétero frequentando. Precisamos renovar um pouco para nos adaptarmos aos novos tempos e manter a co munidade ativa”.

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CHAG SAMEACH

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ALÉM DE UM
Mas, à medida que estas crianças se tornam adolescentes, será que continu amos tendo sucesso quanto à sua educação judaica? Eu ousaria dizer que não. Mesmo nos casos em que pensamos estar sendo bem-sucedidos, poderíamos alcançar resultados ainda melhores se mudássemos o enfoque do ensino de textos bíblicos. Curiosamente, nenhum de nós tem dificuldade em fazer esta transição quando se trata de histórias infantis ou fábulas como a da Cigarra e da Formiga, entre tantas outras. Para crianças pequenas, contamos a história em si, do jeito mais básico em que ela foi escrita. Conforme as crianças vão crescendo, passa
J PEDIÁTRICOUDAÍSMO
esta pouca dúvida de que nós, educadores judaicos, temos tido alto grau de sucesso no que tange à educação de crianças. Ainda me lem bro bem da primeira vez que, como jovem professora, vi um membro da comunidade cantando Daienu e Ma Nishtaná com perfeição –o menino tinha apenas três anos de idade. Também não há dúvida de que, quando lidamos com crianças dos primeiros anos do Ensino Fundamental, a prioridade seja compartilhar com elas o que ocorreu nos primórdios do nosso povo. Elas se encantam com as histórias sobre os patriarcas e matriarcas, a escravidão no Egito, o encontro com Deus no Monte Sinai, os quarenta anos no deserto. Conseguimos até transmitir-lhes os relatos da conquista da terra de Israel, dos juízes e profetas, dos reis, da destruição dos Templos. A maioria das crianças expostas desde cedo a tais ensinamentos, seja em escola judaica ou em programas suplementares oferecidos pelas sinagogas, chega à adolescência já familiarizada com muitas das narrativas da nossa Bíblia.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 23
Sandra Lilienthal
R
Temos que repensar se é válido mantermos a praxe de limitar o ensino bíblico ao Chumash estudado apenas com base no texto e em comentários de Rashi, acrescidos de alguns midrashim. Por que não incluirmos no programa de estudo os Salmos, os Provérbios, Rute e Ester?
Há quem discorde desta ênfase na re levância; são poucos, mas existem. O rabino Eric Gros sman, diretor da escola ortodoxa Frankel Jewish Acade my em West Bloomfield, Michigan, diz que é exatamente a falta de relevância que atrai o interesse dos jovens.2 Ele dá como exemplo o fascínio que os dinossauros exercem sobre as crianças. É comum elas serem capazes de citar os nomes de várias espécies de dinossauros, não porque seja um tópico relevante na vida delas, mas precisamente por que a total falta de relevância torna o estudo dos dinossau ros um prazer em si mesmo. Torá Lishmá (o estudo da Torá pelo simples prazer de estudar) em sua mais pura forma! Se quisermos insistir na relevância, certamente temos argumentos para embasar esta posição. Afinal, muitos dos problemas descritos na Bíblia são os mesmos de hoje: favo ritismo paterno, rivalidade entre irmãos, competição pela liderança, dificuldade de tomar decisões de ordem ética e moral. Mas talvez tenhamos mais sucesso se instigarmos nossos alunos a recriarem na imaginação aquela socieda de tão diferente da nossa, onde tantas destas histórias se inserem. Permitindo a nossos alunos lerem a Bíblia como um grande clássico faz com que a mensagem de relevância de hoje não se perca amanhã. Transportar nossos alunos
Quem sabe, ao invés de insistirmos em ensinar os mes mos livros, numa determinada ordem, como se tudo fos
Muitos dos problemas descritos na Bíblia são os mesmos de hoje: favoritismo paterno, rivalidade entre irmãos, competição pela liderança, dificuldade de tomar decisões de ordem ética e moral. Mas talvez tenhamos mais sucesso se instigarmos nossos alunos a recriarem na imaginação aquela sociedade tão diferente da nossa, onde tantas destas histórias se inserem.
Pode parecer brincadeira, mas não é: universidades como Princeton, uma das melhores do mundo, oferecem cursos de literatura e ética com base em histórias es critas por Walt Disney e outros. E os alu nos intelectuais que frequentam estas fa culdades lotam as salas para assistir a tais aulas. Eles não dizem “Histórias de Dis ney? Eu não! Isso é para crianças.” Eles entendem que existe uma dimensão me tafórica nas historinhas que lhes foram contadas na infância e que, olhando além do básico, veem-se muitos ensinamentos a serem extraídos destes contos. Por que será que não conseguimos fazer esta tran sição quando se trata das histórias da Bí blia, que vêm sendo transmitidas há mi lhares de anos em nossa tradição?
Quando lidamos com adolescentes, é necessário estabelecer um currículo cen trado em valores, em ideias mestras que queremos transmitir, e depois buscar os textos bíblicos que exemplifiquem es tes respectivos valores (ou que mostrem as consequências de não ter tais valores como diretrizes). Este tem sido nos últi mos anos o mantra da maioria dos edu cadores judaicos nos Estados Unidos: a chave para tirar os jovens do seu estado complacente é mostrar a eles quão rele vante o texto biblico é para nossa vida aqui e agora.
mos a discutir o que a história realmente significa, que lições aprendemos com ela.
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se linear, devêssemos inverter o processo e primeiro nos perguntarmos que valores queremos ensinar. A partir da resposta a esta pergunta poderemos estudar passagens bíblicas que abordem o tópico. So mente se tivermos em mente aonde que remos chegar, poderemos escolher qual o caminho mais eficaz a seguir!
A pergunta que precisamos fazer antes de decidir o que e como ensinar é a seguinte: qual o nosso objetivo quan do ensinamos a Bíblia a adolescentes? Dependendo da meta que queremos alcançar, temos que repensar se é váli do mantermos a praxe de limitar o ensino bíblico ao Chu mash — os cinco primeiros livros da Bíblia —, estudado apenas com base no texto e em comentários de Rashi1, vez ou outra acrescidos de alguns midrashim (interpretações rabínicas). Por que não incluirmos no programa de estu do os Salmos, os Provérbios, Rute e Ester?
O problema, a meu ver, tem diversas faces e requer alguns passos nossos para tentar resolvê-lo. Primeiro, definir com clareza qual o nosso objetivo quando ensinamos a Bíblia aos jovens. Segundo, dar maior peso aos valores inerentes às histórias do que às histórias em si. Terceiro, ir além do texto bíblico, mostrando aos jovens que há centenas de ca madas em cada narrativa (como dizem alguns, as histórias são como cebolas, cada vez que tiramos uma camada, aparecem as outras que estavam escondidas). Quarto, e talvez o mais importante, deixar os jovens à vontade para ques tionar, lembrando a eles que questionamentos fazem par te do judaísmo.
para tempos antigos estimula-os a conceber como seria um mundo bem diferente deste em que vivemos. E este é um fator que pode atrair a atenção dos nossos jovens.
Acredito que os dois pontos de vista sejam válidos. No entanto, depois de 25 anos trabalhando como educadora, tenho tido muito mais sucesso colocando ênfase no fato de que, embora as histórias bíblicas relatem acontecimen tos de outras épocas, outras culturas, outras sociedades, sua mensagem é universal e atemporal. Quando trabalho com jovens ou adultos, cada vez que analisamos o texto bíbli co eu o faço como se estivesse lendo um clássico da litera tura mundial: comparando e contrastando passagens, dis cutindo as inconsistências do texto, fazendo uma análise do mundo em que estas histórias se inserem socialmente, culturalmente, antropologicamente.
Especialmente quando lidamos com adolescentes ou adultos, o ensino literal do texto bíblico é problemático. Enquanto as crianças pequenas aceitam a narrativa ao pé da letra, ao redor do 8º e 9º anos os adolescentes questio nam as histórias bíblicas.3 Como aceitar que o mundo foi criado em sete dias quando temos dados científicos que fa lam de bilhões de anos? Se Adão e Eva estavam sozinhos no mundo com seus três filhos (ou filhos e filhas, de acor do com alguns midrashim), de onde veio o restante da hu manidade? De relações incestuosas? É tambem nesta fase que os alunos afirmam que não acreditam em Deus e não acreditam na Bíblia. Podemos martelar na cabeça deles que estão errados, que Deus existe sim, que aquelas his tórias aconteceram de verdade, mas qual será o resultado disso? Possivelmente uma convicção ainda maior de que tudo aquilo é uma bobagem inventada por adultos de sé culos

Todosatrás.concordamos que a Bíblia é o texto primordial do judaísmo. Mas o conteúdo bíblico não pode ser visto isoladamente (a não ser que estejamos falando dos caraítas). O texto judaico evoluiu e continua evoluindo. Há um de senvolvimento constante do texto em si, que é complemen
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 25
Que mensagens estas narrativas trazem? Por que foram colocadas ali? É óbvio que nem todos os relatos sobre o povo judeu são mencionados na Bíblia. Por que justo es tes foram escolhidos (por Deus, para aqueles que acredi tam ser Ele o autor do texto, ou pelos editores, para aque les que acreditam ser a Bíblia um documento escrito por seres humanos, inspirados pelo Divino)?
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tado pelas opiniões rabínicas do Talmud, pelos midrashim, pela legislação de códigos como o Shulchan Aruch, por re leituras cabalísticas do Zohar e por um corpus imenso de outros textos mais recentes.
No judaísmo liberal, afirma-se que o texto do Chumash não foi necessariamente escrito por Moisés. Entretanto, ao fazermos a hagbaá, quando erguemos o rolo da Torá para que todos possam vê-lo, cantamos a plena voz: “Esta é a Torá que Moisés deu aos Filhos de Israel, pela boca de Deus.” Temos que tomar cuidado para não passar aos jo vens mensagens conflitantes. Os educadores liberais optam por um meio-termo – ensinamos que a Torá é um docu mento sagrado que reflete a influência de Deus sobre a hu manidade. Até nisso, podemos mostrar aos jovens como nem sempre o que lemos ou dizemos deve ser entendido de uma forma estritamente literal.
E talvez aqui entre o elemento mais importante: além de mostrar aos jovens os valores impregnados nas histórias bíblicas, além de direcionar a atenção de nossos alu
Cito aqui uma passagem de Ibn Ezra, rabino que vi veu na Espanha no século XII: “Em todo coração existe sabedoria plantada pelo Eterno... O raciocínio é o alicer ce (da real compreensão da Torá). Não era a intenção de Deus dar a Torá àqueles que não tivessem a capacidade de raciocinar. O emissário entre a pessoa e Deus é exatamen te seuIbnintelecto”.5Ezranosoferece uma terceira opção – a opção de nos envolvermos com o texto, de lermos e relermos, de compreendermos o contexto, de procurarmos seu signifi cado e relevância para a vida de cada um de nós. Ou seja, o texto esta aí, em nossas mãos, para que possamos nos con frontar com ele. Afinal de contas, toda a nossa identidade se baseia nesta contenda com Deus e Seus ensinamentos. A palavra Israel, nome pelo qual somos conhecidos, signi fica “aquele que se debate com Deus”.
Para aqueles que já são capazes de fazer abstração do texto e de entender o ambiente em que surgiu cada grupo de comentários, a metodologia de desdobramento textual é profundamente intrigante e relevante. Entender como o judaísmo construiu seus textos a partir do alicerce da Bí blia significa entender quão dinâmicos são o processo de interpretação e a evolução do texto, resultantes em um ju daísmo vivo que atravessa os séculos.4

