Devarim 15 (Ano 6 - Agosto 2011)

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Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 15, Setembro de 2011 devarim Ilana Feldman Rabino Dario Bialer Rabino Sérgio Margulies A missão do Judaísmo Progressista no Brasil Mike Grabiner Oração Alêinu Leshabêach Rabino Reuben Nisenbom Lições de uma Israel empreendedora Victor Dweck David Perlov: fragmentos de uma trajetória Ilana Feldman Torá da Vida x Torá dos Livros Rabino Dario Bialer Em Hannah o meu diário Rabino Sérgio Margulies A missão do Judaísmo Progressista no Brasil Mike Grabiner Oração Alêinu Leshabêach Rabino Reuben Nisenbom Lições de uma Israel empreendedora Victor Dweck

Opovo judeu se constrói através de duas migrações relatadas na Torá. A primeira envolve um mero casal de pessoas comuns. Abraão e Sara não eram nem poderosos nem influentes quando partiram de Ur dos Caldeus, rompendo os laços com a cultura da terra de nascimento e seu fortíssimo sistema tribal. Eles partiram ao escutar uma voz que os informava que a vida não é dirigida por barganhas com ídolos concebidos a partir das necessidades instintivas dos humanos e, sim, que depende de opções pessoais e da capacidade e tenaci dade dos indivíduos em implementá-las.

A segunda migração é diferente. Em primeiro lugar en volve todo um povo e, além disto, o líder da jornada é uma pessoa proeminente, um príncipe na corte do Faraó – a personificação de Deus na Terra, segundo a crença do Egito antigo. A saída do Egito também envolve uma ruptu ra, que desta vez tem caráter político e não individual. Ao romper o ciclo da escravidão, Moisés estabelece um novo paradigma de governo que substitui o poder absoluto do governante por uma relação pactuada entre a sociedade e o Criador do universo. Uma relação que, desta forma, fica imune aos ciclos políticos e econômicos.

De comum nestas migrações que nos formam e nos definem como povo encontramos dois aspectos, um cor riqueiro e o outro mais raro. O corriqueiro é a ruptura com a situação presente, elemento que existe em todas as migrações. O fora do comum é o trajeto. Elas partem de locais ricos e poderosos – tanto a Babilônia dos Caldeus como o Egito dos Faraós eram grandes centros – e chegam a um local sem nenhum prestígio e infinitamente mais po bre que o de origem.

Talvez devamos a estas duas migrações uma das nos sas principais características como povo: somos movidos e dirigidos pelos ideais e não pela riqueza. Isto não significa que valorizamos os votos de pobreza ou que desprezamos a geração de riquezas. Muito pelo contrário, nossa religião não percebe como virtuoso o homem que se autoflagela ou que se retira do mundo para uma vida de “santa” reclusão. A virtude em termos judaicos reside nos que vivem plena mente inseridos no mundo, sem permitir que seus ideais sejam corrompidos pelas necessidades materiais. “Iafé Torá im derech eretz” (meritório é combinar a Torá com as ativi dades mundanas) decretou o Rabino Hirsch no século 18, com base nas formulações da Mishná.

Sermos movidos por ideais também não garante imu

nidade a equívocos ou a desvios individuais de comporta mento. Às vezes os ideais são mal traçados, como é o caso dos que fazem da memorização dos textos antigos sua única atividade, ou dos que percebem ser um mandamento divino a ocupação dos territórios bíblicos, mesmo ao cus to da limitação da liberdade de terceiros. Não obstante a sinceridade dos aderentes e sua forte dose de compromisso pessoal, alguns ideais judaicos da atualidade me parecem desprovidos do humanismo que sempre nos caracterizou.

O que a preponderância dos ideais sim provoca no mundo judaico é a inquietação constante. Não sabemos se estamos certos, mas com certeza estamos sempre espe culando sobre isto. A antiga piada do náufrago que cons truiu duas sinagogas na ilha e o dito “dois judeus, três opi niões” refletem de forma jocosa esta realidade. Afinal de contas, quando o objetivo da caminhada é uma constru ção filosófica idealizada, evaporam-se as certezas absolutas.

A ARI não pretende ser a “única sinagoga da ilha”. Não pretendemos ter todas as respostas e nem ao menos estamos seguros de formular sempre as perguntas corre tas. Também não somos um bloco monolítico, agregamos muitas pessoas e, como tal, abrigamos diversas opiniões e visões. No entanto, de ao menos uma coisa temos certeza: estamos sempre engajados na busca pelas respostas. Somos firmemente comprometidos com esta eterna busca. E para isto é preciso especular, é preciso estudar e, principalmen te, é preciso conhecer os fundamentos.

Devarim materializa em papel e na internet parte do debate que conduzimos na ARI. Em paralelo, pretende contribuir para as reflexões individuais dos seus leitores. Publicamos textos contemporâneos produzidos em todas as partes do mundo. Mesmo não sendo todos escritos na ARI, a quase totalidade dos textos é original – são escri tos especialmente para a nossa revista. Não concordamos com tudo o que publicamos, mas publicamos tudo o que nos parece contribuir para o debate e a abertura de ideias.

Espero que vocês gostem de mais este número da nossa revista e que continuem a contribuir com ela de todas as formas: com sua leitura, com seu incentivo, com suas opi niões e, quando possível, com o necessário apoio material.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1 editorial

Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 15, Setembro de 2011

P R e SI dente d A ARI evelyn Freier Milsztajn

R A b I no S d A ARI Sérgio R. Margulies dario e bialer

dIR eto R d A Rev IS tA Raul Cesar Gottlieb

Con S elho e d I to RIA l beatriz bach, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio R. Margulies e d I ção

Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um) e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) tainá nunes Costa • Sebastian Ribeiro

F oto GRAFIAS iStockphoto.com (capa: Peter Zelei)

t RA d U ção beatriz Gorenstin e teresa Roth

Rev IS ão de t exto Mariangela Paganini (libra Produção de textos)

Colaboraram neste número: Rabino Alexander dukhovny, Rabino dario e bialer, Ilana Feldman, João Carlos Assumpção, Mike Grabiner, Paulo Geiger, Rabino Reuben nisenbom, Ricardo luiz Sichel, Rabino Sérgio R. Margulies, victor dweck e Yoram hazony.

os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista devarim ou da ARI.

os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br devarim@arirj.com.br Administração e correspondência: Rua General Severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ biblioteca virtual devarim: www.docpro.com.br/devarim

A contracapa de devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

sumário

Torat Chaim x Torat Sefarim (Torá da Vida x Torá dos Livros) Rabino Dario E. Bialer 3

Em Hannah o meu diário Rabino Sérgio R. Margulies 11

Israel sob lentes europeias Yoram Hazony 17

Futebol e barreiras João Carlos Assumpção 23

David Perlov: fragmentos de uma trajetória Ilana Feldman 29

Lições de uma Israel empreendedora Victor Dweck 37

A missão da World Union for Progressive Judaism na América Latina e no Brasil Mike Grabiner 43

20 anos de desafios na Ucrânia Rabino Alexander Dukhovny 49

Limites para a Legalidade Ricardo Luiz Sichel 55

Oração Alêinu Leshabêach Rabino Reuben Nisenbom 63

Em Poucas Palavras 66

Cócegas no Raciocínio Paulo Geiger......................................................................................... 71

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torat Chaim × torat s efarim

( torá da vida × torá dos livros)

Quando Moshé (Moisés) ascendeu ao céu, encontrou o Santo Abençoado seja Ele, ocupado em adicionar coroas (detalhes) às letras da Torá. Disse Moshé: “Senhor do Universo, quem detém Sua mão?” (significando: há algo faltando na Torá que torna estas adições necessárias?). Deus respondeu: “Levantar-se-á um homem da qui a muitas gerações, Akiva ben Yossef é seu nome, que com elas esclarecerá cada detalhe da lei. Disse Moshé: “Senhor do Universo, permita-me vê-lo”. Ele respon deu: “Vire-se”. [E após viajar no tempo] Moshé foi e sentou-se atrás da oitava fi leira [da yeshivá de Rabi Akiva]. Não podendo acompanhar as argumentações, Moshé sentiu-se triste e desorientado. Mas quando chegaram a um certo assunto e os discípulos perguntaram ao mestre de onde ele sabia isso, Akiva respondeu: “É uma lei dada a Moshé no Sinai” e Moshé sentiu-se reconfortado.

Talmud Babilônico, Tratado Menahot 29b

Moshé e Rabi Akiva têm muitas coisas em comum. Os dois foram gigantes da Torá. Sábios e sensíveis. Mestres de inúmeras gerações. Humildes, tementes a Deus e extremamente corajosos. Pessoas iluminadas no conhecimento. Esses líderes inigualáveis na esfera pública simbolizam tudo isso e muito mais. Mas dentro de casa, na intimidade do lar, a história foi bastante diferente.

Moshé escolhe afastar-se de seus familiares mais próximos para dedicar-se in teiramente a Deus e cuidar do povo. Tanto assim que deixa de se relacionar se xualmente com sua mulher para estar sempre “puro” para uma eventual revelação de Deus. Ninguém lhe pediu para fazer isso. Também não se ocupa da circunci são de seu próprio filho, que é providenciada pela esposa. Como se a subida ao Sinai tivesse confundido suas prioridades, ele se afasta destas que também são leis da Torá que, de acordo com a tradição, ele recebe. Como se nunca tivesse descido de cima do monte e a vida na Terra fosse, para ele, apenas uma questão celestial.

rabino dario e. Bialer

Quem se dedica apenas ao estudo da Torá está na verdade profanando a Torá. Porque, na verdade, a Torá é para ser vivenciada na casa e na rua, e não na memorização dos textos nas casas de estudo.

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Mas no que diz respeito aos assuntos familiares mal resolvidos o líder supremo é Rabi Akiva e não Moshé Rabeinu. Aki va foi um analfabeto que começou a es tudar com muito esforço já adulto e che gou a ser o maior sábio de todas as gera ções de sábios. Ele é exemplo de supera ção, de persistência e de esperança. Sua figura valoriza o estudo e a luz do co nhecimento. Mas nossos heróis dos tex tos sagrados não são figuras impolutas e, em paralelo com a história reverenciada, existe uma outra história de abandono e ausência.

