Devarim 22 (Ano 8 - Dezembro 2013)

Page 1

Mulheres do Muro: a missão, a história e a evolução Shira Pruce

Mulheres do Muro: a missão, a história e a evolução Shira Pruce

As iniciativas do Fundo Abraão

As iniciativas do Fundo Abraão

Mohammad Darawshe

Mohammad Darawshe

Lod: será possível a coexistência?

Lod: será possível a coexistência?

Deborah B. Erlich

Deborah B. Erlich

As Faces Rabino Sérgio Margulies

As Faces Rabino Sérgio Margulies

Adão e Eva e a sociedade de consumo Rabino Dario Bialer

Adão e Eva e a sociedade de consumo Rabino Dario Bialer

Diálogo: a cultura do encontro Diane Kuperman

Diálogo: a cultura do encontro Diane Kuperman

O discurso antijudaico na América Latina Sergio Widder

O discurso antijudaico na América Latina Sergio Widder

Como escravos libertos no deserto Paulo Geiger

Como escravos libertos no deserto Paulo Geiger

O padeiro do espírito Any Dana

O padeiro do espírito Any Dana

Teatro ídiche no Brasil Susane Worcman e Paula Ribeiro

Teatro ídiche no Brasil Susane Worcman e Paula Ribeiro

Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 8, n° 22, Dezembro de 2013 devarim

Ohebraico falado em Israel não é igual ao hebraico bíblico e nem poderia ser, pois têm usos, inserções sociais e contextos culturais diferentes. Se os moder nos ingleses se expressam de forma muito diferente da de Shakespeare, que viveu há menos de quatro séculos, o que dizer de um idioma que tem mais de quarenta séculos e ficou adormecido por boa parte desse período?

Este fato faz com que a leitura do Tanach (a Bíblia hebrai ca) seja sempre um exercício de tradução. Nem mesmo o mais informado erudito pode pretender entender plenamente seu conteúdo, pois ninguém detém o conhecimento completo das expressões idiomáticas e das construções literárias da época.

Por consequência, a leitura (na verdade, tradução) do Ta nach contém uma enorme variedade de versões. Há um pro vérbio que afirma que todo tradutor é um traidor, porque ele invariavelmente introduz na obra o seu viés de percepção. No caso de um texto religioso, esta característica inerente a todas as traduções ganha um perigoso componente ideológico que faz com que a variedade e a infidelidade das traduções sejam ainda mais agudas.

A tradição judaica registra com perspicácia este fato atra vés das quatro formas de abordagem das escrituras – o “Par des”1 – às quais se juntou recentemente mais uma: a análise literária. Esta mais nova vertente do universo interpretativo da Bíblia ainda está em pleno desenvolvimento, sendo que o professor Robert Alter, da Universidade de Berkeley, é inega velmente um dos seus maiores expoentes contemporâneos.

Suas traduções para o inglês dos textos em hebraico bíbli co são uma leitura agradabilíssima, porque removem as ca madas apologéticas das traduções religiosas e expõem o enre do e a beleza literária dos textos em toda a sua extensão. Atra vés da tradução de Alter de Bereshit/Gênesis absorvemos vi vamente as nuances das vidas dos nossos patriarcas e vemos com surpresa renovada que nós, judeus, escolhemos retratar os nossos fundadores com tintas completamente diversas das usadas por todas as demais culturas.

Os patriarcas do judaísmo nem são criaturas poderosas –como se encontra em abundância nos relatos dos fundado res de nações – nem são modelos de virtude e benevolência –como se espera de fundadores de religiões. Eles tratam os fi lhos de forma acentuadamente problemática, oferecem as es posas em troca de proteção, permitem que irmãos se atraiço em miseravelmente e assim por diante. Claro que tampouco são criaturas malignas, eles são apenas humanos, capazes de misturar atos sublimes com enganos dolorosos.

Perguntamo-nos perplexos: Por que isto é assim? Por que os redatores (ou o Redator, se acreditarmos na hipótese da es crita divina do texto) da Torá não embelezaram as biografias retratadas? Se até mesmo os compositores da MPB cuidam ciosamente de suas imagens, por que não tivemos o mesmo cuidado com os nossos antepassados fundadores?

É evidente que eu não tenho a resposta definitiva a este questionamento, mas posso fazer uma especulação pessoal, que julgo ser razoável e plausível.

A meu ver, ao retratar os patriarcas de forma nua e crua, a Torá nos transmite a mensagem que a vida na terra é – e sem pre será – imperfeita. O fato de que nem mesmo as figuras mais sublimes do judaísmo viveram vidas de santidade ressal ta a enorme distância entre os homens e o Eterno e reserva a Deus o único status de perfeição existente no universo.

O judaísmo postula que a perfeição humana é inatingível e este é um conceito poderoso. Dele resulta que os homens e as mulheres que se dizem perfeitos ou santos são meros misti ficadores indignos de crédito. Assim como mistificam os que atribuem santidade a outrem.

Também resulta daí a fundamentação que aconselha ter mos tolerância para com as pessoas de boa fé, visto ser injus tificável esperar que o teu vizinho seja isento de erros e imper feições. Porém, conforme ensina o Talmud, não devemos nos conformar com a imperfeição e sim devotar nossos esforços para sermos pessoas sempre melhores, mesmo sabendo que nunca chegaremos ao objetivo supremo.

Caso o conceito da inescapável imperfeição humana tives se sido aplicado de forma consistente teria poupado a huma nidade de muitas desgraças. Os nazistas, com sua busca pela pureza racial suprema, os soviéticos, com sua busca pela igual dade social absoluta, e tantas outras instâncias de grandes e pequenas revoluções em busca do “mundo perfeito” não cau saram nada além de morte, miséria e opressão.

Faltou, e tristemente ainda falta, à humanidade a compre ensão religiosa plena que emana da Torá – a mais fantástica obra de literatura jamais criada.

1. Pardes é o acrônimo de quatro palavras: peshat (simples, direto); remez (alegórico, indireto); derash (inquisitivo, comparativo) e sod (misterioso, exotérico). A pala vra “pardes” significa “pomar”, o que sugere que cada uma das formas de interpre tação é uma espécie dentro de uma coleção de árvores frutíferas.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1 editorial

Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 8, n° 22, Dezembro de 2013

P R es ID ente DA ARI Ricardo Gorodovits

R A b I nos DA ARI sérgio R. Margulies Dario e bialer

D IR eto R DA Rev I stA Raul Cesar Gottlieb

Conselho eDI to RIA l beatriz bach, bruno Casiuch, Rabino Dario e bialer, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio Margulies.

eDI ção editora narrativa Um

eDI ção D e A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) tainá nunes Costa

F oto GRAFIA D e CAPA Marabird (istockphoto.com)

t RADU ção teresa Cetin Roth Ana beatriz torres

Rev I são D e t exto Mariangela Paganini (libra Produção de textos)

Colaboraram neste número: Any Dana, Rabino Dario e bialer, Deborah b erlich, Diane Kuperman, Mohammad Darawshe, Paula Ribeiro, Paulo Geiger, Rabino sérgio R. Margulies, sergio Widder, shira Pruce e susane Worcman.

os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI.

os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

A revista Devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br www.devarim.com.br

Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ telefone: 21 2156-0444

A contracapa de Devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

sumário

As Faces Rabino Sérgio R. Margulies 3

Adão e Eva e a sociedade de consumo Rabino Dario E. Bialer 9

Mulheres do Muro: a missão, a história e a evolução Shira Pruce 17

As iniciativas do Fundo Abraão Mohammad Darawshe 23

Lod: visões antagônicas, será possível a coexistência? Deborah B. Erlich 29

Diálogo: do desprezo ao apreço, a cultura do encontro Diane Kuperman.................................................................................. 37

As tendências atuais do discurso antijudaico na América Latina Sergio Widder 42

O padeiro do espírito Any Dana 47

Teatro ídiche: transmissor de cultura e da vida judaica Susane Worcman e Paula Ribeiro 53

Em poucas palavras 58

Como escravos libertos no deserto Paulo Geiger......................................................................................... 63

.........................................................................
................................................................................
......................................................................................
.............................................................................................
.........................................................
.........................................................................

as faces

rabino sérgio r. margulies

Bereshit: a face humana

Bereshit (denominado nas traduções ‘Gênesis’, literalmente ‘No Iní cio’), o primeiro livro da Torá, narra o início do mundo. De vários mundos, pois cada ser humano é um mundo único e ao mesmo tem po igual aos outros. A imagem divina é inexistente e ainda assim todo ser humano é feito à Sua imagem e semelhança. A face humana é o reflexo da indescritível face divina. De acordo com o rabino Abraham Heschel (19071972), não há como fazer a imagem de Deus senão através da própria vida.

Olhar nossa face é reconhecer a dimensão sagra da da existência. O caminho da vida é para ser tri lhado com vitalidade, não engessado pelo enfado nho. Os passos são para nos conduzir a uma vida repleta de significado em que nenhuma ação é vã. Diante da insegurança que pode eclodir da alma, perceber nossa singular face humana como reflexo da imagem divina ajuda a recuperar o rumo de uma vida envolta por propósitos. Ajuda a resgatar a dig nidade para que não sejamos arrastados pelo desca so. No receio de sermos rejeitados, apreciar o brilho da face – como escultura única da dimensão divina – nos fortalece para superar a tentativa de exclusão.

A exclusão de um ser humano, por alguma for ma de preconceito e realizada por algum ato físico, verbal ou pressão social nega a face divina do ser hu

São vários os exílios que enfrentamos. O primeiro deles é o de nós próprios. Exilados do reconhecimento do que somos. A mensagem da Torá convida: volte para você.

Chris Lemmens iStockphoto.com Os desenhos referentes a cada livro da Torá são de autoria do rabino Sérgio R. Margulies.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 3
Pated / iStockphoto.com

mano e como tal é idolatria. Transforma o sujeito – imagem e semelhança de Deus –num objeto para atender os interesses dos que promovem a chacota.

Como numa casa de espelhos em que vemos a imagem alterada, por vezes nos so espelho interno reflete uma imagem distorcida: ora diminuímos, ora exagera mos nosso potencial; ora nos deixamos le var pela areia movediça do fracasso, ora nos arrastamos pelo vendaval da ilusão. A imagem divina está em nossa face. No fundo, dado que esta imagem é inexisten te, temos que construí-la. Construímos quem somos. O que somos e como nos percebemos são reflexos do que se passa em nossa alma.

Buscar uma vida santificada não exige a perfeição humana. Esta condição inexiste. Procurar o melhor admite a falibilidade. Errar é inexorável à vida. O relevante é reconhecer os equívocos e repará-los. Admitindo nossa falibilidade somos mais propensos a aceitar o outro.

São vários os exílios que enfrentamos. O primeiro deles é o de nós próprios. Exilados do reco nhecimento do que somos. A mensagem da Torá convi da: volte para você.1

Shemot: a face de Deus

No segundo livro da Torá, Shemot (denominado nas traduções ‘Êxodo’, literalmente ‘Nomes’), Deus convoca o ser humano para o encontro. Moshé [Moisés] fica conforme as palavras bíblicas ‘panim el panim’, ‘face a face’, com Deus. Moshé fica diante da face Daquele cuja face não tem nem forma nem formato. Formas e formatos – enquanto elementos tangíveis – servem para que seja estabelecida uma esfera de domínio. Deus é indominá vel. Aqui brota o paradigma dos encontros entre as faces humanas: o encontro ge nuíno não é para estabe lecer controle ou domí nio, é simplesmente para a interação e convívio. Moshé indaga o nome de Deus. É inominável. O nome permite criar categorias. Deus as trans cende. Assim, o inominá vel Deus (cujo nome não é, por definição, Deus) se define como ‘Ehie-Asher

-Ehie’, expressão hebraica de amplo signi ficado: ‘Eu sou o que (ou quem) sou’, ‘Eu serei o que (ou quem) serei’, ‘Eu serei sou o que posso ser’.

Nós seres humanos temos nomes, mas não para confinar, pois a semelhança para com Deus nos convida a sermos o que po demos ser. Há um potencial a ser desbra vado uma vez que em cada um de nós há múltiplas faces. A palavra face em hebrai co – panim – é expressa no plural para ca racterizar a riqueza que emerge de nossas emoções e pensamentos.

Imposições totalitárias restringem o potencial humano. As partes são anuladas e o todo, em que tudo passa a ser igual, prevalece. Há indivíduos, coloca Erich Fromm (1900-1980), que preferem uma imposição totalitária. A razão é simples: se isentam do ris co e da dificuldade da escolha. A solução é dada. Tudo é pronto. Nestes casos, a pessoa deixa de resplandecer a ima gem divina, vira objeto esculpido ao sabor das imposições e não é o que poderia ser.

Tal como Deus é o que pode ser, cada pessoa não sim plesmente é, e sim ‘torna-se’. O tornar-se é constante. Per manente. ‘Nome’ em hebraico é shem. Com as mesmas le tras, somente mudando uma vogal (que na ortografia se quer aparece) há a palavra sham, que significa ‘lá’. O ‘lá’ é tanto o lugar quanto a condição do que podemos ser e nos tornar. Cada ‘lá’ convida para um novo ‘lá’. O cresci mento é constante.

São vários os exílios que enfrentamos. A Torá convida: volte para a essência divina que há em você.

Vaikrá: a face do outro

O terceiro livro da Torá, o Vaikrá (denominado nas traduções ‘Levítico’, literalmente ‘E chamou’), exorta: ke doshim tihiu, ‘sejam santificados’. Buscar uma vida santifi cada não exige a perfeição humana. Esta condição inexis te. Procurar o melhor admite a falibilidade. Errar é inexo rável à vida. O relevante é reconhecer os equívocos e repa rá-los. Admitindo nossa falibilidade somos mais propensos a aceitar o outro. Apontar precipitadamente o dedo é uma maneira de se desvencilhar da responsabilidade para com o outro e um modo de retirar de nós próprios a face huma

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 5

na, como se não fossemos humanamente falhos.

Um dos termos para o casamento judaico é kedushin (que quer di zer santificação). A noi va, dentro do rito, tem seu rosto coberto por um véu que separa a sua face da do noivo. Não é para distanciar. É para com preender que o sagrado é construído através da união que distingue as partes. Igual mente o shabat – dia santificado da semana judaica – é distinguido dos dias comuns pela cerimônia de havdalá

Evidentemente no dia a dia não há o véu, nem na di mensão judaica a necessidade de manter o rosto coberto, mas há a lembrança de que o sagrado existe no espaço in visível que construímos entre um e outro. Entre uma face e outra. Quando não há este espaço deixa de haver um e outro. Cada um olha o outro como se fosse projeção de si. Neste caso, as faces são cobertas por máscaras de hipo crisia. Vale para qualquer vínculo no qual deve prevale cer o amor.

Vários são os exílios. O exílio do convívio genuíno com amor. A Torá convida: restaure a sacralidade dos relacio namentos.

Bamidbar: a face da comunidade

O quarto livro da Torá, Bamidbar (denominado nas traduções ‘Números’, literalmente ‘No deserto’), descre ve a realização de um censo. Um povo é percebido. Uma pertinência pode ser estabelecida. A solidão pode ser su perada. O deserto não é somente o lugar geográ fico, mas também a con dição humana em que o espírito torna-se árido pela ausência de elos que nos unam a algo maior. Deus, afirmamos, é a causa de todas as causas. Em complemento, assu mindo a responsabilida de humana, confirma

mos que a presença divina é consequência do que fazemos para os outros, dos efetivos elos de conexão com os outros. Os vínculos de pertinência permitem que a presença divi na – shechiná, em hebraico – se manifeste.

Os múltiplos vínculos permitem apreciar a pluralida de. A vida judaica é ampla e várias são suas concepções fi losóficas e teológicas. Esta diversidade é uma riqueza que a convivência comunitária propicia. Isto implica num exer cício de aceitação: ver outras facetas da vida sem desde nhar o diferente ou considerar ilegítima a concepção dis tinta. Legítimas são as inúmeras faces de expressão judai ca e humana. Ilegítimo é tirar uma face do marco do con vívio por dela discordar.

Há o exílio comunitário, dos amplos relacionamentos. A Torá convida: retorne a este convívio.

Devarim: a face da religião

O último livro da Torá chama-se Devarim (denomina do nas traduções ‘Deuteronômio’, literalmente ‘Palavras’). A linguagem é precioso atributo humano. De nossa face saem as palavras que expressamos. Para nossa face vêm as palavras que escutamos. Cada diálogo é um encontro face a face. Cada diálogo é uma descoberta. Religião é o encon tro entre pessoas que se comunicam. Cada palavra dita e não escutada ou cada palavra ansiada em ser escutada e não dita representa uma perda de religiosidade.

O significado das palavras também depende de como são ditas ou escutadas. Muito pode ser dito e pouco ser compreendido. Várias rupturas são causadas pelas inter pretações equivocadas e por intentos de comunicação mal entendidos. Palavras trocadas face a face facilitam a com preensão e evitam manipulações de jogos imersos em fofo cas. O silêncio entre as palavras lapida o que elas expressam impedindo serem flechas que ferem a vida. Estando face a face este silêncio é captado.

Conta-se que o dono de um negócio estava tão asso berbado que não tinha mais tempo para conversar com Deus. Assim, contratou um assistente que o aliviaria de seus afazeres para que se de dicasse à conversa com Deus. Quando foi rezar olhou a

6 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

face de seu assistente e percebeu que naquela ajuda àquela pessoa estava a face de Deus e para o assistente deveria dirigir pa lavras de agradecimento e incentivo. As sim, as palavras a Deus foram permeadas pelas palavras trocadas entre os dois. En tão pensou que talvez ele próprio devesse diminuir seu tempo de conversa exclusi va com Deus a fim de que ambos conver sassem com Deus. Antes somente ele con versava com Deus e o vínculo com o ou tro – no caso, o assistente – era unicamen te utilitário tal qual era utilitário o seu vínculo com Deus. Quando passaram a conversar entre si e juntos com Deus, nasceu a religião. Juntos compartilharam seus anseios e expressaram suas alegrias. Juntos trocavam palavras: cada um consigo, um com o outro, ambos com Deus e quem sabe Deus com eles.

O sagrado existe no espaço invisível que construímos entre um e outro. Entre uma face e outra. Quando não há este espaço deixa de haver um e outro. Cada um olha o outro como se fosse projeção de si.

Torá: a face judaica

Setenta são as faces da Torá, ensi na a literatura rabínica. Setenta simbo liza a abrangência no potencial de cria ção. Cada geração pode ver a face do seu tempo nas faces da Torá. Através das faces da Torá a geração do hoje aprecia a história das gera ções passadas e a esperança da ge ração futura.

Há vários exílios. O exílio da Torá. A Torá convida: volte para mim e encontre sua face. E tantas outras.

Notas

Há o exílio da espiritualidade. A Torá convida: resga te as palavras de encontro. Religiosidade compartilhada é a linguagem comum de conforto e apoio entre diferentes pessoas de um mesmo convívio comunitário.

1. Inspirado no rabino Arthur Green, Seek my face, Jewish Lights, Vermont, 2003.

Sérgio R. Margulies é rabino e serve a Associação Religiosa Isra elita do Rio de Janeiro – ARI.

Alengo / iStockphoto.com
Mitza / iStockphoto.com

a dão e e va e a sociedade de consumo

A sociedade de consumidores é talvez a única na história humana que promete felicidade na vida terrena, felicidade aqui e agora e em todos os agora seguintes. Quer dizer, felicidade eterna e perpétua.

rabino dario e. Bialer

Acivilização humana nasce com o desejo. Adão e Eva viviam num pa raíso para onde, idealmente, todo ser humano anseia voltar e do qual eles escolheram sair.

Eles tinham nascido em berço de ouro, com abundância de recursos e a oportunidade de viver uma vida sossegada e bem resolvida para sempre. Essa era a vida que Deus imaginou para a sua criação. Mas eles viram que o bom era outra coisa, e optaram pelo movimento. A aceitação do incerto e o desafio de como preencher a ausência do mundo real lá fora. E essa desobediência ao mandato divino foi o primeiro ato de livre arbítrio do homem.