Em Pirkei Avot 5:24 lemos: “Ben Bag-Bag disse: ‘Leia e releia [a Torá], pois tudo está nela contido. Estude-a
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nos para a relevância do texto, precisamos permitir – mais ainda, incentivar – o questionamento. Faz parte da estru tura interna de um adolescente questionar tudo aquilo que veio antes dele e tudo aquilo que o cerca. É frequente professores e rabinos passarem a impressão de que há somen te duas opções: ser um bom judeu e aceitar o texto bíbli co sem discussão ou então ser um “mau judeu” que rejeita toda a nossa tradição. Além de contraproducente, este tipo de visão distorce a própria natureza do judaísmo.
Notas
1 Holtz, Barry. “What’s Worth Learning: Te Bible and the Curriculum of Jewish Education Today”. Revista Sh’ma, Tevet 5764.
tionamentos sobre a fonte de autoridade não os isola do povo judeu – ao contrário, o enfrentamento destes questionamentos através do estudo da Bíblia os coloca bem no meio de tudo aquilo que é tradicional mente judaico –, seremos mais bem-suce didos em nossa tarefa de transmitir os ensinamentos das histórias da Bíblia.
2 Grossman, Eric. “Te Torah of Relevance: A Dinosaur Deserving Extinction”. Re vista HaYidion, Verão 2012.
3 Sagal, Doug. “Teaching Torah”. Revista Sh’ma, October 1997.
O que queremos é levar nossos alunos a sentirem um enorme prazer quando estão com o texto bíblico em suas mãos. A combinação de diferentes formas de abordar o texto gera perguntas e discussões, fazendo com que cada aluno sinta que o texto bíblico lhe pertence, que o texto fala com ele – com cada um de nós – num diálogo infinito.
minuciosamente, envelheça e amadureça nela, e não se afaste dela, pois não exis te melhor padrão do que ela.’” De fato, o que os rabinos nos dizem com esta in junção é que, não importa quantas vezes já tenhamos lido uma passagem bíblica e estudado o seu significado, há sempre al guma novidade à nossa espera. O sentido literal do texto (p’shat) não muda. O que muda é a nossa internalizacao do texto: o que veremos agora nas entrelinhas será diferente do que vimos anos atrás. A di ferença entre as crianças menores e os adolescentes não é a fonte, não é o co nhecimento, mas sim o fato de que, ao amadurecerem, os jovens estão prontos para ir mais a fundo na tentativa de ou vir a sabedoria daqueles que vieram an tes deles, tanto para poderem entender a complexidade do texto – e, por que não dizer, da vida –, quanto para poderem encontrar respostas às suas perguntas.6
6 Brown, Steven; Reclaiming Our Legacy; United Synagogue of America – Depart ment of Youth Activities; 1986.
5 Ibn Ezra, HaDerech HaShlishit, Introdução.
Em última instância, o que queremos é levar nossos alunos a sentirem um enor me prazer quando estão com o texto bí blico em suas mãos.7 E para que possamos chegar a este ponto, é necessário apresen tarmos primeiro o texto em si, p’shat. De pois disso, trazemos para a mesa comentários diferentes, tanto do Talmud quan to de Rashi e mais modernos como o da grande dama de estudos bíblicos em Is rael, Nehama Leibowitz (z’l). Completa da esta fase, introduzimos comentários re centes de estudiosos de Bíblia, que fazem uma análise estrutural e literária do texto. A combinação destas diferentes formas de abordar o texto gera pergun tas e discussões, fazendo com que cada aluno sinta que o texto bíblico lhe pertence, que o texto fala com ele – com cada um de nós – num diálogo infinito.
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É fundamental que cada professor de Bíblia passe para os alunos a mensagem milenar de que o texto está ali para que possamos torná-lo nosso, no mais profun do sentido. O texto bíblico está disponível e é relevante para todos os judeus – independentemente de sua práti ca ritual, de seu grau de observância, até mesmo do que cada um acredita. Se apresentarmos esta ideia para os jo vens, e se realmente permitirmos que eles questionem as passagens difíceis e questionem valores que lhes parecem ser antiquados, os jovens terão uma experiência profun damenteRecomendoenriquecedora.fortemente a leitura do livro Reclaiming our Legacy, do Dr. Steven Brown, editado por Stephen Garfinkel em 1986. Apesar de ter sido escrito trinta anos atrás, o livro continua dando ótimas dicas aos jovens (e àqueles que são responsáveis por ensinar-lhes a Bíblia) de como tornar esta experiência gratificante. Questionar, diz o Dr. Brown, é parte fundamental do processo. Questionar a natureza de Deus, a autoridade Divina, até mesmo a existência de Deus, promove interação com uma tradi ção milenar. A presença de muitas perguntas e a ausência de respostas faz parte desta busca! Se permitirmos aos nos sos jovens compreender que a expressão de dúvidas e ques
Sandra Lilienthal é educadora com doutorado no Gratz College, Filadélfia, EUA. Ela é especializada em formação de currículos ju daicos e educação judaica para adultos e crianças. Em 2015, San dra ganhou o prestigioso prêmio Convenant Award por excelência em educação judaica. Ela é professora associada no Gratz College, instrutora do Florence Melton School of Adult Learning da Universi dade Hebraica de Jerusalem, e desenvolve curriculos para o Orloff Central Agency para educação judaica em Broward County, USA.
7 Levenson, Alan. Transversing the World of Jewish Studies. Association for Jewish Stu dies; Fall/Winter 2002.
4 Woocher, Meredith. “Teaching More Tan the Source”. Revista Sh’ma, Tevet 5764.
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Rabino Joseph A. Edelheit
A postura mais produtiva que podemos ter para enfrentar todo tipo de ódio é o trabalho comunitário visando o estabelecimento de parcerias. O antissemitismo não é só um problema para os judeus. Este tipo de ódio também surge contra os negros, as mulheres, os deficientes, os pobres e ignorantes, a comunidade GLBT e assim por diante.
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Duas moças de 17 anos, de Nova Iorque, relataram terem sido vítimas de repetidos atos de “bullying” anti-semita: enfiaram dinheiro na boca de uma de las, a outra passava por suásticas pintadas a torto e a direito nos corredores e ar mários da escola. No entanto, as autoridades daquele Distrito Escolar de Pine Bush Central, praticamente rural, muito pouco esforço fizeram para combater o Oabuso.cidadão branco de classe média/alta de Missouri, acusado de assassinar três pessoas em dois locais judaicos em um subúrbio de Kansas City no ano pas sado, disse a um tribunal que as mortes tinham sido necessárias e eram um di reito seu. “Eu queria ter certeza de que, antes de morrer, eu tivesse matado ou
O
novo governo esquerdista de Madri enfrentou seu primeiro teste há poucos meses, quando seu representante encarregado da pasta de cul tura foi obrigado a se desculpar por tuitar piadas sobre o Holocausto. Ativistas universitários norte-americanos favoráveis ao BDS (Boicote -Desinvestimento-Sanções) rotularam o conflito israelense-palestino como sen do uma forte opressão a um grupo fragilizado e estabeleceram alianças com as organizações do campus defensoras dos direitos das minorias negras, latinas, asi áticas, indígenas, feministas e gays. Tais coalizões, que conectam a causa pales tina a temas como a brutalidade policial e aos direitos de imigração e dos gays, surpreenderam muito as pessoas que ocupam há mais tempo posições de lide rança judaica, pois há menos de uma geração eram elas que faziam parte destes grupos, tidos como progressistas.
C OMPARTIL H A N DO N OSSOS PESADELOS E N OSSO AMOR
Em 1654, quando os primeiros 23 judeus oriundos do Recife, no Brasil, chegaram aos Estados Unidos, se depa raram com o mesmo antissemitismo cristão europeu que levara os judeus holandeses já ali estabelecidos a fugirem da Inquisição portuguesa. Hoje os mais de seis milhões de judeus que ali vivem nos EUA têm muito poder em to dos os níveis da cultura, da economia e do governo, mas ainda assim há um ranço persistente e irracional de ódio. No Brasil, em uma população de 205 milhões de habitan tes não se contam mais de 100 mil judeus; em outras palavras, praticamente só há judeus nas cidades grandes, e, no entanto, segundo a auditoria global da Liga Anti-Difa mação cerca de 22 milhões de brasileiros adultos demonstram ter atitudes antissemitas.
É possível que o retrocesso mais assustador nestas déca das tenha sido o momento em que o presidente do Con selho Central dos Judeus da Alemanha, Josef Shuster, disse que os judeus deveriam considerar não usar seus kipot tradicionais em algumas “regiões problemáticas” de Ber lim, para evitar hostilidades.
Uma auditoria do antissemitismo re alizada pela Liga da Anti-Difamação da America concluiu que em 2014 os inci dentes antissemitas haviam aumentado 21% em todo o território norte-america no, em “um ano especialmente violento para os judeus”.
A pesquisa pede que a pessoa concorde ou não com dez afirmativas: os judeus são mais leais a Israel do que a seu próprio pais; os judeus têm poder demais no mundo dos negócios; os judeus têm poder demais nos mercados finan ceiros internacionais; os judeus ainda falam demais sobre o Holocausto; os judeus só se interessam pelo que aconte
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Como devemos reagir em 2015, 70 anos depois da li beração dos campos de morte da Europa nazista? Será que a decisão do povo judeu de realizar seu caráter nacional singular em Israel se transformou na mesma fonte de ódio que levou Teodor Herzl a desenvolver o Sionismo, com o objetivo de mitigá-la? Quando os judeus do mundo todo apóiam o direito do nosso povo de ter uma nação, uma cultura, e sim, um governo democrático que como todos
Estas são umas poucas das “manchetes” mais óbvias que nos falam de antissemitismo hoje em dia, e natural mente não inclui os assassinatos de judeus na Franca, na Bélgica, e os cometidos pela ISIS simplesmente porque as vitimas eram judeus!
Minha afirmativa básica de que os judeus comoaprenderprecisameensinarlutarcontratodaequalquerformadediscriminaçãoéumidealquevaiexigirmuitapreocupaçãocomunitáriaeumvolumedeconstruçãoderelacionamentosquaseinfinito.Paramim,esteobjetivofinal,construirrelacionamentos,éonossoalvomaisimportante.
atacado alguns judeus”, declarou ele a um jornal. Nenhuma das vitimas era judia.
os governos comete erros, será que todos os judeus passam a ser responsáveis pelo governo de Israel? O fato de que eu canto HaTikvah com lágrimas nos olhos e sau dade no coração faz com que eu seja um cidadão desleal para com o pais onde vivo e educo minha família?
Há um texto rabínico, o Talmud da Babilônia, Kidushin 29a, no qual apren demos o que é preciso que um pai faça por seu filho e que inclui ensinar a criança a nadar. Isto seria uma peculiaridade an tiga? Não, é uma obrigação pratica de so brevivência! A partir deste texto rabínico compreendemos que em nossos dias to dos os pais judeus estão obrigados a en sinar a seus filhos a nadar na feia profun didade do ódio na internet, a nadar con tra as marés selvagens das afirmativas da imprensa e também a nadar nas correntes perigosas das notícias diárias sobre Israel – somos obrigados enquanto pais, avós, irmãos mais velhos, e líderes comunitá rios a ensinar a geração que nos segue a sobreviver às marés crescentes de antissemitismo.
Há pouco tempo um jogo de futebol holandês foi interrompido por uma hor renda manifestação por parte dos torce dores, que entoavam ofensas antissemitas, fazendo com que os diretores do time da casa, o Utrecht, se desculpassem pelos gritos chocantes que vinham das arquiban cadas, como por exemplo, “Hamas, Ha mas, judeus ao gás” e “Judeus são os me lhores para Apareceuqueimar”.umlembrete de que o mani festo de Hitler, “Mein Kampf”, proibido desde a derrota da Alemanha na Segun da Guerra Mundial será finalmente repu blicado na Alemanha em 2016, embora com notas críti cas, uma vez que o copyright vigente, detido pelo estado da Bavaria, expira no final deste ano.
deus seremos obrigados a aceitar uma vida de isolamento e marginalização.Háhojeuma população de 16,5 milhões judeus em uma população global de 7,3 bilhões de pessoas; de novo, somos poucos demais para sermos objeto do ódio de al guém, mas, como escreveu Jean Paul Sartre em 1945, o que inspira ódio é a ideia do judeu, mais do que o próprio judeu. Ao ensinarmos as nossas crianças a nadar nas águas da intolerância cega, que continuam muito perigosas, so mos obrigados a mostrar a elas que quando alguém está se afogando por causa de sua raça, religião, orientação se xual, habilidades ou condição marginalizada, se ficarmos indiferentes ou decidirmos ser apenas espectadores estare mos permitindo que todos ignorem os judeus... e como a história já nos ensinou tão dolorosamente, qualquer um de nós pode vir a ser um espectador!
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ce com eles; os judeus controlam demais os assuntos globais; os judeus controlam demais o governo dos Estados Unidos; os judeus se acham melhores do que os outros; os judeus controlam demais a imprensa global; os judeus são responsáveis pela maioria das guerras no mundo. Os adultos brasileiros tiveram um índice composto de 16%, ou seja, em uma população adulta de 135.545.027 pesso as, 22 milhões (16%) acreditam que as afirmações acima são provavelmente verdadeiras!
Será que se educarmos a população inteira estes 16% mudarão de idéia? Este é o modelo que vem sendo usado desde o final do século XIX. Mas, se pensarmos em quão poucos são os judeus que vivem no Brasil, como seria pos sível para a grande maioria dos brasileiros vir a concreta mente conhecer um judeu? Há 13 anos leciono em uma universidade onde se contam menos de 50 judeus em um universo de 17 mil alunos: esta proporção me ensinou que tal modelo educacional vai precisar de tempo e recursos ex traordinários. Quando não há judeus – ausência total de judeus – para desafiar a afirmação mais absurda, só pode mos depender dos não judeus! A não ser que ensinemos a todos a necessidade de dividir o peso da obrigação publi ca e comum de proteger aquele que está ausente, nós ju
A postura mais produtiva que podemos ter para en frentar todo tipo de ódio é o trabalho comunitário visando o estabelecimento de parcerias. O antissemitismo não é só um problema para os judeus! Alunos judeus de uma escola em Nova Iorque relataram terem encontrado suásti cas desenhadas nas paredes e nos escaninhos, às vezes com mensagens tipo “Morra judeu” ou ofensas como “Assassi
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a sobreviver perseguições religiosas do passado ajudaram a criar sociedades mais abertas capazes de compreender que o pluralismo religioso é a medida de uma democracia sau dável. Se não protestarmos quando negam a uma mino ria muçulmana o direito de ter alimentos que sua religião lhe permite, ou quando é negado a mulheres muçulmanas o direito de se cobrir de acordo com a sua cultura, como é possível que os judeus esperem ter o direito de usar cha péus ou kipot em lugares públicos? Quando os judeus ig noram a intolerância em qualquer forma, estamos igno rando as mesmas pessoas que responderam sim as afirma ções estereotipadas da pesquisa da ADL.
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no de Cristo” e “Judeu nojento” e piadas de mau gosto a respeito dos números tatuados nos braços dos sobreviven tes do Holocausto. Contaram como tinham sido empurrados, esmurrados, provocados e humilhados e terem estado em ônibus onde seus colegas bradavam “poder branco” e faziam a saudação nazista. O ex-líder da Ku Klux Klan que assassinou três pessoas em um Centro Comunitário Judai co cometeu estes ataques com o objetivo de interromper “o genocídio judeu da raça branca”.
Este tipo de ódio também surge contra os negros, as mulheres, os deficientes, os pobres e ignorantes, a comu nidade GLBT e assim por diante … qualquer comunidade que ignore crianças judias vítimas de bullying certamente vai também ignorar o aluno negro pobre que chega des calço porque não tem sapatos ou a adolescente deprimida que se vê totalmente marginalizada ao tentar contar a sua família que é lésbica. Se não pudermos compreender que, se não defendermos os direitos humanos básicos de todos os que sofrem a ignomínia de serem o outro, nem ao me nos começaremos a compreender que a luta contra o antis semitismo exige que defendamos qualquer indivíduo que não faca parte da cultura dominante. Os judeus forçados
Minha afirmativa básica de que os judeus precisam aprender e ensinar como lutar contra toda e qualquer for ma de discriminação é um ideal que vai exigir muita preo cupação comunitária e um volume de construção de rela cionamentos quase infinito. Para mim, este objetivo final, construir relacionamentos, é o nosso alvo mais importan te. Passei a maior parte da minha carreira profundamen te comprometido com o que chamamos de relações inter-religiosas. Meu doutorado foi em Teologia Cristã, e en quanto tive um púlpito, passei mais tempo com sacerdo
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tes do que com rabinos. Muitos membros da minha congregação ficaram confusos, alguns se queixaram, e para outros, isto era uma falha significativa em minha lide rança. Depois de me aposentar e me tor nar professor em tempo integral em uma universidade estadual, em quase todos os meus cursos não há judeus, mas mesmo assim estou convencido de estar traba lhando em prol da comunidade judaica para, em ultima análise, diminuir as raí zes do Paraantissemitismo.estabelecermos relacionamentos precisamos correr o risco de descobrirmos se somos capazes de fazermos ver ao outro o nosso sofrimento. Aparentemente é contraintuitivo despender tempo precio so preparando o outro para a nossa dor. Isto fica claro em uma historia que Elie Wiesel gosta de contar a respeito do mes tre hassídico Rabino Moshe Leibof Sasovwho, que ensina va: “A prendi com um camponês como amar os homens. Ele estava sentado em uma estalagem com outros campo neses, bebendo. Ficou calado, como todos os demais, du rante muito tempo, mas quando foi impulsionado pelo vi nho, perguntou a um dos homens sentados ao lado dele: “Diga-me, você me ama, ou não me ama?” O outro res pondeu “Eu te amo muito”. Então o primeiro camponês retrucou: “Voce diz que me ama, mas você não sabe do que eu preciso. Se você me amasse de verdade, saberia”. O outro não soube o que responder, e o camponês que ti nha feito a pergunta tornou a ficar calado. Foi o que ensi nou o Rabino Moshe Leib: ”Conhecer as necessidades dos homens e carregar o peso de sua dor – este é o verdadeiro amor dos homens”.
Aprendemos um com o outro que nenhum relaciona mento sobrevive ao peso insuportável da raiva e do medo constantes, além da exigência de que cada decisão só pos sa ser mensurada pela severidade de nossa dor. Os judeus precisam aprender a ensinar a seus filhos que nosso pas sado não é só e meramente a pressão e o stress constan tes da sobrevivência e do ódio. Em outras palavras, pre cisamos fazer mais do que ensinar aos nossos filhos que a sua sobrevivência como judeus é obrigatória depois de
Tenho o esboço de um livro que intitulei Aprendendo o Ódio, baseado em minhas aulas sobre antissemitismo, reli gião e racismo. Planejo co-escrevê-lo com um grande ami go não judeu, um homem verdadeiramente de bem que dirige o Centro para a Educação pelo Holocausto em nos so campus. Ele também é professor de um dos cursos de antissemitismo tão autêntico quanto o meu. Nosso rela cionamento no decorrer dos últimos 13 anos tem sido o meu laboratório para o aprendizado de como criar a con fiança necessária para possibilitar o compartilhamento dos temores mais profundos de judeu cujo objetivo profissio nal mais importante não deixara de ser a inigualável sobre vivência da vida judaica. Este relacionamento que encora ja perguntas ao invés de procurar respostas tem nos ajuda do a ter fé de que nossas discussões nunca estarão terminadas, pois respostas põem fim a conversas!
é o momento em que estes mesmos ami gos precisam que compreendamos que es tão “sofrendo – precisam de nós”. Este é o desafio significativo de honestidade para as duas pessoas.
Pare e pense por um momento no que significa admitir que está com medo. Para muitas pessoas, a disposição de compar tilhar sua fragilidade emocional é um ato de intimidade extraordinária. No entanto, por vivermos em uma época de ter ror global horroroso, o medo se tornou uma forma barata e vulgar tanto de hu milhação como de manipulação. O medo se tornou tão onipresente que nos fez ficar impacientes e ate desdenhosos quando al guém nos diz que precisa de nossa presen ça para que possa se acalmar, que preci sa de nos para ser confortado ao sentir-se aterrorizado por seus piores medos.
Aprendi com sofrimentoscompartilhararelacionamentososqueescuridãodonossopassadosedispersaquandoonossocompromissocomoOutronosajudaacompreenderalémdonossosofrimento.Juntospodemosperscrutarofuturoenossacapacidadedetodososnosuneemesperançaecoragem.
Não precisamos estabelecer grandes relacionamentos para compartilhar tarefas comunitárias normais com ou tros, ou para celebrar as vitórias de nossos times e nem tampouco quando somos convidados para compartilhar as alegrias familiares de alguém. Até mesmo quando so mos solicitados a ajudar alguém com algum problema fí sico, ou se nos pedem um empréstimo – a intimidade do dinheiro! – ou se um amigo nos pede conselhos sobre seu negócio ou sobre seus filhos: nem mesmo estes casos exi gem demais de nos enquanto indivíduos. A contrapartida
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O Rabino Joseph A. Edelheit é diretor de Estudos Judaicos e Re ligiosos na Universidade Estadual de St. Cloud, Minesota, EUA.
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E é isto o que aprendemos ao compartilharmos o peso de nosso sofrimen to, ao nos arriscarmos fazendo perguntas para aqueles que dizem amar-nos, com partilhando tanto nossos pesadelos como nosso amor. Aprendi com os relacionamentos que a escuridão do nos so passado se dispersa quando o nosso compromisso com o Outro nos ajuda a compreender além do nosso sofri mento. Juntos podemos perscrutar o futuro e nossa ca pacidade de compartilhar todos os sofrimentos nos une em esperança e coragem. O antissemitismo não acaba rá, mas a eterna e característica presença dos judeus e da vida judaica, que sempre fará desaparecer toda escuridão também não, até mesmo e muito especialmente quan do os outros pensarem que esta chama será extinta pelos ventos do ódio.
Auschwitz, ou estaremos dando a Hitler uma vitória póstuma. Os judeus, o juda ísmo e o exclusivo valor da vida judaica devem ser mais do que uma recusa desa fiadora de negar ao inimigo a vitória, di zendo-lhe que, embora nos odiasse, ainda estamos aqui! É difícil fazer com que nos sos amigos entendam este comportamen to desafiador. Melhor ensinarmos nossos filhos a nadar, não apenas para que sobre vivam e não se afoguem, mas também para que relaxem, se exercitem, brinquem, e aproveitem a aventura das ondas!
Traduzido do inglês por Teresa C. Roth.
gramos por termos desenvolvido manei ras resistentes e fortes para prosperar en quanto judeus. Enquanto choramos pelas tragédias do passado buscamos e testamos maneiras de ir em frente e enfrentar o fu turo com esperança e coragem!
O Rabino Moshe Leib ensinou: ”Conhecer as necessidades dos homens e carregar o peso de sua dor – este é o verdadeiro amor dos homens”.
Por ocasião de Tishá B`Av, o dia 9 de Av, o calendário judaico nos oferece um desafio interessante, uma opor tunidade anual de aprendermos a equilibrar nossos sofrimentos e nossas forças, que nos é demonstrada pelo ca lendário tradicional como sendo um momento de jejum e luto pela destruição de ambos os Templos de Jerusalém, em 586 a.c., e 70 e.c. Evidentemente seria fácil ver de que maneira os desastres do passado podem nos ajudar a com preender até que ponto a vida judaica tem sido feita de so frimento, mas enquanto judeus progressistas, cabe-nos ul trapassar esta barreira. Esta é a conclusão da reflexão do rabino Stephen Fuchs, ex-presidente da World Union for Progressive Judaism sobre este ponto: para os judeus refor mistas, Tishá B`Av pode ser um dia de luto e um dia de alegria. Choramos a destruição do Templo, mas nos ale
ORT INSTITUTO DE TECNOLOGIA INOVAR, EDUCAR e CAPACITAR AQUI VOCÊ É PREPARADO PARA INGRESSAR NA UNIVERSIDADE /instituto.ort A tradição judaica em educar com um foco tecnológico. MATRÍCULAS ABERTAS INSCRIÇÕES PARA 2016 FUNDAMENTAL - 6º ao 9º ANO ENSINO MÉDIO: COMUNICAÇÃOINFORMÁTICABIOTECNOLOGIASOCIALELETRÔNICA-TI