O trabalho, o estudo e a família

Rabi Akiva é o maior sábio da Torá da época, com milhares de discípulos que o seguem para onde for. Alcançou

o que mais queria sua alma – estudar sem pausa. Ao ultrapassar os limites sem se importar com os sofrimentos causados, Akiva foi muito longe procurar

pela Torá à qual dedicou toda sua alma e todas suas forças.

Pretendo, a partir dos exemplos de Moshé e de Akiva, questionar o compor tamento, que tantas vezes acontece conos co e que poderia ser resumido pela questão: Em nome de qual fim desconsideramos os meios? Por que em nome do trabalho e de obrigações cada vez mais exigentes acaba-se sacrificando a família?

Pergunto-me que leitura da Torá estão fazendo os que se denominam sábios e interpretam que o lugar da Torá é nas mesas de estudo das academias e distante das famílias?

Pergunto-me que tipo de amor é esse que em seu nome se justifica sair de casa durante o dia, chegar para jantar, assistir televisão, dormir e voltar a fugir no dia seguinte?

Nesse artigo vou abordar uma leitura talmúdica e, nes te contexto, interpretar as ações dos sábios, especialmente de Rabi Akiva. A discussão talmúdica se encontra no tra tado de ketubot entre as páginas 61b e 63a e começa com o trecho da seguinte mishná:

Sobre o homem que faz voto de abstinência sexual com sua esposa, a escola de Shamai ensina: [ele pode fazê-lo no máximo] por duas semanas. A escola de Hilel ensina: por uma semana [apenas]. Os estudiosos [da Torá] podem au sentar-se sem a permissão [da esposa] para estudar a lei por até trinta dias; os desempregados todos os dias; os tra balhadores, duas vezes por semana; os tropeiros1, uma vez por semana; os cameleiros2, uma vez a cada trinta dias; os marinheiros, uma vez a cada seis meses. Esta é a opinião de Rabbi Eliezer. (Ketubot perek 5 Mishná 6)

Esse texto, escrito dois mil anos atrás, aborda a conjuntura familiar de homens que precisavam se deslocar a lugares dis tantes para trabalhar, e de suas mulheres, que ficavam aguardando por eles em casa. O conteúdo dessas linhas está inserido no contexto de um tratado talmúdico que aborda os direitos e as obrigações que o es poso e sua mulher acordam quando assi nam a ketubá no dia de seu casamento. Pela época em que foi escrito é um texto revolucionário. Em primeiro lugar reivin dica os direitos das mulheres. O homem tem obrigação de satisfazer sexualmente a sua mulher, destacando o caráter sagrado do sexo na vida judaica. O sexo no juda ísmo não é nem pecaminoso nem sujo ou imoral. Muito pelo contrário, o sexo é di vino3. É a possibilidade mais concreta de elevar a vida ao plano do sagrado na capa cidade de criar nova vida a partir do encontro íntimo de um homem e uma mulher. Nesse sentido, nossa Mishná de alguma forma remete à primeira ordem de Deus a Adão e Eva: “Frutificai, multiplicai e enchei a Terra” (Bereshit / Gênesis 1:28)

A mulher, nos ensina a Mishná, tem o direito de exigir de seu esposo a relação sexual, existindo um período limi tado de tempo em que ele pode se isentar de sua obriga ção: duas semanas de acordo com Shamai e por uma sema na conforme Hilel. Essa é a norma geral, mas existem exce ções, como, por exemplo, a que contempla os que viajam por longos períodos por obrigação do trabalho.

Além destas, Rabi Eliezer também conclui que os tal midei chachamim (os estudiosos da Torá) podem sair trin ta dias de sua casa contra a vontade de sua mulher. Resul ta interessante que a Mishná só advoga a hipótese da au sência de casa sem a permissão da esposa para os estudio sos da Torá. Imagino a situação difícil de um casal onde a mulher pede ao esposo para ficar por perto e ele, no entan to, vai embora fazendo visitas mensais de apenas um dia.

Quando o trabalhador se ausenta, podemos assumir que está fazendo isso para ganhar o sustento indispensável para a família e que se pudesse fazer isso perto de casa o faria. Existe nesse caso um esforço conjunto do casal; os dois es tão se sacrificando nessa situação. Isso não acontece quando

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o talmid chacham se instala no beit midrash como residência fixa, passando em sua casa muito pouco tempo. Aban donar a esposa aí não é uma obrigação e sim uma escolha.

Até aqui orientam as palavras da Mishná. Um texto bem humano, com o foco no lar e que visa alcançar equilí brio entre os diferentes interesses e as expectativas do casal.

Próximos dos livros, distantes das pessoas

No Talmud se retoma a discussão e após comentar rapi damente particularidades dos diferentes ofícios citados, os sábios se dedicam exaustivamente a aprofundar os exem plos dos estudiosos da Torá. Vejam como é interessante o que acontece:

Falou Rav Ada bar Ahaba em nome de Rav: [isso dos 30 dias são apenas] palavras de Rabi Eliezer, mas os sábios opinam que os estudiosos da Torá podem sair a estudar sem a permissão de sua esposa por dois a três anos!

Ou seja, os amoraim – sábios da época talmúdica – na Babilônia contradizem a Mishná, que fala em um máximo de trinta dias, e estendem o período para vários anos, segu ramente para justificar uma prática habitual entre eles, de sair para estudar em batei midrash distantes, abandonan do as famílias por muitos anos. Ao fazer isto eles surpre endentemente contradizem uma norma explícita de fonte mais antiga, como é a Mishná, que é algo que não pode riam fazer pelas regras hermenêuticas tradicionais.

São muitas as histórias registradas no Talmud de sábios que alcançam sua sabedoria próximos dos livros, mas distantes das pessoas. É bem provável que o interesse de quem compilou estes textos era demonstrar a tensão que existe entre a halachá e a realidade, entre o comportamento que se espera que um homem tenha com sua mulher e as ati

tudes que assumem os homens amantes da Torá. Nesta se ção do Talmud aparecem sete contos. Analisarei apenas o primeiro e o último, mas quem tiver interesse em aprofun dar no tema pode ler a série completa de histórias no tratado de Ketubot ou na bibliografia de referência que apa rece no final do artigo.4

Eis a primeira história:

Rab Rachumi, que estudava na escola de Rabá em Ma chuzá, costumava ir para casa todo ano, na véspera do dia de Iom Kipur. Porém, certa vez ficou absorvido no estudo da Torá e não foi. A esposa o esperava: “Já está chegando, já está chegando”. Mas ele não veio. Ela ficou tão abatida que as lágrimas começaram a brotar de seus olhos. Neste momento o marido estava sentado num terraço; o terraço despencou e a alma [do rabi] repousou.

O texto esconde várias ironias. Primeiramente o nome do protagonista, Rachumi, deriva da palavra rachamim em hebraico, misericórdia, justamente tudo o que ele não de monstrou no relacionamento com sua esposa. O relato su tilmente coloca o sábio direta e permanentemente no bet midrash. Ele não faz o percurso de sua casa para lá, o texto sugere que ele pertence à casa de estudos e que é um visitan te em sua casa. Nessa história o ponto de referência muda completamente. Se na Mishná o foco é a casa e a família, nesta história do Talmud fica bem claro que o lugar do sá bio é na casa de estudos e os livros, a sua melhor companhia.

Continuando com as ironias do texto, Rachumi, que voltava à casa apenas uma vez no ano, o fazia precisamen te no dia de Iom Kipur! Embora seja este um dia muito sagrado, não é preciso ser um grande conhecedor da Torá para saber que precisamente neste dia estão proibidas as re lações sexuais. E que o tempo que Rachumi ficaria em casa neste dia era bem limitado.

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Rab Rachumi é um rabino que entende tudo da lei, mas é um homem que se distancia completamente de qualquer tipo de obrigação familiar, que também é lei! Mas quem sabe? Talvez voltar em Iom Kipur seja a forma que ele tem de pedir perdão pelo mal que faz sentir aos que fo ram abandonados por ele.

Mas um ano se deixou vencer por aquela voz interior que o motiva a per manecer entre os livros e não voltou para casa. Esse “Agora ele vem...” da esposa é a súplica de uma mulher que não deixa nunca de acreditar; que espera o na morado na janela, dando (mais uma vez) um voto de con fiança, até que perde as esperanças e chora, e a lágrima que cai de seu rosto expressa esse lar definitivamente destruí do por Rab Rachumi. Chora a mulher as lágrimas da au sência, lágrimas de perda, as lágrimas de uma mulher vi úva de um marido vivo. E justamente quando ela chora sua viuvez inexplicável, se torna viúva de verdade, pois o terraço desaba e Rachumi morre.

A sétima história, a que fecha o conjunto de contos no tratado de Ketubot que começa com a de Rachumi é a que está abaixo. Com matizes diferentes expressam a mes ma tragédia, o mesmo desamparo e o mesmo fanatismo.

Rabi Akiva era um pastor de Ben Calba Savua (um dos homens mais ricos de toda Jerusalém). Vendo a filha dele que Akiva era recatado e honesto, disse-lhe: “Se eu me noi var contigo você irá para a escola?” Sim, ele respondeu. Casaram-se em segredo e ele foi para a escola. Quando o pai dela descobriu, a expulsou de casa e fez um testamento em que ela não obtinha benefício algum de seus bens (por se tratar de um humilde pastor). Rabi Akiva ficou doze anos na escola. Quando regressou trouxe consigo doze mil discí pulos e escutou um ancião dizer à sua esposa: “Até quando seguirás sendo viúva de marido vivo?” Se ele me escutar –respondeu ela – ficará ali por mais doze anos. Pensou en tão Rabi Akiva: “Tenho sua autorização”. Foi-se e perma neceu na escola por mais doze anos, para depois voltar com vinte e quatro mil discípulos.