Tudo isso começou quando:

“Tomou o Eterno Deus o homem, e colocou-o no jardim do Éden, para cultivá -lo e guardá-lo. E ordenou o Eterno Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim podes comer. E as árvores do conhecimento, do bem e do mal, não comerás dela; porque no dia que comeres dela morrerás... mas a serpente disse à mulher: Não morrereis! Porque sabe Deus que, no dia em que comerdes dela, abrir-se-ão vossos olhos e sereis como deuses... e viu a mulher que boa era a árvore para comer e que desejável era para os olhos e cobiçável a árvore para entender [o bem e o mal], e to mou do seu fruto e comeu...”. (Bereshit/Gênesis 2:15-17 e 3:5-6)

Que árvore era essa? A árvore do saber ou do sabor? Não foi pelo conheci mento que se atreveram desafiar a Deus. Foi pelo sabor, pelo desejo. Definiti vamente, é o desejo o impulso vital que faz ao homem e à mulher saírem da zona de conforto e perseguirem algo além da subsistência física. Se fosse somen te pelo alimento e o abrigo, teriam ficado no Éden da vida resolvida. Mas isso

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 9

não é viver. É apenas sobreviver, e nascemos para muito mais do que isso.

O desejo não é um impulso qualquer. É aquele que nos põe em marcha. É a base da realização, da esperança e uma fonte de felicidade sem igual para o ser huma no. Mas também, como definiu Freud, o desejo não conhece limites. As paixões puxam o ser humano para todos os la dos. Estamos permanentemente buscan do o objeto adequado ao nosso desejo in finito, que, contrastado com o objeto fi nito, produz inevitavelmente uma gran de desilusão.

O shabat é um dia de liberdade, de desapego do material e das obrigações externas. É o dia em que se interrompe o culto aos deuses da civilização técnica. Que maior esperança de progresso para o homem do que o shabat?

Diz a serpente que Adão e Eva comeram do fruto porque queriam ser como deuses.

Quando se pode ter tudo se quer mais ainda; quando o que nos mobiliza é a cobiça, o desejo desenfreado tor na-se nocivo.

E quando a felicidade instantânea que o desejo propor ciona acaba, abre-se um vazio ainda maior que será pre enchido pela próxima aquisição num ciclo crescente e in terminável.

O desejo de ter nunca é suficiente. Por isso os exces sos aos que o ser humano se submete. Quisemos ser como deuses e não como homens. Não aceitamos o limite.

Pensamos que satisfazendo de forma imediata todos os desejos seríamos especiais e nos sentiríamos como deuses. Querer e poder, gostar e comprar, cria a falsa ilusão de realização e felicidade que a serpente “vendeu”.

A isso se refere o sociólogo polonês Zygmunt Bau man quando explica que, numa sociedade de consumido res, o valor supremo, perante o qual todos os demais de vem justificar seu valor, é uma vida feliz. A sociedade de consumidores é talvez a única na história humana que pro mete felicidade na vida terrena, felicidade aqui e agora e em todos os agora seguintes. Quer dizer, felicidade eter na e perpétua.

E como se alcança a felicidade? Eis a pergunta do mi lhão! Numa sociedade de consumo, a felicidade se atin ge por meio da satisfação dos desejos. Mas essa atisfação tem um umbral específico e, passado esse limite, o consu midor não só não encontra a felicidade almejada senão que “se submete a um fardo hedonista que acaba indefectivelmen te na infelicidade”.

A maçã do desejo

Nunca possuímos tantas coisas como hoje e nunca experimentamos tanta neces sidade de comprar mais. Armários cheios, pilhas de sapatos e muito mais roupa do que somos capazes de usar e, mesmo as sim, continuamos comprando. Somos uma geração educada sistematicamen te para consumir.

Muitas vezes esse comportamento es conde carências. Diante da ausência de felicidade e realização pessoal em outros espaços de sua vida, sair a comprar ob jetos é a satisfação instantânea (e fugaz) da felicidade.

Como explicar que há quem acampe a noite toda em frente de uma loja da Apple para ser o primeiro a com prar um iPhone?

A diferença entre a maçã da Apple e o fruto (que não era uma maçã) da Eva é que na atualidade o que acontece é uma sedução em série que fomenta clientes tão seden tos de produtos, que jogam fora o último modelo a cada nova estação.

Se a fonte vital de realização pessoal está em consumir objetos, algo não está funcionando bem e não seria de es tranhar que uma pessoa com um comportamento abusivo com as coisas traslade isso aos seus vínculos afetivos, coi sificando as pessoas.

Como diz Sandel: de ter uma economia de mercado passamos a ser uma sociedade de mercado. A diferença é que uma economia de mercado é uma ferramenta valio sa e eficaz de organização da atividade produtiva. Uma so ciedade de mercado é um modo de vida em que os valo res de mercado permeiam cada aspecto da atividade hu mana. É um lugar em que as relações sociais são reforma das à imagem do mercado.

Penso, por exemplo, em projetos que pagam a jovens para que se aproximem da Torá. Devemos dar dinheiro a uma criança para que leia mais livros? As crianças podem até ler mais com esse incentivo, mas a leitura em si deixa de ser um objeto de engrandecimento pessoal e passa a ser um fardo para uma meta monetária.

A sociedade de consumo impõe sua lógica. Adquirimos objetos para nos sentirmos seguros e evitar expor-nos às in certezas do desconhecido.

10 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

Nesse sentido, é bem similar ao que a idolatria representa. Objetos que têm o poder simbólico de controlar sua vida.

Idolatria século XXI

Os objetos que compramos proporcionam uma falsa sensação de segurança. A acumulação pretende significar estabilidade, mas não há objeto capaz de nos preservar do incerto.

Consumimos e acumulamos para nos aferrar ao con creto, da mesma forma que os pagãos adoravam estátuas e objetos. A conexão entre a acumulação desmedida e a ido latria se encontra nas palavras do profeta Isaias:

“E a sua terra está cheia de prata e ouro, e não têm fim os seus tesouros; também a sua terra está cheia de cavalos, e os seus carros não têm fim. Também a sua terra está cheia de ídolos; inclinam-se perante a obra das suas mãos, diante da quilo que fabricaram os seus dedos.” (Isaías 2:7-8)

O profeta descreve como a abundância sem limites é terreno fértil para incorrer em idolatria.

O judaísmo combate os ídolos e as falsas promessas. Reivindica a liberdade do ser humano e revoluciona o

mundo com o monoteísmo. Não há nada mais perma nente e verdadeiro do que o abstrato.

Toda a Bíblia poderia se resumir a um único conceito: a luta contra a idolatria. A crença num Deus único que não se pode ver nem tocar, mas com quem se pode dialogar.1

A tradição judaica ensina que o que permanece não são as posses. Todas elas, mais cedo ou mais tarde, desapare cem. O estado permanente da vida é a troca. A interação com o mundo e as pessoas.

J. Heschell descreve como ninguém essas ideias:

“A maioria de nós sucumbe ante a propriedade magnéti ca das coisas. Apreciamos aquilo que existe no reino do espaço. No entanto, o certo é que o genuinamente precioso se en contra no reino do tempo.

Os monumentos de bronze vivem graças à memória dos que contemplam sua forma, enquanto que os momentos da alma perduram, mesmo que sejam relegados à profundida de da mente.

Mesmo que nos ocupemos das coisas, vivemos as ações.

Os pagãos exaltam as coisas sagradas, os profetas de Israel louvam as ações sagradas.

O objeto mais precioso que jamais existiu sobre a terra fo

Kompaniet / iStockphoto.com

ram os painéis de pedra que Moisés recebeu no alto do mon te Sinai.

Os painéis eram a obra de Deus, e a escrita era a escrita de Deus gravada sobre eles.

Porém, quando Moises desceu da montanha com os pai néis que acabara de receber em suas mãos e viu o povo ado rando o bezerro de ouro, os arremessou ao chão e os despeda çou diante dos olhos de todos.

A pedra está quebrada, mas as Palavras estão vivas. A re produção que Moisés fez logo depois também desapareceu, mas as palavras não morreram. Seguem chamando em nossas por tas como se pudessem ser gravadas em cada coração”.2

O shabat: Um palácio no tempo

Viver no tempo aprendendo a nos desligar das coisas é a proposta judaica do shabat.

Não se trata de renunciar ao mundo dos objetos, mas de aprender a viver também sem eles. Viver o shabat inde pendentemente da civilização técnica, que é a conquista do espaço, para residir no palácio do tempo por 24 horas por

semana, sem trabalho, sem dinheiro e sem instrumentos.

O shabat é um dia de liberdade, de desapego do mate rial e das obrigações externas. É o dia em que se interrom pe o culto aos deuses da civilização técnica. Que maior es perança de progresso para o homem do que o shabat?

No sétimo dia o homem suspende sua luta pela sub sistência e se entrega à vivência plena do desprendimento das coisas. É uma trégua de todos os conflitos pessoais para procurar a paz de espírito dentro do homem e no equilí brio com o universo no encontro com Deus.

Como seria um mundo sem o shabat? Seria um mun do que conheceria somente a si mesmo, ou um Deus distorcido como uma coisa, ou o abismo a separar Ele do mundo; um mundo sem a visão de uma janela na eternidade que se abre no tempo.3

“Fechei os olhos e pedi um favor ao vento: Leve tudo o que for desnecessário. Ando cansada de bagagens pesadas... Da qui para frente apenas o que couber na bolsa e no coração.” (Cora Coralina)4

Para alguns o período sabático não é suficiente e eles

Manuela Krause
12 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
/ iStockphoto.com

procuram ampliar a experiência repensando seus hábitos e mudando seu esti lo de vida, valorizando o desapego como algo positivo e necessário.

Apreciar o essencial e deixar ir o su pérfluo é um exercício que nos melhora. Essa é a filosofia do minimalismo, nasci da na década de 1960 nos Estados Uni dos como uma corrente artística e que foi penetrando na cultura global com a men sagem de revisar as tendências de consu mo, negando que essa seja a principal fon te de felicidade.

O minimalismo procura simplesmente diminuir os elementos que sobram. Uma vida orientada a focar no essencial acaba outorgando mais tempo, mais liberdade, mais desfrute e menos preocupações.

“Há cada vez mais pessoas pensando que é insustentável a quantidade de objetos que carregamos pela vida”, diz Alex Castro, uma referência do minimalismo no Brasil.

E como ele, no País e no mundo existem muitos exem plos de pessoas aderindo a essa filosofia e começaram uma dieta de consumo.

Não se trata simplesmente de economizar dinheiro, mas de mudar hábitos enraizados, estabelecer prioridades e definir ao que daremos valor.

Abrir um a um todos os armários e se desfazer de tudo o que não é utilizado tem sido para todos eles um exercí cio liberador.

De certa forma, há um paralelo entre essa nova ten dência e o costume milenar do judaísmo de fazer na vés pera de Pessach uma limpeza exaustiva do chamets (o cha mets como símbolo do que sobra, do que está incomodan do, do que já não tem espaço e não faz sentido continu ar guardando).

O exercício de esvaziar os espaços nos quais interagimos dá uma sensação concreta de renovação e, o que é mais im portante, amplia o espaço para nos movimentarmos.

O vazio é o espaço da liberdade. Com menos coisas a pessoa pode circular mais à vontade.

Seguindo essa lógica, Dave Bruno, um professor da Universidade da Califórnia, publicou o livro The 100 thin gs challenge, que conquistou seguidores ao redor do mun

do, contando sua experiência de viver du rante um ano com apenas 100 itens in cluindo os de sua mulher e filhos.

Um desses seguidores, Andrew Hyde, conseguiu fazer o mesmo exercício e ain da assim achou muito. Pôs à venda quase tudo e ficou só com 15 coisas. Com elas viajou por 15 países e dessa viagem sur giu o livro A modern manual – 15 coun tries with 15 things.

Esses exemplos radicais não são para muitos. Mas não é necessário alcançar es ses extremos para simpatizar com essas ideias, pois o minimalismo é viver com o essencial, sendo que cada pessoa decide o que é essencial para si. É um processo to talmente subjetivo.

E a Torá procura preservar essa indi vidualidade. Cada um é livre de escolher como vai se relacionar com o mundo, as pessoas e os objetos, e talvez por isso o texto bíblico, através das ações dos pa triarcas, nos transmita ensinamentos bem diferentes.

Avraham é o peregrino que, andando junto com sua família, sente-se pleno levando pouquíssimas coisas com ele. O simbolismo de deixar para trás sua casa e todos seus pertences é o que guia a caminhada de um homem que não sai de sua terra buscando enriquecer. Ele sai em bus ca do sentido, num processo espiritual em que segue a in tangível voz Divina.

A sensação de estar em trânsito favorece o desapego. Se pensarmos em algum momento inesquecível que já vi vemos, provavelmente essa lembrança seja de alguma via gem junto com pessoas queridas.

Nessas situações tudo o que temos é o pouco que cabe na mala que carregamos e o espaço que nos dá segurança se limita a um pequeno quarto de hotel.

Logo voltamos à vida real, em apartamentos de muitos quartos e armários lotados de roupas. Durante a viagem te mos certeza que aprendemos da experiência de viajar mais leves e é ao chegar que nos esquecemos dessas lições.

E a Torá relata que o próprio Avraham parece ter se per dido e esquecido.

Quando começa a enriquecer e se torna um homem próspero, ele percebe que tudo o que tinha acumulado di Avraham é o peregrino que, andando junto com sua família, sente-se pleno levando pouquíssimas coisas com ele. O simbolismo de deixar para trás sua casa e todos seus pertences é o que guia a caminhada de um homem que não sai de sua terra buscando enriquecer. Ele sai em busca do sentido, num processo espiritual em que segue a intangível voz Divina.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 13

ficultava a interação com seu sobrinho, na época o mais próximo de um filho que ele tinha. “E a terra não podia sustentá-los para estarem os dois juntos, pois seus bens eram muitos.”5 Avraham foi inteligente o suficiente para enxer gar que a vida dessa forma estava insustentável e precisa va tomar uma decisão. A escolha dessa vez não foi deixar parte de suas posses, mas resignar a família unida. Expli cou a Lot que não poderiam continuar andando juntos e que ele poderia escolher a melhor terra para seus animais e que ele se iria com todos seus pertences no sentido oposto.

O outro exemplo emblemático é o de Jacó e Esaú, dois irmãos em conflito, separados pela benção da prosperida de que o pai podia entregar só a um deles.

O tempo passou e já mais amadurecidos se reencontram sem saber muito bem como acabaria esse encontro. Jacó te mia pela sua vida e para ganhar a confiança do irmão lhe envia inúmeros presentes. Quando Esaú recebe toda essa quantidade de riqueza, se dá um interessante diálogo:

“Perguntou Esaú: Qual é o teu propósito com todas essas coisas? Respondeu Jacó: Para lograr favor na presença de meu senhor. Então, disse Esaú: Eu tenho muitos bens, meu irmão;

guarda o que é teu. Mas Jacó insistiu: Não recuses; se logrei favor diante de ti, peço-te que aceites os meus presentes, por quanto vi o teu rosto como se tivesse contemplado o semblan te de Deus; e te agradaste de mim. Toma, rogo, meu presen te, que eu te trouxe; porque Deus tem sido generoso para co migo, e tenho tudo”.6

Às vezes na vida se alcança sabedoria e a realidade co meça a ser evidente. O prazer de dar, a generosidade de ser vir e compartilhar pode ser mais verdadeiro da satisfação que experimentamos do que quando guardamos para nós.

Jacó compreendeu, 20 anos depois, que ter ficado com os bens da família não fez dele um homem mais rico, e sim mais preocupado. E Esaú sente que as posses pelas quais brigaram toda a vida não valiam o preço que se paga ao perder um irmão. Dessa forma eles se reconciliam, quando o que mais querem é dar ao outro par te de sua benção.

“É realmente um processo de anos ir percebendo que pre cisa de menos coisas, que não se precisa de dez calças, de dez pares de sapatos”.7 Que a realização na vida passa por outro lado, e que ao que damos prioridade vai definir em gran de medida quem somos.

Seguramente continuaremos carregando objetos e lem branças; coisas que nos trazem algum tipo de sentimen to. A roupa que temos, não a usamos apenas para nos co brir do frio, mas para a interação social e uma cobertura emocional.

No entanto, nada disso minimiza as ideias do minima lismo. O importante é sermos consumidores conscientes, evitar os abusos e não pensar apenas em nós, para reduzir o sentido de desperdício que damos à vida.

Notas

1. Sobre esse assunto pode-se aprofundar com Kaufmann, Ezekiel em The History of Israelite Religion.

2. Heschell, Abraham Joshua, La tierra es del Señor, 1984, Seminario Rabínico Lati noamericano, Buenos Aires.

3. Idem, O Shabat, 2004, Perspectiva, São Paulo.

4. Considerada uma das maiores poetas brasileiras do século 20.

5. Bereshit/Gênesis 13:6.

6. Bereshit/Gênesis 33:8-11.

7. Jornal Valor Econômico, 31 de março de 2013.

O rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Isra elita – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico La tinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Aires, e no Schechter Institute for Jewish Studies em Jerusalém.

14 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Traveler1116 / iStockphoto.com

m ulheres do m uro: a missão, a história e a evolução

Missão

Mulheres do Muro é um fenômeno judaico internacional. Há qua se 25 anos Mulheres do Muro vem trabalhando com o objetivo central de conseguir o reconhecimento do nosso direito social e legal de, enquanto mulheres, usar talitot (xales de oração), rezar e ler a Torá coletivamente e em voz alta no Muro das Lamentações (Kotel Hamaaravi).

História

Quando o Kotel foi liberado ao final da Guerra dos Seis Dias em junho de 1967, os paraquedistas israelenses tornaram o acesso ao muro livre para todo o povo judeu, no mundo todo.

No dia 1o de dezembro de 1988 um grupo de aproximadamente setenta mu lheres, reformistas, conservadoras e ortodoxas, aproximou-se do Kotel em Jerusalém levando um Sefer Torá (rolo com o texto da Torá) para realizar um servi ço religioso haláchico (de acordo com a lei judaica) só de mulheres.

Até aquele momento não havia nada formalmente previsto ou estabeleci do sobre a leitura da Torá na parte do Kotel reservada para as mulheres; assim, elas trouxeram um Sefer Torá, ficaram juntas e rezaram em voz alta (umas tan tas dentre nós usaram talitot – xales de oração).

Muitas mulheres e homens do outro lado da mechitzá (a barreira que se para os homens das mulheres em algumas sinagogas ortodoxas) começaram a

Há 25 anos sofremos perseguição e intolerância oriunda de uma parte dos espectadores que frequentam o Kotel. Mas desde o ano passado, nós, as Mulheres do Muro, passamos a sofrer protestos violentos a cada Rosh Chodesh, quando chegamos para rezar.

As fotografias deste artigo são do acervo do movimento Mulheres do Muro.

shira Pruce
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 17

gritar, praguejar e até a ameaçar o nosso grupo enquan to rezávamos.

Não obstante o que se passava, aquelas mulheres con seguiram completar a sua leitura da Torá. O administra dor do Kotel naquela ocasião, o rabino Yehuda Gertz, per mitiu que elas dessem continuidade ao serviço religioso, declarando expressamente que elas não estavam violan do halachá.

Há 25 anos sofremos perseguição e intolerância oriun da de uma parte dos espectadores que frequentam o Ko tel. Mas desde o ano passado, nós, as Mulheres do Muro, passamos a sofrer protestos violentos a cada Rosh Cho desh (o novo mês judaico), quando chegamos para rezar.

E como se isto não bastasse, o administrador do Kotel e a liderança charedi (ultraortodoxa) não somente nada fi zeram para deter o sinat hinam (ódio gratuito) e a profa nação daquele lugar sagrado, como também apoiaram e participaram do processo.

O comportamento deles choca o mundo judaico.

A desigualdade das mulheres no Muro Ocidental, um lugar sagrado e público em Jerusalém, e o mais sagrado dos lugares para a visitação dos judeus, galvanizou o judaísmo mundial. Mulheres do Muro conta com mais de cinquenta mil ativistas espalhados pelo mundo, organizando eventos de solidariedade e campanhas on-line para manter as ora ções de mulheres no Kotel. Regularmente mais de duzen tas mulheres de todo o mundo rezam conosco naquele lu gar sagrado em Rosh Chodesh. Muitos homens as acom panham, apoiando do lado de lá da mechitzá.