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O P ERFIL DE M OISÉS SEGU N DO A H ISTÓRIA DO SEU N ASCIME N TO E DE SUA MORTE
Ytzhak (Itzik) Peleg
Uma abordagem literária
O relato lacônico do nascimento de Moisés
Página anterior: Estátua de Moisés, de Michelangelo, na Basílica San Pietro in Vincoli, em Roma.
oisés é o protagonista nas histórias do Êxodo do Egito. Sua biografia se estende através de quatro livros da Torá. A Torá atribui a Moisés uma posição central na história do povo de Israel. Ele resgata o seu povo do Egito, ele os lidera pelo deserto durante 40 anos, é ele a quem Deus se revela face a face, aquele a quem a Torá é entregue. Antes de avançarmos, gostaria de ressaltar que a minha abordagem literá ria é sincrônica. Esta atitude literária perante o texto reconhece a possibilida de de leituras múltiplas. O objetivo deste artigo é tentar compreender inteira mente a história bíblica em seu formato final. Prefiro uma investigação sincrô nica à diacrônica, de forma a focalizar uma leitura profunda do próprio texto. O meu foco é centrado no texto como um todo. Por este motivo, a questão da historicidade de Moisés, assim como o Êxodo do Egito, não se torna relevan te quanto à questão presente.
M
Ainda que a Torá mencione Moisés 616 vezes (apenas no Livro do Êxodo são 271 vezes), o seu nascimento é narrado apenas em dois versos no Livro de Êxodo 2:1: “Um certo homem da casa de Levi casou [-se com] uma mulher levita. A mulher concebeu e deu à luz um filho e viu como este era bonito…”
A ausência de uma história de “nascimento milagroso” em torno de Moisés tem a intenção de garantir que Moisés não seja cultuado como se fosse um deus, para que desse modo se evite a criação de um culto à personalidade.
Apesar de que a descrição do resgate de Moisés pela fi lha do faraó possa ser vista como um relato metafórico de nascimento, ainda insisto no fato de que a história do nas cimento biológico de Moisés é curta e lacônica. O relato de como a filha do faraó salva Moisés e o cria é um tema folclórico tradicional, comum a diversas culturas, no qual o herói é abandonado pelos pais imediatamente após o seu nascimento. Pesquisadores notaram a similaridade en tre Moisés na cesta de vime e a lenda acádia do Rei Sar gão de Acad e o famoso “conto da cesta”. A mãe de Sar gão o concebeu e deu à luz em segredo. Colocou-o, então, numa pequena caixa.1
A questão óbvia que se apresenta se refere a essa infor mação pós-bíblica, se esta seria uma versão posterior e que preencheria lacunas na história bíblica que explica o co
Vou agora discutir a história “Do Milagre da Travessia do Mar Vermelho”
mando do faraó em Ex.1:22: “Cada me nino recém-nascido o lançarás ao Nilo”; ou será este um caso de uso de tradição antiga para corrigir “censura” da antiga versão da Bíblia?
Gostaria de focalizar no papel de Moisés em relação à travessia milagrosa do Mar Vermelho. Em Êxodo 14, ver sículo 18, é Deus quem ordena a Moisés “erguer a sua vara... sobre o mar e dividi-lo de maneira que os israeli tas possam entrar no mar sobre terras secas”; no versícu lo 21, Moisés obedece e age de acordo com o comando de Deus, porém é Deus quem causa o milagre, “através um forte vento do leste”.
Não considero, no entanto, esta in terpretação satisfatória. A omissão de um nascimento milagroso é até mais curiosa se considerarmos que o que conhecemos do nascimento de outras personagens da Bíblia. O nasci mento de Isaac, por exemplo (Gen. 18:6-21), de Jacob e Esaú (Gen. 25:19-29), de Sansão (Juízes 13). Essas histórias possuem em comum um padrão, no qual uma mu lher estéril, longamente sofredora, milagrosamente dá à luz um Podemosfilho. imaginar que, já que Moisés tinha dois ir mãos – Aarão e Miriam –, sua mãe não tinha problemas de fertilidade. Eu, porém, não considero satisfatória essa solução: continuamos com a questão de como explicar o relato lacônico do nascimento de Moisés.
O leitor sensível irá discernir a tensão nesse versículo 31: o povo via o milagre executado por Deus, porém, “acreditaram” não apenas na Divindade mas também em Moisés.Poroutro lado, no Cântico do Mar (Ex. 15:1) canta do por Moisés e o povo, todo o louvor é a Deus e não a Moisés.Fontes externas ao Êxodo negam a Moisés quase que totalmente qualquer participação. Em Josué, por exemplo, Moisés não é mencionado na Hagadá de Pessach para evitar a criação de um culto à personalidade, para evitar a identificação entre o mandante (Deus) e o (Moisés).mensageiro
Este é um relato curto, seco e informativo, apesar de nos ser dito que a mãe ficou impressionada com a beleza do seu filho. É de se notar, também, que os no mes dos pais não aparecem; esta poderá ser uma mensagem educativa, oculta, in dicando que não é necessário ser “o filho de...” para tornar-se um grande líder.
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Se, de fato, temos alguma tradição que foi removida da Bíblia, qual o motivo da censura?Torna-se razoável assumir que a au sência de uma história de “nascimento milagroso” em torno de Moisés, e a au sência de tradições em literatura pós-bí blica, têm em comum a intenção de garantir que Moisés não seja cultuado como se fosse um deus, para que des se modo se evite a criação de um culto à personalidade.
Neste texto, meu argumento propõe que a resposta à questão de como explicar o relato lacônico do nasci mento de Moisés pode ser encontrada ao notar-se a maneira pela qual a Bíblia descreve a forte figura de Moisés em dois outros pontos fulcrais na sua vida: A abertura do Mar Vermelho – será o “autor do milagre” Deus ou Moi sés? Além do mais, o relato de sua morte e sepultamento – Qual o motivo do desconhecimento do local de sepul tamento de Moisés?
A ausência de uma história de “nascimento milagroso” para Moisés se reflete em literatura pós-bíblica. Por exemplo, em Shemot Rabbah 1:18, pag. 68: “Faraó foi informa do pelo mágico do Egito ou através de um sonho sobre o nascimento de Moisés e por esse motivo faraó deu ordens que fossem mortas todas as crianças de Israel que fossem do gênero masculino.”
O Relato da Morte e Sepultamento de Moisés:

Aprendemos, dessa forma, que em Deuteronômio a posição de Deus é enfatizada em detrimento de Moisés. Será que este trecho aponta para a modéstia de Moisés, como somos informados em Números 12:3?
Rehab diz aos dois espiões: “Pois ouvimos como o Senhor secou as aguas do Mar dos Juncos” (Jos. 2:10). Moisés nem é mencionado. Deuteronômio (veja Deut. 11:4) atribui o milagre exclusivamente à Divindade.
o fato de igualmente não ser mencionado na Hagadá de Pessach?AHagadá de Pessach cita no versículo 8 em Deutero nômio 26: “E o Senhor nos tirou do Egito”, e adiciona: “Não pelas mãos de um Anjo e não pelas mãos de um Serafim, nem as mãos do Mensageiro, porém pelas mãos do Eterno”. Tudo indica que “O Mensageiro” sugere Moisés. Estas palavras nos levam a uma das razões pela qual Moisés não é mencionado na Hagadá de Pessach. Não é mencionado com o objetivo de evitar a criação de um culto à personalidade; em outras palavras, para evitar a identificação entre o mandante (Deus) e o mensageiro (Moisés). Ao não darem atenção à existência de Moisés, os autores da Hagadá revelam a sua preocupação com a possibilidade de que gerações por vir o vissem como uma figura divina.
Voltemo-nos, agora, para a história de Moisés como re latada na Torá. No final de sua vida, quando o povo está
Posteriormente, centenas de anos após a canonização da Bíblia Hebraica, a Hagadá de Pessach, que nos fala do Êxodo do Egito, sequer menciona a liderança de Moisés.
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Perguntamos então: Haverá alguma conexão entre o fato de Moisés não ser mencionado em Deuteronômio e
Micha Goodman, em seu livro Moses` Final Oration (A Oração Final de Moisés) argumenta não apenas que Moi sés se faz desaparecer do milagre da abertura do Mar Ver melho, mas quase que se elimina do relato como um todo, por exemplo Deut. 8:2.2 De acordo com esse versículo, é Deus quem lidera o povo no deserto e não Moisés. Quan do Moisés encoraja o povo a relatar a história às gerações futuras, ele não menciona a sua própria participação.
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Que tragédia! Após liderar o povo por quarenta anos até que alcançassem a Terra Prometida, não será permiti do a Moisés que entre na Terra. Seja quais forem os mo tivos da Divindade, esta é uma punição dolorosa, princi palmente considerando tudo que Moisés havia realizado em prol do seu povo.

por entrar na Terra Prometida, Deus solicita a Moisés que ascenda ao Monte Nebo para que veja a Terra. A Divinda de diz a Moisés: “Esta é a terra... Eu permiti que tu a vis ses com teus próprios olhos, porém tu não entrarás nela” (Deut 34:4). Será que Moisés faleceu de tristeza e com o coração partido após as palavras de Deus?
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Ademais, o povo de Moisés posteriormente irá desfigu rar a sua memória ao excluir os seus feitos da Hagadá de Pessach. Que tragédia!
Com o objetivo de amenizar a tragédia de Moisés, su giro uma leitura adicional que ao menos poderá nos con fortar, a nós, os leitores.
Notemos que a descrição dos acontecimentos no Mon te Nebo se inicia com o verbo “ver”. A repetição do mesmo
verbo em Deut. 34:4 reforça a sua importância. De fato, Daube e Malul, ambos destacam o papel do verbo “ver” em contratos legais para definição de transferência de pro priedade de terras em contratos legais em tempos do Antigo Oriente Próximo.3 Em outras palavras, o mero fato de se olhar uma terra, determina aprovação legal de transfe rência de propriedade. Há um fenômeno similar quando aquele que irá se tornar o proprietário da terra, perpassar a pé, indo e voltando, como o fez Abraão sob as ordens de Deus. “Levanta, anda pela terra, em seu comprimento e sua largura pois a darei a ti.” (Gen. 13:17) O significado legal do termo “ver” como parte da cerimônia de transferência de propriedade nos permite compreender – e, quem sabe, a Moisés – as palavras de Deus no Monte Nebo como menos trágicas do que parecem inicialmente. De acordo com Daube: “Apesar de que Moisés não irá cruzar a fron teira para entrar na Terra Prometida, pelas palavras da Di vindade – incluindo-se o verbo “ver” – apreendemos que Moisés recebe o status de proprietário da Terra, tanto para si quanto para a sua descendência.”
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Ademais, segundo o versículo 6, Moisés recebe uma grande honra quando Deus, próprio, o sepulta. Ainda, o capí tulo finaliza a Torá dizendo: “Jamais se le vantou em Israel um profeta como Moi sés que o Senhor conheceu face a face” (vers.Em10).seguida, no entanto, tomamos co nhecimento de que “Ninguém, até os dias de hoje, conhece o local de sua sepultu ra.” (Deut. 34:6), o que nos leva à ques tão: Por que o local de sepultamento de Moisés é desconhecido?
Neste texto abordei quatro questões:
Concluindo
O relato da morte de Moisés e especialmente o fato de que o local de seu sepultamento é desconhecido, pode ser interpretado como que tendo relação a duas mensagens in terligadas: a luta contra o culto à personalidade, como vi mos nas histórias do nascimento de Moisés e da abertu ra do Mar Vermelho. Além disso, o desejo de evitar-se a configuração de Moisés como um herói divino e mitoló gico, sendo que uma configuração destas estaria em con flito com o Gostariamonoteísmo.demencionar, aliás, que por ser o local do se pultamento desconhecido, não há possibilidade de tornar a sua suposta sepultura um local de romaria, com todos os fenômenos relacionados.
A mensagem é clara: jamais fique indiferente ao sofri mento de outros. Não fique calado.
Antes de concluir, retornemos ao relato do nascimen to desprovido de milagres e a sua influência sobre a nos sa compreensão referente à figura de Moisés. Um nascimento milagroso apontaria para uma imagem pertencen te a um plano divino nessa escolha de Deus – enquanto a criança ainda se encontrasse no ventre. No caso de Moisés, no entanto, parece que este foi escolhido como merecedor de sua missão divina apenas após prová-lo quando jovem.
Então vieram atrás dos sindicalistas e eu não protestei – pois não era sindicalista.
Então vieram atrás dos judeus e eu não protestei – pois não era Entãojudeu.vieram atrás de mim – e ninguém restava para protestar por mim.”
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O comportamento de Moisés na his tória do assassinato do egípcio exige uma explicação à parte: “E ele olhou para um lado e para outro e quando viu que não havia homem algum, matou o egípcio e o escondeu na areia” (Ex. 2:11-12).
Nestes três curtos relatos, observamos Moisés como alguém que defende os mais fracos, sem referência às ori gens, gênero ou status social. Um homem como este é re
“Primeiramente vieram atrás dos socialistas e eu não protestei – pois não era socialista.
Segundo, haverá alguma conexão entre este relato la cônico e o fato de Moisés não ser mencionado na Haga dá de Pessach?
Por ser o local do sepultamento de Moisés desconhecido não há possibilidade de tornar a sua suposta sepultura um local de romaria, com todos os relacionados.fenômenos
Em três curtos relatos Moisés se mostra como um indi víduo que luta pela justiça, um indivíduo que se deixa sen sibilizar. Por exemplo, em primeiro lugar, quando Moisés mata um egípcio o qual observou espancando um hebreu e, em segundo lugar, no relato em que interveio na briga entre os seus dois compatriotas; além disso, no episódio de sua luta com os pastores de Midian com o objetivo de aju dar às filhas de Jethro (Ex. 2:11-17).
almente merecedor de se tornar líder do povo. Uma história de nascimento mila groso teria diminuído a força destes três relatos que têm como objetivo justificar, ao demonstrar o seu caráter extraordiná rio, a escolha de Moisés como mensagei ro de Deus.
Certamente podemos apresentar o comportamento de Moisés por uma visão nada elogiosa. Qual o seu motivo para olhar em volta e se certificar de que não havia nin guém o observando? É possível, de outro lado, fazer uma leitura mais positiva: Moisés se sensibilizava pelo sofrimen to de seus irmãos e, quando viu um egípcio espancando um hebreu, olhando em volta para ver se alguém vinha ajudar à vítima, e vendo que ninguém haveria que pudesse intervir, ele mesmo se adiantou para salvar o hebreu en fraquecido. Moisés, aqui, se mostra responsável, interessa do, envolvido. Esta leitura me faz recordar as palavras de Martin Niemöller, um conhecido pastor protestante que se opunha ao regime nazista4:
Primeiramente, como podemos explicar o relato lacô nico sobre o nascimento de Moisés?
Quarto, por que será desconhecido o local de sepulta mento de DefendoMoisés?quea resposta a estas perguntas é uma, ape nas: o objetivo de que se previna contra a criação de um culto à personalidade e que se evite confundir o mandante (Deus) e o mensageiro (Moisés). Ao dar um valor menor à existência de Moisés, os autores da Hagadá revelam a sua preocupação de que as gerações futuras viessem a olhá-lo como uma figura divina.
4 Martin Niemöller passou os últimos sete anos do regime nazista em campos de concentração. A citação acima talvez seja o maior fato pelo qual Niemöller é lem brado.
Não há quem, no entanto, possa ignorar a imagem grandiosa de Moisés. Por essa razão, todos aqueles que re latam detalhadamente sobre o Êxodo do Egito sob a lide rança de Moisés, são dignos de louvor.
Notas
1 O conhecido “conto da cesta” é um relato folclórico semita muito antigo referen te ao rei Sargão, o fundador da dinastia semita de Akkad (em 2.360 a.e.c.).
Dr. Itzhak (Itzik) Peleg é o chefe do Departamento de Cultura Bí blica e Judaica do Beit Berl Academic College. Faz conferências na Universidade de Haifa e no Gordon College, Haifa. É o editor das revistas Mo’ed: Annual for Jewish Studies (Anuário para Es tudos Judaicos) e Holiday Thoughts (Pensamentos dos Dias Fes tivos), além de possuir vasta experiência como professor. Dr. Pe leg anteriormente serviu como sheliach (orientador) em Moscou e Nova York. É membro do kibutz Ein Hashofet, em Israel. Esteve na ARI neste ano, quando apresentou uma palestra e fez uma prédi ca no kabalat shabat.
3 Daube, D., Studies in Biblical Law, Cambridge, 1947, (Nova impressão KTAV, New York, 1969), pg. 27.
Traduzido do Inglês por Jeanette B. Erlich.
2 Micha Goodman, Moses´ Final Oration. Ed. Kinneret, Znora Bitan, Dvir Pu blishing House, Ltd. 2014, pg. 19.
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Terceiro, será Deus ou será Moisés o autor dos milagres na história da abertura do Mar Vermelho?