Os dois protagonistas desta história demonstram uma grande falta de equilíbrio. A mulher era poderosa, herdei ra do homem mais rico da região, enquanto Akiva era um simples e pobre pastor. O final do conto inverte os pa péis. Ele é o maior sábio da Torá da época, com milhares

de discípulos que o seguem para onde for. Ela é uma mulher desamparada, “uma vi úva de marido vivo” que não apenas não compartilha da riqueza do pai, como tam bém não compartilha dos grandes conhe cimentos adquiridos pelo esposo. O gran de beneficiado dos enormes sacrifícios da esposa foi Akiva, que realiza seu sonho. Alcança o que mais queria sua alma – es tudar sem pausa. Não por acaso dele se diz que na sua vida nunca abandonou o Beit Midrash e nunca interrompeu o estudo, salvo na noi te de Pessach e na véspera do Iom Kipur (Pessachim, 109a).

O triste desta história é que ele nem percebe o dano que causa e isso o converte no mais extremista de todos os sábios. É isto que se define como fanatismo. Ao ultrapassar os limites sem se importar com os sofrimentos causados, Aki va foi muito longe procurar pela Torá à qual dedicou toda sua alma e todas suas forças. No entanto, só viu a sua espo sa três vezes em vinte e quatro anos.

Mas, e a Torá dentro de casa? E o casamento? E a mu lher? E ter filhos, aquele mandamento básico? Acaso essas normas não estavam na Torá que o grande mestre estuda va e ensinava? Será Akiva tão hipócrita como os líderes que dizem uma coisa e fazem outra?

Rabi Akiva disse: Todo aquele que incorre no derramamento de sangue (assassinato) despreza sua semelhan ça com o divino. Rabi Eleazar ben Azaria disse: Todo aque le que não se ocupa de multiplicar a espécie, despreza seu criador, conforme está escrito: “Porque à Sua imagem e se melhança criou ao homem. E quanto a vocês: multiplicai”. Ben Azai disse: Todo aquele que não se ocupa de multipli car a espécie é como se estivesse derramando sangue e des preza a seu Criador (...). Respondeu-lhe Rabi Eleazar ben Azaria: Agradáveis são as palavras quando saem da boca de quem as cumpre (...).

Tosefta Iebamot 8, 7

A quem responde Rabi Eleazar? De forma direta, a Ben Azai, que era solteiro e, portanto, não cumpria com a mitz vá básica e fundamental de se reproduzir. Mas indireta mente está falando também a Rabi Akiva.

Ben Azai sabe que está agindo de forma errada. Ele mesmo diz que quem não tem filhos se assemelha a um Encontra-se fanatismo em todos os lugares. Das formas mais visíveis e devastadoras às alternativas silenciosas e aparentemente civilizadas.

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assassino e despreza Deus, mas ele tem a honestidade de confessar que não conse gue cumprir a mitzvá porque sua alma está completamente preenchida pela Torá e não lhe sobra tempo para a vida familiar.

Rabi Akiva, no entanto, é quem ver dadeiramente pronuncia palavras que não cumpre. E mesmo sendo Rabi Akiva glo rificado como o maior estudioso da Torá, Ben Azaria e Ben Azai estão nesse texto simplesmente destroçando a “santidade” de Akiva e denunciando que suas pala vras são vazias, posto que não as cumpre.

O tratado de Nedarim 50a registra uma outra versão da história de Rabi Akiva e sua esposa. Após o casamento eles fogem e, de tão po bres que eram, se veem obrigados a dormir no chão de uma granja no inverno.

O sexo no judaísmo não é nem pecaminoso nem sujo ou imoral. Muito pelo contrário, o sexo é divino. É a possibilidade mais concreta de elevar a vida ao plano do sagrado na capacidade de criar nova vida a partir do encontro íntimo de um homem e uma mulher.

Ele tirava palha do cabelo dela enquanto lhe dizia: “Se tivesse dinheiro, te compraria uma Jerusalém de ouro (um imponente e delicado diadema de ouro)”. Um dia, pas sou na frente da sua porta o profeta Eliahu com o aspec to de um pobre. Bateu na porta e disse: “Dê-me um pouco de palha. Minha mulher acaba de dar à luz e não tenho nada para que ela possa deitar em cima”. Rabi Akiva en tregou a palha e disse para sua esposa: “Olhe esse homem. Não tem nem sequer palha”. E ela lhe disse: “Vá estudar na casa do mestre”. (Seguramente para não acabar tão po bres quanto Eliahu.)

“Se tivesse dinheiro, te compraria uma Jerusalém de ouro.” Palavras bonitas, sem dúvida, mas vazias de conteúdo, pro messas bem distantes das escolhas feitas posteriormente. Essa mulher renuncia à casa do pai em troca de uma outra casa que nunca foi construída.

A que Jerusalém de ouro se referia Akiva? Talvez a “Ye rushalaim shel mala”, a Jerusalém celestial, a Jerusalém do tempo messiânico? Essa parece ser a única Jerusalém que o sábio conseguiu enxergar.

Jerusalém é uma cidade propensa ao fanatismo. Cheia de profetas espontâneos, redentores e messias. Cada um com sua fórmula pessoal de salvação instantânea, todos di zem (como disse a conhecida canção israelense) que “vie ram à Jerusalém para construí-la e para serem construídos por ela”. Entre aqueles sábios são famosos os midrashim que explicam que no interior de cada ser humano exis

te uma luta entre o ietzer ha tov e o iet zer ha ra, o instinto do bem e o instin to do mal. Frenkl, um interessante estu dioso do Talmud, interpreta que o drama em nosso relato é que se dá uma luta en tre o tov e o tov, entre duas coisas boas, dois valores positivos: a Torá e a família. Eu discordo desta análise. Vejo nes sas histórias, que acabam em tragédia, um “remake” da batalha milenar dos instintos, só que citados com termos mais mo dernos. É uma luta entre o fanatismo e a moderação e não entre um bom e outro bom. “Entre aqueles que acreditam que o fim, qualquer fim, justifica os meios e, os demais, que acreditam que a vida é um fim em si e não apenas um significado”, escreve Amos Oz em seu livro Contra o Fanatismo “É uma luta – continua o escritor is raelense – entre os que acham que a justiça, ou o que quer que se queira dizer com a palavra justiça, é mais impor tante do que a vida e aqueles para quem a vida tem prioridade sobre muitos outros valores, convicções ou crenças (...) O fanatismo é, infelizmente, um componente onipre sente da natureza humana.”

Encontra-se fanatismo em todos os lugares. Das for mas mais visíveis e devastadoras às alternativas silenciosas e aparentemente civilizadas. Está nas igrejas e nas sinagogas, nas universidades e nos governos, nas favelas e nos condo mínios fechados e, sem sombra de dúvida, também nas ca sas de estudo onde estudiosos da Torá fogem do mundo terreno. Afastam-se de suas casas tanto que se tornam des conhecidos diante de seus próprios familiares.

O Beit Midrash é para eles um refúgio das ameaças do exterior. Mas isso é ilusório, porque uma vida de reclu são não protege dos golpes da vida. E, mais do que isso, é um comportamento tremendamente egoísta porque ape nas eles cabem dentro do refúgio. Suas famílias e o res tante de seu povo ficam do lado de fora, trabalhando para sustentá-los.

Para fazer com que os demais os sustentem eles pre cisam tornar sua atividade nobre aos olhos dos demais e é por isso que no final das contas Rabi Akiva acaba mais reverenciado que Ben Azai e Ben Azaria na memória co letiva judaica. Estranhamente o ser humano tem a pro pensão de valorizar o fanático. Mas o Talmud denuncia

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o comportamento de Akiva e até o ridiculariza (“apenas as palavras dos que agem conforme falam são doces”).

A tragédia de Rabi Akiva

A história de Rabi Akiva acaba com muito sofrimento. Primeiro, conforme documentado no Talmud, com a mor te de seus 24.000 discípulos numa peste que aconteceu de acordo com a tradição durante o período do Omer e de pois com sua própria morte terrível nas mãos dos romanos.

Mas existe uma outra tragédia na vida dele, uma histó ria não muito conhecida, que aparece num tratado menor do Talmud. Quando Rabi Shimon, filho de Rabi Akiva, fi cou doente, este não interrompeu seus estudos no Beit Mi drash. Chegaram a ele mensageiros [para reportar o estado de saúde de seu filho]. O primeiro lhe disse: “Ele precisa [de ajuda]”. Rabi Akiva disse a seus alunos: “Perguntem” (ou seja, continuou com o estudo). Veio o segundo e dis se: “O estado se agravou”. Rabi Akiva e seus alunos conti nuaram a estudar a Torá. O terceiro disse: “Está moribun do”. Akiva disse aos alunos: “Perguntem”. Até que o quar to disse: “Ele morreu”. Rabi Akiva se pôs de pé, rasgou suas vestes e lhes disse: “Até agora estávamos obrigados a estu dar a Torá, a partir de agora nossa obrigação é ocupar-nos de honrar o morto”. (Semachot 8a)

Se Akiva já estava sendo radical na ausência de casa, no episódio da doença do filho ele ultrapassa todos os limites. Ele aprendeu toda a Torá (o que de forma equilibrada seria digno de louvor), mas a mensagem subliminar do Talmud é que o grande conhecimento de Akiva foi conseguido de for ma extrema e com comportamento fundamentalista e que,

portanto, foi incapaz de garantir o bem-estar de suas deze nas de milhares de discípulos, de sua família e dele próprio.

É necessário ler com atenção os textos para extrair suas mensagens. As leituras apressadas – “twitter-style”5– pro duzem apenas fanáticos desconectados da profundidade e da beleza da vida e incapazes de construir um futuro tan to para si como para suas famílias e seu povo.

Traspondo para os dias de hoje, percebo que quem se dedica apenas ao estudo da Torá está na verdade profa nando a Torá. Quando em nome da Halachá as pessoas se afastam umas das outras, quando em nome da kasherut os filhos já não se sentam na mesa dos pais e vice-versa. Porque na verdade a Torá é para ser vivenciada na casa e na rua, e não na memorização dos textos nas casas de estudo.

A Torá deve emanar dos livros para a vida e não ficar fechada neles. Não por acaso nossa Torá é chamada de Torat chaim (a Torá da vida) e não Torat sefarim (a Torá dos livros).