Alguns anos atrás, o Mulheres do Muro era pratica mente desconhecido em Israel, e aqueles que conheciam o nosso trabalho pensavam que não passávamos de um gru pelho de imigrantes feministas e extremistas. Porém, um estudo recente feito pelo Instituto de Democracia Israel (IDI) demonstra um progresso extraordinário na opinião pública israelense: 63.5% dos israelenses que se identificam como seculares apoiam o Mulheres do Muro, assim como 53% daqueles que se definem como tradicionais,

Mais de duzentas mulheres de todo o mundo rezam regularmente no Muro em Rosh Chodesh.
18 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

mas não religiosos. Considerando todos os grupos, 51.5% dos homens entrevista dos e 46% das mulheres apoiam as inicia tivas do Mulheres do Muro.1

Vem de longe e tem se mostrado dura a luta judicial do Mulheres do Muro. Até bem recentemente o status quo do Muro Ocidental era o reinado do rabino ultra ortodoxo Shmuel Rabinowitz, nomea do autoridade dos lugares sagrados e pre sidente da Fundação Herança do Muro Ocidental. Uma decisão da Suprema Corte emitida em 2003 foi interpretada pela polícia e por Rabinowitz como de finindo o costume local do Kotel da seguinte maneira: os homens ficam livres para rezar conforme quiserem, mas, para as mulheres, as orações deveriam ficar limitadas a um som que não fosse superior a um sussurro, sem xales de oração, nada de filactérios (tefilin) ou de rolos de Torá.

A desigualdade das mulheres no Muro Ocidental, um lugar sagrado e público em Jerusalém, e o mais sagrado dos lugares para a visitação dos judeus, galvanizou o judaísmo mundial. Mulheres do Muro conta com mais de cinquenta mil ativistas espalhados pelo mundo.

O Mulheres do Muro, seus advogados e outros especialistas legais discordaram e mantiveram que as mulheres tinham o direito de rezar livremente na seção das mulheres naquele lugar público e sagrado.

No período compreendido entre 2010 e 2013 ocorreram mais de cinquenta de tenções e prisões de mulheres por rezarem em voz alta usando talitot no Kotel. A vi são de policiais prendendo mulheres en quanto rezavam tornou-se constante to dos os meses e judeus do mundo todo se ergueram revoltados contra este ultraje. No dia 25 de abril de 2013, reagindo contra a prisão de cinco mulheres usando talitot, o juiz Sobel, do Tribunal Distrital de Jerusalém, determinou que as orações das Mulheres do Muro não desrespeitavam a lei e nem perturbavam a paz.

Esta decisão finalmente possibilitou que as mulheres

As mulheres têm o direito de rezar livremente neste lugar público e sagrado.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 19

rezassem no Kotel em voz alta, colocando tefilin e usando talitot. Infelizmente a Torá ainda continua banida da seção das mulheres, por conta de uma portaria do rabino Rabinowitz.

Desde que esta portaria foi baixada, todas as vezes que o grupo de cerca de duzentas mulheres se reúne para rezar ocorrem violentos protestos no Kotel e nem Rabinowitz e nem a liderança ultra ortodoxa fazem coisa alguma para deter este ódio insensato e a profanação do lu gar sagrado.

No dia 25 de abril de 2013, reagindo contra a prisão de cinco mulheres usando talitot, o juiz Sobel, do Tribunal Distrital de Jerusalém, determinou que as orações das Mulheres do Muro não desrespeitavam a lei e nem perturbavam a paz.

Os manifestantes gritam, cospem, fa zem apitaços, jogam ovos e lixo, usam alto-falantes para abafar o som das nossas orações. O mundo judaico se mostra chocado por este comportamento que, mesmo assim, continua a acontecer.

Evolução

Conseguimos nos fazer ouvir quando ganhamos o apoio de judeus em Israel e na Diáspora.

Em Rosh Chodesh Kislev, 4 de novembro de 2013, re zaremos2 na seção de mulheres do Kotel com centenas de nossas irmãs comemorando a celebração do 25o aniver sário da fundação do Mulheres do Muro e a possibilidade de concretização do nosso sonho de conquista ao direi to de proferir orações completas pelas mulheres no Kotel.

Pois, pela primeira vez em vinte e cinco anos de ora ção e de luta pela inclusão, o primeiro-ministro de Isra el se aproximou da liderança do Mulheres do Muro com

o objetivo de propiciar justiça duradoura no Muro das Lamentações. Fomos convi dadas a acrescentar nossa voz ao proces so decisório que formatará o futuro para o Kotel.

O primeiro-ministro pediu ao presi dente do executivo da Agência Judaica, Natan Sharansky, que apresentasse uma solução justa à questão e Sharansky pro pôs a divisão da esplanada do Kotel em três áreas: uma exclusivamente masculi na, uma exclusivamente feminina e uma igualitária.3

Não é a decisão que ansiávamos, pois as mulheres ortodoxas do Mulheres do Muro querem ter o direito de ler a Torá e rezar confor me a halachá publicamente num ambiente exclusivamen te feminino.

Contudo, não poderíamos, em sã consciência e depois de vinte e cinco anos fazendo lobby junto ao governo e à sociedade israelense para que ouçam as nossas vozes, recu sar a oportunidade de dialogar diretamente com o gover no quando ela nos é oferecida.

Assim que, sem perder de vista a sua responsabilidade de concretizar todas as oportunidades significativas de re alização dos nossos objetivos, a nossa direção decidiu recentemente compilar uma lista de demandas a ser entre gue ao primeiro-ministro – são as exigências indispensá veis para a existência de uma terceira seção igualitária e pluralista do Muro.4

Esta nova seção deve ser igual a dos homens e das mu

20 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

As Mulheres do Muro querem uma seção igualitária e pluralista no Muro.

lheres em extensão, orçamento e topografia. Deve permi tir orações igualitárias, mas também ter uma divisão para permitir liberdade a quem procure orações exclusivamen te para mulheres.

Esta nova seção, em oposição ao que ocorre agora, não seria administrada pelo rabino Rabinowitz. A gestão da se ção pluralista caberia a um grupo de líderes de todas as de nominações judaicas, com 50% de participação do Mulheres do Muro.

Esta nossa decisão não está sendo muito bem aceita por alguns dos grupos que nos apoiam. Assim como nós, sen tem-se decepcionados por verem que o governo israelen se optou por não contestar os administradores ultraorto doxos do monumento nacional e local sagrado mais im portante do país.

O momento também não é o ideal, já que estamos a poucas semanas das celebrações do nosso 25o aniversá rio, mas o convite nos chegou em meados de setembro de 2013, e o prazo para respondermos ao convite do primeiro-ministro estava muito próximo.

Contudo, conforme expliquei, resolvemos não desper diçar a oportunidade.

Por enquanto, esta nova seção continua sendo um so nho e assim o será até que o último tijolo seja colocado e a última exigência tenha sido satisfeita. Enquanto isso, con tinuaremos firmes em nossas orações, na seção de mulhe res no Kotel, como é nosso direito.

Olhando para o futuro, vamos nos assegurar de que as mulheres sejam capazes de rezar no Kotel, quer na seção das mulheres quer na nova seção pluralista, quando esta estiver funcionando de acordo com as nossas exigências.

Graças aos muitos milhares de pessoas que nos apoiam incansavelmente, tanto em Israel como na Dispersão, es tamos tendo a oportunidade de chegar perto da concreti zação do nosso sonho e continuar a lutar pela nossa imu tável missão.

Notas da redação

1. Leiam sobre esta enquete em: http://en.idi.org.il/analysis/articles/israeli-public -opinion-on-the-women-of-the-wall.

2. Este texto foi escrito em final de outubro de 2013.

3. Leiam a entrevista de Natan Sharansky na Devarim 21. O acesso pode ser feito pela biblioteca eletrônica da revista em www.devarim.com.br.

4. Leiam a matéria http://www.timesofisrael.com/women-of-the-wall-issue-deman ds-that-could-take-years-to-meet/.

Shira Pruce é diretora de Relações Públicas e Desenvolvimento do Mulheres do Muro. Trabalhou anteriormente em prol do incremento das mudanças sociais em Israel no Centro de Apoio às Vítimas de Violência e Ataque Sexual do Negev, no Portas Abertas do Orgu lho e Tolerância de Jerusalém, na World Union for Progressive Ju daism e no Knesset. Antes de fazer aliá em 2004, concluiu o Mes trado em Estudos sobre Mulheres e Gêneros na Universidade Rut gers em New Jersey, Estados Unidos.

Traduzido do inglês por Teresa Cetin Roth.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 21
Mashab_7ya / iStockphoto.com

a s i niciativas do f undo aB raão

mohammad darawshe

Apesar de compartilharem um Estado, os israelenses judeus e árabes ainda estão divididos por seus respectivos idiomas, religião, cultura e história. As relações são relativamente pacíficas na maior parte do tempo, porém são ocasionalmente marcadas por hostilidade e erupções de violência.

De uma forma um tanto indelicada, o público de Israel foi despertado para a realidade em maio deste ano, quando se tornou pública a re cusa do maior parque de diversões de Israel, o Superland, de vender ingressos para um professor árabe que tentava organizar um passeio de final de ano com seus alunos.

Ao ligar para o escritório do Superland a fim de reservar os ingressos disseram a ele que não havia disponibilidade para a data pretendida. No entanto, desconfiado daquela informação, ele tornou a ligar, passando-se desta vez por um professor de uma escola judaica e dando um nome judeu. Não é que de re pente havia ingressos disponíveis para a data?!

Na explicação sobre o acontecimento, a direção do Superland informou que ao final do ano letivo faz reservas em dias separados para as escolas árabes e para as escolas judias. Alegou também que eles fazem isto a pedido tanto de profes sores árabes como de professores judeus.

Muito embora alguns membros do Knesset tenham se manifestado veemen temente contra este incidente, a verdade é que, infelizmente, dadas as circuns tâncias em Israel, este episódio não chega a ser surpreendente.

No cerne de muitos dos desafios domésticos de Israel encontramos a divisão societária e o desassossego interno entre as populações judia e árabe. Apesar de compartilharem um Estado, os israelenses judeus e árabes ainda estão divididos por seus respectivos idiomas, religião, cultura e história. As relações são relati vamente pacíficas na maior parte do tempo, porém são ocasionalmente marca das por hostilidade e erupções de violência. Esta divisão traz ramificações ne gativas para a sociedade israelense de modo geral e alimenta o antigo precon ceito contra o setor árabe.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 23

Muitos setores da sociedade israelense vêm reconhe cendo gradativamente a existência de discriminação insti tucionalizada contra os cidadãos árabes. Paulatinamente, várias políticas governamentais, decisões legais, relatórios da ouvidoria e da controladoria, além de comissões (por exemplo, a Comissão Orr1), passaram a tratar do assunto de políticas estatais referentes aos cidadãos árabes. Estudos, levantamentos e coletas de dados sobre este assunto reve laram que a discriminação institucionalizada contra cida dãos árabes continua a existir em um leque de campos que incluem educação, emprego, alocação de terra e habitação.

A Comissão Orr identificou que “a ação governamen tal no setor árabe caracteriza-se, sobretudo, pela negligência e pela privação” e observou que “o governo não de monstrou sensibilidade suficiente diante das necessidades do setor árabe e deixou de tomar as providências adequa das para alocar recursos estatais para aquele setor de ma neira igualitária”.

A Comissão recomendou ainda que o Estado se progra masse de modo a obter igualdade genuína no tratamento de seus cidadãos árabes: “O Estado deve iniciar, desenvol ver e operar programas que reduzam as falhas, enfatizando itens orçamentários referentes a todos os aspectos de educa ção, moradia, desenvolvimento industrial, emprego e servi ços”. Entretanto, apesar do reconhecimento das falhas e de sigualdades institucionalizadas entre judeus e árabes, muito pouco vem realmente sendo feito para corrigi-las.

Visando a correção das desigualdades na sociedade isra elense, a iniciativa do Fundo Abraão vem trabalhando des de 1989 para promover a coexistência e a igualdade entre os cidadãos judeus e árabes de Israel. Utilizamos o nosso departamento de advocacia para compreender os tópicos em toda a sua profundidade e para identificar as necessi dades mais prementes no seio da sociedade israelense no que tange a população árabe, estabelecendo iniciativas para solucionar as desigualdades.

Marie Liss O Fundo Abraão trabalha desde 1989 para promover a coexistência e a igualdade entre os cidadãos judeus e árabes de Israel.
24 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
/ iStockphoto.com

Por exemplo, a partir de uma das constatações do relatório Orr, o Fundo Abraão decidiu se envolver no que diz respeito à melhoria do relacionamento entre a polí cia de Israel e a sua população árabe. O objetivo é aumentar o alcance e a qualida de dos serviços policiais prestados aos ci dadãos árabes de Israel através da criação de diálogo e parcerias, além de equipar a polícia com as capacitações e as conscien tizações indispensáveis para servir a uma sociedade diversificada. Os objetivos fi nais desta ação são aumentar a igualdade para os cidadãos árabes e avançar no ca minho para uma sociedade coesa, segura e justa para todos os cidadãos de Israel.

Expondo, alunos e professores, uns à cultura dos outros, o programa “O Idioma como Ponte Cultural” pretende diminuir a desconfiança mútua e erradicar o preconceito que está enraizado na sociedade israelense fazendo progredir a compreensão entre judeus e árabes.

Outra iniciativa estabelecida pelo Fun do Abraão para corrigir a segregação sistemática entre as escolas árabes e judaicas chama-se “O Idioma como Pon te Cultural”. O programa consta de quatro elementos: um currículo de árabe oral chamado “Ya Salam” nas escolas ju daicas, atividades culturais árabes nas escolas judaicas, ati vidades culturais judaicas nas escolas árabes e encontros em pares de escolas entre professores e alunos judeus e árabes.

Expondo, alunos e professores, uns à cultura dos ou tros, “O Idioma como Ponte Cultural” pretende diminuir a desconfiança mútua e erradicar o preconceito que está enraizado na sociedade israelense fazendo progredir a com preensão entre judeus e árabes e tentando evitar situações como o incidente no Superland.

Além disso, para compreender os padrões de voto da comunidade árabe, realizamos uma pesquisa para desco brir porque quase 50% do setor árabe não vota. Depois de computados os resultados, descobrimos que um número muito maior de pessoas votaria se houvessem mulheres e políticos jovens entre os candidatos.

Então, o Fundo Abraão estabeleceu o programa “Shari kat Qiyadeyat” (Parceiros Para a Liderança), para tratar das causas sistemáticas e subjacentes ao limitado envolvimen to das mulheres árabes na esfera pública. O programa di rige-se às mulheres árabes de todo o espectro geográfico e político israelense e fornece a elas ferramentas de liderança às quais elas não teriam acesso de outra maneira. Assim, ao fim e ao cabo, aumenta o número de mulheres árabes ca pazes de assumir posições de liderança em processos deci

sórios locais e, quiçá, nacionais em Israel. Outra iniciativa dirigida às necessida des específicas da população feminina ára be é o projeto “Sharikat Haya”, que ofere ce trabalho a mulheres árabes e se formou para assegurar a promoção de justiça so cial e econômica, habilitando e reforçando o papel das mulheres árabes na socie dade e em casa. O projeto prevê suporte tangível e conhecimento prático para as mulheres árabes sobre trabalho e seu pa pel em potencial na sociedade, ao mes mo tempo em que as encoraja a assumi rem um papel ativo em suas comunida des. O resultado é que estas mulheres, ao se tornarem mais ativas em suas comuni dades, levam outras mulheres a se torna rem agentes modificadoras. Esta iniciativa desenvolve as capacidades de liderança em muitas mulheres árabes, pro movendo assim a igualdade entre mulheres judias e árabes e entre homens e mulheres de modo geral.

O Departamento de Advocacia e Mídia do Fundo Abraão desempenhou um papel significativo no estabele cimento de uma das mais recentes ações destinadas a criar uma sociedade israelense igualitária.

Em 2011 o Fundo Abraão identificou o acesso dos cidadãos árabes aos serviços como uma área central de ação. Esta iniciativa baseia-se em uma perspectiva com preensiva que engloba: contratar funcionários árabes para o serviço público e em agências governamentais; incrementar a visibilidade do idioma árabe; integrar ci dadãos árabes nas lideranças de instituições e organiza ções; abrir escritórios e filiais das agências governamen tais em cidades árabes e reforçar as atividades e laços de corporações, organizações e instituições nas cidades árabes. Atitudes como estas gradualmente levarão a um pa pel exponencial nas atividades de todas as organizações da sociedade civil, com o objetivo de influenciar as políticas do governo e promover a igualdade.

Através destas iniciativas, o Fundo Abraão trabalha para criar uma democracia mais forte em que todos os cidadãos sejam tratados da mesma maneira. O Fundo Abraão, que recebeu o nome do ancestral comum a judeus e árabes, pretende trazer à tona uma sociedade israelense coesa, se gura e justa, promovendo políticas baseadas em modelos

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 25

O Fundo Abraão crê em uma sociedade com respeito e reconhecimento aos direitos dos indivíduos e das comunidades.

sociais inovadores e conduzindo iniciativas de mudança social, educação pública e jurídica em larga escala.

O Fundo Abraão acredita que a construção de uma so ciedade compartilhada de inclusão e igualdade entre os ci dadãos árabes e judeus de Israel é um imperativo moral e pragmático para o Estado de Israel; uma sociedade na qual os direitos individuais, assim como o caráter político, cultural e religioso de cada comunidade, sejam reconhecidos e respeitados claramente e sem ambiguidades. É liderado em Israel por diretores co-executivos judeus e árabes e por um conselho diretor e quadro de funcionários diversifica do e totalmente integrado.

Notas

1. Nota do Tradutor: A Comissão Orr, encabeçada pelo juiz Theodore Orr, foi esta belecida pelo governo de Israel para investigar os acontecimentos de outubro de 2000, quando doze cidadãos árabes de Israel, um cidadão judeu de Israel e um re sidente da Faixa de Gaza foram mortos. O objetivo da Comissão era investigar es tes incidentes e suas causas e propor recomendações para intervenção do governo. A comissão enfatizou a necessidade urgente de que fossem tomadas medidas corre tivas imediatas e de longo prazo. A comissão apurou que os cidadãos árabes de Is rael “constituem o tópico doméstico mais sensível e importante que Israel enfren ta hoje em dia”. (traduzido do jornal Haaretz em 02/09/2003)

Mohammad Darawshe é co-diretor executivo do “Abraham Fund Ini tiatives”.

Traduzido do inglês por Teresa Setin Roth

A ssisti a uma palestra de Mohammad Da rawshe em maio deste ano, na conferên cia bianual da World Union for Progressive Ju daism em Jerusalém.

Mohammad nasceu e ainda vive numa al deia árabe na Galileia. Cursou o elementar na escola árabe de sua região, o ensino superior na Universidade Hebraica e a pós-graduação nos Estados Unidos. Segundo ele este trânsi to foi fundamental em sua visão de que as so ciedades têm que ser inclusivas e igualitárias.

Em sua palestra ele nos falou sobre os es forços para que o Estado de Israel remova a desigualdade de tratamento que ainda dis

pensa aos cidadãos árabes. “Isto é importan te principalmente para definir o caráter judaico do Estado. O judaísmo sempre se preocupou essencialmente com a dignidade do homem e o Estado de Israel tem que seguir esta dire triz para ser verdadeiramente judaico”, afirmou.

Não é muito comum ouvir isto de um cida dão árabe-israelense e logo após a palestra me aproximei e lhe pedi um texto para a nos sa Devarim. Da mesma forma gentil que trata a todos ele atendeu ao pedido sem pestanejar.