“Apocalíptica” é uma intimidante seção da literatura Bíblica, contu do os esclarecimentos obtidos pela pesquisa destes textos misteriosos nos ajudam a entender a realidade experimentada pelos judeus que viveram sob jugo estrangeiro durante a Antiguidade. Estes textos mos tram a criatividade dos escritores judeus no período final do Segundo Templo, como eles imaginaram um futuro utópico no qual os judeus seriam vingados e restaurariam a glória que eles viveram antes que a Babilônia destruísse o reino de Judá e o seu templo em 586/587 a.e.c. (antes da era comum).
A L ITERATURA A
Adam T. Strater
A literatura apocalíptica surge consistentemente na tradição judaica quan do das situações de stress. A primeira onda de textos apocalípticos aparece no
JUDAICAPOCALÍPTICA
A literatura apocalíptica judaica foi concebida por judeus marginalizados e oprimidos que ansiavam pela intervenção divina, e estes textos usam visões imaginativas para descrever tanto a jornada divina em direção à utopia como a própria utopia divina.
A literatura apocalíptica judaica foi concebida por judeus marginalizados e oprimidos que ansiavam pela intervenção divina, e estes textos usam visões imaginativas para descrever tanto a jornada divina em direção à utopia como a própria utopia divina. Estes textos criativos proveram conforto à comunidade piedosa durante dois dos mais desafiadores e violentos períodos da história ju daica; a perseguição sistemática aos judeus sob Antíoco IV Epifânio que come çou em 176 a.e.c. e a revolta judaica de 66 a 74 e.c. (era comum), que resultou na destruição de Jerusalém e do Segundo Templo em 70 e.c. Os textos goza ram de uma popularidade relativa durante estes dois períodos, porém a apocalíptica rapidamente desvaneceu do discurso judaico com o surgimento do ju daísmo rabínico, sendo adotada mais tarde pelo cristianismo, no segundo sé culo da era comum.
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As imagens deste artigo são reproduções das gravuras de Gustave Doré.
A
quantidade de influência cultural das potências estrangei ras sobre a comunidade judaica.
período depois que os babilônicos destruíram Jerusalém em 586 ou 587 a.e.c. e levaram muitos habitantes de Judá ao exílio na Babilônia. Foi então que, pela primeira vez na história, os habitantes de Judá viveram sob domina ção estrangeira. Para muitos a destruição da cidade signi ficou que as profecias de Jeremias estavam corretas: “Fui Eu quem fiz a terra, e os homens e os animais que estão na terra, através do Meu grande poder e por Meu braço es tendido; e Eu a dou a quem Eu julgo apropriado. Portan to, Eu entrego estas terras ao Meu servo, o Rei Nabucodo nosor da Babilônia.” (Jeremias 27:5-6).
Inicialmente os judeus se submeteram aos novos gover nantes buscando viver pacificamente, atemorizados pelas mortes e destruição que testemunharam nas mãos dos ba bilônicos. Esta foi uma estratégia que se provou funcio nar na maior parte do tempo, pois os judeus tipicamente prosperaram sob os impérios estrangeiros que controlaram Judá. Mas quando o Império Babilônico foi sucedido pelo Império Persa em 539 a.e.c. e depois pelo Império Grego em 333 a.e.c., alguns judeus começaram a especular sobre o retorno de um Estado autônomo que eles tiveram antes do exílio babilônico, e muitos ficaram preocupados com a

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A cultura grega, conhecida como Helenismo, foi par ticularmente insinuante e causou uma divisão na comuni dade judaica, entre o tradicional, judeu piedoso que que ria manter seus costumes e a população helenizada, que incluía a aristocracia judaica, que apoiava o regime gre go ocupante. A situação se agravou durante o reino do rei grego do Império Selêucida, Antíoco IV Epifânio, quan do, como a aprovação dos judeus helenizados, o rei tor nou ilegais rituais e costumes judaicos, tais como a circun cisão, e dessacralizou o Templo dedicando-o a Zeus em 167 a.e.c. Judeus piedosos perceberam nisto um perigo existencial ao judaísmo, o que motivou a alguns escribas comporem textos que descreviam um futuro no qual a in tervenção divina iria liberar os judeus do jugo estrangeiro, de sua perseguição e influência. Esta alternativa confortou os judeus piedosos e destituídos visto que lhes assegurava um futuro renovado e autônomo, muito parecido ao que os habitantes de Judá experimentaram antes dos babilônicos, além de vingança pelas atrocidades sofridas sob Antí oco IV. Contudo, estes textos eram diferentes de toda a li
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A conclusão simples é que uma apocalipse é uma histó ria que relata um humano recebendo uma revelação divina que ele não consegue entender, de forma que ele necessita de um intérprete angelical que lhe revela sobre uma futu ra salvação cósmica. Apocalipses são, então, semelhantes a profecias no que diz respeito a que há um humano recebendo uma mensagem divina, mas com a importante di ferença de que no apocalipse a mensagem deve ser inter pretada por mensageiro divino para o humano entendê-la. Uma afluente classe de escribas promoveu as profecias es critas sobre as orais e combinou a elas elementos empres tados da tradição profética israelita, usando linguagem re tirada à literatura sapiencial hebraica. Isto deve ter tido su cesso no período do Segundo Templo, porque parece que havia uma generalizada falta de confiança na instituição profética após a destruição de 586/7.
De fato, foi sugerido que a profecia tradicional foi tão desprezada depois do exílio babilônico que ser profeta po deria representar perigo de vida. Conforme esta teoria, os autores fizeram as suas mensagens divinas incoerentes aos humanos usando imagens fantasiosas e frequentemente as sustadoras para se protegerem do perigo. Os autores, para
Apocalipses e a literatura apocalíptica surgiram e serviram para dedesobreviveviolentacomunidadesconfortarsobperseguição,contudoseulegadonateologiaalgunsdosregimesmaisviolentosdaatualidadee,aoinvésseremliteraturaparaconfortarosoprimidos,oapocalipsesetornounaliteraturadoopressor.
se protegeram ainda mais, conferiram au toridade aos seus textos, pelo uso de pseu dônimos de famosos personagens bíbli cos e colocando a sua nova história den tro da narrativa bíblica. Por exemplo, em Genesis 5:22-24 se lê que a personagem Enoch “caminhou com Deus por trezentos anos… Enoch caminhou com Deus; e depois ele não existiu mais, porque Deus o tomou”.Estetexto misterioso glorificava Eno ch e inspirou um segmento inteiro de li teratura apocalíptica atribuída a Enoch, mas escrita por alguém que preencheu a história com o que aconteceu exatamen te quando ele andou com Deus, o que in clui jornadas através de diversas regiões da terra, dos céus e do mundo abaixo. Apo calipses foram um método de os judeus comentarem sobre a sua situação políti ca contemporânea, da mesma forma como a profecia, mas sem expô-los a represálias políticas, e com os autores se resguardando de críticas internas ao usar nomes de figu ras centrais Durantejudaicas.aprimeira onda de literatura apocalíptica ju daica, produzida no tempo da perseguição de Antíoco IV, apareceram outros textos que não se enquadravam na de finição estrita, acima mencionada, de apocalipse mas que continham a aura de um apocalipse. Estes textos são con siderados “apocalípticos” e são o que as pessoas pensam normalmente quando ouvem palavras como “apocalípti co”, “apocalipse” e “escaton”. Eles descrevem algo ou tudo do que se segue: a desesperada expectativa das promessas divinas, futura catástrofe cósmica, anjos e demônios, sal vação divina além da catástrofe, e/ou a figura de um MessiasPorsalvador.exemplo, o Livro dos Jubileus, que é aproximada mente contemporâneo a Enoch 1, reconta as histórias bíblicas do Gênesis e Êxodos de uma forma apocalíptica, referindo constantemente ao “escaton” (o fim dos dias). O Livro dos Jubileus não é canônico, não contém uma mensagem divina que requer tradução angelical, portan to não é uma apocalipse, apesar do fato de ser apocalípti co. O mesmo é verdadeiro para gêneros de literatura de senvolvidos posteriormente, Oráculos e Testamentos, que
A palavra grega apokalypsis signi fica “revelação” (é composta por apo -“retirando” e kalumna-“véu”), uma pa lavra relativamente nova no que diz res peito ao seu significado, visto que o ter mo não foi usado neste contexto até 90 e.c. aproximadamente com a autoria do livro de Apocalipse (Apokolypsis) de João, também conhecido como o Livro da Revelação. Apesar do fato que emer giram apocalipses em hebraico duzentos anos antes da palavra grega ser usada des ta forma, é este o termo que passou a ser usado tanto no discurso erudito como no popular. Houve muita discussão erudita sobre a lite ratura apocalíptica, sobre o que é precisamente entendi do por “apocalipse”.
teratura judaica anterior, porque em vez de usar a profecia para mediar o discur so divino, o modo tradicional para este discurso, estes escribas escreveram usan do um novo gênero de literatura de reve lação, o “apocalipse”.
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também contém os elementos acima listados, porém não mensagem traduzida, fazendo deles apocalípticos, mas não apocalipses.Paracomplicar ainda mais as coisas, uma terceira pala vra, “apocalipsismo”, é usada para denotar a ideologia so cial topicamente expressa nos apocalipses e na literatura apocalíptica; é a crença que o escaton está chegando. Re sumindo, temos “apocalipse”, um substantivo usado para denotar um gênero literário claramente definido, “apoca líptico”, um adjetivo para textos que contém motivos es catológicos, e “apocalipsismo”, um substantivo usado para definir um conjunto de crenças que espera que o fim dos tempos vá ocorrer proximamente.
Ambos, apocalipses e literatura apocalíptica, apresen tam uma realidade futura na qual os judeus triunfam sobre os seus opressores, e isto realmente aconteceu por um breve período de tempo. A seu tempo, as perseguições de Antíoco IV ocasionaram as revoltas dos Macabeus de 167 a 164 a.e.c., que começaram no mesmo momento em que muitos destes apocalipses foram escritos e resultaram na vi tória judaica sobre os gregos e em autonomia sob a dinastia dos Hasmoneus, que durou cerca de cem anos.