Notas

1. Que trazem para a cidade os produtos do campo, em viagens não muito longas para a época.

2. Que partem em caravanas para lugares distantes.

3. Para aprofundar nesse conceito recomendo o livro Heavenly sex. Sexuality in the Jewish Tradition, New York University Press, 2000.

4. Bibliografia: Boayarin, Daniel, Ha Basar she baruach; Elon, Ari, Alma Di (Sh demot, 1990); Elon, Ari, Ba el ha kodesh (Yediot Achronot, Jerusalém, 2005) e Frankl, Iona, Iunim be olamo ha ruchani shel sipur hagada (1981).

5. Ver Donniel Hartman em http://www.hartman.org.il/Blogs_View.asp?Article_ Id=742&Cat_Id=273&Cat_Type=Blogs

Dario E. Bialer é rabino e serve à Associação Religiosa do Rio de Janeiro – ARI.

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Nascida na Hungria, Hannah Senesh escreveu um diário, cartas e poemas.

e m h annah o meu diário

rabino sérgio r. margulies

Uma menina diferente como qualquer outra...

Era uma menina que, como outras, sonhava e amava sua família. Era uma família como outras, que queria viver em amor e que pertencia a um povo com sua fé. Uma fé como outras, que buscava o respeito aos valores e um vínculo espiritual. Um povo que queria fazer parte de um país, como outros povos que compõem a sociedade de um país. A me nina acabou não sendo como tantas outras apesar dos sonhos, da família, da pertinência comunitária, porque o lugar em que vivia não foi para todos que estavam lá um lugar que permitia todos serem como são.

A menina chama-se Hannah. A família, Senesh. O povo, judaico. O país, Hungria. Para aquele povo o país não foi um lugar em que a família Senesh po deria ser como qualquer outra e a menina Hannah uma entre tantas que ape nas queria crescer feliz. No fundo, paradoxalmente, a história da comunidade judaica na Hungria foi como a de muitos outros países. Ora a comunidade ju daica era bem recebida, ora expulsa; ora com direitos assegurados, ora espolia dos, ora aceitos, ora discriminados. Nos anos trinta do século passado a digni dade era definitivamente sepultada. Foram encarcerados como gado e subnu tridos como nem o gado o é. Os corpos esquálidos queimados. A fumaça subia ao céu, mas ninguém via. Ou simplesmente fingiam não ver. Alguns escrevem. Opõem-se aos que fingem não ver. Escrevendo, em meio à incompreensível situação do homem desnudo de sua humanidade, tornam-se diferentes de tantos outros. Escrevendo deixam um legado de hu manidade quando o significado desta palavra queimava junto com os corpos

Hannah Senesh nasceu em 17 de julho de 1921 e faleceu em 7 de novembro de 1944. Nos curtos anos de sua vida deixou o registro de uma vida longa na sensibilidade da alma conjugada com a firmeza do propósito de resgatar o ser humano de si próprio.

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nas câmeras. Escreveu a menina Hannah um diário, cartas e poemas. Nasceu em 17 de julho de 1921. Agora celebramos os noventa anos de seu nascimento. Fa leceu em 7 de novembro de 1944. Nos curtos anos de sua vida deixou o registro de uma vida longa na sensibilidade da alma conjugada com a firmeza do pro pósito de resgatar o ser humano de si próprio.

Que sonhava...

Sonhos movem a vida. Impulsionam o futuro. Acalentam esperança. A alma sem sonhos é como um corpo desidrata do. Hannah tinha sonhos singelos, como o de se tornar escritora. Ao relatar seu so nho mostra que não devemos deixar os sonhos armazenados num canto perdido do baú da memória. Cada sonho é singelo enquanto movi do pelo desejo de encontrar a plenitude da existência, não para ser melhor que alguém, mas apenas para ser o que se pode e se quer ser. Assim, escreve Hannah que a realiza ção de seu sonho não vem acompanhada do anseio de ser uma pessoa especial.

A mensagem de Hannah faz-se atual e necessária para que não sejamos reféns de fantasias que instigam o nosso afastamento da realidade. Para que não sejamos reféns de discursos que nos desconectam do mundo, prometendo mudar, mas na verdade nos incapacitando de ter uma ação de transformação efetiva.

Sonhos que foram ameaçados...

A jovem Hannah – como tantas ou tras que crescem – temia por ver seus sonhos comprometidos pelas vicissitu des da vida. Perdas e ganhos, fracassos e sucessos são variáveis imprevisíveis na equação da vida. Hannah teve seu golpe ao perder aos 13 anos de idade seu pai. Fatalidade. No entanto, não foi a fata lidade que ameaçou cercear os voos de seus sonhos. Foi a segregação. Já na es cola “eles não queriam um judeu – eu ocupando um cargo [na sociedade lite rária] – o que me dói muito”. Isto não era fatalidade e sim previsível diante do antissemitismo arraigado e de seu uso como instrumento de poder. Previsível, mas inimaginável, pois julgamos que os erros do passado não vão se repetir. Ini maginável, pois buscamos um equilíbrio negando os pro blemas (ou parte deles) que nos cercam. Inimaginável, pois inconcebível a degradação que um ser humano pode submeter o outro.

Em referência a outro sonho – o de se estabelecer na terra de Israel – diz: “Eu farei tudo que estiver em meu poder para tornar este sonho mais próximo da realida de – ou em reverso, tornar a realidade mais próxima do sonho”. Diante do pesadelo da Segunda Guerra escreve: ‘‘Eu sonho e planejo como se nada estivesse acontecen do no mundo, como se não houvesse guerra, destruição, como se milhares entre milhares não estivessem sendo mortos diariamente”.

A mensagem de Hannah faz-se atual e necessária para que não sejamos reféns de fantasias que instigam o nosso afastamento da realidade. Para que não sejamos reféns de discursos que nos desconectam do mundo, prometen do mudar, mas na verdade nos incapacitando de ter uma ação de transformação efetiva. A mensagem se faz atual e necessária para que, de outro lado, não sejamos prisionei ros do fatalismo, não caiamos nas armadilhas que anun ciam o apocalipse e que criam bodes expiatórios artificiais para as mazelas da realidade.

A infância de Hannah acabava precocemente diante do inconcebível advento da Shoá. O futuro demonstrava-se sombrio, pois não iluminado pelos ensinamentos do pas sado. O futuro se apagava juntamente com a memória: “Eu não posso entender as pessoas; como elas esquecem rapidamente... por que toda esta matança?”

A mensagem poética de Hannah Senesh é como um canto pela vida. Hannah, ainda que apreensiva com o futuro, consegue dançar. Dança ao ritmo do canto que ameaça cessar. É como o canto de qualquer Hannah: desde Hannah da Bíblia até uma Hannah conhecida como Anne Frank, que também escreveu seu diário. Ou desde Hannah Arendt em seu estudo sobre o antissemitismo e o totalitarismo, até mesmo de uma Hannah Montana que simplesmente canta o entusiasmo da vida. Pode ser a poesia da vida de qualquer Hannah e de qualquer menina, criança e adolescente. De qualquer um que não quer secar as lágrimas diante do descaso pelo sofrimento e recusa ser insensível ao inconcebível. De qualquer um que não quer ser cúmplice do desprezo pela memória.

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E restaurados com fé...

Diante da humanidade que ruía e da vida esmigalhada, que sonho seria possível? Talvez a fé pudesse preencher o vazio dos sonhos fragmentados. Uma fé que clama a Deus e que roga pela resposta humana:

“Meu Deus, meu Deus, Que nunca se acabe O mar, a areia,

O barulho das águas O estrondo do céu

A reza do ser humano”.

Fé é busca. Não necessariamente encontro. O encontro pode gerar a supremacia de quem se sente ilumi nado, escolhido ou ungido. A busca reconhece que te mos que caminhar e coloca em prova a capacidade hu mana de não ancorar, seja diante do horizonte a ser des bravado, seja diante das tormentas a serem enfrentadas. Hannah busca:

“Dê um sinal, Ó Senhor, dê um sinal neste semblante Que neste calor, fogo e queima possa Conhecer a pura, eterna fagulha, Do que eu busco: o verdadeiro ser humano”.

As palavras de um livro de oração enquanto reza do ser humano e enquanto procura do verdadeiro ser que habi ta em nós são como um diário de uma vida. Do diário de Hannah – ou nosso –, mesmo que não escrito através de palavras, mas redigido por atos, emoções e pensamentos, serão sempre palavras da vida.

Para dar luz a novos sonhos...

Sonhos adormecidos podem despertar. Assim foi com o sonho judaico de realização sionista através do resta belecimento na terra de Israel de um país soberano. So nhos podem nos transportar. Assim foi com Hannah Se nesh. Deixou o lugar desolado que coibia a existência ju daica e rumou para a terra de Israel. As condições precárias daquela terra, então colônia britânica, poderiam ca racterizá-la como desolada. No entanto, Hannah não via desolação porque ali enxergava o futuro. O Danúbio de Budapeste estava desolado e o deserto de Judá encanta dor, o vale do Reno estava desolado e o vale [Emek] de Jezreel inspirador.

“Da onde vem a nova luz e voz, Da onde vem a retumbante canção à mão?

Da onde vem o novo espírito e a nova fé?

De você, fértil Emek, de você, minha terra.”

As palavras de um livro de oração são como um diário de uma vida. Royce DeGrie / iStockphoto.com

Em Israel, Hannah encontrou a chance de realizar algo que fosse transcendente e trabalhou para atingir metas que correspondessem aos milenares anseios do povo judeu. Assim, mesmo a pequena terra de Israel era grande o sufi ciente “para trazer a luz dos eternos valores humanos, a luz de Deus”.

Quando nos resignamos diante das circunstâncias e nos sentimos impotentes para alterar o rumo da vida, a jornada de Hannah vem à tona como referência da força transfor madora. Embora a história tenha feito dela uma heroína, não era e não pretendia ser. Por isto torna-se exemplo fac tível de busca por um sentido para a vida, em que a reali zação pessoal não é à expensas da dedicação aos outros, tal como a conquista particular – seja de um indivíduo, seja de um povo – pode ser acompanhada pela conquista de to dos. Antítese do individualismo e hedonismo contempo raneamente tão difundidos e assimilados.