Digno de registro também foi a sua respos ta a uma excelente pergunta feita por um dos companheiros da WUPJ: “Como, nós judeus

da Dispersão, podemos ajudar para que Isra el trate os cidadãos árabes com igualdade e dignidade?”, foi a pergunta respondida aproxi madamente assim: “Continuem doando e aju dando ao Estado de Israel com todas as for mas que estiverem ao seu alcance, pois isto é importante para nós, cidadãos israelenses. Contudo preocupem-se em avaliar se as insti tuições que vocês apoiam limitam a sua assis tência aos judeus ou a estendem a todos os ci dadãos do país e pressionem as que estão no primeiro caso a mudar de atitude”.

Mohammad Darawshe é uma pessoa es pecial, dentro de uma região muito especial.

Raul Cesar Gottlieb (Diretor de Devarim) Ajlber / iStockphoto.com
26 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

Promovendo cidadania por meio da educação e formação de líderes.

www.arymax.org.br
Redchanka
/ iStockphoto.com

lod: v isões antagônicas, será P ossível a coexistência?

Com 8.000 anos de existência, Lod é a mais antiga cidade continua mente habitada de Israel. Os muçulmanos acreditam que em Lod será realizada a batalha do final dos tempos. Durante o tempo da Mishná e do Talmud a cidade era considerada o segundo mais importante centro espiritual judaico, tendo à frente apenas Jerusalém. Os romanos costu mavam referir-se à cidade de Lod como “Cidade de Deus”, que, ironicamente, para nós brasileiros, faz lembrar o filme homônimo que retrata a vida de um garoto residente da favela tentando sobreviver em meio à realidade desespe radora da pobreza e do crime. Hoje, Lod é mais conhecida em Israel como a cidade do crime, do fracasso e da falta de esperança, sendo um reflexo da incapacidade da gestão administrativa e urbana.

Lod é uma cidade mista: são 75.000 habitantes, sendo 69,2% judeus e 23,6% árabes (22,4% muçulmanos e 1,1% cristãos). A maioria dos residen tes árabes vive nos bairros do norte da cidade e a maioria dos judeus nos bair ros do sul.

A cidade, que se encontra a 12 minutos de viagem de Tel Aviv, conheceu nos últimos 15 anos oito prefeitos diferentes. Devido aos problemas de desintegração social, pobreza e discriminação, a prefeitura declarou falência e o go verno teve que nomear uma comissão para gerir a cidade.

Em fevereiro de 2011, um raio de esperança surgiu em Lod, quando Meir Nitzan, o mitológico prefeito da cidade de Rishon Letzion por 25 anos, con cordou em chefiar o comitê responsável pela prefeitura de Lod. Aos 79 anos,

Lod representa a periferia cultural. A cidade é o reflexo do racismo que existe em Israel entre judeus e árabes. A cidade vive em constante conflito, sendo que a questão árabe-judaica paira no ar todo o tempo. É, certamente, um microcosmo da nossa realidade.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 29

Meir recebeu a quase impossível incumbência de salvar Lod.

O aclamado documentário, “Lod, En tre o Desespero e a Esperança”, do canal 8, acompanhou a tentativa de reabilitar a cidade por Meir Nitzan durante dois anos. A série foi reconhecida como uma das mais importantes feitas em Israel nos últimos anos e comparada à série de tele visão norte-americana “The Wire’, criada pelo escritor e repórter policial David Si mon e transmitida pela HBO nos Esta dos Unidos.

A série de seis episódios de 50 minu tos cada foi criada por Eyal Balahsan e Uri Rosenwaks e nos levou a conhecer Lod através de fascinantes personagens (ou he róis do cotidiano) em sua luta diária pela sobrevivência.

Ela começa com o assassinato da espo sa de Abu – Gariba –, um dos chefes dos dois clãs (hamulas) árabes beduínos da ci dade de Lod, que se encontram em constante conflito san guinário. Meir Nitzan, o novo prefeito da cidade, chega ao local do assassinato que se deu a 30 metros da estação poli cial e é confrontado com os gritos da população local que reclama da corrupção policial e da insegurança. A partir daí fica impossível parar de acompanhar o seriado que, di ferentemente de “The Wire”, retrata a realidade nua e crua onde ninguém está representando.

O expectador está convidado a se identificar com um leque amplo de opiniões, desde a extrema direita sionista israelense até os antissionistas e a favor da resistência violenta. São todos seres humanos. O principal obstáculo para resolver os problemas é levar estas pessoas ao diálogo. E às vezes tenho a sensação de que isto é possível.

ma emocionante o mosaico cultural da cidade e a constante tensão causada pela coexistência. Citando a crítica israelense do jornal Maariv (Elkana Shor). “A série aborda um assunto familiar, mas com o tratamento certo, torna-se brasa ardente.” Entrevistei Eyal Balahsan, um dos dois criadores da série. Eyal também é o responsável pela pesquisa dos perso nagens e pela produção do documentário e aqui nos conta um pouco dos dois anos de filmagem.

Devarim – Seria Lod um microcosmo da complexidade do conflito árabe-judeu em Israel?

Acompanhamos de perto a vida dos cidadãos: as hamu las, a Juliet Cohen e Mor, seu filho adolescente, que largou a escola e está prestes a se tornar um marginal, ao Sheikh da Grande Mesquita de Lod incitando o povo contra a po lícia israelense, a Aaron Atias, o líder do grupo de jovens ortodoxos sionistas batalhando para reassentar famílias ju dias nos bairros que hoje são de maioria árabe, ao jovem chefe da polícia de Lod, Doron Turgeman, lutando para controlar o caos da cidade, a Faten Al-Zeinati, mulher ára be ativista social lutando pela integração entre árabes e ju deus na cidade, a garota judia de origem russa que se apai xona por um jovem árabe, e muitos outros.

Todos os personagens, verdadeiros cidadãos de carne e osso, vão expondo com tremenda sinceridade, diante das câmeras, seus medos, raivas e sonhos, retratando de for

Eyal Balahsan – Lod é uma cidade mista, como é Akko ou Haifa, mas, dife rentemente destas cidades, Lod não se si tua geograficamente na periferia. Ela é pe riférica no sentido cultural. Lod, com sua carga de preconceito e dificuldades, tam bém representa Israel. Estou sendo cauteloso com minhas palavras, mas esta é a questão principal, Lod representa a periferia cultural. A cidade é o reflexo do racismo que exis te em Israel entre judeus e árabes. A cidade vive em cons tante conflito, sendo que a questão árabe-judaica paira no ar todo o tempo. É, certamente, um microcosmo da nos sa realidade. É como o problema israelense-palestino; cada personagem na série apresenta a sua verdadeira face, sem maquiagem. Caso Atias (lider do grupo ortodoxo sionista), por exemplo, e o Sheikh (Imã da mesquita), se sentassem para dialogar, resolveriam uma série de problemas, porém são pessoas de pensamento radical que se recusam a dialo gar. Só eles podem resolver o conflito, pois representam a autoridade e a liderança.

Devarim – O que o motivou a fazer um documentário sobre Lod?

Eyal Balahsan – Os jornais noticiaram uma série de assassinatos em Lod, 11 ao todo, e Bibi (Netanyahu) foi visitar a cidade, comprometendo-se a investir recur sos nela. Meu parceiro Uri e eu achamos que seria inte ressante ver o que estava acontecendo por lá. Quando chegamos, ficamos pasmos com a negligência municipal

30 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

e administrativa numa cidade que se encontra a 12 mi nutos de Tel Aviv!

Foi surpreendente ver como a cidade carece de servi ços básicos, infraestrutura, instalações, escolas e educação informal. São 7.000 crianças em risco em uma cidade de 70.000 habitantes. É impossível não sentir a tensão pro duzida pela complexidade cultural. A energia das pesso as em Lod é intensa, porém se orienta na direção errada.

Existe um documentário americano chamado “Brick City” que é uma série que acompanha o prefeito da cida de de Newark, em New Jersey, nos Estados Unidos, lutan do para acabar com quase meio século de violência, po breza e corrupção na cidade. Achamos que com a entra da de Meir Nitzan em Lod estaria ocorrendo um processo semelhante à cidade de Newark e resolvemos documen tar este processo.

Devarim – Logo no início do documentário somos teste munhas do assassinato de um dos integrantes do clã ára

be beduíno, dando a impressão de que o documentário seria sobre o conflito sanguinário destas duas famílias, mas em seguida vão acontecendo outras coisas, como, por exemplo, o retorno de Gilad Shalit e do prisioneiro árabe a Lod, além das manifestações populares contra o custo de vida em Israel. O objetivo inicial do documentário era focar apenas nos assassinatos?

Eyal Balahsan – Não planejamos nada. Sabíamos que Meir Nitzan seria uma figura central e resolvemos acom panhá-lo. Mas as coisas foram acontecendo em Israel e em Lod e nós estávamos lá documentando tudo.

A cidade é um microcosmo da realidade israelense. Sendo assim, a libertação de Gilad Shalit e, paralelamen te, a do prisioneiro árabe que retorna à sua família em Lod é um exemplo de como o conflito árabe israelense está o tempo todo abaixo da superfície e pairando no ar. Vemos como o nacional e o regional estão intrinsicamente ligados. Em Lod, diferentemente de Tel Aviv, não tem como fingir que não se vê, a realidade está na nossa cara.

Caracterdesign
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 31
/ iStockphoto.com

Devarim – Quando Gilad Shalit foi libertado, eu estava grudada em frente à televisão acompanhando com gran de emoção o encontro dele com sua família. No docu mentário assistimos a cena dramática em que a senhora árabe esperava no mesmo dia o retorno de seu filho após 28 anos na prisão israelense como parte do acordo de troca de prisioneiros. Não foi uma cena fácil de digerir.

Eyal Balahsan – Sim, tudo se interliga. Por exemplo: no mesmo dia às cinco da manhã eu estava lá com a famí lia árabe e tudo acontecendo ao mesmo tempo – minha es posa me enviando mensagens – “Gilad chegou ao Egito”, “Gilad deu um telefonema” –; meu coração batia forte. Foi um dia extremamente emocional. Vejo a mãe do pri sioneiro árabe chorando de emoção à espera de seu filho. O retorno de Gilad Shalit foi um evento dramático acompanhado por toda a sociedade israelense que se emocionou coletivamente. Somos parte dela e, ao mesmo tempo, de repente eu estava lá vendo a mãe árabe abraçando o filho prisioneiro de Israel que volta à sua casa após 28 anos. Não pude ficar indiferente ao sofrimento dela. Então Atias (o líder sionista ortodoxo) aparece e diz: “Mas você é um ter

rorista, não vamos nos esquecer disso”. Aquele prisionei ro tentou matar soldados com uma granada que não ex plodiu e sua intenção de matar era clara. Por outro lado, você acha que um homem que tentou matar soldados e não conseguiu deve cumprir pena de 28 anos na prisão? Se um homem atirar uma granada em alguém na rua e ela não explodir talvez ele cumpra pena de sete anos, no máximo, não é? A questão da justiça fica complicada. Por outro lado, eu sou judeu, me identifico com Gilad Shalit e me identifico também com Atias, acho que há verdade em suas palavras. No entanto, passaram-se 28 anos... ele pagou seu preço e, felizmente, a granada não explodiu. O governo israelense decidiu libertá-lo, sua mãe não é cul pada por isso. Fui testemunha da alegria, dele sendo car regado como um herói pela família e pelos amigos e, para complicar mais ainda, vemos ele agradecendo a resistência contra Israel por sua libertação. Foi complicado me man ter imparcial e continuar normalmente com meu trabalho.

Devarim – Faten consegue passar esse sentimento de forma muito clara quando ela diz com lágrimas nos olhos

Chris Hepburn
/ iStockphoto.com

que está feliz com o retorno de Gilad Shalit, mas que não pode mostrar esse sentimento de felicidade dentro de sua própria comunidade.

Eyal Balahsan – Definitivamente, o conflito árabe judeu pode ser visto pela maneira que Faten o entende: ela é uma árabe orgulhosa de sua identidade assim como eu sou orgulhoso da minha iden tidade judaica. Isso faz com que a gen te sinta respeito por ela, pois ela entende que vivemos em um mosaico cultural e devemos nos identificar com a dor, a tris teza e a felicidade do outro para poder mos coexistir. Em minha opinião, a identidade judaica se fortalece assim, enten dendo as diferenças e aceitando-as, assim como somos diferentes em outras partes do mundo. Nossa abordagem no documentário é bem aberta, apresentamos a extrema-direita e o Movimento Is lâmico do Norte, que é considerado pelos israelenses, pa ralelo ao Hamas, um movimento radical. Nós mostramos o seu lado radical extremista e também o lado prático do movimento e trazemos também a sua esperança. Apresen tamos as questões de forma equilibrada. O expectador está convidado a se identificar com um leque amplo de opini ões, desde a extrema direita sionista israelense até os an tissionistas e a favor da resistência violenta. São todos se res humanos. O principal obstáculo para resolver os problemas é levar estas pessoas ao diálogo. E às vezes tenho a sensação de que isto é possível.

Enquanto o Estado não se manifestar e não apresentar um planejamento de inserção desta população, enquanto não houver investimento, nada vai mudar. Nesse aspecto a realidade é parecida com a das favelas no Brasil. A negligência do Estado perpetua a pobreza e o crime.

Devarim – O fato de vocês terem filma do influenciou os acontecimentos?

Eyal Balahsan – Não, os proble mas estavam amontoados sobre a mesa de Meir Nitzan. A maioria da popula ção judaica, por exemplo, não sabia que estávamos filmando o polêmico Sheikh da Grande Mesquita de Lod; ele aparece muito no documentário, foi uma grande surpresa para todos. Mas não posso dizer ao certo se as filmagens impulsionaram processos que já estavam em andamento.

Devarim – Você foi o responsável pela pesquisa dos personagens. Como se dá esse processo?

Eyal Balahsan – O documentário baseia-se nos personagens. O objetivo era conhecer o mosaico urbano, explorar e entender quem é quem, eu quis entender quem é líder de opinião. Por exemplo, o Sheikh da Grande Mesquita é uma pessoa muito influente, o Movimento Islâmico do Norte é um fator significativo para a população árabe. No início ele se re cusou a ser entrevistado, mas achamos que ele deveria ser entrevistado por ser uma figura central. Tive que conven cê-lo. No início ele surgia acompanhado de mais dez pes soas até que depois de muitos encontros finalmente con cordou em nos levar para sua casa. Ele viu o produto fi nal. Os árabes não acreditavam que exporíamos a realida de de forma equilibrada e sensata. Queríamos trazer a voz de cada um e acho que conseguimos.

Devarim – Conforme os capítulos vão se desenrolando tem-se a sensação de que realmente é possível, o docu mentário nos faz resgatar a esperança perdida.

Eyal Balahsan – Atias e Faten são a esperança, ouvi dizer que hoje em dia Atias a apoia.

Devarim – Vemos isso na última cena.

Eyal Balahsan – Sim, a cena no centro comunitário. No início filmamos o centro comunitário deserto, sem ati vidade alguma, nos surpreendeu o fato da cidade não ter um centro comunitário, que é tão comum nas outras cidades de Israel.

Devarim – Como você adquiriu a confiança das hamu las em meio aos assassinatos?

Eyal Balahsan – Eu só consigo “vender o peixe” quando acredito nele. Eu acompanhava tudo o tempo todo; a violência de perto, essa proximidade constante com as ha mulas fez com que eu soubesse de muita coisa. Nós sem pre fomos sinceros com eles, mesmo que nem sempre es tivessem satisfeitos com isso. Quando me pediam para não relatar algo, eu não relatava. Por exemplo, uma vez me de ram uma dica, me falaram para estar com uma das famí lias num tal dia porque poderia acontecer algo. Cheguei lá e a polícia apareceu. Então comecei a filmá-los. O policial quis saber o que eu estava fazendo lá e fiz a mesma pergun

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 33

ta a ele (risos). Toda informação que recebia dos personagens era estritamente confidencial. Sou obrigado a prote ger os entrevistados e as fontes, a minha única obrigação de acordo com a lei é avisar a polícia caso saiba de um as sassinato. Talvez até tenhamos contribuído para a “sulkha” (processo de reconciliação) que se dá durante o documen tário. Porque toda vez que um dos integrantes das hamu las me perguntava o que o outro lado pensava, eu dizia que a dor era a mesma.

Devarim – O processo todo levou dois anos de investi gação, certo? Alguma vez você sentiu medo?

Eyal Balahsan – Sim, foram dois anos de trabalho diário, centenas de horas de câmera. Nós estávamos pre parados para qualquer evento, os menos dramáticos também, o dia a dia. Filmamos as reuniões semanais de Meir Nitzan na Prefeitura com a polícia e uma grande quantida de de material. O maior elogio que recebi foi quando hou ve um evento onde era proibida a presença da imprensa. Nós chegamos com nossas câmeras e quando alguém per guntou o que estávamos fazendo lá os responsáveis respon deram que o Canal 8 não figurava como imprensa (risos).

Não senti medo, eles confiavam em mim, pois fui mui to direto com eles. Durante os dois anos de filmagem de senvolvemos uma relação de confiança. E hoje nós ainda estamos lá. Esta é a única maneira da câmera captar a pro fundidade do sofrimento dos cidadãos. Mostramos a vida como ela é, não ocultamos nada tanto do lado bom quan to do lado ruim. E ao final todos ficaram satisfeitos com o resultado.

Devarim – O documentário mostra o bairro com as ruas de terra, sem iluminação ou esgoto, o lixo amontoado, com as casas construídas sem permissão onde as duas ha mulas em guerra uma com a outra controlam e afetam o cotidiano da população. Isso me fez lembrar as favelas no Rio de Janeiro.

Eyal Balahsan – Aqui também tem o fator da cultu ra beduína, a cultura de tribos, com seus códigos de hon ra. Nesse sentido eles são clãs e não gangues. Vemos boas pessoas que se perdem no caminho. É claro que a pobre za leva-os a este lugar. Acho que isso é parte da negligên cia do governo. As pessoas vivendo na pobreza desorganizada que se perpetua. Não se estabeleceu uma política de regulamentação destas casas. A população que vive lá quer

se sentir parte da sociedade, suas famílias vão crescendo e eles não têm onde construir. O governo não tem planos de construção. Assim se desenvolve uma cultura de aliena ção, o pensamento geral é “se eu não faço parte da socie dade então eu não preciso pagar impostos”, criando-se as sim um antagonismo para com o Estado.

Enquanto o Estado não se manifestar e não apresentar um planejamento de inserção desta população, enquanto não houver investimento, nada vai mudar. Nesse aspecto a realidade é parecida com a das favelas no Brasil. A negli gência do Estado perpetua a pobreza e o crime. Estas pes soas não têm uma verdadeira chance de se inserir na socie dade e em minha opinião só a educação pode alcançar isso. Educação é a base de tudo; neste sentido, a nova escola de segundo grau que foi construída agora no bairro mais po bre de Lod, o bairro “Rakevet”, pode ser vista como um símbolo de mudança. O objetivo é que as crianças árabes possam, finalmente, terminar a escola e fiquem mais afas tadas do crime e das drogas.

Devarim – As eleições para prefeito em Lod acontecerão em mais alguns dias. Vocês pretendem gravar mais capítulos?

Eyal Balahsan – Sim, o Canal 8 tomou uma decisão sem precedentes e decidiu acompanhar a cidade de Lod por mais de uma temporada; normalmente não se faz isso em séries de documentário e nós estaremos lá para ver. Va mos acompanhar as eleições e tudo mais. Serão pelo me nos mais três episódios que serão transmitidos em 2015. Será que ainda há esperança? Vamos ver. Poder fazer isso é um grande privilégio.

Devarim – Houve outros casos de assassinato desde então?

Eyal Balahsan – A tensão é constante por lá, não houve assassinatos, mas a bomba pode explodir a qualquer momento.

Devarim – A sua história pessoal está ligada a Lod de al guma forma?

Eyal Balahsan – Cresci na cidade de Bnei Brak e na minha escola a maioria dos alunos era de Pardes Katz, um bairro pobre e carente de Bnei Brak; 80% das crianças era de Pardes Katz e o restante do meu bairro, que era consi derado um bairro “bom”. Além disso, minha mãe era pro

34 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

fessora no colégio, eu era o melhor aluno da sala e era vis to como o branquela, o “ashkenazi”. Embora seja somen te metade ashkenazi (minha mãe é proveniente da Polônia e meu pai de Trípoli, na Líbia), eu era alvo de violência e aprendi a ser violento também até que mesmo eu perdia o controle. Quando passei para outra escola, não entendi por que não havia violência lá, pois essa era a minha realidade.