A segunda onda de textos apocalípticos judaicos apa receu depois da revolta judaica de 66-74 e.c. que resultou na destruição do Segundo Templo em 70 e.c. e num surto de brutalidade contra os judeus por parte das autoridades romanas, com o objetivo de punir os judeus por sua in surreição. Os textos resultantes, Ezra 4, Baruch 2, o Apo calipse de Abraão e o Livro das Revelações são obras com plexas que mostram um progresso no desenvolvimento li terário dos apocalipses, mas expressam a mesma preocupa ção presente na primeira onda da literatura apocalíptica; o futuro do judaísmo está em perigo. Os escribas mais uma vez precisaram confortar o povo e explicar por que Deus permitiu que Jerusalém e a população judaica fossem vio lentamente esmagados e o Templo destruído.
Há evidência esporádica sobre a continuidade da pro dução de textos apocalípticos após a revolta e a subsequen te autonomia, mas parece que este gênero tem uma pro pensão para a turbulência. Isto por que parece haver um significante decréscimo na popularidade do apocalipse até aproximadamente duzentos anos depois, quando o próxi mo perigo existencial para o judaísmo aconteceu, desta vez sob um outro império, o Romano.
1 Nota do tradutor: Estado Islâmico do Iraque e da Síria – ISIS em inglês
Traduzido do inglês por Raul C. Gottlieb.
calipse e a literatura apocalíptica estavam abandonados na tradição judaica, deixada para os cristãos usá-la e desenvolvê-la em sua tradição por mais umas poucas cen tenas de Apocalipsesanos.
De particular importância é o fato de a literatura apocalíptica judaica nos dar alguns esclarecimentos sobre o estágio fundacional do desenvolvimento do ju daísmo e do cristianismo sobre o qual sa bemos pouco. Este segmento de literatura joga uma lente adicional sobre o mundo imediatamente antes do crescimento ma ciço do cristianismo no segundo século e.c. e da edição da Mishná, o primei ro livro rabínico, em torno de 200 e.c., visto que a maior parte dos tex tos apocalípticos não é canônica.
A Pseudepígrafa é uma coleção de textos escritos entre 300 a.e.c. e 300 e.c. que não foram aceitos nem no Tanach nem no Novo Testamento, mas que são “bíblicos” em sua natureza. Os pesquisadores organizaram estes tex tos em edições eruditas, mas a maioria deles foram origi nalmente preservados nos cânones de várias denominações cristãs ortodoxas, tais como o cânone da Igreja Ortodoxa Etíope ou o da Igreja Eslava, enquanto que outros foram descobertos entre os rolos do Mar Morto.
Adam T. Strater é um Wexner Graduate Fellow e aluno de PhD no curso de Bíblia Hebraica na Emory University de Atlanta, Georgia. Sua pesquisa foca na literatura apocalíptica judaica, guerras da An tiguidade e violência religiosa.
e a literatura apocalípti ca surgiram e serviram para confortar comunidades sob violenta perseguição, con tudo seu legado sobrevive na teologia de alguns dos regimes mais violentos da atualidade e, ao invés de serem litera tura para confortar os oprimidos, o apocalipse se tornou na literatura do opressor. O grupo militante islâmico conhecido como EIIS1 recruta ativamente no estrangeiro usando imagens e retórica apocalíptica. Eles retratam uma batalha apocalíptica contra seus inimigos para ganhar autonomia para o seu grupo e retornar a antiga glória do Islã, restabelecendo o califado de seu primórdio. Eles tentam restabele cer sua honra mais ou menos como os judeus fizeram com a literatura apo calíptica, e usam quase o mesmo ima ginário para fazê-lo. Em vez da batalha contra os opressores gregos e ro manos do Livro de Daniel ou do Li vro das Revelações a America é retratada como a inimiga cuja derrota vai trazer o escaton. O EIIS é um exem plo particularmente agudo considerando o seu muito real e atual perigo para a estabilidade da região, mas há mui tas instâncias ao redor do mundo nas quais grupos usaram e adaptaram temas da literatura apocalíptica judaica para acomodar suas circunstâncias, incluíndo muitos exemplos na história do Brasil.
A literatura apocalíptica judaica foi adequada ao tem po em torno dos dois períodos mais violentos da história judaica, a revolta dos Macabeus e a revolta judaica contra o Império Romano, e depois disso desapareceu do pano rama literário judaico. O próximo grupo a tratar com os assuntos endereçados na apocalíptica judaica foram os ra binos cem anos mais tarde, num período em que o apo
L EIT U RAS ADI C I ON AIS , John J. Collins , ed. John J. Collins Theologies of Resistance in , Anathea E. Portier-Young,ed.James H. Charlesworth
O Apocalipse representa uma in crivelmente pequena percentagem do cânone judaico e cristão; apenas Da niel 7-12 conta como um apocalipse na Bíblia Hebraica, e o único apoca lipse contido no Novo Testamento é o Livro da Revelação. Isto não signi fica, contudo, que não existem mais apocalipses judaicos, mas a grande maioria deles não entrou no cânone convencional, seja judaico seja cris tão. A esmagadora maioria de apoca lipses e de outros textos apocalípticos, incluíndo Oráculos e Testamentos, se encontram na Pseudepígrafa.
ture, eds. Louis H. Feldman, James L. Kugel, and Lawrence H. Schiffman ture, Patricia R. Pessar
O grupo militante islâmico conhecido como EIIS estrangeiroativamenterecrutanousandoimagenseretóricaapocalíptica.
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Eu quero discutir especialmente a posição do Rambam com relação ao es tudo das ciências, ainda que seja claro que, para ele, ciência e filosofia tenham vindo ao mundo juntas. É comum pensar que o Rambam apoiou o estudo cien tífico e deu grande incentivo para a aceitação da ciência entre os judeus da Ida de Média, especialmente no Sul da Europa (Espanha, Provença e Itália); e não há dúvida de que haja uma grande parte de verdade nesta posição. No entanto, temos que reconhecer também que a posição do Rambam com relação às ciên cias era fundamentalmente ambivalente: de um lado, ele precisava delas como base para sua percepção teológica e, por isso, via seu estudo como uma obrigação religiosa; de outro lado, ele via nelas também uma ameaça a fundamentos religiosos específicos, cuja negação lhe parecia heresia.
Ao reconhecer a Filosofia e a ciência como possíveis árbitros, Maimônides levantou a possibilidade – e até a obrigação – de submeter a interpretação das escrituras à Filosofia e, assim, introduziu o problema da relação entre a ciência e a tradição religiosa no âmbito judaico.
I DE N TIDADE C ULTURAL DOS JUDEUS DA I DADE M ÉDIA
O Rambam tentou unir os dois lados do dilema e estabelecer uma posição intermediária. O resultado foi um processo não consistente, cheio de contra dições, que não transmite uma mensagem inequívoca sobre a relação entre a
Gad Freudenthal
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U
ma piada que, de tão antiga, já ganhou barbas há muito tempo diz que “My-monides is not your-monides”, que pode ser traduzida como “Meu Maimônides não é o seu Maimônides”.1 Eu quero adi cionar hoje um novo pilar a esta piada, variação de uma outra piada famosa: “Diga-me quem é o seu Maimônides e eu te direi quem és”. A relação de cada judeu ou, pelo menos, de cada intelectual judeu, com o Rambam diz muito – talvez diga até tudo – sobre sua visão de mundo.
Página anterior: Sinagoga da cidade de Córdoba, Espanha, construída em 1315.
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Em outras palavras: o estudo das ciências é proibido enquanto objetivo em si mesmo. É obrigação dos indi víduos excepcionais capazes de adquirir o conhecimento científico não se darem por satisfeitos – ao contrário, eles
ciência e a tradição como duas fontes legítimas de conhe cimento. Como resultado da ambivalência da mensagem que o Rambam transmitiu, pensadores judeus que o su cederam puderam adotar posições que se dispersaram ao longo de um amplo espectro, ao mesmo tempo em que cada um deles se considerava um seguidor fiel do mestre. Neste artigo, eu tentarei inicialmente explicar os concei tos de acordo com o Rambam para, em seguida, apontar a influência que tiveram nos séculos XIII e XIV, especialmente na EmbrenhadoProvença.no Guia dos Perplexos, há seções nas quais o Rambam defende o estudo da ciência como, por exemplo, a metáfora do castelo2, na qual ele explica em detalhes a sequência de estudo obrigatória para todas as pessoas. A metáfora estabelece explicitamente que o estudo das ciên cias preparatórias – ou seja: Lógica e as quatro disciplinas da Matemática – é um passo essencial para a aquisição da
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As posições são conhecidas, mas as analisaremos com cuidado, pois a própria fábula do castelo, apesar de sua de fesa tão clara do estudo das ciências, já expressa uma men sagem dupla: é verdade que sem o estudo das ciências é impossível adquirir o conhecimento necessário para aque les que vêem o objetivo humano em se aproximar no co nhecimento de Deus; no entanto, no que se refere ao es tudo das ciências, diferentemente da filosofia, este é ape nas um passo intermediário no caminho de outro objetivo, mais elevado e respeitável, que é estuda da ciência divina.
Ilustrações de Maimônides, à esquerda, e Aristóteles, à direita.

Matemática – a sabedoria Divina – e apenas o seu conhe cimento torna uma pessoa sábia realmente, que pode al mejar se aproximar do conhecimento de Deus.

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A mensagem, portanto, é novamente ambivalente: de um lado, a ciência é uma etapa necessária para conhe cer Deus; de outro lado, Aristóteles se equivocou quan do considerou que tinha demonstrado a intemporalida de doEstauniverso.dualidade aparece novamente no tratamento que Rambam dá à autoridade dos textos. Como é bem sabido, Rambam defendia que quando existisse uma contradição entre os textos sagrados judaicos e as verdades estabeleci das através da Filosofia, seria necessário adotar uma interpretação que os harmonizasse. Desta forma, ele atribui às demonstrações filosóficas autoridade absoluta para a inter pretação das escrituras.
Assim, Maimônides não se cansou de confirmar sua proposição de “escute a verdade, quem quer que a diga”.4 No entanto, o que deu com uma mão ele tirou com a ou tra, pois se recusou a interpretar a narrativa bíblica so bre a Criação de acordo com a filosofia. É verdade que ele enfatizou que “nenhum dos portões da interpretação está fechado para nós”, ou seja, seria possível, se houves
As considerações são similares quando mudamos a perspectiva, deixando as de clarações programáticas e nos focando na relação do Rambam com o próprio cor po do conhecimento científico. O Ram bam tratava a ciência aristotélica como conhecimento cuja validade havia sido plenamente demonstrada, não deixando nenhum sinal de dúvidas: “A regra é que tudo o que Aristóteles disse com relação ao que está abaixo da Lua até o centro da Terra – não há duvida sobre sua validade, e apenas quem não o compreende deve se afastarEstadele”.3posição é compatível com a opinião do Rambam sobre o próprio Aristóteles, a quem ele via como alguém que tinha chegado ao ápice do conhecimento humano. No entanto, Rambam não estava disposto a seguir Aristó teles no que tange a ciência para além da Lua: Aristóteles, como é sabido, acreditava que o movimento não poderia se renovar a partir do nada e provou, desta forma, o cará ter eterno dos movimentos solares e, como consequência, o caráter eterno do mundo todo.
Rambam, pelo menos se aceitarmos suas palavras sem questioná-las, não aceitou a teoria filosófica da intempo ralidade do Universo. Era sua obrigação, portanto, con vencer seus leitores de que, de um lado, Aristóteles repre senta realmente o ápice do conhecimento humano, pois todos os seus argumentos no que tange às realidades ter restre e lunar são válidos e demonstrados, mas, de outro lado, sua teoria sobre a realidade solar não tem embasa mento. Neste sentido, Rambam formula uma série de ar gumentos cujo objetivo é minar a confiabilidade de Aris tóteles no que tange à realidade para além da Lua. Mai mônides acreditava que tinha provado que a demonstra ção de Aristóteles não era válida e que, portanto, a teoria de que o universo era eterno não havia sido demons trada. Por outro lado, o Rambam não chega a argumen tar que ele tenha provado a teoria inversa, ou seja, a cria ção do mundo a partir do nada (Creatio Ex-Nihilo). Na opinião do Rambam, a questão cosmogônica não podia
devem prosseguir da forma mais rápida possível para estudar a única sabedoria cuja conquista pode aproximar o ser hu mano de Deus.
Rambam não estava disposto a seguir Aristóteles no que tange a ciência para além da Lua: Aristóteles, como é sabido, acreditava que o movimento não poderia se renovar a partir do nada e provou, desta forma, o caráter eterno dos movimentos solares e, como consequência, o caráter eterno do mundo todo.
ser demonstrada através de ferramentas científicas.Nãoéparte do nosso escopo entrar no corpo destes argumentos e é suficiente que demos nossa opinião sobre o fato de que, também aqui, no nível do cor po do conhecimento científico, Rambam adota uma posição intermediária: a ciên cia existente (leia-se: Aristotélica) é sóli da e estável, mas apenas em áreas pré-de limitadas. Desta forma, Rambam formu lará vários argumentos, alguns deles ori ginais e impressionantes, cujo objetivo é fundamentar a perspectiva de que a for ça do conhecimento científico é limita do: existem no universo, especialmente no mundo além da Lua, espécies de “bol sos” fechados para o conhecimento científico. Os campos desta realidade continuarão, de acordo com o Rambam, para sempre fechados para a ciência. Ele considerava que não havia motivo para que uma pessoa dedicasse suas súplicas e, especialmente, suas noites para o estudo das leis do espaço. A filosofia das ciências do Ram bam certamente não ofereceu um incentivo forte para a ocupação científica.
No nível da autoridade atribuída às diversas fontes de consciência, o resulta do é que a ciência foi reconhecida como autoridade superiora, mas apenas den tro de limites específicos. O filósofo mai monideano se vê colocado, desta forma, constantemente frente ao dilema: “com relação a este problema, devo interpretar as escrituras de acordo com a filosofia ou aceitarei a interpretação tradicional?” Ao reconhecer a fi losofia e a ciência como possíveis árbitros, Maimônides le vantou a possibilidade – e até a obrigação – de submeter a interpretação das escrituras à filosofia e, assim, introduziu o problema da relação entre a ciência e a tradição religiosa no âmbito judaico. Ao não seguir este caminho até o fim e ao negar, em áreas específicas, a autoridade da filosofia, ele deixou para todas as gerações subsequentes a obrigação de se defrontar novamente com o problema.
não têm respostas e que o historiador deve se abster de endereçar. No entanto, neste caso, me parece que seja permitido tomar o risco e estimar que, se não fosse o extraordinário prestígio do Rambam –e sua origem como formulador de auto ridade da Halachá – apoiando a obriga ção do estudo científico, a prática não te ria recebido uma adoção tão prevalente nas comunidades judaicas da Idade Mé dia como recebeu. Baseado no que discu timos acima, minha tese leva à expectativa de que a ambivalência do Rambam com relação às ciências retorne através da abor dagem de pensadores judeus que se veem como seus discípulos, e esta é exatamen te a situação que encontramos, o que se manifesta em duas frentes. Primeiro, entre aqueles que se consideram discípulos do Rambam – ou seja, se não con siderarmos aqueles que negavam completamente o engaja mento com as ciências – existe uma variedade muito gran de de posições: em um extremo temos pensadores como Shmuel Even Tivon7 ou o Rabino Levi ben Guershon8 que defenderam a posição da superioridade da Filosofia e acre ditavam que em todas as situações era necessário subme ter a interpretação das escrituras sagradas ao que a “investigação” tivesse demonstrado.
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Em qualquer dos casos, estes grupos reconheceram a legitimidade e autoridade de uma coleção de textos com pletamente nova, uma coleção que não era judaica e que seus pais jamais poderiam ter concebido. Esta era uma re volução cultural em todos os aspectos. Perguntas do tipo “o que teria acontecido se…” são o tipo de perguntas que
Esta é a segunda frente em que vemos os resultados da ambivalência maimonideana. Estou pensando, por exem plo, em um pensador relativamente sem destaque, Abba Mari de Lunel9, que entrou para a história por ter dado iní cio à polêmica sobre o ensino de Filosofia nos anos 13041306. Apesar de ter ganho reputação como oponente ao ensino da filosofia, este é apenas um dos lados da histó ria. O outro lado é que, de acordo com Abba Mari, não era possível para a teologia judaica do século XIV retro ceder para posições pré-maimonideanas. Seus argumen
se necessidade, interpretar a narrativa bíblica da Criação de forma a acomodá-la com a perspectiva intemporal de Aristó teles, mas, como o Rambam mantém que esta tese não foi demonstrada, ele deci de, por motivos religiosos e sociais, tomar uma decisão arbitrária e escolher a tese do mundo como uma entidade nova.5
A questão com que nos defrontamos aqui é autorida de. Na segunda metade do século XII, as comunidades ju daicas da Provença ainda estavam imersas em um ambiente restrito à discussão da Halachá (lei judaica); seu mundo cultural se limitava aos debates de Abaye e Rava.6 A cole ção de textos que eram reconhecidos como detentores de autoridade era a coleção judaica clássica – principalmente o Talmud e os seus comentários. Menos de cem anos de pois, a situação era radicalmente diferente: ao lado daque les que debatiam a Halachá, havia na Provença grupos de intelectuais que se ocupavam com as ciências e a filosofia; para alguns deles, o estudo das ciências substituiu o estu do da Halachá, para outros, eles coexistiam lado a lado.
Há que se salientar que o fato de que a posição destes pensadores contrariasse categoricamente a posição de Mai mônides não lhes impedia de forma alguma de se conside rarem seus discípulos fiéis e continuadores do seu “progra ma” filosófico-religioso. No outro extremo, encontramos pensadores que, na minha opinião, são mais fiéis a Ram bam, exatamente por que eles refletem a ambivalência da relação de Maimônides com a ciência.
A legitimidade que o Rambam deu a novos campos do conhecimento é mais que uma revolução social: ela causou nada menos que uma redefinição do judaísmo. Ele não se baseia em conceitos haláchicos, mas tenta convencer seusatravésinterlocutoresdarazão.
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tos são explicitamente formulados nas demonstrações da existência de Deus, sua unicidade e sua incorporeabilida de. Mesmo para um pensador de mentalidade conservado ra como Abba Mari, estas demonstrações apresentadas no Guia dos Perplexos eram ativos inalienáveis das quais não se podia abrir mão.
fugir do seu ferrão. Ai de nós pelo seu sussurro, ai de nós pelas suas Concluireipenas10.”este ponto dizendo que a dualidade na po sição do Rambam com relação às ciências reflete-se pri meiramente no fato de que a partir do século XIII passa a existir uma grande variedade de posições cujos defensores se consideram seguidores do caminho do mestre, e tam bém no fato de que os mais tradicionalistas entre os dis cípulos do Rambam vivem em constante dualidade - eles precisam da Filosofia, e tem consciência de que é impossí vel retrocedê-la, mas vêem nela uma grande e permanen te ameaça à existência espiritual judaica.
Outra imagem: Abba descreve o uso de instrumentos retirados dos textos filosóficos e científicos da seguinte for ma, “viemos tirar o mel do meio das abelhas, remover as pedras de ônix da cabeça das serpentes e fazer resina de car ne de cobra, temos de tomar cuidado com sua mordida e
Os historiadores da ciência vêem, em geral, a aquisição da ciência por uma sociedade que ainda não a havia ado tado como uma apropriação – a introdução de um campo do conhecimento adicional a um mundo intelectual esta belecido que, ao longo do tempo, ganha espaço junto aos campos do conhecimento que lhe antecederam. No que tange à sociedade judaica do período medieval, esta descri ção não é apropriada, devido à existência de dois proces
“A Escola de Atenas”, do pintor italiano renascentista Raphael.
A parte vulnerável desta posição era que estas provas aceitavam como válidas a Física Aristotélica. Como, en tão, comer do fruto da Filosofia sem se contaminar? Esta é a pergunta fundamental que ponderaram Abba Mari e seus companheiros de jornada. As imagens que eles usam para descrever o dilema no qual se encontravam dão dicas sobre a carga emocional que lhes foi criada. Desta forma, Abba Mari vê na filosofia e na ciência um pote de mel, mas um pote entrelaçado com um dragão.