Sem abandonar os que ficaram...

Alguns anos após ter se estabelecido em Israel, Han nah se junta aos partisans que lutavam contra os nazistas

na Europa. Preocupava-se com o sofrimento dos que na quele continente permaneciam com a vida ameaçada. En tre eles sua mãe a quem já aos 12 anos fez a seguinte dedicação como uma oração:

“Que haja agradecimento em seu coração

E nos seus lábios uma prece, Quando quer que seja escutada a mais linda palavra: Mãe”.

E a quem dedica um de seus últimos poemas escrito já na prisão da Gestapo onde estava após ser capturada em sua missão:

“Não sei o que dizer – somente isto: Um milhão de obrigados, e perdoe-me se puder. Você sabe tão bem porque palavras não são necessárias”.

A poetisa que registra seus sentimentos através da pa lavra afirma que palavras não são necessárias. Talvez reco nhecesse o quanto são inócuas as palavras que não ense jam ação e o quanto são limitadas as palavras para expres

Hannah Senesh uniu-se aos partisans que lutavam contra os nazistas na Europa. Pavila
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sar a profundeza do sentimento humano. Ao pautarmos as decisões e os objeti vos de vida urge que uma pergunta seja acrescentada: quem está conosco, quem deixamos para trás e queremos trazer de volta? Quando tantas palavras pro liferam de modo irrestrito pelos vários meios de comunicação emerge a ques tão: será que são necessárias e o que é ne cessário para que estas palavras sejam re almente significativas?

No enfrentamento da batalha da vida.

Sonhos adormecidos podem despertar.

Assim foi com Hannah Senesh. Deixou o lugar desolado que coibia a existência judaica e rumou para a terra de Israel. As condições precárias daquela terra, então colônia britânica, poderiam caracterizá-la como desolada. No entanto, Hannah não via desolação porque ali enxergava o futuro.

Mesmo presa, torturada e condenada pelos nazistas, Hannah transmitiu entu siasmo para outros prisioneiros exortan do-os a não se abaterem. Hannah este ve sempre pronta para os enfrentamentos, pois sabia já em seus quinze anos de ida de que a mais difícil batalha é lidar consigo própria. No fundo esta é a batalha de todos nós. Enquanto dispostos a enfrentar esta batalha, nenhuma vida cessa. Nenhum diá

O que é necessário para que as palavras sejam realmente significativas?

rio termina. Nenhuma poesia finda. Nenhuma luz perde seu brilho.

“Há estrelas cuja radiância é visível na terra embora já estejam extintas há muito tempo. Há pessoas cujo brilho con tinua a nos iluminar embora não mais estejam entre os vivos.”

Estas palavras de Hannah se apli cam ao legado que ela própria deixou, aos legados que dispomos receber como exemplos de vida e ao legado que trans mitimos.

Nota: As citações e traduções livres adap tadas por este autor são extraídas do livro Hannah Senesh – Her Life and Diary (NY, Schoken Books, 1971).

Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union Colle ge (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

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i srael so B lentes europeias

Yoram hazony

Israel é denunciado continuadamente na mídia internacional e nos campi universitários por supostas violações aos direitos humanos. A última gran de campanha aconteceu no ataque à flotilha turca que pretendeu violar o bloqueio à Faixa de Gaza. Daqui a alguns meses será alguma outra coisa: ou um incidente numa barreira, ou uma ação contra terroristas, ou algo dife rente. O motivo ainda não sabemos, mas a campanha certamente virá. Independentemente do fato em si e da habilidade dos porta-vozes de Israel, sabemos com certeza que a consequência do futuro incidente será mais um vi lipêndio contra Israel. Sabemos que mais uma vez não seremos tratados como uma democracia defendendo sua liberdade e sim como uma vergonha para a humanidade. Novamente veremos tudo o que consideramos justo e precioso sendo pisoteado. Nos envergonharemos pelos judeus que tentam se dissociar de Israel, e até mesmo do judaísmo, no esforço vão de melhorar a sua imagem frente aos amigos. E mais uma vez subirá o nível de antissemitismo.

Quanto às reações dos amigos de Israel diante das campanhas de difama ção, elas se dividem assim: os que tendem à esquerda culpam as políticas israe lenses e os que tendem à direita culpam a falta de habilidade das relações pú blicas. Sem dúvida que Israel poderia ter políticas melhores e relações públicas mais competentes, porém, na minha visão, nem uma coisa nem a outra altera ria a situação porque nenhuma das duas está no cerne do problema.

Nada evidencia melhor este fato do que a retirada de Gaza em 2005, que criou um Estado islâmico beligerante a 40km de Tel Aviv. Há os que julgam que isto foi favorável aos interesses de Israel e há os que discordam, mas todos percebem que a retirada em nada mudou a onda de difamação que sofremos. O que quer que esteja movendo a tendência de aumento do ódio contra Israel

Quanto às reações dos amigos de Israel diante das campanhas de difamação, elas se dividem assim: os que tendem à esquerda culpam as políticas israelenses e os que tendem à direita culpam a falta de habilidade das relações públicas.

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move-se independentemente dos acontecimentos. Para os nossos opositores, fatos nada são além de oportunidades para ali mentar mais ódio. E enquanto não enten dermos qual o motivo disto seremos in competentes para combater esta gravíssi ma tendência.

O restante deste texto será dedicado ao entendimento do que efetivamente está por trás da objeção a Israel.

Os paradigmas e os fatos

Em 1962 o professor de Berkeley, Thomas Kuhn, publicou o livro The Structure of Scientific Revolutions, que ex plica como funciona a busca pela verda de no mundo científico. Kuhn argumen ta que a visão tradicional – na qual cien tistas conduzem experiências replicáveis e acumulam fatos verificáveis, ambos cons tituindo o corpo das verdades científicas – não é real. O que acontece de verdade é que os cientistas são treinados para ver o mundo através de um conjunto inter -relacionado de conceitos, que ele apelidou de paradigma. O paradigma não apenas determina a interpretação que o cientista dá aos fatos, como identifica quais fatos serão interpretados. Os fatos que não se conformam ao paradigma são descartados como irrelevantes.

Nada evidencia melhor este fato do que a retirada de Gaza em 2005, que criou um Estado islâmico beligerante a 40km de Tel Aviv. Há os que julgam que isto foi favorável aos interesses de Israel e há os que discordam, mas todos percebem que a retirada em nada mudou a onda de difamação que sofremos. O que quer que esteja movendo a tendência de aumento do ódio contra Israel move-se independentemente dos acontecimentos.

algo completamente diferente para ele. Como então os cientistas mudam suas mentes? Kuhn diz que em muitos casos eles nunca mudam e que toda uma gera ção tem que desaparecer antes que a co munidade científica abrace um novo pa radigma. Max Planck, ao analisar sua carreira escreveu: “Uma nova verdade cientí fica não triunfa pelo convencimento de seus oponentes, mas porque seus oponentes final mente morrem e surge uma nova geração familiarizada com a nova verdade”. Aliás, desde Darwin conhecemos uma análise similar sobre este processo.

A deslegitimação de Israel

As ideias de Kuhn tiveram grande im pacto na academia. No campo das relações internacionais estudos concluíram que as nações também são percebidas conforme um conjunto fechado de conceitos – um paradigma – e que suas ações, indepen dentemente da forma como são realiza das, pouco fazem além de reforçar expec tativas preexistentes.

Kuhn também demonstrou que as coisas não aconte cem sempre assim. A história da ciência é pontilhada por momentos de mudança de paradigma, tal como quando a física aristoteliana foi desbancada pela newtoniana e quan do esta foi substituída pela ciência de Einstein. Kuhn cha mou estes momentos de “revoluções científicas” e em seu li vro ele disseca dezenas destas situações. Kuhn afirma que só cientistas que aceitam os mesmos paradigmas discu tem. Não há um processo de persuasão entre os que sus tentam paradigmas opostos fazendo com que dificilmente um lado consiga provar suas teses ao outro.

Nem uma montanha de fatos será capaz de mudar a mente de um cientista que foi treinado no contexto de um paradigma diferente, porque a estrutura pela qual ele enxerga o mundo é diferente e os fatos em si significam

No entanto, percebo que o pensamento de Kuhn ain da não impactou a forma como os amigos de Israel lidam com a progressiva deslegitimização do país na arena inter nacional. A maior parte ainda está convencida que se os fatos forem mais bem conhecidos ou melhor apresentados a visão sobre Israel melhorará consideravelmente.

Infelizmente não me parece que isto seja verdadeiro. Ven cer as batalhas da mídia é necessário para a defesa de Israel a curto prazo, porém estes embates pouco farão para melhorar a posição de Israel. Esta vem se deteriorando não por conta de um conjunto de fatos, mas porque o paradigma pelo qual as pessoas educadas do Ocidente enxergam Israel mudou. Estamos testemunhando a transição de paradigmas no que diz respeito à legitimidade de Israel como nação soberana.

O antigo paradigma, que é o que garantiu legitimida de ao Estado de Israel como a nação-estado do povo ju deu, é fruto do pensamento que entendeu ser a liberdade dos povos dependente do direito de se defender do assalto predador dos impérios multinacionais. A história moder

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na dos Estados nacionais surgiu da luta da Inglaterra e da Holanda contra as pretensões universais do Império His pânico-Austríaco dos Habsburgos.

A derrota do ideal universal na Guerra dos Trinta Anos em 1648 levou ao estabelecimento de um novo paradig ma político na Europa, no qual um revitalizado conceito de Estado nacional adquiriu o direito de defender sua for ma de governo, suas leis, sua religião e seu idioma contra a tirania dos impérios. A proposta de Herzl de um estado soberano para o povo judeu era aderente a este modelo.

Contudo, a ideia da nação-estado não apenas deixou de florescer no período subsequente ao da fundação do Esta do de Israel, como entrou em colapso. Com o movimen to em direção à União Europeia, as nações da Europa es tabeleceram um novo paradigma pelo qual a nação-estado soberana não só deixou de ser percebida como a detentora da chave para o bem-estar da humanidade como passou a ser vista como a fonte de um mal incalculável. Por que tantos franceses, ingleses e outros estão dispostos a desmon tar seus Estados e trocá-los por um regime internacional? É preciso lembrar que visões divergentes às de nação-esta do se desenvolvem desde 1795 a partir das ideias de Kant.