Quando você me perguntou se não senti medo, nes se sentido, não senti medo. A violência não é uma coisa nova para mim e eu sempre soube me proteger. Essa adre nalina faz eu me sentir vivo. Além disso, basicamente sem pre estive em conflito com o meu lado “ashkenazi” e meu lado “mizrachi”. Entre os tripolitanos eu sou “o ashkenazi” e entre os ashkenazis eu sou “o tripolitano”. Amo isso, essa coisa de pertencer e não pertencer ao mesmo tempo. É um sentimento muito intenso, minha identidade é com plexa; bem, então me sinto confortável com a complexi dade e a diferença.

Na minha infância, com minha avó ashkenazi, sen távamos à mesa posta com garfo e faca e com minha avó de Tripoli, eu me sentava com as mulheres no quarto en quanto os homens comiam no chão da varanda. Sinto-me em casa em Lod, há algo desconfortavelmente confortá vel. Tenho noção que estou me colocando em risco, mas tenho confiança.

Entrevista conduzida em hebraico, traduzida para o português e edi tada por Deborah B. Erlich, mestre em Assistência Social Clínica e Terapia de Grupo pela Universidade Bar-Ilan. Deborah vive em Isra el desde 1992 e atualmente reside em Tel Aviv.

Nota do Editor: O documentário acabou de ganhar o prêmio de me lhor série para televisão do “Fórum de Documentaristas” de Israel e Eyal Balahsan ganhou o prêmio de melhor pesquisador de docu mentários.

Jacek Sopotnicki
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 35
/ iStockphoto.com
Dblight / iStockphoto.com

d iálogo: do des P rezo ao a P reço, a cultura do encontro

Nostra Aetate parte do princípio de que todos os seres humanos têm a mesma origem e põe fim ao dogma segundo o qual “fora da Igreja não há salvação”. Reconhece a origem judaica do Cristianismo e aconselha o conhecimento mútuo através do diálogo e do estudo das fontes comuns.

“Estamos hoje conscientes de que, no decorrer de muitos séculos, nossos olhos se achavam tão cegos que não éramos capazes de ver a beleza de teu Povo Eleito, nem de reconhecer a Tua face nos traços de nossos irmãos privilegiados. A marca de Caim está inscrita em nossa fronte... Perdoa-nos a maldição que atribuímos injustamente em Teu nome aos judeus. Perdoa-nos, porque não sabíamos o que fazíamos.”

Esta oração, que o Papa João XXIII teria proferido pouco antes de mor rer em junho de 1963, é considerada sua carta-testamento, em que reafirma sua vontade de o Concílio Vaticano II erigir novas bases para as relações da Igreja com o Judaísmo e com as religiões não cristãs.

Cinquenta anos mais tarde, o trono de São Pedro é ocupado por um Sumo Pontífice que não só acredita nesta frase, mas que a põe em prática. Francisco é o primeiro Papa a ter vivido intimamente a experiência do diálogo inter-religioso.

Seus antecessores tiveram momentos impactantes: a primeira visita a uma si nagoga – João Paulo II, ao Grande Templo de Roma, em 13 de abril de 1986 –; os Encontros de Assis – João Paulo II reuniu mais de 200 representantes de diversas tradições religiosas em 27 de outubro de 1986 e, 25 anos mais tarde, Ben to XVI organizou a Jornada da Paz com 176 líderes religiosos –; viagens a Israel – Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI fizeram visitas históricas à Terra Santa.

Por mais significativos que tenham sido tais gestos, foram ações isoladas. Já Jorge Maria Bergoglio tem três décadas de intensa vivência dialogal. Acompa

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 37

nhou celebrações judaicas – Selichot, Rosh Hashaná, Cha nuká, Pessach, Iom Hashoá. Dirigiu serviço de recorda ção da Kristallnacht na Catedral Metropolitana de Buenos Aires. Encabeçou petição exigindo punição dos responsáveis pelo atentado à Amia (1995). No Congresso Judaico Latino-Americano teve vários encontros com jovens ju deus do programa Novas Gerações. Presidiu a Comissão de Diálogo Inter-Religioso (Codin). Manteve com o Ra bino Abraham Skorka um programa de televisão, Bíblia, Diálogo Vigente, e, juntos, publicaram o livro Sobre o Céu e a Terra, em que abordam, num diálogo franco e aberto, as questões centrais das duas religiões.

Antes de sua posse, Francisco deu uma demonstra ção clara de um novo tempo: convidou o rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, para a cerimônia, entregan do-lhe ainda uma carta em que afirma desejar “vivamen te contribuir com o progresso que as relações entre judeus e católicos conheceram a partir do Concílio Vaticano II, com espírito de renovada colaboração”.

Em que ponto estamos?

Estamos encerrando o ciclo de celebrações do cinquen tenário de convocação do Concílio e nos preparando para,

em 2015, festejar meio século de vigência de Nostra Aetate. Sabemos hoje que a resistência episcopal foi ferrenha e que, não fosse o falecimento de João XXIII, talvez não se conseguisse chegar a um acordo. Mas a vontade expressa de um papa morto não podia ser contrariada e o docu mento conciliar foi aprovado.

Surgem então perguntas prementes: Aonde vamos? Quão duradouro é o caminho percorrido? Cinquenta anos foram capazes de reverter os danos provocados por dois mil anos de catequese cristã?

Os avanços são inegáveis, a começar pela Declaração Nostra Aetate. O opúsculo de apenas cinco páginas dedica o 4° item à “Religião Judaica” e, em 54 linhas, impõe uma guinada radical na percepção dos judeus.

Nostra Aetate parte do princípio de que todos os seres humanos têm a mesma origem e põe fim ao dogma segun do o qual “fora da Igreja não há salvação”. Reconhece a ori gem judaica do Cristianismo e aconselha o conhecimento mútuo através do diálogo e do estudo das fontes comuns.

O avanço mais corajoso da Declaração é a elimina ção da acusação de deicídio, que justificou a matança in discriminada de populações judaicas ao longo da histó ria. Recomenda explicitamente que os judeus não sejam

Brad Wieland
38 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
/ iStockphoto.com

mais apresentados como malditos, e afirma que a Igreja “reprova quaisquer perse guições contra quaisquer homens e deplo ra todos os ódios e manifestações de antis semitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu”. Declara-se contra “toda e qualquer discriminação ou violência pra ticada por motivos de raça ou cor, condi ção ou religião”.

O Diálogo Abrahâmico, que abarca Judaísmo, Cristianismo e Islã, ganhou substância depois do 11 de setembro de 2001, num esforço conjunto de combater a islamofobia.

Diante de afirmações tão explícitas, seria esperado que todos os 1,2 bilhão de católicos do mundo sepultassem definitivamente antigos preconceitos. No entanto, pesquisas revelam que a maio ria dos cristãos ignora que Jesus era judeu ou que textos bí blicos de uso corrente, como os salmos, são judaicos. Frequentemente, a Comissão do Diálogo recebe queixas de homilias proferidas por padres que repetem acusações mi lenares contra os judeus. Tal despreparo é imediatamente levado ao conhecimento da Arquidiocese para que efetue um trabalho de conscientização do pároco.

Não ignoramos quão difícil é mexer nos textos reve lados, embora João XXIII tenha eliminado as Imprecações dos textos pascais ofensivas aos judeus. Mas é fundamental orientar os padres para que contextualizem suas falas quan do as alusões são pejorativas. Vários titulares de paróquias já o fazem rotineiramente. Mas são poucos.

Encontros de Escolas Católicas e Judaicas

No campo da educação católica, os progressos perma necem tímidos. Reunidos na ARI para o I Encontro de Es colas Católicas e Judaicas, com a presença de diretores dos quatro colégios confessionais judaicos do Rio e de 14 ins tituições católicas das mais conceituadas, os dirigentes re conheceram que, embora cientes da importância de Nos tra Aetate, nunca a haviam lido. Decidiram então promo ver o amplo estudo da Declaração, não só entre o corpo docente, mas também em salas de aula e com os funcionários dos diversos setores.

Não sabemos se a decisão foi apenas tópica ou se con tinua sendo aplicada. O fato é que tais encontros – que privilegiavam diretores, coordenadores e professores – fo ram realizados semestralmente de 2002 a 2006. A partir de então, e por iniciativa dos próprios alunos que quise ram assumir o protagonismo, acabaram sendo substituí dos por seminários, ações sociais empreendidas pelos jo

vens em comunidades carentes e por pro gramas como “Vizinhos de Portas Aber tas”, que reúne regularmente alunos do Santo Inácio e do A. Liessen Sholem Aleichem de Botafogo. Os avanços foram tan tos que, este ano, pela primeira vez, alu nos do colégio católico foram para a Mar cha da Vida. Em 2014, o projeto deverá ser ampliado.

Outras questões ressurgem de tempos em tempos para emperrar a caminhada e nos lembrar que a fluidez do diálogo depende de constan tes acertos de rotas. Entre eles, a canonização de Pio XII, situação controversa face à sua atuação durante o Nazis mo. A falta de declarações contundentes contra as perse guições; a omissão em fornecer diretrizes claras para os católicos visando proteger e salvar vidas, e até a simpa tia para com Hitler e seu regime são alguns dos argumentos contrários à sua santificação. Por outro lado, correntes da Igreja garantem que ele teria lutado nos bastidores, sal vando mais gente do que se assumisse abertamente seu re púdio à ação hitlerista. Não obstante os prós ou contras, a grande pergunta é se o Vaticano arquivará definitivamen te o projeto. O anúncio da canonização dos papas João XXIII e João Paulo II, posteriores a Pio XII, traz esperan ças neste sentido.

O Caso Finally, da França, descortina outro drama: o destino de milhares de crianças judias entregues por seus pais a instituições ou famílias católicas. A grande maioria delas nunca foi devolvida a seus parentes e nem sequer sabe de sua origem. As lideranças judaicas esperam que o Papa recomende aos arquivos paroquiais que revelem os nomes de crianças e jovens batizados durante a II Guerra Mun dial de modo a permitir o conhecimento de sua ascendên cia. Na mesma direção, espera-se a abertura dos arquivos do Vaticano para trazer luz à ação da Igreja nos seus mo mentos mais obscuros.

E no Brasil, como estamos?

Várias iniciativas surgiram no século XX. A primeira foi a Fraternidade Cristão-Judaica, fundada na França pelo historiador Jules Isaac que inspirou o Papa João XXIII a combater as raízes cristãs do antissemitismo. No Rio, foi constituída em solenidade na ARI pelo Rabino Henrique Lemlez’l e pela Irmã Dieudonné, da Ordem de Sion, as

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 39

duas instituições-pilares da Fraternidade. As reuniões regulares, desde 1952, se re produzem até hoje, revertendo em ações práticas como os encontros de professores municipais de ensino religioso, que reu niam na ARI, no Dia do Professor, cerca de 200 docentes vindos de todo o Esta do do Rio, seminários anuais, a constru ção de suká na PUC ou a revitalização da Biblioteca do Diálogo.

A Comissão Nacional de Diálogo Re ligioso Católico Judaico (DCJ), criada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1981, com sede em São Paulo, é dirigi da por um representante de cada comunidade. Atualmente, em nível nacional, são o Cônego José Bizon, da Casa da Reconciliação, e o Rabino Michel Schlessinger, da Con gregação Israelita Paulista – CIP.

Quem está no Diálogo sabe que as situações mais delicadas podem ser contornadas quando enfrentadas com sinceridade e com o desejo de priorizar aquilo que nos une ao invés do que o que nos separa.

a ação permanente do Congresso Judaico Mundial, American Jewish Committee, B’neiBrith, Anti-Defamation League. No campo regional, o Congresso Judaico La tino-americano e, no nacional, a Conib.

Instalado na ARI sob a direção do Rabino Rober to Graetz, o DCJ do Rio conta com a liderança religiosa de Padre Jesus Hortal, ex-Reitor da PUC-RJ, e dos Rabi nos da ARI, Sérgio Margulies e Dario Bialer. Mas em am bas as comunidades as lideranças laicas desempenham pa pel importante, principalmente na organização de semi nários, reuniões mensais e encontros regulares com jovens do ensino médio e universitário. A destacar a ação de Ra fael Azamor, que produziu um livro didático sobre o Diá logo Inter-religioso para seus alunos do Liessen; o projeto Co-Exist, apresentado pelos jovens do Hillel em espaços diversos; as respostas de Jeanette Erlich a perguntas sobre Judaísmo no site Amai-vos, e do veterano Leon Mayer, da B’nei Brit, cuja insistência impulsionou a recém-fundada Juventude Inter-religiosa do Rio de Janeiro – JIRJ –, que congrega, neste primeiro momento, jovens judeus, católi cos e muçulmanos.

No histórico da Fraternidade e do DCJ não podemos deixar de mencionar (que nos desculpem os não citados por falta de espaço!) nomes como os paulistas Rabino Fritz Pinkus, da CIP, Hugo Schlesinger e Padre Porto – autores de numerosas obras sobre o diálogo –; Rabino Henry So bel, que projetou o diálogo em nível nacional. No Rio, Ra bino Lemle, que já praticava o diálogo no seu dia a dia –não raras são as imagens dele ao lado do presidente Juscelino Kubitschek e de D. Helder Câmara –, ou o Rabino Ale jandro Lielenthal. No plano internacional, cabe lembrar

O Diálogo Abrahâmico, que abar ca Judaísmo, Cristianismo e Islã, ganhou substância depois do 11 de setembro de 2001, num esforço conjunto de comba ter a islamofobia. Quando jovens muçulmanos foram convidados a participar dos nossos seminários, surgiram receios de confrontos ou hostilidades que na prática não se verificaram. Pois quem está no Diálogo sabe que as situações mais delicadas podem ser contornadas quando enfrentadas com sinceridade e com o desejo de priorizar aquilo que nos une ao invés do que o que nos separa. Sin tomática deste entendimento foi a postura do Sheik Abdo, na primeira vez que participou de celebração inter-religio sa na ARI, juntamente com rabinos, padres e o Cardeal D. Eusébio Scheid. Ele pediu, antes de entrar na sinagoga, permissão para fazer suas abluções, numa demonstra ção de respeito ao adentrar em local sagrado.

Finalmente, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) foi criada em 2007 por umbandistas e can domblecistas, em resposta a ataques e depredações cons tantes. Solidária na luta contra todas as formas de precon ceito e discriminação religiosa, a ARI, que já era fundadora do Diálogo Interétnico (judeus, afrodescendentes, ciganos e indígenas), aderiu ao movimento e atraiu os demais par ceiros. Hoje, a CCIR conta com a adesão de praticamente todo o espectro religioso que compõe a diversidade brasi leira – católicos, protestantes, judeus e muçulmanos, can domblecistas e umbandistas, hare krishnas e budistas, es píritas, wiccanos, ciganos, ateus e agnósticos. A ARI, mais uma vez, deu provas de que os princípios do Judaísmo Li beral de pluralismo e inclusão se estendem a todos. Convi dou para a abertura do seminário do DCJ, na sinagoga, representantes de Candomblé, Umbanda e Espiritismo jun tamente com o recém-empossado Arcebispo do Rio de Ja neiro, D. Orani Tempesta, rabinos, padres e sheiks.

Aonde vamos?

O milagre brasileiro do respeito à diversidade precisa ganhar visibilidade e tornar-se exemplo para o mundo.

40 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

Não há dúvidas de que o avanço e a popularização dos direitos humanos e do diálogo trazem novo alento àqueles que vêm se dedicando ao trabalho de desconstrução de preconceitos milenares. Da mesma forma que Nostra Aetate revolucionou as relações da Igreja com o Judaís mo, um encontro internacional convocado pelo Papa sa cramentaria a ampliação do diálogo inter-religioso para além das religiões abrahâmicas, abraçando os diversos credos que formam o riquíssimo mosaico religioso e es piritual da humanidade.

Enquanto em todos esses anos de diálogo seguimos o lema de Jules Isaac, “Transformar a Cultura do Desprezo em Cultura do Apreço”, o Papa Francisco introduz a Cul tura do Encontro. De fato, o Desprezo só pode se trans formar em Apreço por meio do Encontro, quando o com partilhar experiências comuns – rituais, teológicas ou do simples dia a dia – nos mostra como o outro age, pensa, o que sente. No abraço do encontro, a condenação de to das as formas de discriminação e a esperança de um mun do melhor, sem ódios nem preconceitos.

Pois nosso sonho vai além da profecia de Isaias (Is

65:25), quando não apenas “o lobo e o cordeiro se ali mentarão juntos, e o leão comerá palha como o gado”, ou além do discurso de Martin Luther King – “todas as crianças de Deus, homens pretos e brancos, judeus e gen tios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar”. Nossa esperança é que homens e mulheres, independente mente de seu credo, sejam capazes de falar sobre suas visões de mundo, sobre as perguntas inerentes ao ser e o não ser, com paixão, mas sem exaltação, porque teremos aprendido todos que as perguntas para os enigmas da condição hu mana – o que é a vida? Qual o sentido da morte e a finali dade da vida? De onde provém o sofrimento? Por que ad vém a gente boa? E a felicidade, o que é? Qual o caminho para alcançá-la? O que acontece depois da morte? Qual o mistério que envolve todas as coisas, vivas ou inertes? De onde viemos? Para onde vamos? – são iguais para todos e continuam sem resposta.

Diane Kuperman é jornalista, PhD em Comunicação Social, con selheira da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro-ARI e ativista dos diálogos inter-religiosos.

Devonyu / iStockphoto.com
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 41

a s tendências atuais do discurso antijudaico na a mérica l atina

O antissemitismo “reciclado”

Em tempos em que os valores democráticos se en contram profundamente arraigados na maioria das sociedades ocidentais, o discurso antissemita tradicional, ligado a argumentações religiosas, medievais, racistas, pseudocientíficas, financeiras, visões conspirativas, entre outras, costuma provocar rejeição. A linguagem antijudaica assim como o discurso do ódio em geral se tornaram “politicamente incorretos”.

Contudo, frequentemente esse mesmo discurso de ódio é adaptado para ter como eixo de seus ataques o Es tado de Israel ou o movimento sionista. Este “novo” antis semitismo ou, como preferimos qualificá-lo, antissemitis mo “renovado” ou “reciclado”, retoma eixos daquele dis curso antijudaico tradicional, o adapta e expressa, tendo o centro dos seus argumentos na situação no Oriente Médio.

Assim, o “deicídio” já não está mais tão vinculado à an tiga acusação contra os judeus em relação à morte de Jesus, mas com o “martírio do povo palestino pelas mãos de Is rael”. Algo semelhante ocorre em relação às acusações so bre o “crime ritual”. No lugar do sangue de crianças cris tãs, os judeus aparecem hoje como monstros sedentos do sangue de crianças palestinas.

Outra manifestação deste discurso de ódio são as repre sentações de soldados israelenses com simbologia nazista, a negação ou distorção do Holocausto e a recriação do discurso conspirativo, no estilo dos “Protocolos dos Sábios de Sion”, em referência aos supostos “lobbies” sionistas que controlam o poder político e as finanças internacionais.

O objetivo deste discurso antissemita “renovado” tem a finalidade de questionar a legitimidade do Estado de Is rael (seu direito de existir) e pretende caracterizá-lo como um Estado que pratica o “apartheid” e enquanto tal mere ceria ser combatido e desmantelado.

Uma estratégia central desta campanha contra Israel é o movimento BDS (originalmente, em inglês, “Boycott – Divestment – Sanctions” – “Boicote, desinvestimento e sanções”).

O discurso antissemita atual na América Latina

Em relação a esta questão, identificaremos dois veto res a serviço da difusão da argumentação antijudaica atu almente nesta região.

Um deles compreende a esfera estatal, particularmen te através dos países da região que fazem parte do blo

42 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

co Aliança Bolivariana para as Américas – Alba –, fundada pelo falecido presiden te venezuelano Hugo Chávez Frías, cujo país lidera o grupo, também formado por Bolívia, Cuba, Equador e Nicarágua.