A dualidade do Rambam e o fato de que sua abordagem deu legitimidade a uma pluralidade de identidades judaicas fizeram com que tais identidades criassem uma situação na prática: comunidadesdistintasougruposdistintosdentrodamesmacomunidadedefiniramseujudaísmodediferentesformas.
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O primeiro processo já foi indicado acima: trata-se da identificação das fon tes de autoridade e legitimidade. No ju daísmo tradicional a autoridade reconhe cida estava – e em setores bastante amplos ainda está – somente em fontes quem se jam resultado do processo de Revelação ou que tenham sido transmitidas através de tradição fidedigna, de geração em ge ração. Além disso, o próprio judaísmo é definido através da coleção de textos tra dicionais e seu reconhecimento como detentores de autoridade: judeu é aquele, e somente aquele, para quem os textos tra dicionais, e somente eles, são obrigató rios. A vida intelectual do judeu foi de finida de acordo com o estudo deste conjunto tradicional de textos. Portanto, a legitimidade que o Rambam deu a novos campos do conhecimento é mais que uma revolu ção social: ela causou nada menos que uma redefinição do judaísmo. Assim, quando o Rambam foi convencer os sá bios de Lunel que eles deviam se abster de praticar Astro logia, ele começou a discussão elencando as fontes legíti mas de conhecimento: os sentidos, o que foi demonstra do pela Matemática ou pela natureza e, ao final, o que foi recebido através de tradição fidedigna. É de se notar que o Rambam não se baseia em conceitos haláchicos, mas ten ta convencer seus interlocutores através da razão – em es pecial, a epistemologia – e também que, entre as fontes le gítimas de conhecimento, apenas uma é tradicional. É cla ro que o Rambam atribui a esta última fonte importância extrema – não foi à toa que ele escreveu o Mishnê Torá11 - mas ela não é a única fonte. O fato de que o Rambam, mestre da Halachá, deu um selo de legitimidade e autoridade a uma fonte de conhecimento que, até então, tinha sido totalmente estranha ao judaísmo redefiniu a identi dade do judaísmo.
ção, de outro. Uma vez que não foi dada solução definitiva a esta pergunta, todo indivíduo e comunidade em todas as ge rações se colocaram – e ainda se colocam – frente à necessidade de definir para si mesmos um equilíbrio de malabaristas que seja adequado às suas necessidades. Assim, o Rambam deu legitimidade, não à uma perspectiva de judaísmo, mas a um espectro de perspectivas do judaísmo, que todas são legítimas e de todas podemos nos dependurar como se fosse uma gran de árvore. O resultado inevitável foi a di visão da sociedade judaica: ao invés de uma língua e práticas unificadas vieram muitas línguas e praticas distintas. Esta é nossa opinião a este respeito: no momen to em que o mundo muçulmano apropriou-se da ciência e a filosofia no século IX, ou quando o mundo cultural latino recebeu dos árabes a ciência e a filosofia greco-árabes a partir do século XII, estes processos se desenvolveram entre grupos intelectuais de pouca relevância. Quase não se percebeu sua influên cia sobre o coletivo. Na sociedade judaica, a situação foi inversa: a maioria dos homens judeus da Idade Média sa biam ler e escrever e o debate intelectual ocupou a gran de maioria da comunidade judaica. Sendo assim, as polê micas sobre a legitimidade do estudo das ciências do co meço do século XIV aconteceram, em grande medida, por que os conservadores se deram conta que teorias que eles consideravam radicais extravasavam para fora dos peque nos grupos intelectuais. A dualidade do Rambam e o fato de que sua abordagem deu legitimidade a uma pluralidade de identidades judaicas fizeram com que tais identidades criassem uma situação na prática: distintas comunidades ou grupos distintos dentro da mesma comunidade defini ram seu judaísmo de diferentes formas. Esta situação ga nhou uma descrição impressionante do tradutor, cientis ta e poeta Kalonymus ben Kalonymus. Em seu livro Eben Bochan, escrito no estilo árabe de prosa conhecido como macamá ao redor do ano 1320, ele escreveu:
sos culturais importantes que não encontram paralelo em outras sociedades que se apropriaram da ciência na Idade Média.
Ou, melhor dizendo, suas identidades, o espectro am plo de identidades judaicas possíveis. Vimos que o Ram bam evitou estabelecer princípios haláchicos rígidos e dei xou aberta a pergunta da relação entre os pesos relativos que devem ser atribuídos à ciência, de um lado, e à tradi
O fato é que se renovaram entre nós a confusão de ideias e as crenças ruins… até que cada distrito terá a sua própria ideia. Este, que é ingênuo, estará com Deus em sua ideia simples sem profundidade ou desafio. Um se reali
Estátua em memória de Maimônides na cidade de Córdoba, Espanha.
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NT: Abaye e Rava, dois rabinos da Babilônia do século III, são os protagonistas de diversas disputas com relação à lei judaica, registradas no Talmud.
9 NT: Abba Mari de Lunel, também conhecido como Abba Mari ben Moshé HaIar chí e como Don Astruc, foi rabino na Provença que viveu no final do século XIV.
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NT: Ou seja, criada a partir do nada.
10 NT: “pena” aqui, refere-se ao utensílio de escrita.
Minds (New York: Doubleday Religious Publication, 2010). Sobre o tópico discutido neste artigo, veja o texto do autor: “Maimonides’ Philosophy of Science,” em: Kenneth Seeskin University(Cambridge:(ed.),CambridgePress,2005), pp. 134-166.
Posso acrescentar que as coisas não mudaram desde então. Como então, também é válido hoje: “Diga-me quem é seu Maimônides e eu te direi quem és”.
6
Guia dos Perplexos, livro 3, capítulo 51.
5
zará na sua ingenuidade, outro lidará com a Cabalá e o outro com Filosofia. E cada um deles dirá ao seu colega em tom de desonra e crítica: “eu temo que ele peque, talvez ele esteja praticando heresia. A minha inclinação negativa não é como a dele, nem a minha parte é como a dele”… Nossa situação ge ral da maioria das nossas transgressões é que o número de cidades é como o número dos nossos Deuses.
הרמאש יממ תמאה עמש
Gad Freudenthal nasceu em Jerusalém em 1944. Ele obteve o seu B.Sc. e M.Sc. na Universidade Hebrai ca de Jerusalém e o seu Ph.D. em Paris. É um pesquisador em tem po integral na instituição francesa Centre National de la Recher che Scientifique, desde 1982, sendo agora . Escreveu li vros sobre a história da ciência na Antiguidade e na Idade Média, especialmente na cultura judaica. Seus livros incluem: Aristotle’s (Oxford: Clarendon Press, 1995) e Science in the Medieval He (Aldershot: Ashgate, 2005). Ele edi tou (Leiden: Brill, 1992) e o volume Science in Me (Cambidge: Cambridge University Press,
Traduzido do hebraico pelo Rabino Rogério Zingerevitz Cukierman.
Notas
3 Guia dos Perplexos, livro 2, capítulo 24.
NT: Shmuel Even Tivon foi médico e tradutor de grandes obras judaicas. Viveu na Provença entre 1150 e 1230.
11 NT: O Mishné Torá é um tratado legal compilado por Maimônides entre 1170 e 1180, quando ele estava vivendo no Egito. Inicialmente, foi recebido com for tes críticas e queimado em praça pública mas acabou sendo aceito como uma das obras centrais da Halachá
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4 NT: A expressão, originalmente escrita em um dia leto árabe judaico na introdução do Rambam para seu comentário da Mishná, foi difundida em hebrai co como “ ”, que literalmente sig nifica “escute a verdade de quem a diga”. Esta expressão encontra-se ao final de um parágrafo no qual o Ram bam lista as fontes para os seus comentários, incluindo textos clássicos judaicos (como o Midrash e o Talmud) e também textos de filósofos clássicos e contemporâneos (para a época do Ram bam): portanto, “escute a verdade, quem quer que a diga”.
1 NT: Maimônides, uma das variações pelas quais é co nhecido o filósofo, rabino e médico judeu Moisés ben Maimon, viveu entre 1135 (Córdoba) e 1204 (Cai ro). Também é conhecido pela abreviação de seu nome, 2Rambam.
L EIT U RAS ADI C I ON AIS Uma boa e acessível biografia de Maimônides: Joel Kraemer,
2011). Ele também é o editor do periódico erudito , estabelecido em 2001.
7
NT: Levi ben Guershon, também conhecido como RaLBaG e como Gershôni des, foi comentarista da Torá, médico, filósofo e matemático. Viveu na França en tre 1288 e 1344.
Recorte da pintura “A Escola de Atenas”, tendo ao centro Platão (à esq.) e Aristóteles (à dir.).

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A
Sobreviventes, de idade avançada, visitaram Auschwitz com declarações dramáticas, como a de Roman Kent: “Não queremos que o nosso passado seja o futuro de nossos filhos.” Foi um pretexto para evocar o recrudescimento do preconceito contra a população judaica do mundo, como se viu em Paris, com as ações de grupos terroristas islâmicos.
negativa da existência do Holocausto é uma abominação e uma ame aça potencial para o mundo inteiro. Grupos racistas de neonazistas e grupos antissemitas tentam negar que o Holocausto tivesse alguma vez existido, ou afirmam que a escala foi muito menor. Existem al gumas causas para esse “revisionismo”, especialmente políticas e antissemitas. Alguns desejam limpar o nazismo de sua injúria maior; outros acreditam que o Estado de Israel foi estabelecido para compensar os judeus pelo Holocausto, e ao negar aquela barbárie estão procurando destituir Israel de seu direito de existir. Este é o motivo pelo qual os que negam o Holocausto têm muito mais suporte nos países árabes.
Foram muitas as perseguições vividas pelo povo de Moisés, mas nenhuma teve o impacto do que ocorreu no Holocausto.
AUSC HW IT Z NÃ O MORREU
Infelizmente o Holocausto existiu, e não são poucos os testemunhos docu mentais e pessoais que o atestam. O povo judeu decidiu impedir que seja esque cido, para que, com sua lembrança, fique assegurado que o mundo não permi tirá jamais que torne a acontecer com os judeus ou com qualquer outro povo ou grupo na Terra.
“Holocausto” é uma palavra de origem grega que significa “sacrifício pelo fogo”. O termo tem origens remotas rituais religiosos da Antiguidade, em que plantas e animais (e até mesmo seres humanos) eram oferecidos às divindades, sendo completamente queimados. A partir do século XIX a palavra holocaus
Arnaldo Niskier
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FlanzerBrunaFoto:
A II Guerra Mundial custou a vida de 6 milhões de ju deus e outros 14 milhões de religiões diversas. Foi um crime sem precedentes. O presidente Barack Obama pediu que um genocídio como esse não aconteça nunca mais.
Sempre é bom recordar o que o campo de concentra ção de Auschwitz, no sul da Polônia, representou para a humanidade. Libertado do jugo nazista por tropas sovié ticas, há 70 anos, foi conservado no formato original para que jamais se esquecesse o que representou em termos de barbárie. Mais de 1 milhão de judeus foram assassinados em suas instalações. Quando as tropas aliadas entraram na Polônia, em 1945, ainda existiam 7 mil judeus no cam po de concentração. Os nazistas, sentindo aproximar-se a derrota, deslocaram cerca de 60 mil prisioneiros para ou tros campos, tentando disfarçar o horror das suas práticas, cinicamente protegidas pelo portão em que se lia a frase