As duas guerras mundiais do século 20 são as responsá veis pela mudança de paradigma. Os soviéticos e os marxis tas atribuíram a carnificina das duas guerras mundiais ao mo delo das nações-estado. Este argumento teve pouca acolhida na Europa do entreguerras, mas tudo mudou após a Se gunda Guerra, quando o nazismo foi visto como o fruto po dre da nação-estado alemã. O fato das nações se armarem e deliberarem internamente como usar seu poder militar pas sou a ser percebido como barbárie e uma brutal degradação da humanidade.

Quero deixar claro que, no meu ponto de vista, esta li nha de argumentação é absurda. O cerne da ideia da na

ção-estado é a autodeterminação política dos povos, o que limita suas aspirações políticas ao governo de apenas uma nação. O estado nazista foi o exato oposto disto ao ten tar reproduzir o Santo Império dos Habsburgos. Contudo, muitos europeus não pensaram assim e adotaram a vi são de que o nazismo foi fruto do conceito de nação-esta do levado ao seu extremo mais terrível.

A visão pós-nacional encontrou seguidores em toda a Europa e o fato é que, em 1992, apenas uma geração após a Segunda Grande Guerra, os líderes europeus fir maram o Tratado de Maastricht estabelecendo a União Europeia como um governo internacional, que retirou dos Estados-membros vários poderes históricos da inde pendência nacional.

Muitos não aceitam este curso de ação e ainda não está claro se as nações-estado da Europa conseguirão reter al guns aspectos de sua soberania ou se os Estados indepen dentes da Europa serão em breve meras lembranças. No entanto, estamos testemunhando o nascimento de uma geração que, pela primeira vez em 350 anos, não reconhe ce a nação-estado como fundamental para a liberdade. Há um novo e poderoso paradigma sendo formado, com sé rias consequências.

A lição da tragédia

Sinto uma dor no coração ao pensar na perspectiva da Grã-Bretanha, que foi culturalmente uma luz para o mundo, desaparecer para sempre do palco da história. Mas o foco deste texto é Israel, então analisemos como nosso país é visto à luz do novo paradigma que está se espalhan do pela Europa.

Consideremos Auschwitz. Para a maioria dos judeus Auschwitz tem um significado especial: não foi a Orga

Tryfonov
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nização Sionista de Herzl quem convenceu a maioria dos judeus da necessidade premente de um Estado soberano. Foi Auschwitz e o aniquilamento dos seis milhões que fez isto. Daqueles horrores emergiu a lição de que a tragédia aconteceu por causa da dependência na proteção militar de terceiros. Ben Gurion articulou isto com clareza crista lina em 1942: “... somos o único povo do mundo do qual se permite ser o sangue derramado... e isto por um único peca do: ... porque nós judeus não temos uma instância política, não temos um exército, não temos independência nem pátria ... concedam-nos o direito de lutar e morrer como judeus...1 ”

Nestas palavras está evidente o vínculo entre a Shoá e o que Ben Gurion chamou de “o pecado da impotên cia judaica”. A lição de Auschwitz para os judeus é que eles confiaram nas pessoas decentes da América e da Grã -Bretanha, mas estes virtualmente nada fizeram. Hoje a maioria dos judeus continua acreditando que a única coisa que impede que este capítulo da história se repita é o Estado de Israel.

Porém, os europeus também tiraram suas conclusões de Auschwitz e elas são completamente opostas às nossas. Para eles os campos de extermínio são a prova definitiva do mal que advém de permitir que as nações decidam sozi nhas sobre o uso de seu poder militar. A solução para pre venir o mal é desmantelar a Alemanha e todos os demais Estados da Europa e unir todos os povos da Europa sob um único governo. Eliminando o Estado nacional o cami nho para Auschwitz estará fechado para sempre.

Vejam que, segundo este entendimento, Israel não é a resposta a Auschwitz e sim à União Europeia. Vejam que ambos enxergam os milhões assassinados pelos nazistas e ambos reconhecem a barbárie destes atos. Mas neste pon to termina a concordância e acontece o que Kuhn sugere,

dois indivíduos podem olhar para os mesmos fatos e, atra vés de paradigmas diferentes, ver coisas diversas:

Paradigma A: Auschwitz representa o indescritível horror de mulheres e homens judeus assistindo nus e impotentes seus filhos serem assassinados sem um mísero rifle para protegê-los.

Paradigma B: Auschwitz representa o indescritível horror dos soldados alemães usando sua força contra terceiros susten tados apenas pela visão de seu próprio governo sobre seus di reitos nacionais e interesses.

Estas duas visões do mesmo fato são praticamente irre conciliáveis. Numa, a fonte do mal é a ação dos assassinos, na outra, é a impotência das vítimas. Olhando para Israel através destes paradigmas derivamos para:

Paradigma A: Israel representa mulheres e homens judeus empunhando rifles para defender seus filhos. Israel é o opos to a Auschwitz.

Paradigma B: Israel representa o indescritível horror dos soldados judeus usando sua força contra terceiros sustentados apenas pela visão de seu próprio governo sobre seus direitos na cionais e interesses. Israel é Auschwitz.

Para os judeus, o fato dos sobreviventes dos campos de extermínio terem conseguido empunhar armas sob uma bandeira judaica foi um movimento em direção à justiça. De forma alguma isto sanou o que havia acontecido, po rém garantiu aos sobreviventes a força que, se tivesse che gado alguns anos antes, teria evitado a tragédia. Neste sen tido, Israel é o oposto a Auschwitz.

Para os europeus, o fato do povo que estava tão próxi mo do ideal de autorrenúncia ao nacionalismo pegar em

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armas para constituir um Estado nacional aproxima-o do caminho que levou os alemães a construir os campos de extermínio. Neste sentido, Israel é Auschwitz.

Tentem enxergar através de olhos europeus. Imaginem -se um orgulhoso holandês, cuja nação foi a primeira a acender a tocha da liberdade nacional. “Estou disposto a sacrificar esta herança gloriosa e dizer adeus ao meu país em nome de algo superior – em nome de uma aliança política internacional que no futuro vai acolher toda a humanida de –, estou disposto a fazer isto em nome da humanidade”. E quem se levanta contra esta visão? Logo os judeus! Os ju deus que mantêm seu pequeno e egoísta Estado. Como se atrevem? Será que estão tão degenerados que não se lem bram de seus pais em Auschwitz? Não, eles não se lembram porque foram seduzidos e pervertidos pelo mesmo mal que acometeu previamente os alemães. Israel é Auschwitz.

Então, não é por acaso que Israel é constantemente comparado aos nazistas. Esta escolha não é feita apenas por seu valor retórico. Na Europa, e onde mais o paradig ma tenha se espalhado, a comparação com o nazismo é tão natural como lama depois da chuva.

E isto, a meu ver, responde a pergunta inicial deste tex to: por que os fatos não importam mais, como pode ser que, mesmo quando Israel está inegavelmente certo, o país é denunciado em campanhas de vilipêndio que ficam mais agudas a cada passar de ano – como pode o ódio a Israel ter aumentado depois da retirada de Gaza? A resposta é que, mesmo quando provocado por algum incidente – o caso da flotilha turca, por exemplo –, o ódio a Israel não depende de nenhum destes fatos. Ele depende do rápido avanço de um novo paradigma que enxerga Israel, e principalmente o uso da força para sua defesa, como sendo fundamental mente ilegítimo. Se você acredita que Israel é uma varian te do nazismo, as campanhas de relações públicas são ir relevantes: um Auschwitz melhorado ainda é Auschwitz.

E o novo paradigma que advoga o fim dos Estados na cionais leva à conclusão que Israel tem que deixar de exis tir. Afinal de contas, se a Alemanha e a França deixarão de existir, por que não Israel? E se não choram pelo fim da Inglaterra e da Holanda, por que chorariam por Israel?

O perigo no campo das palavras

Israel continua a ser ameaçado militarmente, mas se um dia desaparecer não será pela via militar e sim pela das

palavras. Da mesma forma como a União Soviética caiu, um dia judeus e não judeus deixarão de entender porque Israel precisa existir e então, com rapidez assustadora, o Es tado judeu independente desaparecerá.

A defesa de Israel no campo de batalha depende da constante reavaliação das fontes de ameaça e dos meios para neutralizá-las. No campo de batalha das ideias o Estado de Israel corre um perigo nunca antes iguala do, que não provém dos nossos tradicionais inimigos e que não pode ser combatido com métodos tradicionais. Não se pode combater um paradigma com fatos, visto que estes fatos ou são descartados por irrelevantes ou são reinterpretados de forma a justificar o paradigma. Só se consegue combater um paradigma com outro paradig ma. E o paradigma que deu luz ao Estado de Israel está em frangalhos.

Temos que estabelecer um novo paradigma ou revitali zar o que entrou em colapso. Não há espaço aqui para fa lar sobre como isto pode ser feito e eu gostaria de deixar apenas um ponto de partida: mudanças de paradigma não se assemelham a campanhas eleitorais ou a esclarecimen tos sobre aspectos da política. Mudanças de paradigma po dem levar uma ou mais gerações para acontecer e esta ba talha não é retratada pela mídia que sempre noticia a par tir do ponto de vista do paradigma que abriga.

Esta batalha é travada principalmente através de livros, que expõem ideias com profundidade e na academia aon de estes livros são estudados e discutidos. A reconstrução do paradigma que garantiu a fundação do Estado de Isra el depende da vitória desta batalha.

Notas

1 Discurso de Ben Gurion numa seção especial da Assembleia Nacional em 30 de novembro de 1942. Arquivo Central Sionista, J/1366.