O outro vetor corresponde à esfera da sociedade civil e entre seus canais de expressão se destacam representantes do mundo acadêmico, das ONGs e, de ma neira central, o Fórum Social Mundial1, que ao mesmo tempo concentra grupos do mundo inteiro que compartilham esta visão demonizada do Estado de Israel e do movimento sionista e opera como es paço de elaboração, discussão e circulação de propostas e como plataforma de lançamento para iniciativas nacionais, regionais e globais.

O objetivo do discurso antissemita “renovado” tem a finalidade de questionar a legitimidade do Estado de Israel e pretende caracterizá-lo como um Estado que pratica o “apartheid” e enquanto tal mereceria ser combatido e desmantelado.

porta de entrada na região e o principal promotor da sua expansão política e di plomática. No terreno militar, a Venezue la permitiu a instalação em seu território de plataformas de lançamento de mísseis iranianos.

Estes vetores abrem o campo para os eixos em torno dos quais o discurso antissemita constrói sua articulação atual na América Latina: as repercussões do conflito pa lestino-israelense e a crescente presença do Irã na região.

A Venezuela é o principal país parceiro do Irã nas áre as comercial, política e militar dentro do bloco Alba, sua

Este vínculo teve uma repercussão negativa sobre a comunidade judaica da Ve nezuela. Buscas arbitrárias em centros comunitários, sob o pretexto de procu rar explosivos e armas, profanações de si nagogas, incitação a partir da mídia ligada ao governo, utilização do antissemitismo como ferramenta política durante a cam panha eleitoral de 2012, entre outros. A gravidade da situação ficou refletida no fato de a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em seu relatório “Democracia e Direitos Humanos na Venezue la”2, de 30 de dezembro de 2009, ter manifestado expres samente a preocupação deste órgão com este assunto. Pre cisamente, durante a última Assembleia-Geral da OEA, o Representante Permanente venezuelano nesse organis

O vínculo da Venezuela com o Irã teve repercussão negativa sobre a comunidade judaica venezuelana; na fotografia, a capital Caracas.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 43
Hotpixel / iStockphoto.com

mo tentou desqualificar um delegado de uma ONG do seu país, caracterizando -o como “um agente palestino financiado pelo Mossad”.3

A Bolívia, outro membro da Alba, também estabeleceu diversos acordos eco nômicos e ganhou maior relevância para o Irã. Um bom exemplo da solidez des te vínculo bilateral é a visita realizada em 2011 à cidade de Santa Cruz de la Sierra pelo então ministro da Defesa iraniano, Ahmad Vahidi, para participar da inaugu ração de uma “Escola de Defesa” do bloco Alba. Vahidi é um dos acusados pela jus tiça argentina de suspeito do ataque terrorista contra a Associação Mutual Israe lita Argentina – Amia – e há uma circu lar vermelha endossada pela Interpol in dicando seu nome como indiciado pela justiça argentina. A impunidade para entrar e sair da Bolívia, na região pró xima à fronteira com a Argentina (o país que solicita sua prisão) ilustra a proximidade entre La Paz e Teerã.

Este antissemitismo renovado, que adota como alvo dos seus ataques um dos elementos centrais da identidade judaica contemporânea, o Estado de Israel, já se estabeleceu como uma corrente central do discurso de ódio antijudaico e substituiu outras manifestações mais tradicionais.

Desde que a justiça argentina emitiu uma ordem de prisão para cidadãos iranianos suspeitos de terem participa do do atentado contra a Amia (outubro de 2006) até setembro de 2012, quando oficializou suas negociações com Teerã, Buenos Aires havia mantido uma enér gica resistência para que os imputados se apresentassem perante os tribunais, in cluindo solicitações feitas do púlpito da Assembleia-Geral das Nações Unidas, pelo falecido ex-presidente Néstor Kir chner e pela presidente Cristina Fernán dez de Kirchner, para que o Irã cooperas se com a justiça.

Equador, Nicarágua e Cuba são outros países membros do bloco. Neles, diferentemente da Bolívia, a proximidade com o Irã não provocou um impacto direto sobre as comu nidades judaicas locais (em alguns casos, muito pequenas).

Gostaria de me referir agora, de forma sucinta, aos vín culos entre o Irã e os países da região que não fazem parte da Alba: Brasil e Argentina.

No caso brasileiro, é visível a mudança percebida entre os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Enquanto Lula visitou Teerã e proporcionou cordiais boas-vindas ao ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad em Brasília, Dilma esfriou a relação. Durante sua visita ao Bra sil para a reunião Rio+204, Ahmadinejad não conseguiu estabelecer reuniões bilaterais com outros chefes de Es tado. Contudo, a revista Veja informou que Ahmadinejad organizou um encontro com um grupo de acadêmi cos e ativistas, muitos deles protagonistas do Fórum So cial Mundial (a quem a revista, ironicamente, qualificou como “o fã clube brasileiro de Ahmadinejad”), no que pa rece ser a busca de um canal de legitimação para seu país na América Latina.5

O caso argentino, no que tange às relações com o Irã, talvez seja o mais complexo.

Essa postura foi modificada em setem bro de 2012, quando as negociações fo ram oficializadas e o diálogo consolidado ao ponto de terem assinado um Memorando de Entendi mento bilateral, em 27 de janeiro de 2013, que estabele ceu que seria criada uma “Comissão da Verdade”, que fa ria uma revisão do procedimento da justiça argentina. Se gundo o governo argentino, este acordo permitirá aos sus peitos comparecerem para depor em Teerã perante autori dades judiciais argentinas. O motivo alegado por Buenos Aires para avançar nesta direção foi “a necessidade de des travar a causa”. Até o momento em que concluo este arti go, a “Comissão” não havia sido criada ainda.

Independentemente desse objetivo declarado, é fato que o intercâmbio comercial entre ambos os países cres ceu de forma notável nos últimos anos e que ambos pre cisam do que o outro produz (a Argentina precisa de re cursos energéticos e o Irã é um cliente valioso de produ tos agrícolas).

Parece claro que este acordo proporciona uma opor tunidade para o Irã encobrir seu papel como promotor do terrorismo internacional. O governo argentino, de seu lado, argumentou que esta seria a forma de destravar a cau sa. As contradições entre as declarações dos representantes de ambos os governos (se os suspeitos prestarão depoimen to ou não, se as circulares vermelhas permanecerão ou se rão eliminadas) aprofundam ainda mais as dúvidas em re lação ao seu real alcance.

Talvez o resultado mais visível desta nova etapa nas re lações entre a Argentina e o Irã tenha sido uma solenidade

44 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

realizada em Buenos Aires para comemorar o “Dia de Al Quds”, uma data instituída pelo líder da Revolução Islâmi ca iraniano, o Aiatolá Khomeini, como uma jornada dedi cada, supostamente, a apoiar a causa palestina. Na prática, é uma jornada dedicada a redobrar as convocações a favor da destruição do Estado de Israel. Na reunião de Buenos Aires, os oradores reivindicaram o Hezbollah, advogaram pela destruição de Israel e defenderam um cidadão irania no acusado pela justiça argentina (e com ordem de prisão internacional) como suspeito do ataque terrorista contra a Associação Mutual Israelita Argentina, ocorrido em ju lho de 1994. A participação de um funcionário do gover no argentino provocou um escândalo político, apesar de no final das contas o governo ter optado por protegê-lo.6

Em relação à incidência do conflito palestino-israelense, vale a pena dedicar algumas palavras à edição especial do Fórum Social Mundial Palestina Livre, que aconteceu em Porto Alegre, em novembro de 2012.

Os eixos do encontro foram, principalmente, a cam panha mundial do BDS e como implementá-la na Améri ca Latina, a promoção de iniciativas judiciais contra o Es tado de Israel e contra cidadãos israelenses, campanhas re ligiosas para sabotar o apoio de grupos cristãos a Israel, a convocação de novas “flotilhas” para violar o espaço marí timo israelense e o fortalecimento dos grupos judaicos an tissionistas. O Centro Wiesenthal foi a única organização judaica sionista presente no Fórum e elaborou um peque no curta que se encontra disponível no youtube 7

Este antissemitismo renovado, que adota como alvo dos seus ataques um dos elementos centrais da identida de judaica contemporânea, o Estado de Israel, já se estabe leceu como uma corrente central do discurso de ódio an tijudaico e substituiu outras manifestações mais tradicio

nais. Estas são as tendências crescentes no mundo e que na América Latina contam com aliados sólidos para se ex pandir. Por isso, é conveniente ficarmos atentos e orientar nossos esforços para encontrar respostas efetivas.

Notas

1. Com o slogan “Outro mundo é possível”, o Fórum Social Mundial (estabelecido em 2001 em Porto Alegre) pretende dar uma resposta à “globalização econômica neoliberal”, e promove, no seu lugar, a “globalização da solidariedade internacio nal”. Além de seus encontros regulares anuais, o Fórum se expressa através de di versos fóruns regionais. Dentro da sua variada agenda, a “causa palestina” e a des legitimação do Estado de Israel têm um espaço destacado.

2. http://www.cidh.org/pdf%20files/VENEZUELA.2009.ESP.pdf , parágrafos 783 a 786.

3. http://www.infobae.com/2013/06/04/713835-piden-la-oea-que-condene-vene zuela-incitar-al-antisemitismo

4. A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável foi realiza da no Rio de Janeiro em junho de 2012.

5. http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/o-fa-clube-brasileiro-de-ahmadinejad

6. Recomendamos ver um vídeo elaborado pelo Centro Wiesenthal acerca desta ati vidade, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Bk3Gu4c-jIM

7. O vídeo está disponível em três idiomas: espanhol (http://www.youtu be.com/watch?v=7JvyOE4ORqQ), português (http://www.youtube.com/ watch?v=vN6PPf9PZoE) e inglês (http://www.youtube.com/watch?v=YHc3d_ ijSD8)

O professor Sergio Widder é o Diretor para a América Latina do Centro Simon Wiesenthal. Este artigo é uma adaptação atualizada da apresentação realizada no VI Encontro Brasileiro de Estudos Ju daicos, Uerj, Rio de Janeiro, em dezembro de 2012, que posterior mente foi incluída no livro do referido Encontro, Judaísmo e Cultu ra: Fronteiras em Movimento. Tanto a adaptação como a atualização foram realizadas pelo autor, especialmente para a revista Devarim.

Traduzido do espanhol por Ana Beatriz Torres, intérprete de confe rências e tradutora, membro da Associação Internacional de Intér pretes de Conferência, da Associação Profissional de Intérpretes de Conferência e do Sintra – Sindicato Nacional dos Tradutores.

La Paz, capital da Bolívia, que estabeleceu diversos acordos econômicos com o Irã. Alatom / iStockphoto.com

o Padeiro do es P írito

Após ser demitido do diário ídiche Iídiche Volkstzeitung em 1932 por participação em movimento de protesto e greve, Uri Zwerling passou a se dedicar à atividade que se transformaria em sua verdadeira vocação: a de ambulante vendedor de livros.

Uri Zwerling, nascido em 1892 na Ucrânia.

any dana

Dentre os inúmeros imigrantes que chegaram ao Brasil nas três primei ras décadas do século XX iremos ressaltar um em especial, o nosso klienteltshik1 das ideias.

Uri Zwerling, filho de Chalom e Débora Ester Zwerling, nasceu no dia 8 de setembro de 1892 em Lwow, atual Ucrânia. Lá estudou o ofício da li notipia2 e ingressou no mercado de trabalho em um jornal ídiche local e numa livraria. Casou-se em 1920 com Zelda, concebendo Rachel, sua primogênita. Com intuito de buscar sustento para sua família percorreu o mundo até que desembarcou no porto carioca no ano de 1927.

Começou a trabalhar em um diário ídiche intitulado Iídiche Volkstzeitung, ou Gazeta Israelita, o que lhe possibilitou recurso financeiro para trazer para junto dele sua esposa e a filha. Em 1932 foi demitido por ter participação di reta no movimento de protesto e greve, pois era diretor da Associação Profissional Judaica de Artes Gráficas, uma espécie de sindicato judaico dos traba lhadores gráficos.

Uri passou a se dedicar à atividade que se transformaria em sua verdadeira vocação: a de ambulante, só que sua mercadoria se caracterizava pelo ineditis mo pois, ao invés de ser mais um ambulante comum, ele vendia livros.

Primeiramente com um triciclo e mais tarde uma caminhonete, Uri per corria as ruas da Capital Federal em busca de fregueses e principalmente em busca da formação de novos leitores. Oferecia diversas formas de incentivo

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 47

ao hábito de ler: trocava, emprestava, alugava, vendia, enfim, proporciona va o acesso à leitura para todos. Uma de suas clientes era Alzira Vargas, filha de Getúlio. Encontramos uma publi cação no Diário Oficial da União, p. 38, Seção 1, fornecendo a concessão de licença para a troca do triciclo para o caminhão, além de pedir priorida de neste ramo, datada de 27 de agosto de 1932, na qual está escrito: “Pedido de garantia de prioridade: Uri Zwer ling, para “um novo método e modelo de veículo para alugar, vender, trocar, comprar livros, revistas, jornais, notas para instrumento de música, estampas e outros produtos da imprensa e pin tores.” – Deferido (DOU, 1932).

Mais adiante, ele abandonou o co mércio ambulante e se fixou em dois estabelecimentos, ambos ligados ao meio jurídico passando a concentrar também somente obras com a temática jurídica.

Zevi Ghivelder em sua obra intitulada As Seis Pontas da Estrela (1969) narra com humor, através do olhar de um judeu prestamista, o modus vivendis da comunidade judai ca carioca e seus personagens “se mostram munidos quan to à preservação do sionismo” (Igel,1997, p. 208), contu do, cada um com o seu ponto de vista.

O autor consegue “expor as várias modalidades correntes no meio judaico sem resvalar para o panfletismo” (Ibidem). A narrativa se inicia focada a partir das observa ções feitas por Marcos Grinman, após o falecimento de sua mãe, quando assume a relojoaria do pai. Ao decorrer da narrativa aparecem personagens e histórias verdadeiras, porém com a utilização de pseudônimos; no caso de Uri é atribuído a ele o nome de Ariel Stig.

Ao se referir a Ariel o protagonista Jankiel Grinman, pai de Marcos, denota uma inveja devido à diferença de seus ofícios e da maneira diversificada com a qual é trata do pelos diversos clientes. Ambos trabalhavam na Rua do Catete em frente à antiga Faculdade de Direito, atual Uerj.

Ao se referir ao triciclo de Uri o iguala ao dos padei ros, porém “quando ele abria sua larga tampa de metal, aparecia um engenhoso dispositivo de madeiras e tábuas perfuradas que em poucos minutos se transformavam em

prateleiras cobertas por livros novos e usados, além dos que ficavam em pi lhas dentro do baú montado sobre ro das” (p.47).

Cabe ressaltar que era um dos úni cos barbados no Rio daquele tempo, o que ocasionava motivo de atração e curiosidade entre os transeuntes, que “ostentava com tanto orgulho e desi nibição o fato de ser judeu” (p.48) e, de acordo com Jankiel, esta ostenta ção estava atrelada ao fato de ele não ser o judeu da prestação e sim somen te o judeu. Essa independência pro porcionava – também para retrucar um possível deboche de um estudan te com o argumento: “Se você encon trar aquele meu patrício que se con verteu ao catolicismo, o Jesus Cristo, diz que eu mandei um abraço” (Ibidem). Este apanhado de características o transformava em um personagem popular nas ruas da Capital Federal. Sem dúvida esta obra ser ve como importante registro histórico-ficcional a fim de retratar a inserção dos judeus no seio da sociedade brasileira naquela época.

Falbel (2009) nos apresenta outra obra que presta uma homenagem ao Uri. De autoria de Shebatai Karakus chansky, Aspectn fun em idischen Lebn in Brazil – Aspectos da vida judaica no Brasil (n/d), publicada em ídiche, nos apresenta um retrato personificado de nosso livreiro co nhecido por todos como “o judeu com a barbicha” (p.19), que decidira levar livros de casa em casa. E se as pessoas demonstrassem certo estranhamento devido à mercado ria, Uri perguntava: “Por que estranham? Somente bana nas, laranjas, frangos, trapos pode-se oferecer de casa em casa? E por que não livros? Não pode ser alguém um am bulante de livros?” (Ibidem). O texto perpassa por vários momentos da biografia de Uri, que, segundo o autor, não era “apenas um vendedor de livros nas faculdades, porém um apaixonado pelo que faz, provocando a admiração de estudantes e professores, devido ao visível amor à profissão e sem qualquer preocupação em enriquecer” (Idem, p.20).

A atividade livreira advém da época medieval, quan do “a partir do século XIII o livro foi ganhando rótulo de mercadoria” (Oliveira, 1989, p.224). Temos os mais varia

48 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

dos tipos de livreiros, desde os grandes empresários até os pequenos mascates, que devido à afeição dos franceses receberam o nome de colporteur3. Estes, sem dúvida, além de alimentar o comércio ambulante foram os responsáveis pela difusão da literatura, tanto na heterogeneidade das obras quanto na do público leitor.

Outra coincidência que aproxima o nosso livreiro de outros livreiros de épocas pregressas é a aproximação com estudantes de Direito e os tribunais, onde obtemos des de o século XV em diante livrarias de editores clássicos que se revezam dentro do palácio de justiça parisiense. No Brasil, os primeiros cursos superiores foram os de Medi cina e Direito.

A Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, com o in tuito de promover o ensino livre do Direito, teve sua inau guração oficial no dia 11 de maio de 1935 na Associação Cristã de Moços situada no centro da cidade do Rio de Ja neiro e, passado um tempo, ela se transferiu para a Rua do Catete n° 243. E foi no andar térreo da faculdade que Uri estabeleceu sua livraria destinada a obras jurídicas. “O Uri era um homem que não tinha atrito com ninguém, era de

uma amigabilidade extraordinária e eu me tornei um enor me amigo dele” (Lira, 2011).

Inserido neste contexto político-ideológico, Uri “obte ve a percepção de que o povo brasileiro, devido às interro gações que lhe faziam e por comentários ouvidos, desconheciam os judeus e sua história” (Fischman, 2008). Foi então que em 1934 sentiu a necessidade de editar uma obra que apresentasse aos brasileiros a importância dos ju deus na formação da história do Brasil e suas contribui ções, inserções e os esforços dos semitas junto ao povo bra sileiro. Para isso contou com a colaboração de: Afrânio Pei xoto, Agrippino Grieco, Arthur Ramos, Evaristo de Mora es, Gilberto Freyre, Rodolfo Garcia, Roquette Pinto, Soli dônio Leite Filho e Paulo Prado.

A abertura que Uri teve em acessar essas pessoas esta va no prestígio alcançado no meio intelectual jurídico na cional, embora reconhecesse a divergência de pensamento que obtinham os autores, mas que, mesmo assim, não he sitaram em colaborar; o próprio Uri agradece utilizando-se da ideia de “generosidade nunca desmentida do povo deste grande paiz” (Zwerling, 1936, p.7) ao prefaciar a sua obra.

O triciclo de Uri Zwerling e o seu baú de livros.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 49

Vale ressaltar que o escritor Humberto de Campos, se estivesse vivo, pois morrera em 1934, teria colaborado cer tamente com o projeto. Em sua obra póstuma, Sepultan do os meus Mortos, aparece uma crônica intitulada Car ta a Uri Zwerling. Esta carta foi publicada primeiramen te em 1933.

O autor, nesta missiva, tece elogios rasgados a Uri e à sua profissão onde parabeniza-o porque “em vez de com prar bebidas alcoolicas para envenenar os operários sem pão, ou de arrecadar com a mão do macaco ou com a tromba do elefante4 o salário da cozinheira, as economias da patroa ou o ordenado do contínuo de Ministério, pre feriu espalhar livros pelos bairros pobres ou afortunados da cidade” (Campos, 1961, p.119).

Devemos atentar ao fato de que a obra Os Judeus na História do Brasil foi editada em 1936, poucos meses an tes de Getúlio dissolver os partidos políticos e movimen tos sociais e decretar seu governo autoritário em novem bro de 1937.