Os nazistas, que chegaram ao poder na Alemanha em janeiro de 1933, acreditavam que os alemães eram “racial mente superiores” e que os judeus eram “inferiores”, sen do uma ameaça à autointitulada comunidade racial alemã.
Líderes mundiais estiveram na cerimônia recentemen te realizada no campo de Auschwitz-Birkenau, onde de positaram flores no chamado “muro da morte”, ao lado das terríveis câmaras de gás, onde milhares de pessoas fo ramSobreviventes,assassinadas. de idade avançada, estiveram no lo cal, com declarações dramáticas, como a de Roman Kent: “Não queremos que o nosso passado seja o futuro de nossos fi lhos.” Foi um pretexto para evocar o recrudescimento do preconceito contra a população judaica do mundo, como se viu em Paris, com as ações de grupos terroristas islâmi cos. Custa a crer que, em nações de formação democráti ca, ainda na Europa de belas tradições culturais, seja arris cado andar de quipá nas ruas, por medo de atentados. O sentimento antissemita é na verdade repugnante.
“Arbeit macht frei”, ou seja, “o trabalho liberta”. Era uma espécie de selo de extermínio em massa.
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to passou a designar grandes catástrofes e massacres, até que, após a Segunda Guerra Mundial, o termo Holocausto (com inicial maiúscula) foi utilizado especificamente para se referir ao extermínio de seis milhões de judeus pelo en tão regime nazista.
Elie Wiesel
Quando nossos jovens, como aconteceu com minhas netas, realizam a “Marcha da vida”, percorrendo os caminhos dessa tra gédia humana, voltam do museu de Auschwitz com informações, fotos e testemu nhos que se fincam para sempre em suas memórias.Sãoaspectos ligados aos direitos hu manos, sobretudo à vida, que não pode mos e nem devemos desprezar. Os inimi gos não foram destruídos, como compro va a lamentável existência, na Europa e na América, dos execráveis terroristas islâmi cos e skinheads, subproduto desumano de uma sociedade sem rumo. Ainda se questiona a verdadeira estatura do homem e suas complexas relações com o conceito de liberdade. O judaísmo condena vee mentemente o sacrifício humano, a qual quer pretexto, desde as posturas bíblicas do Gênesis. Como tentar reduzir, pois, o significado do frio assassinato de 6 milhões de judeus, vítimas inocentes de um delírio racista e tolerado por boa parte da huma nidade? Hoje, a resposta a qualquer desvio deverá sempre ser imediata e à altura.
Temos, como referência, o nome do escritor romeno Elie Wiesel. Arrancado das suas raízes para viver o inferno de Auschwitz, esteve no Rio de Janeiro, em 1998, a convi te do Centro de Cultura Judaica, para fazer exatamente o que tem sido a sua vida: prestar depoimento sobre a terrí vel experiência. Com um registro que é dramático: “O ini migo do amor não é o ódio, mas a indiferença.”
A Marcha da Vida
Lembro cada frase do livro Noite, escrito por Elie Wiesel. É o retrato nítido das recordações do sofrimento humano, do desrespeito a velhos e crianças, da bestialidade a que pode chegar um grupo de pessoas, falando em nome da suposta pureza da raça. E não se diga que o nazismo foi sepultado com a derrota de Hitler.
Desconhecer o que aconteceu em Auschwitz, Birke nau, Maidanek, Treblinka, Krazmik, com testemunhas que ainda vivem, para confirmar o horror da bestialida de nazista, é um exercício que parece algo inacreditável.
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Já o presidente Vladimir Putin classificou o holocausto como “uma imoral tentativa de reescrever a história.”
Há depoimentos, no Rio de Janeiro, que devem ser enfatizados sempre, como o do sobrevivente Alexandre Laks: “Nada deste mundo pode ser comparado ao Holo causto.” Ou da sobrevivente Nanette Ko nig, que esteve no campo de concentração de Bergen-Belsen: “Os jovens judeus estão sabendo muito pouco sobre o passado – e isso não é bom.” Ela foi colega de turma da jovem Anne Frank, que viveu mui tos meses escondida dentro de casa, em Amsterdã, só po dendo ver uma nesga de céu, enquanto escreveu um famo so diário, até que foi descoberta pelos nazistas. Visitei a sua casa, na Holanda, à beira de um canal, imaginando o que ela e sua família sofreram. Também pensei na grande es critora que teria sido, se não tivesse morrido nas mãos as sassinas dos Auschwitz,nazistas.nosarredores da cidade polonesa de Oswie cim, foi tomada pelos aliados no dia 27 de janeiro de 1945. Execuções em câmaras de gás e fuzilamentos diários eram a sua rotina, daí os relatos emocionantes dos poucos sobrevi ventes. Todos foram unânimes em condenar a tentativa de esquecimento e revelaram a angústia vivida quando chega vam nos trens da morte ao campo, sendo separados pela aparência: os mais fortes para o trabalho, os doentes e mais fracos para o extermínio. Isso jamais poderá ser esquecido.
Os direitos humanos já estavam escritos desde o dia 26 de agosto de 1789, não nas estrelas, mas na França, após a queda da Bastilha. Era a “Declaração dos Direitos do Ho mem e do Cidadão”, que tinha a seguinte introdução: “Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Na cional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento, ou o desprezo dessas regras são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, resolveram declarar solenemen te os direitos naturais, inalienáveis, sagrados e imprescritíveis dos homens e dos cidadãos, e seus deveres.”
No “Dia Internacional do Holocausto”, o sobrevivente holandês Bernard Kats dis se ter sido possível a sua salvação graças à ajuda de uma igreja calvinista. Revelou o seu grande esforço para esquecer tudo. Aliás, foi essa uma atitude comum dos que sobreviveram ao Holocausto. Mas prevaleceu a ideia, como estamos fazen do hoje aqui, de que se deve lembrar o ocorrido, a fim de que não mais se repita.
Mauriac recordou:
Ele tinha visto sua mãe, uma adorada irmã menor, e toda sua família, exceto seu pai, desaparecer dentro de um forno cheio de criaturas vivas. Quanto a seu pai, a criança foi forçada a ser uma espectadora, dia após dia, de seu martírio, de sua agonia e de sua morte. E que morte!
FlanzerBrunaFoto:
nada que eu tinha visto durante aqueles anos sombrios havia deixado marca tão profunda em mim como aqueles trens car regados de crianças judias na estação de Auschwitz. E eu não as tinha visto! Minha mulher as descreveu para mim, sua voz ainda cheia de horror. Àquela época, nada sabíamos sobre os métodos nazistas de exterminação. E quem poderia imaginá -los! Embora o modo como aquelas ovelhas tenham sido sepa radas de suas mães ultrapassasse qualquer coisa que pensáva mos ser possível até então. Acho que, naquele dia, toquei pela primeira vez no mistério da iniquidade, cuja revelação mar cava o término de uma era e o início de outra.
Na Introdução de Noite, o escritor francês François Mauriac revelou a sua emoção ao encontrar o jornalista Elie Wiesel:
Quando Elie Wiesel foi libertado de Buchenwald, em 1945, depois de estar em Birkenau, Auschwitz e Buna, ele se impôs um voto de dez anos de silêncio antes de tentar descrever o que havia acontecido com ele e mais de seis mi lhões de outros judeus. Quando ele finalmente quebrou esse silêncio, teve dificuldades de encontrar um editor. De tão deprimente era o assunto.
Como afirmou Israel Klabin, na solenidade do Hotel Sofitel, no Rio de Janeiro, “de toda a geração que conviveu com o holocausto, ninguém foi tão fortemente abençoado, não apenas pelo encontro com a sua própria crença na missão ju daica, como na fé e na confiança com que D’us, Ele próprio, confiou-lhe a missão de testemunho”.
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Sobre o livro Noite, publicado há 25 anos, Robert Mc Afee Brown escreveu:
Foi-lhe reservado o destino da palavra e da lembran ça. Bem que ele tentou esquecer, depois da liberação do campo de trabalhos forçados de Buchenwald, que tive o desprazer de visitar. Mas, estimulado pelo escritor fran cês François Mauriac, concordou que não poderia sub trair aqueles fatos do conhecimento da humanidade, so bretudo para que não se repetissem. Ele tinha a obrigação de testemunhar. É o que tem feito, com as suas conferên cias e os seus livros. Quando se aperta a sua mão, com o jeito humilde que é a sua característica, pede que o visite mos em Boston, onde leciona: “Lá vamos poder conversar com mais tempo.”
Lembro cada frase do livro Noite, escrito por Elie Wiesel. É o retrato nítido das recordações do sofrimento hu mano, do desrespeito a velhos e crianças, da bestialidade a que pode chegar um grupo de pessoas, falando em nome da suposta pureza da raça. E não se diga que o nazismo foi sepultado com a derrota de Hitler. Há manifestações do seu ressurgimento, como na violência praticada em esco las do mundo inteiro. É impossível ficar indiferente dian te desses fatos chocantes.
Naquela manhã, o jovem judeu que veio me entrevistar para um jornal de Tel Aviv imediatamente ganhou minha simpatia e nossa conversa tomou um rumo pessoal rapida mente. Ela me fez recordar lembranças da Ocupação. Não são sempre os eventos nos quais estivemos diretamente envolvidos que mais nos afetam. Eu confidenciei ao jovem visitante que
Quase toda a minha família foi vítima do Holocausto. No caso da minha mãe, que nasceu na pequena cidade de Osiek, a 100 km de Varsóvia, foram todos dizi mados, menos ela, que veio para o Bra sil, e uma sobrinha, que conseguiu fugir para Israel. Em relação ao meu pai, lem bro com tristeza o único dia que o vi, de sesperado, cair num choro convulso. Era o ano de 1944 e ele recebeu a notícia de que um dos seus irmãos havia sido mor to pelos nazistas. Era justamente o caçula de nove Garotoirmãos.ainda, fui conhecer no Esta do de Israel a minha tia Rosza, irmã mais velha do meu pai. Estranhei uma espécie de tatuagem no seu braço e perguntei a origem daquilo. Ela, então, me contou a sua memória dolorida do Holo causto. Muito jovem, foi aprisionada na Polônia pelos na zistas e levada para o campo de extermínio de Auschwitz. Foi marcada com a letra e o número que jamais a deixa ram, em todos os sentidos: A – 19386.
Na entrada do campo de concentração de Buchenwald a inscrição cínica foi reproduzida no Museu de Washington: “Arbeit Macht Frei” (o trabalho fará você livre). Ali morreram, de trabalhos for çados, 50 mil pessoas. Frio, fome e sede acompanharam o martírio das vítimas.
Os nazistas, na II Guerra Mundial, assassinaram 20 mi lhões de seres humanos, seis milhões dos quais pelo sim ples fato de serem judeus. É preciso lembrar isso tudo, quando a ONU criou o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Esquecer? Jamais!
nos crematórios. Milhares de sapatos dos prisioneiros estão amontoados, ao lado de fios de cabelo e sofisticados objetos de tortura, tudo isso em nome da necessidade de se construir uma raça pura (aria na) com o quê Hitler se apresentava ao mundo. Custa a crer que tudo isso tenha nascido sem que a humanidade sentisse vergonha do genocídio – e não protes tasse de forma arrasadora. Em 1933 ha via 9 milhões de judeus na Europa, entre os quais figuras de renome como Albert Einstein, Claude Levi-Strauss, Freud, Ka fka e Stefan Zweig. Ao final da II Guer ra Mundial, em 1945, somente 3 milhões deles sobreviveram ao Holocausto.
Como jornalista, conheci o campo de trabalhos força dos de Buchenwald, na então Alemanha Oriental. Dados impressionantes: ali morreram de fome, milhares de ju deus, quase todos nascidos na própria Alemanha. Depois, na Alemanha Ocidental, visitei o campo de concentração de Dachau. Foram conservadas as suas características de extermínio, sendo possível ver os chuveiros da morte e os terríveis fornos crematórios. Custa a crer que a humani dade, nos tempos modernos, tenha vivido tamanho perí odo de horror e perseguição.
O passado não é irrelevante. Com sofrimento e dor construímos o nosso futuro, hoje uma nação de 14 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Temos os nossos heróis. A sua memória deve ser sempre reverenciada. Para que fiquem no espírito das gerações.novas
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No dia 15 de novembro de 1938, o Ministro da Edu cação da Alemanha expulsou todas as crianças judias das escolas, para evitar “mistura”. Os judeus foram obrigados a estudar em escolas próprias. Um desses meninos era Da niel, sobrevivente de um campo de concentração, que es creveu o seu “Diário” e guardou fotos da família assassinada (referia-se com muita saudade à figura da mãe e da irmã Erika). Vendo a reprodução da casa de Daniel, antes
O Museu de Washington
A minha família
A impressão que se tem, ao sair do Museu do Holo causto, construído em Washington (EUA), é simplesmen te de horror. É um impressionante documentário em mul tivisão das atrocidades nazistas. Ali você pode entrar no trem da morte, sentir o mesmo abafamento de milhares e milhares de judeus transportados como gado para os cam pos de concentração, até chegar às câmaras de gás e for
Salvou-se por milagre, escondendo-se numa montanha de cadáveres e lá permanecendo durante três dias, fingin do-se de morta. Aproveitou-se de um descuido da vigi lância e fugiu para uma floresta próxima, ganhando de pois a sonhada liberdade e a acolhida de um caridoso casal católico. Não é o único caso da família, que foi qua se dizimada nas cidades de Ostrowiec e Osiec. A exceção foi para os que desconfiaram da onda nazista e escapuli ram para o Brasil, os Estados Unidos e o Canadá, onde pu deram dar curso às suas existências, sem os riscos de tan tas atrocidades.
O passado não é irrelevante. Com so frimento e dor construímos o nosso fu turo, hoje uma nação de 14 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Temos os nossos heróis. A sua memória deve ser sempre reverenciada. Para que fiquem no espírito das novas gerações. Penso ter sido esse o principal objetivo do Museu das Crianças, no Yad Vashem de Jerusa lém. São um milhão e meio de pontos lu minosos. Na escuridão, o visitante vive o impacto da cena impressionante. Pare ce um imenso planetário. Cada uma daquelas pequenas luzes ou estrelas tem um nome, que é pronunciado com voz grave. Um milhão e meio de crianças mortas no Holocausto, pela bestialidade nazista. O Estado de Isra el recorda os seus nomes, para que não haja esquecimen to. Ali se vive uma comovente forma de respeito à memó ria do povo eleito.
No Estado de Israel também existe o Beit Hatfusot. Bem menor que o Museu do Holocausto de Washington, mas igualmente expressivo. Não há quem saia de lá, depois de uma visita, sem uma for te dose de emoção. Essas lembranças têm muito pouco de masoquismo. O que se deseja fixar é a lembrança de uma trágica experiência, quase fatal ao Povo Eleito, e que jamais poderá se repetir. É o que está na consciência de cada um de nós, herdeiros que somos de uma dolorosa memória.
No Museu das Crianças, no Yad Vashem de Jerusalém, há um milhão e meio de pontos luminosos. Na escuridão, o visitante vive o impacto da cena impressionante. Parece um imenso planetário. Cada uma daquelas pequenas luzes ou estrelas tem um nome, que é pronunciado com voz grave.
Arnaldo Niskier é membro da Academia Brasileira de Letras, jorna lista, professor e escritor.
Conheci também o campo de con centração de Dachau, na antiga Alema nha Ocidental. Uma infernal máquina da morte, com tudo o que de mais tétrico pôde ser concebido pelo gênero humano para liquidar a vida de milhões de pessoas. Escrevo gênero humano com escrúpulo, pois melhor seria que essa gente fosse qua lificada como animais insensíveis, obede cendo às ordens de um grupo de celerados desprovidos de características humanas.

da chegada do nazismo e acompanhando as transformações vividas pela implanta ção do clima de perseguição e morte, não há quem não se comova, chegando às lá grimas. Por que tudo isso? E para que?
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Memória viva
ste é seguramente o livro mais engraçado que você vai ler a respeito do conflito entre árabes e judeus no Oriente Médio. Nenhum dos seus cinquenta e cinco (!) capítulos é desprovido de humor, sendo alguns absolutamente sensacionais.
Ambos os livros são o fruto de prolongadas imerções jornalísticas, respectivamente, na Alemanha e Israel. Se apresentando como jornalista alemão (o que ele realmente é, pois contribui com publicações alemãs) e omitindo (mas jamais mentindo a respeito) sua identidade judaica, ele obtém entrevistas extremamente reveladoras. Principalmente em Israel, onde o fato de entender árabe, sem que seus interlocutores tenham o menor vislumbre disso, faz com que ele capte com perfeição o que se passa por trás do teatro armado em algumas visitas e entrevistas.
E de teatro Tuvia (ou Tobi, o jornalista alemão, que é como ele se apresentou em Israel) entende muito! A partir disso ele revela o quadro hilariante e assustador da encenação palestina a respeito da crueldade da ocupação israelense; da insistente e virulenta manipulação antiisraelense perpetrada pelas ONG internacionais (principalmente as alemãs); e da insegura e apologética (com relação ao conflito que lhe foi imposto pelos árabes) identidade dos judeus israelenses.
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E
Tuvia Tenembom nasceu em Bnei Berak, Israel, em 1957, num lar ultra-ortodoxo e anti-sionista. Há 33 anos abandonou a perspectiva de ser tornar mais um Rabino na longa linhagem de sua família, porque, em suas palavras, “decidi que Deus era forte o suficiente para tomar conta de si mesmo sem a minha ajuda”. Foi para Nova Iorque, onde vive até hoje, e adquiriu formação acadêmica, sendo diplomado em matemática, ciências da computação, escrita dramática e literatura. É o fundador e diretor artístico do “Te Jewish Teater of New York”. Fala fluentemente inglês, alemão, hebraico e árabe.
RESENHA DE
Catch the Jew!

De Tuvia Tenembom, editado em 2015 por Gefen Publishing House, Jerusalém.
E ao mesmo tempo, se você for um sionista, este é um dos livros mais tristes que você vai ler a respeito do conflito. Principalmente por conta dos fatos que ele revela e da bem fundamentada percepção do autor do livro a respeito do futuro de Israel.
Apoiado por sua nada convencional formação e experiência de vida, Tuvia escreveu dois livros (além de 16 peças de teatro e inúmeros artigos) igualmente nada convencionais. O primeiro se chama “I Sleep in Hitler’s Room” e o segundo é este que estamos analisando: “Catch the Jew!”. LIVRO
RESE NH AS LIVROS
A seguir trechos extraídos do “Portão 54” (o autor titula os seus
“Ato… III, cena 4. A Sky News está deixando a arena.
Ato III, cena 5. Lentamente os demais jornalistas e times de filmagem começam a se afastar.
Tuvia conclui seu livro da seguinte forma:
Milagrosamente os judeus construíram um dos países mais sofisticados, intenso e belo de nossos tempos, mas o que eles estão fazendo para preservá-lo? Eles se odeiam, eles se contradizem, eles estão cheios de medos e muitos correm para obter um outro passaporte; eles querem voltar para a Polônia, para a Áustria, para a Alemanha - países nos quais seus antepassados foram caçados e mortos.”
“Lenta, mas consistentemente, o show vai tomando forma, e os vários atores se colocam em suas posições. Primeiro os jornalistas europeus e a mídia árabe. Carregando grandes câmeras, pequenos microfones e outros equipamentos, eles se movem para suas posições no ‘palco’. Eu imaginava que o jornalismo descreve os eventos, mas percebo que é o contrário. Como posso ver aqui os jornalistas são os protagonistas e apenas depois deles terem se colocado os demais também se colocam.”…“Cadapessoa
É realmente um livro muito triste, escrito com muita leveza, porém muito triste. Demonstra com fatos e evidências no campo que o ódio aos judeus continua muito vivo na Europa e que cresce assustadoramente entre os árabes. Contudo, mais que isto, mostra que os judeus continuam se culpando pelo ódio a eles dirigido. Depois de ler o livro de Tenembom ficamos com a impressão que os judeus parecem não conseguir perdoar o seu próprio sucesso.
RESENHAS DE LIVROS
“As câmeras de TV filmam enquanto os Shabab continuam com mais e mais tiros e os soldados respondem com uma barragem de latas de gás lacrimogênio.”

capítulos como “portões”, visto que cada um deles descreve uma abertura que lhe foi franqueada), a respeito de sua experiência numa das famosas demonstrações anti ocupação da aldeia de Bil’in:
uma resenha na qual glorifica o filme 5 Câmeras Quebradas, a respeito dos protestos de Bil’in e nomeado para o Oscar. Se você está sentado em Nova Iorque e vê o documentário consegue acreditar que o que você vê é real. Mas quando você está aqui em Bil’in e entende árabe você tem a percepção correta. Os ‘protestos de Bil’in’ são um show de “Alá está com vocês, matem os judeus!”
Se a lógica faz algum sentido, então Israel não vai sobreviver. Assediado por
“Testemunhar o tremendo investimento e inúmeras tentativas dos europeus, especialmente os alemães, todas direcionadas para desestabilizar os judeus nesta terra, em Israel, foi uma experiência extremamente perturbadora. Ser coberto de amor pelos árabes simplesmente porque eles imaginavam que eu era um Ariano, um Alemão, foi muito incômodo. Observar os judeus e ver quão impotentes eles são, mesmo agora que têm seu estado, foi muito angustiante.
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O New York Times publicou
aqui tem um papel único dentro do show. Em outras palavras: todos são atores. E tudo funciona em etapas: jornalistas tomam posição, crianças vendem quinquilharias, e o coro - os anciãos que rezamestá agora se colocando em seu lugar.”
“Na direita brancos esquerdistas levantam grandes cartazes contra o racismo dos judeus no momento em que o imam berra pesadas injunções racistas em árabe. Os dois grupos, árabes rezando e estrangeiros de kefiah fazem uma combinação muito interessante.”
ódio de dentro e de fora, nenhum país pode sobreviver por muito tempo.
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Assim começa o mais novo livro de Ayaan Hirsi Ali e ela afirma que a fórmula acima descreve dezenas de situações recentes. Para particularizalas basta preencher as lacunas. O livro foi escrito neste ano após o
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E
A novidade deste livro de Ali é que nele ela propõe a solução para a vio lência no Islã: uma reforma religiosa, tal qual aconteceu no judaísmo e no cristianismo.Eladivide os muçulmanos (in dependente de serem sunitas, xiitas, etc.) em três grandes grupos: o pri meiro é composto pelos fundamen talistas que afirmam a necessidade de viver estritamente conforme a lei reli giosa islâmica, que acreditam não ter sido modificada desde o sétimo sé culo da era comum. Mas muito mais que isto, eles acreditam que é uma imposição de sua fé religiosa obrigar todos os demais a pensar e agir como eles. Eles tentam não apenas seguir os ensinamentos de Maomé, mas tam bém emular o seu comportamento guerreiro. São eles que chamam os ju deus e cristãos de “macacos” e “por cos” e definem o judaísmo e o cristia nismo como “religiões falsas”.
E se fosse apenas para fazer esta re velação não seria necessário escrever mais um livro. Em suas três obras an teriores – Infiel (2007), A Virgem na Jaula (2008) e Nômade (2010) – isto já havia ficado meridianamente claro. A partir da condição sub humana da mulher no Islã, Ali denuncia a cultura violenta e supremacista na qual nasceu e da qual se afastou para a felicidade de nós todos, que ganhamos uma ob servadora muito corajosa. Uma analis ta que não hesita em declarar publica mente que enquanto para o ocidente a igualdade entre todos os humanos é algo indiscutível, para o Islã, oprimir a mulher é uma questão de princípios.
atentado ao Charlie Hebdo, contudo aquele atentado não lhe trouxe nenhuma percepção nova. De fato, há 13 anos Ali se dedica à missão de revelar ao mundo que o Islã não é a “religião da paz” ou “do amor”, muito pelo contrário.
m ______, um grupo de ______ fortemente armados, vestidos com máscaras negras, irrompeu num ______ em ________, abrindo fogo e matando um total de _______ pessoas. Os atacantes foram filmados gritando “AlahuFalandoakbar!”.numa coletiva para a im prensa, o Presidente ______ disse: “Nós condenamos este ato criminoso perpetra do por extremistas. Sua tentativa de jus tificar a violência em nome da religião da paz não vai, contudo, ser bem suce dido. Nós também condenaremos com igual determinação aqueles que usarem esta atrocidade para um pretexto para cometer crimes de ódio islamofóbico”.
Ela cita uma estimativa que apenas três porcento dos muçulmanos podem ser definidos como fundamentalistas, mas isto não significa que eles sejam insignificantes, pois 3% de 1,6 bilhões de pessoas (48 milhões) podem fazer um estrago considerável. E além disso, Ali acredita que a proporção seja bem maior. O segundo grupo compõe a grande maioria dos muçulmanos. São pessoas comprometidas com a essência de sua fé, mas que não se inclinam para a violência. Frequentam as mesquitas, se alimentam e se vestem conforme ordena a religião e focam na observânciaContudo,religiosa.estesmuçulmanos têm um grande problema: suas crenças religiosas os colocam em difícil tensão frente a modernidade. Os valores do racionalismo e da individualidade são fundamentalmente corrosivos para as sociedades tradicionais, especialmente para as hierarquias baseadas no gênero, idade e herança social.
Ali se coloca firmemente no tercei ro grupo de muçulmanos que ela iden tifica: os dissidentes, os muçul-manos
Herege
De Ayaan Hirsi Ali, editado em 2015 pela Companhia das Letras, São Paulo.