Yoram Hazony vive em Jerusalém, é mestre de Estudos Asiáticos pela Universidade de Princeton e doutor em Teoria Política pela Universidade de Rutgers. É o fundador e o reitor do Shalem Cen ter de Jerusalém, mantém o blog www.jerusalemletters.com e es creve regularmente artigos para o The New York Times, The New Republic, Commentary, Azure e Ha’aretz. Seus livros incluem The Jewish State: The Struggle for Israel’s Soul (Basic Books, 2000) e The Dawn: Political Teachings of the Book of Esther (Shalem Press, 2000).

Traduzido do inglês e condensado por Raul Cesar Gottlieb

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f ute B ol e Barreiras

Tolerância é a palavra-chave para a região. Muitas vezes pensei: se está difícil chegarmos a um acordo sobre que linha seguir no filme, imagine como é complicado – embora não considere impossível –chegarmos a um consenso no Oriente Médio.

João Carlos assumpção

Este artigo é mais um fruto da parceria Devarim-Hilel do Rio de Janeiro

No ano passado fui com quatro amigos acompanhar a Copa do Mundo em Israel e nos territórios palestinos para fazer um documentário que tende a gerar polêmica e muita discussão dos dois lados. Em “Sobre Futebol e Barreiras”, título que demos para o filme e para o projeto, mostramos como judeus e palestinos assistem ao Mundial, discutimos proble mas de identidade nacional, entramos na vida de cidadãos comuns e vimos como o futebol pode aproximar ou não os dois povos.

Aproxima se pensarmos que tendem a torcer para os mesmos países, a maio ria era favorável ao Brasil, à Argentina e à Espanha. Dos dois lados o jogador preferido, sem dúvida, era Messi. Era só andar com a camisa do Brasil que você abria portas e era bem recebido. Impressionante como conhecem o futebol bra sileiro e como Dunga podia ser considerado uma unanimidade, criticado por todos por não ter levado jogadores como Ronaldinho Gaúcho e especialmente Neymar e Ganso, as revelações do Santos, e por defender um futebol burocrático, um futebol de resultados, que deu certo em 1994, mas não obteve suces so em 2010, na Copa da África.

Ao mesmo tempo, porém, as diferenças ficam mais evidentes. Na goleada da Alemanha contra a Argentina, apesar de grande parte de judeus e palestinos estar torcendo pela segunda, enquanto num assentamento judaico estavam has

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teadas bandeiras argentinas, só para provocar, a vila palestina, vizinha, ostentava bandeiras alemãs.

A necessidade dos contrapontos

Para mim, que sou descendente de judeus – minha avó materna era judia, sobrinha de Lasar Segall, um dos princi pais artistas que o Brasil conheceu –, a experiência de fazer o filme foi muito difícil, embora estimulante. Conflitos in ternos surgiram e externos também. Afinal éramos cinco, cada um com uma opinião diferente e o assunto Oriente Médio gera mais polêmica do que qualquer partida de fu tebol. A causa palestina tem muito apelo no mundo todo e senti que tinha que fazer um contraponto quase o tempo inteiro, embora seja da opinião de que os dois lados têm de ceder, especialmente os judeus, que têm a força em Israel.

Como um dos integrantes do grupo já havia estado na região pouco antes do início do documentário e tinha vá rios contatos do lado palestino, resolvi ficar apenas em Is rael. Mas não só por isso. Porque lá me sentia em casa. Sentia-me mais confortável. Acolhido. Não foi a primei ra visita que fiz ao país e espero que não tenha sido a últi ma. Adoro Israel, especialmente Jerusalém, onde alugamos uma casa, e pude encontrar pessoas interessantes, algumas das quais mantêm contato comigo até hoje.

Fazer o filme, porém, foi um árduo processo de tolerân cia. De todos os envolvidos. E tolerância é a palavra-cha ve para a região. Muitas vezes pensei: se está difícil chegar mos a um acordo sobre que linha seguir no filme, imagine como é complicado – embora não considere impossível –chegarmos a um consenso no Oriente Médio. Tudo gera va discussão. O próprio blog que criamos (http://sobrefu tebolebarreiras.blogspot.com) mostrava a diversidade do grupo e das opiniões de cada um. Talvez eu tivesse segui do outra linha no documentário. Certamente teria em vá rios e vários pontos, mas acatei a decisão da maioria. Ga nhei algumas vezes, perdi em outras ocasiões, sigo defen dendo minhas ideias e o filme está aí, inscrito em festivais do mundo todo, estreando em Florianópolis no Festival Audiovisual do Mercosul.

As esperanças, os sonhos e a torcida

Entrevistamos e mostramos a visão, o dia a dia, as espe ranças, os sonhos, os conflitos e a torcida de diversos per

sonagens. Em Israel e na Cisjordânia. O personagem de que mais gostei e com quem mais me identifico é o Gre gory, um judeu israelense que torcia pela Alemanha. Não, não torço pela Alemanha e mesmo no jogo contra a Argen tina, jogo em que muitos brasileiros torceram contra “los hermanos”, no fundo fiquei ao lado do time de Maradona.

Mas Gregory se diz um provocador e justifica que o futebol é só um jogo e que gosta do time da Alemanha. Um direito democrático que tem de ser respeitado, em bora muitos compatriotas não concordem com sua es colha lembrando-se da Segunda Guerra Mundial. Mas como disse Shy, outro dos personagens judeus que apa recem no filme, se Hitler estivesse vivo teria um treco ao ver a seleção alemã, que hoje, felizmente, tem jogadores negros defendendo suas cores. A gente tem que aprender com a história...

Gregory dá um depoimento comovente quando con ta sua chegada a Israel, ainda menino, com o pai sionis ta querendo distância do regime soviético. Chega a dizer que ao pisar no aeroporto Ben Gurion sentiu como se es tivesse no paraíso. E que considera o mundo antissemita, o que justificaria a existência de um país para os judeus.

Mas no filme há de tudo. Há judeus, por exemplo, que não pensam como ele. Caso de Eytan, que propaga um movimento, o Zochrot, para combater o que chama de “memória suprimida” do povo de Israel, que, segundo ele, deveria lembrar o que aconteceu em 1948, quando muitos palestinos saíram de suas terras com a fundação do país.

Mas a origem do Estado de Israel não está em 1948, ela vem de muito antes, vem do famigerado Holocausto, da perseguição aos judeus que acontecia bem antes dos anos 1930 e 1940. Judeus que viviam em guetos no Leste Euro peu, que foram perseguidos na Espanha e em Portugal, nos países árabes, judeus, como meu bisavô, que nasceram na comunidade judaica de Vilna no final do século retrasado e sofreram com o domínio da Rússia czarista. Que foram parar em outros países e em outros continentes. E judeus que tentaram entrar em Israel, inclusive durante a Segun da Guerra Mundial, e não puderam, tiveram seus navios “devolvidos” para a Europa, quando a região estava sob o domínio britânico, com apoio de muitos árabes.

O filme traz a discussão sobre como tornar o Estado de Israel verdadeiramente democrático, já que há muitos palestinos que dizem ser tratados como cidadãos de se gunda categoria. Reclamam dos pontos de controle, re

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conhecem que podem comprar roupa, trabalhar, ganhar dinheiro, mas insistem que não têm liberdade. E liber dade é fundamental. Para a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, autora de Retorno à Ques tão Judaica, “os israelenses estão confrontados com uma escolha: ou fazer de seu Estado uma democracia ainda mais laica e igualitária, admitindo que um Estado de di reito tem de ser não judeu para ser verdadeiramente de mocrático ou afirma o caráter judeu de seu Estado, acei tando que deixa de ser israelense e democrático e se tor na religioso e racista”.

Mas talvez Roudinesco esteja simplificando a questão, pois o judaísmo é uma cultura e não apenas uma religião

e assim pode ser possível ser laico e judeu ao mesmo tem po, como provaram os fundadores do Estado. Não exis tem apenas judeus religiosos e existem correntes modernas que não encontram contradição entre a religião judaica e a democracia. O personagem Gregory, a seu modo, abor da o assunto e prefere que o Estado siga judeu, lembran do das dificuldades que passou na Europa, um continen te cada vez mais fechado para os estrangeiros e que volta a discutir como fechar ainda mais suas fronteiras.

Outro personagem que está no filme, um dos princi pais jogadores da história de Israel, o palestino Zahi Ar maly, também toca na questão e explica o porquê de, quando defendeu a seleção local nos anos 1980, recusar

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI devarim O Estádio de Johanesburgo, um dos principais da Copa do Mundo na África do Sul de 2010. Jonathan Larsen /
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-se a cantar o hino nacional. É que, mesmo sendo israe lense, diz que nem o hino nem a bandeira o representam, pois contêm símbolos do judaísmo. É uma questão que podemos transportar para o Brasil, perguntando como fi cam um judeu e um muçulmano, por exemplo, diante de um crucifixo num tribunal de justiça do País?

Zahi é árabe e considerado traidor por muitos palesti nos que moram em Gaza, na Cisjordânia ou mesmo em Israel por ter defendido a seleção israelense. O que mostra a complexidade do problema. Pois se ele é israelense, ia de fender a seleção do Brasil, da Espanha ou da Itália? Não, só podia defender a de Israel. E defendeu com brilhantismo.

Como diz Reut, cuja família emigrou para o país da

República Checa e do Marrocos, locais onde seus pais fo ram perseguidos, chegando a ver uma suástica pichada diante de suas casas, um Estado para o povo judeu se faz necessário. Mas todos vivem numa sociedade que ela de fine como pós-traumática. É radicalmente contra o muro que os separa dos palestinos, embora reconheça que ele trouxe mais segurança aos israelenses, diminuindo radical mente o número de atentados e ataques a bomba. Tudo é um paradoxo. Tudo é confuso.

Há palestinos que dizem viver no que chamam de so ciedade do apartheid e que querem acabar com isso. Que não aguentam mais. Que o jogo está na prorrogação, quase na disputa por pênaltis... Alguns optam por entrar

Para Roudinesco, “a universalidade do povo judeu é uma maneira de transmitir à humanidade a idéia de que nenhum homem pode ser reduzido à sua comunidade”. Don Bayley iStockphoto.com
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no sistema, outros resistem de forma pacífica, outros partem para o ataque e ma tam inocentes. O terrorismo é uma reali dade na região. E uma realidade que tem de ser combatida.