Foi também no ano de 1937 que Uri foi preso e ficha do pela Polícia Civil do Distrito Federal, pois no dia 10 de março foi encontrada uma granada de mão nos arredores do Palácio do Catete. Ao declarar que desconhecia o obje to, assim como o dono, foi liberado.

A segunda vez que Uri teve que comparecer à polícia para esclarecimentos foi em 14 de maio de 1942, duran te a vigência do Estado Novo, e dessa vez o motivo era sua filiação à Biblioteca Israelita H. N. Bialik e também sua participação como sócio da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro.

Uri gostava tanto do Brasil e o País havia lhe acolhi do tão bem que decidiu formalizar sua naturalização em 1951. Apesar de se considerar e ser brasileiríssimo, nunca deixou de ressaltar a que povo pertencia e, por isso, resol veu aos 74 anos de idade fazer aliá5 junto com sua família no final do ano de 1966. Cinco meses antes de viajar, no dia 8 de julho de 1966, foi condecorado através da Resolu ção 182-66 com o Título de Cidadão do Estado da Guana

Em 27 de agosto de 1932, Ur Zwerling recebeu a licença para trocar o triciclo por um caminhão.
50 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

bara concedido pelo deputado Paulo Duque. Viajou para Israel com sua mulher em dezembro de 1966 e veio a fale cer em 31 de março do ano seguinte deixando sua esposa Zelda e três filhos: Rachel, Sara e Chalom.

No prefácio de Os Judeus na História do Brasil (1936) Uri reconhece o mérito que teve ao idealizar tal projeto, porém aponta a dificuldade que teve em torná-lo viável. E completa que este é um livro que “ainda faltava na literatu ra do paiz e que vem fazer justiça ao elemento judeu como factor da realidade brasileira, impondo-se como obra que, sem qualquer laivo de paixão partidária, apenas restabele ce a verdade histórica. Agora que entrego, finalmente, este livro ao público, não seria sincero se escondesse o grande júbilo de que me acho possuído. Cumpre-me apenas, agra decendo ao público, estender esse agradecimento aos illustres intellectuaes que o collaboraram, incontestavelmente, seus verdadeiros autores” (p.7).

Em suma, todos os autores que contribuíram para que o desejo de Uri fosse concretizado, todos sem exceção, pro curaram demonstrar o quanto os judeus, “a partir da des coberta cabralina, estão ligados umbilicalmente à forma ção do país desde os seus primórdios e cuja contribuição ímpar” (Falbel, 2009, p.9) foi iniciada com os marranos. Todos os ensaios explanam acerca da contribuição judaica como fator decisivo para o desenvolvimento econômico e social da sociedade brasileira seiscentista até os anos 30 do século XX, com o objetivo de demonstrar que os judeus estão presentes como parcela ativa em todos os ciclos da história econômica brasileira. E também a fim de desfazer o estereótipo do judeu, a ideia do tipo judeu que era dis seminada pelos diversos vieses literários. Ademais, a obra tem por finalidade expor a grande contribuição dada por este povo que, sem dúvida, constituiu papel fundamental como elemento formador da nossa nacionalidade.

Dentre os nove ensaios, vale ressaltar o último, intitu lado Israel Continuará, de Afrânio Peixoto, que enaltece a perseverança do povo judeu ao longo da história do mun do. Ele atribui duas condições admiráveis para tal: “A fé em si e o ódio dos outros” (p.135). Percorre todos os mo mentos difíceis pelos quais o povo passou, porém sempre acompanhado da solução encontrada. Ao final ele constata que a “inveja, a estupidez, o ódio, hão de continuar... e Is rael continuará” (p.137). O mais emocionante desse texto é pensarmos que ele foi escrito em 1936, ou seja, doze anos antes da Declaração do Estado de Israel, que Uri não pôde

presenciar e que nos valha como exemplo toda vez que haja uma eminente ameaça contra o nosso Estado e povo.

Sendo assim, o desejo de Uri, de que seu livro escla recesse ao povo brasileiro a importante participação do povo judeu na formação do Estado Nacional brasileiro, foi cumprido e, principalmente, 77 anos após a sua primeira e única edição, o livro foi reeditado e alocado em todas as bibliotecas das universidades em âmbito federal a fim de continuar esclarecendo e podendo ser utilizado para futu ras pesquisas.

Fontes e Bibliografia

Fontes Primárias

Diário Oficial da União. Pág. 38. Seção 1. Concessão de Prioridade 27/08/1932. Dis ponível na internet no site: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2219440/dou-se cao-1-27-08-1932-pg-38 (consultado em junho de 2011)

Diário Oficial da União. Pág. 4. Seção 1. Declaração de naturalização 21/11/1951. Disponível na internet no site: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2817280/dousecao-1-21-11-1951-pg-4 (consultado em junho de 2011)

Diário da Assembleia Legislativa. Pág. 4. Seção 2. Resolução 182-66. 8/07/1966.

Fischman, Sara. Memórias da filha de Uri: depoimento. [9 de setembro, 2008]. Rio de Janeiro: Depoimento concedido a Any e Ian Dana.

Fundo Polícia Política; Diversos 31, pastas 1 e 2. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

Fundo Polícia Política; Diversos 31, pasta 6, prontuário n° 15572. Arquivo Pú blico do Estado do Rio de Janeiro.

Lira, J. R. Pereira. Memórias da antiga Faculdade de Direito: depoimento. [25 de ju nho, 2011]. Rio de Janeiro. Depoimento concedido a Any Dana.

Processo de Naturalização MJNI, n° 36670/1950. Arquivo Nacional

Bibliografia

Campos, Humberto de. Sepultando os meus Mortos São Paulo: Mérito, 1961. Falbel, Nachman. Uri Zwerling e a literatura antissemita no Brasil. Rio de Janei ro, 2009.

Ghivelder, Zevi. As Seis Pontas da Estrela. Rio de Janeiro: Bloch, 1969. Igel, Regina. Imigrantes Judeus/Escritores Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1997. Oliveira, José Teixeira de. A Fascinante História do Livro. De Gutenberg aos nossos dias Rio de Janeiro: Kosmos, 1989. Zwerling, Uri (ed.). Os Judeus na História do Brasil Rio de Janeiro: Uri Zwer ling, 1936.

Notas

1 Vendedores ambulantes que iam de porta em porta a fim de vender suas diversas mercadorias, mascates.

2 Artesão que trabalhava com a máquina de composição tipográfica.

3 Palavra de origem francesa, também usada na língua inglesa como: colportor ou chapbook, que significa levar no pescoço. Este nome foi dado pois os colportores costumavam levar os escritos embaixo das roupas ou em uma bolsa pendurada no pescoço.

4 Alusão às lotéricas e ao jogo do bicho.

5 Subida. Termo utilizado quando alguém decide morar em Israel.

Any Dana, historiadora carioca atualmente reside em Israel e foi responsável pela reedição da obra Os Judeus na História do Bra sil, projeto que inseriu a obra em todas as universidades fede rais do País.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 51

t eatro ídiche: transmissor de cultura e da vida judaica

“A fronteira entre a comédia e a tragédia é uma linha fina e trêmula e, para ju deus, frequentemente inexistente.” (autor desconhecido)

Nascida como um dialeto de comunicação e usada durante séculos principalmente em comunidades judaicas da Polônia, Lituânia, Ucrânia e Romênia, o ídiche, uma mistura de alemão arcaico, he braico, aramaico, francês e italiano antigos e línguas eslavas, escrita em caracteres hebraicos da direita para a esquerda, se tornou o idioma trans missor da cultura e da vida dos judeus da Europa Oriental a partir de uma rica produção literária que lhe concedeu um novo status.

A partir do início do século XIX a língua do cotidiano, das relações pes soais e do comércio é usada por escritores como Mendele M. Sforim (Ucrâ nia, 1836-1917), I.L.Peretz (Polônia, v1852-1915) Scholem Aleichem (Rús sia, 1859-1916) e ainda Chaim Nachman Bialik, Jacob Gordin, Scholem Asch, I.I. Singer para a literatura, a poesia e o teatro. Em 1978, Isaac Bashevis Singer recebeu o Prêmio Nobel de Literatura por sua obra escrita em ídiche nos Esta dos Unidos, selando o reconhecimento dessa língua como expressão cultural de um povo após sua quase total destruição. A representação teatral, por sua vez, é uma tradição antiga na cultura judaica. A história de Esther, a bela moça judia que se casa com o rei da Pérsia e consegue salvar o seu povo da morte planeja da pelo primeiro ministro Haman – representação do mal – é apresentada des de a Idade Média nos festejos de Purim, uma festa semirreligiosa, comemorada

A presença de grupos profissionais de teatro ídiche, vindos de Nova York ou de Buenos Aires, era constante no Rio de Janeiro e em São Paulo nas décadas de 1940 e 1960. Grandes teatros que eram alugados nas segundas-feiras, quando não havia outras apresentações, e atraíam um público de até 800 pessoas.

< Maharan Fun Rotemburg (O Maharan de Rotemburgo), de H. Leivick Zygmunt e Rosa Turkow, encenada no Teatro Carlos Gomes, com direção musical de Leon Gomberg, Rio de Janeiro, 1948.

susane Worcman e Paula ribeiro
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 53

até hoje. Artistas errantes, os purimshpielers, encenavam o tema adaptando alguns personagens a figuras e situações do momento. Atores e músicos percorriam vilas e cida des habitadas pelos judeus com espetáculos compostos por cantos, danças, um pouco de humor, um pouco de drama.

No início do século XX, com a imigração dos judeus da Europa Central e Oriental para as Américas, grupos tea trais levam à cena peças de teatro em ídiche nos Estados Unidos e na Argentina. Na pesquisa que fizemos sobre o teatro ídiche no Brasil na Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais da Escola de Comunicação da Univer sidade Federal do Rio de Janeiro (CIEC – UFRJ), encon tramos documentação sobre artistas do teatro ídiche que já se apresentavam no Brasil na década de 1920, em turnê pela América do Sul. Eram, em geral, atores ou duplas de artistas que encenavam trechos de peças ou operetas, mui tas vezes acompanhados por um elenco local. A música era parte integrante de todas as apresentações.

O interesse por estudar o tema surgiu durante o tra balho desenvolvido no contexto do projeto “Heranças e Lembranças: imigrantes judeus no Rio de Janeiro”, projeto pioneiro iniciado em 1986 e desenvolvido com o apoio da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI –, que resultou em uma exposição no Museu Histórico Na cional em outubro de 1989 e um livro de mesmo nome. Essa pesquisa registrou depoimentos orais de imigrantes judeus que se estabeleceram no Rio de Janeiro e estudou também a cultura material do grupo, através de objetos li gados à identidade judaica trazidos por estes imigrantes.

O encontro com Henrique Blank, polonês que chegou ao Brasil em 1935, lançou a semente da nova pesquisa. Sua paixão pelo teatro, o depoimento das suas atividades como ator e diretor do Dram Krais – grupo de teatro ama dor da Biblioteca Israelita Brasileira Scholem Aleichem –Bibsa – e seu rico acervo constituído por fotografias, pro gramas, partituras, croquis de cenários e recortes de jornal

Dos Groisse Guevins (A Sorte Grande), de Scholem Aleichem, encenada pelo Círculo Dramático da Bibsa, com cenário do pintor Lasar Segall, Rio de Janeiro, 1945.
54 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

sobre o teatro ídiche no Brasil, e também na Polônia, foram o rico manancial que deu início ao nosso projeto de pesquisa. Em uma segunda etapa encontramos re ferências de apresentações teatrais em ídi che, tanto por grupos profissionais como por grupos amadores, em todas as cida des do Brasil onde se desenvolveram co munidades judaicas: Porto Alegre, Curi tiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Ho rizonte, Salvador e Recife.

Já no Norte do Brasil, onde a imigra ção judaica foi essencialmente de origem sefaradita, o ídiche não era falado e não encontramos nenhuma menção sobre atividades ligadas a teatro. Os judeus origi nários de Marrocos falavam o hakitia e rapidamente aprendiam o português e é na música, na culinária e na forte manutenção da tradição religiosa que se nota a presença do judeu marroquino no Amazonas,

O Dram Krais, grupo de teatro amador da Bibsa, tinha sua sede na Praça Onze, o reduto dos imigrantes judeus asquenazitas nas décadas de 1940 e 1950. O seu apogeu se dá durante os quase dez anos em que Zygmunt Turkow, renomado diretor do teatro ídiche polonês, dirigiu o grupo.

no Pará e no desenvolvimento de cidades como Manaus, Belém, Óbidos e Cametá.

Tampouco encontramos em grupos originários de países da Europa mediterrânea – Itália, França, Espanha e Portugal – referências a alguma atividade teatral, o que nos faz pensar que foram fundamen tais para o desenvolvimento dessa mani festação cultural o ídiche como língua ex pressiva e a cultura desenvolvida nos shtels da Europa Oriental.

A presença de grupos profissionais de teatro ídiche, vindos de Nova York ou de Buenos Aires, era constante no Rio de Ja neiro e em São Paulo nas décadas de 1940 e 1960. Nomes como Maurice Schwartz, Esther Perlman, Isaac Deutch, Jacob Ben Ami, duplas como Max Perlman e Guita Galina apresentavam-se em grandes teatros que eram alugados nas segun das-feiras, quando não havia outras apresentações, e atraí

Tevie, der Milchiker (Tevie, o Leiteiro), de Scholem Aleichem, encenada pelo Círculo Dramático da Bibsa, com cenário de M. Gryner, Rio de Janei ro, 1948.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 55

am um público de até 800 pessoas. Nessas temporadas, ar tistas locais profissionais compunham muitas vezes o elen co de apoio como, por exemplo, Bela Ajs e Berta Ajs (Lo ran), Simão Buchalski, Isaac Handfus, Moishe Lipman, Michal Michalovitch, que formaram durante um curto período a Companhia de Artistas Israelitas Unidos. Isaac Lubeltczyk era o empresário mais conhecido do teatro ídiche profissional e o depoimento de sua filha Sara Lubel tczyk retrata, de forma vívida, o significado do teatro ídi che para os que aqui viviam:

(...) Os adultos adoravam, os artistas cantavam no palco, a plateia cantava junto, decorava. Eles adoravam, comiam o teatro como comiam o pão. Sentiam falta daquela cultura, porque aqui não tinha cultura ídiche. Eles tinham necessida de de ouvir o idioma.

Nossa pesquisa no Rio de Janeiro teve como foco principal o Dram Krais, grupo de teatro amador da Bib sa, cuja sede ficava na Praça Onze, o reduto dos imigran tes judeus asquenazitas nas décadas de 1940 e 1950. O seu apogeu se dá durante os quase dez anos em que Zyg munt Turkow, renomado diretor do teatro ídiche polo nês, dirige o Dram Krais

Turkow emigrou para o Brasil após o Varsaw Ydish Kunst Theater (VYKT), que fundara com Ida Kaminska, considerada a maior artista do teatro ídiche mundial e então sua esposa, ter sido destruído por uma bomba no início da Segunda Guerra Mundial. Veio para Recife em 1942 a convite de Waldemar de Oliveira, diretor do Grupo de Teatro de Amadores do Recife. Mudou para o Rio de Ja neiro em 1944 para trabalhar com o Dram Krais da Bibsa,

Krochmalne Gas (Rua Krochmalne), de autoria de Zygmunt Turkow, encenada pelo Círculo Dramático da Bibsa no Teatro Recreio, Rio de Janei ro, 1944.
56 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

imprimindo ao grupo uma qualidade teatral dificilmente atingida pelo teatro ídi che no Brasil. Turkow trouxe novas for mas de preparação do ator e de interpre tação do texto teatral e até 1951, quando emigrou para Israel, encenou dezoito pe ças atuando como diretor e ator.

A peça Krochmalne Gas (Rua Kroch malne), de sua autoria, encenada no Tea tro Recreio, marcou a estreia do diretor no Rio de Janeiro em 1944. Conta a his tória de um criminoso judeu que, regene rado, torna-se um herói da Resistência em Varsóvia contra a ocupação nazista. Dos Groisse Guevins (A Sorte Grande), de Scholem Aleichem, encenada em 1945, teve o cenário desenhado pelo famoso pintor, desenhista e gravador judeu russo Lasar Segall. A peça Tevie der Milchi ker (Tevie, o leiteiro), de Scholem Aleichem, possivelmen te a mais conhecida do teatro ídiche adaptada ao cinema como “O violinista no telhado”, foi encenada em 1948 no Rio de Janeiro com Turkow como o leiteiro Tevie.

O teatro ídiche é particular na medida em que retrata a vida, os valores e as aspirações de judeus em certo contexto histórico, em uma língua de difícil tradução, impregnada de nuances e de um espírito particular.

Cuperschmid escreveu seu texto baseada em sua dissertação de mestrado sobre a comunidade judaica de Belo Horizonte, assim como Esther Prizkulnik, que fez o texto sobre São Paulo, a cidade brasilei ra que recebeu o maior número de com panhias profissionais. Curitiba, uma comunidade pouco numerosa, mas dinâmi ca, marcou presença através de José Leon Zindeluk, e Rosa Grossman Tabacof contribuiu com suas reminiscências de jovem judia baiana em Salvador nas décadas de 1940 e 1950.

Os principais integrantes do Dram Krais eram Ida Ka menetzki, Joseph Landa, Henrique Blank, o casal Da vid e Riva Berman, Micha Levovitch, Dina Varantz, Sara Tacsir, Cile Goifman, Mauricio Wasserman, Aron Uhn, o cenógrafo Mendel Gryner e Leon Gomberg como di retor musical.

As fotografias de Carlos (Karoly Moscovics), parte do acervo de Blank, são testemunhas do apuro dessas montagens. O fotógrafo, nascido em Budapeste, Hungria, em 1916, chegou ao Brasil em 1927 e no Rio de Janeiro, onde se profissionalizou, registrou a vida carioca nas décadas de 1940 e 1950 para a revista Sombra e também para a Rio Magazine. Fotógrafo oficial do governo de Juscelino Ku bitschek, registrava as apresentações do teatro ídiche no Rio de Janeiro por amizade ao grupo.

Convidamos pesquisadores e estudiosos para escrever sobre o tema com o objetivo de reunir esse material em um livro. Recebemos de Tania Neumann Kaufman, além do seu texto, folhetos impressos que testemunham a presença do teatro ídiche em Recife desde a década de 1930; de Ieda Gutfreind, um ensaio sobre o Rio Grande do Sul através da pesquisa com membros da comunidade local e consulta aos arquivos do Departamento de Memória do Instituto Cultural Judaico Brasileiro Marc Chagall; Ethel Mizrahy

O teatro ídiche é particular na medida em que retrata a vida, os valores e as aspirações de judeus em certo con texto histórico, em uma língua de difícil tradução, impreg nada de nuances e de um espírito particular. Ao resgatar mos, preservarmos e divulgarmos a memória dessa mani festação artística no Brasil acreditamos estar contribuindo para a compreensão da riqueza e da diversidade cultural trazida por um grupo de imigrantes que integram a vida e a cultura brasileiras.

Esse material constitui hoje o e-book Drama e Humor: teatro ídiche no Brasil, disponível no link www.teatroidichenobrasil.com.br.

Susane Worcman é a realizadora do Projeto Heranças e Lembran ças – imigrantes judeus no Rio de Janeiro. Como diretora cultural da ARI, Susane desenvolveu várias pesquisas na área cultural pela Associação Cultural Estudos Contemporâneos (Acec), então liga da à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2001 dirige a Brazil Foundation, organização financiadora de apoio a pro jetos sociais no Brasil.