Para muitos destes muçulmanos, depois de anos de dissonância provocada pela tensão acima descrita, parece só haver dois caminhos: abandonar o Islã completamente (como fez Ali) ou relegar a rotina de observância religiosa para os fundamentalistas que rejeitam a modernidade do Ocidente.
E é para estes muçulmanos que Ayaan Ali escreveu o seu livro. Claro que ela entende que eles provavelmente não vão prestar atenção para uma pessoa que abandonou a fé, que se tornou uma apóstata e uma infiel. Mas ela espera que eles possam reconsiderar se conseguir persuadi-los a pensar nela não como uma apóstata, mas como uma herege (daí o título do livro), como uma dissidente.
Ela identifica cinco pilares que devem ser modificados ou sumariamente descartados no Islã:
compaixão, paz e água de rosas, e que tudo está bem”.
O livro analisa cada um destes pon tos, reconhecendo que muitos muçul manos se sentirão desconfortáveis com a análise crítica. Mas ela afirma que é justamente a total falta de pensamen to crítico que prejuduca o Islã hoje e que mesmo que o livro acenda apenas uma pequena faísca de discussão ela já se sentirá recompensada.
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ou guerra santa.
RESENHAS DE LIVROS
te, em vez de na vida antes da morte. derivada do Corão, o hadith e o restante da jurisprudência islâmica.

zer cumprir a lei Islâmica pela impo sição do certo e proibição do errado.
Ela diz que as coisas realmente não estão bem, mas que o simples fato des tas palavras poderem ser proferidas é uma das razões pela qual ela acredi ta que a Reforma Islâmica já tenha começado.Nóstodos somos testemunhas do imenso benefício que a Reforma Judaica causou aos judeus, que conseguiram se inserir no mundo e progredir tremendamente sem ter que abandonar a sua religião e suas tradições. Até mesmo o mundo ortodoxo, que declara não ver valor na Reforma, adotou inúmeras de suas posições e conseguiu a inserção no Ocidente democrático. Sem a menor dúvida que se as teses de Ayaan Hirsi Ali forem vitoriosas o mundo será um lugar melhor de se viver.
“Não devemos embelezar as coisas e dizer que o Islã é uma religião de
que buscam mudanças. Aqueles que concluíram que não conseguem mais ser crentes, contudo desejam firme mente se engajar no debate sobre o fu turo do Islã. São pessoas que chega ram à conclusão que sua religião tem que mudar para que seus seguidores não sejam condenados a um ciclo in terminável de violência política.
divina de Maomé, junto com a leitura literal do Corão.
O livro é otimista. Contra todas as evidências ela imagina que a reforma do Islã já tenha começado, mesmo que timidamente. Ali termina seu livro comentando as palavras do clérico iraquiano Iyad Jamal Al-Din:
os estudiosos e os sábios na antiga diáspora judaica das cidades e aldeias próximas a Bagdá. A medida em que os judeus se dispersaram pelo mundo o Talmud foi com eles, viajando por rotas comerciais e migratórias para o Magreb, Europa, Arábia e o Leste. Ele se tornou o fundamento do sistema legal judaico, o alicerce da fé judaica. Para os judeus ele se tornou ainda mais importante que a Bíblia.
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O
INTRODUÇÃO – O QUE É O TALMUD?
The Talmud – A Biography

prefácio e a introdução compõem um excelente resumo deste interessante livro. Assim que a seguir reproduzimos todo o prefácio e o começo da introdução:
O Talmud é um clássico da literatura mundial. É uma obra maciça, antiga e aparentemente impenetrável. Pessoas dedicam as vidas ao seu estudo. Mas este livro não é sobre o que está contido no Talmud. Esta é a história sobre o que aconteceu ao Talmud e o seu papel na história do mundo, na religião e na cultura. Este livro não é uma obra para eruditos ou especialistas. É um livro para os que querem conhecer a história de de um dos grandes clássicos da literatura antiga, apesar de ser muito menos manuseado, fora do círculo judaico, do que Homero, Chaucer ou Ovídio. O conteúdo do Talmud pode ser exotérico. Mas sua história pertence a nós todos. Por que praticamente não existe nenhum centímetro quadrado na superfície do mundo sobre o qual a sua história não tenha, a um determinado momento, atuado.
Cada nação tem suas leis. Poucas nações registram sistematicamente os processos, as discussões filosóficas e os argumentos legais que levaram àquelas leis. Todos sabem que as leis existem por algum motivo. Mas o motivo em si não faz muita diferença no cotidiano das pessoas.
desenvolvimento da civilização do mundo. A história do Talmud é o testamento do que pode acontecer, para o bem e para o mal, quando a literatura de uma cultura entra em contato, ou em conflito, com as crenças e valores de uma outra. Por outro lado, ele ilustra as consequências de uma sociedade auto contida e que olha para dentro quando os seus textos definidores são confrontados com novas ideias vindo do exterior.
Esta á a história de um livro. Um livro que define a religião dos judeus. Um livro que, provavelmente, define os judeus.Muitos livros não têm uma história, no máximo têm uma narrativa sobre a história de sua publicação e a subsequente receptividade pelo público. Mas o Talmud tem mais do que uma simples história, ele tem uma história conturbada. Uma história que, de muitas formas, reflete a história do povoOjudeu.Talmud foi composto como um registro das discussões entre
PREFÁCIO
De Harry Freedman, editado em 2014 por Bloomsbury Publishing, Londres.
Os judeus habitaram entre muitas e diversas culturas. Eles intercambiaram ideias e perspectivas com seus vizinhos. Os primeiros contatos entre o Judaísmo e o Islã produziram uma intensa fertilização intra-cultural, cujos efeitos ainda podem ser discernidos na lei Talmúdica e Islâmica. Os encontros medievais entre os judeus e os cristãos foram menos benignos, a Igreja considerava o Talmud como o obstáculo que a impedia converter os judeus. Sua resposta foi desafiá-lo, queimá-lo, banílo e Geraçõescensurá-lo.posteriores, particularmente na Europa protestante, exploraram o Talmud por suas ideias, apesar destas gerações também estarem direcionadas para converter os judeus. Encontramos filófosos e poetas, republicanos e reis, clérigos e professores, todos sondando o Talmud, buscando inspiração, apoio e validação para os seus pontos de vista específicos.Maso mais formidável desafio ao Talmud veio dos próprios judeus. Rejeccionistas, pretensos messias e sábios o vilipendiaram, procurando deslegitimizá-lo ou, no mínimo, diminuir a sua influência. Mas, como os judeus, a capacidade de sobrevivência do Talmud não tem limites. Hoje em dia ele é estudado por mais pessoas que em qualquer momento de sua história.
Por uma perspectiva a história do Talmud é a história dos judeus. Por uma outra, ele é uma janela para o
A Bíblia Hebraica é o fundamento da religião judaica. É a base da crença judaica e origem de sua ética, ritual e legislação social. Mas a Bíblia trata de conceitos, princípios e generalizações; ela raramente se pronuncia sobre o detalhe de suas injunções. Já o Talmud é o registro de discussões que aconteceram ao longo de séculos, discussões que se apoderaram dos princípios estabelecidos pela Bíblia e deram formato à religião.
Concluíndo, agora sem mais citar o texto original: o livro que contém a nossa tradição milenar é fruto de uma

Os judeus são conhecidos como o Povo do Livro. Mas na na verdade eles são o povo dos dois livros. O livro mais antigo, a Bíblia Hebraica é considerado sagrado, a palavra de Deus revelada. Mas o livro mais recente, o Talmud feito pelos homens, é o mais significativo para se entender o judaísmo.
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Os judeus são diferentes. O mesmo valor é atribuído ao estudo do processo pelo qual suas leis emergiram do que ao conhecimento das leis em si. Na verdade, é dito que estudá-las é mais importante do que observá-las, visto que o estudo conduz á observância.
RESENHAS DE LIVROS
O Dr. Harry Freedman produziu um importante registro histórico, de leitura extremamente agradável e interessante. Vale a pena ler sua obra.
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tradição judaica ainda mais antiga – a investigação e o questionamento a res peito da nossa relação com Deus e do nosso relacionamento com os demais humanos e com a natureza em todas as situações da vida. Porque entende mos que sem a discussão e adequa ção continuada de Suas leis estaría mos traindo a confiança que Deus nos confiou ao depositá-las conosco.
tringe, ao impedir o reconhecimento das falhas que geraram o problema, a possibilidade de uma reconciliação com a verdade que leve a uma so lução real. O livro mencionado aponta dois exem plos extremos de como se tratam os erros co metidos: o da indústria do transporte aéreo, que a cada acidente vai sempre buscar nas caixas -pretas as verdadeiras causas, sejam humanas ou técnicas, para dar-lhes a solução apropriada e com isso aumentar a segurança de voo a par tir da falha; e o da política e dos políticos, que em nome de seu próprio prestígio e continuida de preferem denegar o erro (dissonância cogni tiva, falácia narrativa, imputação de erros aos ou tros) e continuar nele do que reconstruir um ca minho a partir de reconhecê-lo.
CÓCEGAS NO RACIOCÍNIO
cognitiva é o processo em que o fato do erro cometido, ou de uma realidade tal como é, são percebidos distorcidamente (às vezes até mesmo de boa-fé, num processo de autodefesa automático), em benefício subcons
Dissonânciadela.
O objetivo aqui não é, mais uma vez, entrar na discussão desses direitos, de seus fundamentos históricos, geográficos, sociais e políticos, mas de compreender como erros são denegados e não reconhecidos, redundando em dissonância cognitiva, falácia narrativa e imputação do erro somente aos outros, o que impede uma solução que devolva paz e segurança a todos, na região e fora
É claro que nessa análise não cabem as in tenções e premeditações. Se alguém derrubar um avião, pouco lhe importa a caixa-pre ta e as lições que ela pode dar. Como não impor ta estar ou não errados – ao visarem à destrui ção de Isael – aos islamistas radicais e aos chau vinistas palestinos ou árabes em geral; e também aos judeus radicais que só veem solução numa grande Israel sem palestinos. E aos antissemi tas, e aos anti-Israel de esquerda que perderam suas outras causas. Mas aos desavisados, aos influenciáveis pelas falácias narrativas, aos Ca etanos Velosos da vida, montar uma caixa-pre ta interna seria um bom começo para um mundo melhor para todos.

A imputação de erros aos outros, ou a cir cunstâncias, é a ‘pacificação’ interna de uma si tuação gerada por erros de parte a parte. Ela res
A cócega no raciocínio deste quadrimestre está no exercício de aplicar esses conceitos à maneira com que se está conduzindo o já cente nário conflito entre os judeus – como povo e na ção –, e os árabes da antiga Palestina – como um dos grupos do povo árabe que assumiu identida de nacional –, em relação ao direito, e ao fato po lítico acarretado por esse direito, de se estabe lecerem como estados-nações em territórios ain da não delimitados oficialmente nos respectivos discursos. [Os palestinos, ao se recusarem a re conhecer, mesmo num acordo de paz, o já esta belecido Israel como estado-nação do povo ju deu, estão implicitamente não reconhecendo as fronteiras desse possível acordo – e a existên cia mesma de um estado-nação do povo judeu – como definitivas, os israelenses, ao se consi derarem no direito de estabelecer colônias além das linhas de 4 de junho de 1967, não reconhe cendo que essas terras estão dentro das futuras fronteiras de um estado palestino.]
P aulo G eiger
Traduzi recentemente um livro, a ser publicado em breve (quando for, direi qual é), que trata da questão do reconhecimento do erro como ala vanca fundamental para sua correção, e com isso para o aprimoramento, a melhora de tudo que se tem como fator determinante do progresso, da segurança, do bem-estar do homem. Contudo, analisa o autor, na maior parte de setores vitais não só para o indivíduo, como para toda socieda de, e, por extensão, a própria humanidade, a relu tância em reconhecer o erro para poder corrigi-lo e começar o processo que leva a esse progresso e bem-estar, e a essa segurança, leva na verdade a uma de denegação do erro, em processos aos quais a ‘psicopatologia’ do erro dá os nomes de ‘dissonância cognitiva’, ‘falácia narrativa’ e ‘impu tação/atribuição do erro a terceiros’.
OS ERROS DOS OUTROS
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ciente da segurança, da autoestima, do interes se imediato de quem o comete. ‘Honestamente’ o agente da situação não consegue perceber essa distorção, sua cognição dissonante da re alidade é a única realidade que conhece e con sidera. Cometer erro e insistir no erro com a sin cera consciência de que está certo, enxergar uma situação da maneira que o favorece e o sal va de responsabilidades, são os ingredientes da dissonância cognitiva. Como a de quem, em Is rael ou fora dele, só consegue enxergar direitos nacionais históricos de lado ‘de cá’ da frontei ra, que não percebe que o desenvolvimento his tórico recente fez criar, se bem que antes real mente não houvesse, um ‘povo palestino’ a par tir dos árabes que viviam na Palestina durante séculos, sem serem um povo. Como a dos pa lestinos e de grande parte do povo árabe e dos muçulmanos não árabes que não enxergam o di reito histórico do povo judeu à única terra que é sua raiz territorial nacional, da qual nunca abdi caram mesmo em dois mil anos de exílio, e cujo direito a ela foi homologado no século 19 pelo reconhecimento dos direitos de todos os povos à autodeterminação, que não percebe que sio nismo é a ação efetiva resultante desse reco nhecimento e não uma política colonialista, im perialista e chauvinista.
Quando um governo de Israel e as lideranças palestinas, árabes e islâmicas estiveram dispos tas a, em primeiro lugar, sinceramente uma solução de coexistência em paz e seguran ça, e para isso abrirem suas caixas-pretas para detetar e corrigir os erros que cometeram em re lação a esse objetivo, teremos, sim, uma esperan ça de paz verdadeira e definitiva.
Dessa dissonância cognitiva advém uma fa lácia narrativa, uma distorção da ordem causa -efeito, uma interpretação equivocada (sincera ou proposital), que promove a rejeição de Israel, o movimento BDS, as falas de Caetano Veloso, as condenações hipócritas e unilaterais a Israel, as atitudes baseadas em duplos critérios, a demo nização, a ameaça existencial (do Irã, do Hizbolá, do Hamas, para só citar os mais notórios); mas, também, em parte da sociedade israelense e de seu governo, e parte do povo judeu, uma narrati va que minimiza os direitos dos palestinos e não discrimina entre os que só buscam uma solução nacional para sua existência e os que só a consi deram uma fase no processo de eliminar o esta do judeu. A falácia narrativa domina a mídia inter nacional, governos, é brandida como argumento pelos antissemitas, as pseudoesquerdas, islamis tas radicais (e nem tão radicais), e boa parte das lideranças palestinas. E é absorvida pelos incau tos, desavisados e mal-informados.
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