Paula Ribeiro é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense com Mestrado (2000) e Doutorado (2008) em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora e pesquisadora vinculada à Vice-Reitoria de Pós-Gra duação e Pesquisa da Universidade Estácio de Sá (Unesa). É au tora da Dissertação de Mestrado: Saara – uma paisagem singular na cidade do Rio de Janeiro (1960-1990) e da Tese de Doutora do: Cultura, memória e vida urbana: judeus na Praça Onze, no Rio de Janeiro (1920-1980)

As autoras são organizadoras do e-book: Drama & Humor – Teatro Ídiche no Brasil. Drama & Humor – Yiddish Theater in Brazil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 57

Sub-humanos e sobre-humanos

Khaled Diab é um jornalista e escritor com dupla cidadania egípcia e belga, que passou metade de sua vida na Europa e a outra metade no Oriente Médio, inclu sive dois anos em Jerusalém. Como tan tos outros jornalistas que têm uma visão de primeira mão (e não de ouvir falar) das sociedades do Oriente Médio, seus es critos tratam Israel de forma muito mais equilibrada do que a esmagadora maioria da imprensa, principalmente a árabe, para a qual Israel e os israelenses são a essên cia do mal e da desumanidade.

Diga-se de passagem que esta visão majoritária no lado árabe da imprensa é repetida por parte da imprensa israelense

e judaica que faz observações semelhan tes, porém com o sinal trocado. A “nos sa” porção de demonização do inimigo é certamente menor, mas isto não chega a ser motivo de alívio, visto que só teremos paz quando estas facções forem diminu tas em ambos os lados do conflito e pre valecer a percepção que demônios não são parte do cenário.

Num texto de 27 de agosto passado, Khaled comenta a insanidade da teoria conspiratória que grassava no Egito e que foi endossada pelo primeiro-minis tro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, segundo a qual Israel estaria por trás da derrubada do presidente egípcio Morsi.

balho de explicar qual teria sido o revo lucionário método de lavagem cerebral que Israel utilizou para convencer de zenas de milhões (sim, dezenas de mi lhões!) de pessoas a saírem às ruas pe dir pela destituição do governo da Irman dade Muçulmana. Mas as teorias cons piratórias são assim mesmo – quanto mais fabulosas, melhor.

Claro que esta teoria não se dá o tra e m Poucas Palavras

No texto, Khaled faz uma observação muito interessante: ele diz que a impren sa árabe demoniza os israelenses atra vés de um jogo duplo: ao mesmo tempo em que os caracterizam como tendo per sonalidades sub-humanas, capazes das maiores barbaridades, os temem por te rem poderes sobre-humanos, capazes dos mais formidáveis feitos.

Desta forma os árabes constroem um imaginário que empurra o inimigo israe lense para fora do mundo real, na direção de uma esfera mitológica de alguma outra dimensão, o que leva à falsa convicção de que é impossível transformar o inimi go num amigo e converter anos de guerra em anos de paz. Khaled conclui avaliando que é muito confortável para regimes po pulistas e totalitários construir a imagem de um intratável inimigo externo e que in felizmente este processo complica muito a solução do conflito.

Não há como negar a sabedoria da análise de Khaled Diab. ü

Qual teria sido o método de lavagem cerebral utilizado para convencer dezenas de milhões de pessoas a saírem às ruas pedir pela destituição do governo da Irmandade Muçulmana?
Jcarillets / iStockphoto.com
58 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

Apenas humanos

No primeiro semestre deste ano, a empresa israelense de serviços de saú de Clalit postou uma série de vídeos no Youtube a respeito de vários tópicos: amamentação, monitoramento da gravi dez, detecção precoce de doenças etc. Pensando em beneficiar os clientes ára be-israelenses, os vídeos foram postados também em árabe.

Com o passar do tempo, os profis sionais da Clalit tiveram a grata surpresa de ver que seus vídeos em árabe esta vam atraindo uma atenção explosivamen te maior do que o previsto no lançamen to. Mais de um milhão e cem mil pesso as haviam acessado os vídeos até o final de setembro, ou seja, praticamente to dos os árabes de Israel teriam acessa do os vídeos! Eles exultaram brevemen te com a perspectiva da conquista com pleta de um mercado inteiro, o sonho de qualquer empresa.

Porém, o mistério da superexposição dos vídeos foi rapidamente desvendado: meros 5% dos acessos (quarenta e cin co mil) provinha de Israel, todo o restante era originado dos países árabes. A Arábia

Saudita tinha mais de quinhentos mil es pectadores, o Egito pouco mais que cen to e cinquenta mil e assim por diante, in cluindo todos os vizinhos de Israel e al guns países mais distantes como o Mar rocos e a Argélia. Até a combalida Síria entrou na lista com pouco mais de dez mil visitas aos vídeos da Clalit.

A maior parte das visitas focou nos ví deos sobre a amamentação e os espec tadores árabes não se limitaram apenas a assistir os vídeos. A Clalit recebeu men sagens de agradecimento, encorajamen to e perguntas.

Há um mito de que a paz chegará atra vés das mulheres. Quem sabe a amamen tação ajude na concretização deste so nho? Porque quando os dois lados se perceberem como igualmente humanos o primeiro grande passo para a reconci liação estará dado. ü

Mochilofobia eletiva

Idade de 21-22 anos. Óculos escu ros protegendo o alto da testa e não os olhos. Sandália nos pés chova ou faça sol. Mochila, bermuda, camiseta, relógio grande na mesma mão peluda que agarra

o tablet onde baixou o Lonely Planet, um dicionário português e outro espanhol, além das centenas de dicas dos amigos que já desbravaram aquelas trilhas nos anos passados. Nunca sozinhos, mas também nunca em grandes grupos, an dam em duplas ou em tripla companhia.

Você nem precisa chegar perto e ou vir o hebraico rascante e o português pre cário que emerge com a ajuda do dicio nário eletrônico. Já de longe se percebe que são israelenses recém-saídos do lon go período de serviço militar obrigatório que estão correndo o mundo para saciar a fome de liberdade tolhida no exército, antes de se amarrar numa faculdade e ba talhar por um lugar no mais vibrante mer cado high tech do mundo.

Eles se esparramam por toda a Amé rica do Sul um dos seus destinos favori tos, junto com a Índia e com os países do Extremo Oriente.

O comércio os adora. Principalmente as pousadas mais jeitosinhas e de bai xo custo, os bares descompromissados com o luxo e os empreendimentos de dicados ao trekking. Em alguns lugares cardápios, cartazes e instruções são bi língues – português (ou espanhol) e he braico. Um bando de jovens adultos pro curando espairecer da tensão do Orien te Médio através de aventuras em novas paisagens. Criam pouquíssima confusão, não se embebedam irresponsavelmente, não desrespeitam os locais.

Mas há os que os temem! O senador chileno Eugenio Tuma, o chefe da campa nha da candidata à presidência e ex-pre sidente Michelle Bachelet, considera que os mochileiros israelenses são um “risco à integridade territorial do Chile” e afir mou no programa “Controversia” da TV chilena que “constitui-se numa ingenuida de por parte do Chile e de sua segurança não perceber o que ocorre com os nume

Um vídeo sobre a saúde das mulheres postado pela empresa israelense Clalit teve centenas de milhares de acessos em países árabes.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 59
Inkit / iStockphoto.com

rosos contingentes que chegam como ci vis, mas que são egressos das forças ar madas de Israel, e que vêm até aqui fa zer mapas... grande parte da sinalização da zona [a Patagônia chilena] está escrita em hebraico... a cada ano entram de oito a nove mil israelenses, sem nenhuma ne cessidade de visto”.

Assusta-se o senador e nós nos as sustamos com o susto dele. Como é pos sível distorcer de forma tão maligna a ino fensiva atração turística que nosso conti nente exerce sobre os jovens de Israel? Eles vêm para cá atrás de paisagens, de liberdade e de céus abertos. O senador chileno, figura importante em seu partido, vê neles super-homens que pretendem anexar o Chile ao Oriente Médio, cons truindo uma fabulosa ponte sobre conti nentes e oceanos.

E fica no ar a incômoda pergunta ao senador: os muitos jovens de outras na cionalidades que também procuram as magníficas paisagens da Patagônia tam bém são uma ameaça à integridade terri torial do Chile? ü

Sensatez no esporte

Numa decisão unânime, a Federação Internacional de Tênis (ITF) suspendeu a participação da Tunísia na Copa Davis de 2014 por conta da proibição imposta pela federação tunisina de tênis ao atle ta Malik Jaziri, forçando a sua desistência na disputa com o atleta israelense Amir Weintraub pelas quartas de finais do tor

neio Tashkent Challenger no Uzbequis tão, em outubro deste ano.

O atleta tunisino e seu irmão e em presário Amir Jaziri condenaram a deci são da federação de seu país, declaran do que ela era “chocante, pois trazia a po lítica para o mundo do esporte”. Enquanto isto, o atleta israelense declarou que Jazi ri é “um bom amigo”, acrescentando que ele “realmente queria jogar”.

A reação dos atletas não surpreen de, pois entre pessoas que mantêm inte resses comuns a fraternidade é a regra e não a exceção. Isto ocorre mesmo entre cidadãos de países que não mantêm rela ções diplomáticas, como Israel e Tunísia. Os atritos costumam acontecer no nível institucional, mormente quando as institui ções se tornam propriedade de indivíduos que colocam o apego ao poder antes dos interesses coletivos que representam.

E é justamente por causa disso que a decisão adotada por unanimidade pela ITF é admirável. Representantes de 210 países, ou seja, o mundo todo, focaram exclusivamente no esporte, mandando uma forte mensagem contra a intolerân cia motivada por questões não esporti

Um importante senador chileno alerta para um numeroso contingente das forças armadas de Is rael mapeando a Patagônia. A Federação Internacional de Tênis suspendeu a Tunísia da Copa Davis de 2014 por proibir seu atleta de enfrentar um israelense. iStockphoto.com Nixxphotography / iStockphoto.com
60 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Encrier

vas. A decisão da ITF é admirável tam bém por ser tristemente pouco frequente. Recentemente, numa competição de na tação no Qatar, os atletas israelenses fo ram apresentados com um retângulo em branco ao lado dos nomes, enquanto que todos os demais tinham a sua bandeira nacional. Não houve reação alguma por parte da federação mundial de natação ou por qualquer outro foro.

Os “cartolas” do tênis mostraram mais sensatez do que os cientistas que defen dem um boicote às universidades israe lenses, subordinando o avanço da ciên cia a questões políticas. Quem diria que esportistas seriam mais sábios que cien tistas?! Como se vê, conhecimento cien tífico não pode ser confundido com visão e sabedoria.

Uma nota final: mesmo beneficiado pela vitória por WO, Weintraub acabou eliminado do torneio por um atleta rus so. Contudo, ele foi “vingado” por seu compatriota Dudi Sela, o mais bem ran queado tenista israelense, que bateu o russo na final e ganhou o torneio. Fica a dúvida se a decisão da federação tuni sina não ajudou Israel a fazer bonito em Tashkent. ü

O fato e a versão

A Autoridade Nacional Palestina, tal vez movida pela necessidade de escon der seus rotundos fracassos políticos e administrativos, resolveu há alguns me ses encomendar uma análise nos ossos do seu falecido presidente, Yasser Ara fat, para determinar se ele havia sido en venenado. Um time de cientistas suíços e um time de cientistas russos conduziram análises de forma independente nos res tos mortais de Arafat e chegaram às se guintes conclusões:

Os suíços concluíram que o envene namento era uma possibilidade que não

poderia ser descartada, porém não havia condição alguma de determinar se real mente aconteceu. Ou seja, não disseram nem sim nem não. Os russos concluíram que o envenenamento não ocorreu de for ma alguma. Ou seja, decretaram um ca tegórico não.

A partir destas (in)conclusões a Al Ja zera noticiou que Arafat havia sido enve nenado e os palestinos se apressaram a deduzir que apenas Israel poderia ter sido o perpetrador. A campanha de desinfor mação palestina ignorou o laudo russo e a dúvida do laudo suíço, não se preocu pando também em contar para o mundo como foi que um agente israelense con seguiu chegar tão perto de Arafat a pon to de ter ministrado o veneno.

Num primeiro momento boa parte da imprensa (inclusive a brasileira) caiu no conto da Al Jazera, encomendado pelos palestinos, e apontou o dedo acusador contra Israel. Apenas no dia seguinte a notícia foi corrigida. Claro que o desmen tido foi bem-vindo, mas o dano da primei ra impressão já havia sido causado.

Algo semelhante aconteceu na supos ta destruição do arsenal químico da Síria,

que animou boa parte dos consumidores de noticiário do mundo como sendo o prenúncio de uma era em que os conflitos seriam todos resolvidos pela negociação. Um pouco mais de atenção às palavras do inspetor da ONU teria deixado o mun do menos excitado. Ele disse que todos os locais de produção de armas químicas indicados pelo governo sírio haviam sido inutilizados. Ou seja, podem existir muitos outros lugares não denunciados pelos sí rios e estes não foram mexidos. Além do que não houve uma só palavra sobre os armamentos já estocados.

Mas a imprensa comemorou a destrui ção do armamento químico da Síria como se a diplomacia tivesse marcado um go laço contra a barbárie. Infelizmente, neste caso, se houver um desmentido ele cus tará as vidas das vítimas do próximo ata que químico na guerra civil da Síria.

O conhecido jogo de criar factoides para sensibilizar os incautos e os distraí dos continua sendo praticado com muita consistência. Convém sempre ir às fontes da informação e checar as conclusões dos noticiários. Na era da internet esta possibilidade está aberta para todos. ü

O suposto envenenamento de Yasser Arafat: o laudo suíço foi inconclusivo e o russo foi negativo.
62 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Jcarillet / iStockphoto.com

c omo escravos li B ertos no deserto

Causou

certa agitação (e apreen são) nos meios judaicos a maté ria do New York Times sobre as tendên cias atuais dos judeus norte-americanos, os tais vanishingjews descritos por Alan Dershowitz. Os dois sintomas mais ‘pre ocupantes’, segundo o tom geral das re ações, seriam o crescente abandono da religião judaica como parâmetro do juda ísmo e a proporção crescente dos casa mentos mistos, com a possível implica ção, em ambos os casos, de uma cres cente perda total da identidade judaica dos judeus incluídos nesses processos, em parte já na geração atual.

Não me lembro dos dados numéricos exatos, e não me darei o trabalho de ir consultá-los, pois o que interessa aqui, nestas cócegas no raciocínio, não é a es tatística, mas o conceito. Não que núme ros não sejam importantes, já que com zero judeus o judaísmo acaba desapa recendo também; mas ainda não chega mos lá, e a questão aqui é discernir se existe mesmo um processo (do qual os judeus americanos seriam um paradig ma) que inevitavelmente nos fará chegar lá, e isso por sua vez resulta na neces sidade de compreender o processo e o que ele implica no total, e não os resul tados estatísticos de algumas das impli cações do processo.

A respeito dessa ‘ameaça’ do fim do judaísmo via assimilação gradual dos ju deus (e da crescente ‘israelização’ de Israel como Estado de seus cidadãos mais do que como Estado judaico), lem

brei-me de uma cena que já comentei aqui (ou alhures), quando, numa ativi dade cultural comunitária com base no debate do filme Zelig, de Woody Allen (uma parábola sobre um camaleão hu mano que é uma metáfora do judaísmo e dos judeus), alguém, referindo-se ao processo acelerado de assimilação nos EUA e no mundo exclamou: “Mas en

tão o judaísmo vai acabar desaparecen do”, ao que respondeu um dos debate dores: “E daí?”. Na qualidade de guardi ães da sobrevivência do judaísmo, res ponsáveis por sua continuidade (como achamos todos que somos), a plateia fi cou chocada. Sem razão. Porque se não houver quem queira ser judeu, para quê serviria o judaísmo?

Ssuaphoto /
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 63 cócegas no raciocínio
iStockphoto.com
(Continua)

O povo judeu é o povo dos que de cidem ser judeus, ou pelo menos deci dem não se afastar do judaísmo. Desde o naassévenishmá no deserto, que mar cou, na ‘multidão misturada’ de ex-escra vos, quem iria aceitar a Aliança e atra vessar um deserto para a Terra Prome tida, o judaísmo é uma opção exercida. O nascer filho de mãe judia é um facili tador, mas não um substituto da opção. Nascer de mãe judia mas não optar pelo judaísmo é fator de alienação do judaís mo e do povo judeu. Não nascer de mãe judia mas optar pelo judaísmo (até mes mo segundo a halachá, contanto que por meio dos rabinos ‘certos’ e põe aspas nisso...) é um fator de integração no ju daísmo e no povo judeu.

A opção de reiterar um naassévenish má contemporâneo e reafirmar o judaís mo o manterá vivo, e ao povo judeu. Isso não passa pela consciência do dever de ‘salvar’ o judaísmo, seja nas estatísticas seja na resposta ao quesito ‘religião’ nos parâmetros da identidade judaica. [Para quem não leu, a pesquisa do NYT res salta uma proporção crescente de judeus que afirmam não considerar que a religião judaica é elemento definidor de seu juda ísmo, ou seja, eles não se consideram se guidores de uma religião judaica.] Sem dúvida a religião é um dos constituintes básicos do judaísmo, parte do DNA do povo judeu, mas nem a história, nem o caráter, nem a identidade do povo judeu e do judaísmo se esgotam nela, o que vale dizer que a religião por si só (a cren ça, os ritos, as orações, as mitsvot) não configura o judaísmo em sua totalidade. Mas a totalidade do judaísmo inclui a re

ligião como constituinte original. Ou seja, a identidade judaica tem em sua forma ção os valores, a memória e a visão éti ca da religião judaica, mesmo que não o declaremos ou percebamos. Mesmo que não vamos à sinagoga, não jejuemos em Iom Kipur, mesmo que declaremos, inutil mente, que somos ‘ateus’. Os judeus que se reconhecem como tal, mas que não se consideram judeus por religião, ao se rem judeus têm a religião judaica embuti da em suas identidades, porque está em butida em sua história, em sua cultura e em suas vivências e comportamentos.

O mesmo acontece com Israel, em sua identidade de nação moderna, de mocrática, estado de seus cidadãos, se jam quem forem. No DNA de Israel está o judaísmo, Israel é parte da história do povo judeu e do judaísmo. A Terra Pro metida nasceu nos textos religiosos ju daicos, que se confundem com os textos históricos judaicos. Isso não contradiz sua tendência a ser o Estado moderno e democrático de todos os seus cidadãos. Mesmo que haja um dia a separação de religião e Estado, continuará a ser o Es tado do povo judeu, um Estado judaico, onde as festas históricas judaicas são fe riado nacional, onde se fala o hebraico e, sim, se estuda a Torá, porque a Torá tam bém é a história do povo judeu e da Ter ra Prometida.

Por tudo isso, pode-se resumir que enquanto houver judeus que queiram (ou concordem em) ser judeus, existi rá povo judeu. Portanto, não cabe aos judeus ‘salvar’ o judaísmo e se preocu par com as estatísticas, mas sim ‘salvar’ seu próprio judaísmo e sua pertinência

ao povo judeu. O judaísmo existe para nós, e não somos nós que existimos para ele. É a consequência de nossa opção, e não de nosso esforço por mantê-lo. E se somos judeus, se somos parte do povo judeu, sejamos indivíduos, comunidades ou o Estado judeu, não importa o que declaremos, nem com quem casemos, a religião judaica estará embutida em nos sa história e em nossa identidade. (Que não se entenda que estou compactuan do com esses fatos que a pesquisa do NYT identifica, ou minimizando sua im portância negativa, estou apenas tentan do mudar o foco de uma reação de pre ocupação com as consequências, para focar nas causas. Evidentemente, é um alerta já sobejamente ouvido e conheci do, que exige adotar uma visão proati va e contemporânea para a afirmação da opção dos judeus pelo judaísmo.)

Somos um povo de sobreviventes, sobreviventes de guerras, persegui ções, massacres e holocaustos. Sobre viventes das perdas internas por assimi lação, abandono, esquecimento, indife rença. A opção de pertencer ao povo e à história de onde viemos é o que nos faz sobreviver como povo, como história e como religião.

Nossa herança não é uma carga. Não vivemos mais em guetos, não exis tem mais muros a nos ‘proteger’. Somos como escravos libertos no deserto, o próprio destino à frente e aguardando nossa decisão, para nosso bem. Por he rança, temos direito a ser parte desse povo de tão maravilhosa história, para dizer o mínimo. Por que abrir mão dis so? Naassé ve nishmá no raciocínio

64 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
cócegas
(Continuação)
66 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.