Fico pensando ainda numa declara ção de Elisabeth Roudinesco, para quem a universalidade do povo judeu e sua ca pacidade de resistência a todas as catástro fes é uma maneira única de transmitir à humanidade a ideia de que nenhum ho mem pode ser reduzido à sua comunida de, às suas raízes e a seu território.

Isso é lindo e serve para o mundo todo, embora não deixe de ser de certa forma utópico. A solução para o conflito é difícil, não tenho resposta sobre o que fazer, se tivesse, resolveria os conflitos do Oriente Médio e do mundo. Como diz o próprio Zahi, “sou um ser humano antes de mais nada”. Todos somos. E o bom é podermos expressar nossas opiniões, como fazem os personagens no filme.

Outro personagem que está no filme, um dos principais jogadores da história de Israel, o palestino Zahi Armaly, também toca na questão do caráter judaico do Estado e explica o porquê de, quando defendeu a seleção local nos anos 1980, recusar-se a cantar o hino nacional.

Para entender Israel não podemos jamais esquecer o Holocausto, essa grande vergonha na história da humanidade, cuja origem não está nos anos 1930. Está bem lá atrás, muito antes disso. Pois a perse guição aos judeus é histórica, data de sé culos e séculos e séculos. E talvez tudo isso justifique mesmo a existência de um Estado judeu. E acho que justifica, sim. Mas cada um tem sua opinião. Opinião que pode mudar com o tempo e com as circunstâncias. O que sei é que vivi uma experiência muito rica e percebi que não sou isento. A nada.

Focando do lado judaico, deu para perceber o plura lismo de opiniões. De quem se recusou a servir o Exérci to, de quem ataca os políticos locais, de quem responsa biliza a atual situação pelo que chama de erros cometidos em 1967, de quem considera o país racista... Mas tam bém de quem quer apenas e tão somente viver em paz, como Gregory e a própria Reut. Que sabem que a história de Israel não começou em 1948, como insinua Eytan, do movimento Zochrot. Começou, como insisto, muito antes disso.

Mesmo voz vencida em alguns pontos do filme e tendo optado por perma necer o tempo todo em Israel, o que pode ser contraditório, e é, sou um ser humano como qualquer outro. Cheio de conflitos internos. Minhas raízes judaicas (embora minoritárias – 25% da minha ori gem) talvez tenham falado mais alto – e falaram, o que só mostra que não sou um observador neutro –, mas tentei entender o outro lado. Que é nosso também, pois somos um só, ou pelo menos deveríamos ser.

João Carlos Assumpção, jornalista e escritor, é um dos diretores do documentário “Sobre Futebol e Barreiras”. Cobriu cinco Copas do Mundo e três Olimpíadas in loco, é colunista do “Lancenet” e colaborador do Lance!, foi repórter da Folha de S.Paulo e corres pondente do jornal em Nova York, trabalhou nas revistas Carta Ca pital e Poder e foi comentarista e chefe de reportagem e redação do Sportv em São Paulo.

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Desenho de David Perlov

d avid p erlov: fragmentos de uma tra J etória

ilana feldman

Cineasta brasileiro nascido no Rio de Janeiro, criado em Belo Horizon te e São Paulo, e, na idade adulta, radicado em Israel, David Perlov foi um pioneiro do cinema moderno israelense, tendo sido o único cineasta a já ter recebido, em 1999, o Israel Prize (a maior honra concedida pelo Estado de Israel) por sua contribuição à cultura.

Ainda não muito conhecido do público brasileiro, o cinema de David Per lov, em especial seu Diário 1973-1983, tem sido exibido e homenageado em festivais de cinema por todo o mundo desde que, em 2005, o Centre Geor ges Pompidou, em Paris, dedicou-lhe a mostra “Chronique israélienne d’un ci néaste né au Brésil”. Em 2011, com a realização da retrospectiva David Per lov: epifanias do cotidiano na Cinemateca Brasileira e no Centro da Cultura Ju daica em São Paulo e no Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro, em que, pela primeira vez, vários de seus filmes são exibidos fora de Israel, esse panora ma começa a mudar.

Muito antes da conquista do reconhecimento e da legitimação oficial, Da vid Perlov inaugurara em Israel uma filmografia singular, caracterizada pela ten são entre o público e o privado, o cotidiano e o sagrado, o poético e o político, a história coletiva do século XX e sua fascinante jornada pessoal, marcada (no pleno sentido de uma cicatriz) por deslocamentos geográficos e por uma forte sensação de não pertencimento. “Estranho aqui, estranho lá, estranho em todo lugar. Eu poderia ir para casa, querida, mas ainda sou um estranho lá”, afirma Perlov citando uma canção de Odetta, enquanto observa, através da janela de um carro e depois de 20 anos de ausência do Brasil, passantes em uma rua quie

Muito antes da conquista do reconhecimento e da legitimação oficial, David Perlov inaugurara em Israel uma filmografia singular, caracterizada pela tensão entre o público e o privado, o cotidiano e o sagrado, o poético e o político, a história coletiva do século XX e sua fascinante jornada pessoal, marcada (no pleno sentido de uma cicatriz) por deslocamentos geográficos e por uma forte sensação de não pertencimento.

Imagens gentilmente cedidas por Mira Perlov

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Perlov: “Estranho aqui, estranho lá, estranho em todo lugar. Eu poderia ir para casa, querida, mas ainda sou um estranho lá.”

ta de São Paulo. Essa passagem, presente no primeiro capí tulo de seu Diário 1973-1983, talvez esteja entre as mais expressivas de sua obra.

Para Uri Klein, crítico do jornal israelense Haaretz e notório ex-aluno do próprio David Perlov no curso de Ci nema da Universidade de Tel Aviv, da qual Perlov fora pro fessor, os seis capítulos que compõem Diário 1973-1983 se afirmam como a obra mais importante da história do cinema israelense, assim como uma das mais expressivas cria ções culturais do país. Entretanto, se David Perlov é hoje consagrado pela crítica e seu média-metragem, Em Jerusa lém (1963), ganhador de um prêmio no Festival de Vene za, valeu-lhe o título de pioneiro do cinema moderno is raelense, sua trajetória, iniciada no Brasil em 1930 e in terrompida em Israel em 2003, pode ser associada à ima gem de uma árdua e inconformada travessia, em um ári do e pedregoso deserto.

Escrevendo e inscrevendo com sua câmera imagens marcadas pela liberdade, pelo questionamento político, pela seletividade do olhar, pelo engajamento no cotidia no, pela sensação de estranhamento e, sobretudo, pelo amor aos seres filmados, próximos ou distantes, conhecidos ou anônimos, estranhos ou familiares, a obra de Perlov pode ser considerada, no melhor dos sentidos, “caligráfica” e “amadora”. Em um país que escolheu como lar, escolha carregada de sonhos, mas também de frustração e ativo in conformismo, sua família é seu povo primeiro.

Olhar estrangeiro

Judeu laico, filho de um mágico itinerante e de mãe iletrada, David Perlov nasce no Rio de Janeiro em 1930, mas passa sua primeira década de vida em Belo Horizonte, sendo criado, junto com seu irmão, pela mãe e por Dona Guiomar, espécie de mãe de criação, filha de escravos e fer vorosamente protestante – cujas superstições Perlov buscará, em seus diários filmados, enfrentar. Aos 10 anos muda -se com o irmão para a Vila Mariana, em São Paulo, onde passa a viver com o avô de origem chassídica e natural de Safed, abandonando uma infância sofrida e nada protegi da. Entre os estudos em um colégio estadual e as viagens de bonde, Perlov dedica-se ao desenho e à militância no mo vimento juvenil sionista socialista Habonim Dror, onde conhece Mira, que será sua companheira por toda a vida e também produtora de Diário 1973-1983.

Tendo sido no Brasil aluno de Lasar Segall, de quem, aliás, Mira Perlov fora modelo, Perlov emigra para Paris em 1952, com apoio financeiro da Agência Judaica, para realizar informalmente seus estudos na Escola de Belas Ar tes francesa. Entretanto, após a impactante experiência de ter assistido por acaso a Zero de conduta (Zéro de Condui te, 1933), de Jean Vigo, e nada contente com a guinada abstrata da pintura, Perlov abandona os pincéis (embora continue dedicado a uma intensa e bela produção de de senhos) e se aproxima da Cinemateca Francesa. Mais tar

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de, torna-se assistente de Henri Langlois, então diretor da Cinemateca, e colabora com Joris Ivens, mestre do documentá rio poético francês, com quem Perlov tra balha em um filme, ainda hoje não fina lizado, sobre Marc Chagall. O cinema se apresenta então como uma nova paixão, pelas possibilidades estéticas, humanas e críticas que esse meio lhe oferece.

Tal paixão leva Perlov a angariar to dos os esforços possíveis para a realização de seu primeiro filme, o curta-metragem Tia chinesa e os outros (1957), feito a par tir de um caderno de desenhos encontra do no sótão da casa da família com quem morava em Vitry, um arrabalde de Pa ris. O caderno, desenhado em 1894 por uma menina com então doze anos (e que morreria aos vinte e um de tuberculose), era uma lembrança esquecida, amarela da pelo tempo e carregada de dura críti ca social à sociedade francesa de fins do século XIX.

Mesmo num país que escolheu como lar, Perlov realiza um cinema na contracorrente do cinema produzido e requerido pelas autoridades israelenses de então. Nos anos 1960, diferentemente das artes plásticas, da música e da literatura, o cinema em Israel era visto como mero instrumento de propaganda ideológica afinado à estética do realismo socialista soviético.

No início de 1958, depois do filme pronto com prólogo de Jacques Prévert, música de Germaine Tailleferre e apoio financeiro de gen te como Jeanne Moraeu, Calder, Czeslaw Milosz, Arpad Szenes e Vieira da Silva, entre outros, Perlov muda-se de finitivamente para Israel, indo ao encontro de Mira. No kibutz Bror Hayil, conhecido pela expressiva presença de brasileiros, nascem em 1959 suas filhas, as gêmeas Yael e Naomi, presenças fundamentais em sua obra autobiográ fica – a qual vai se estender até fins dos anos 1990, com os três capítulos que compõem o Diário revisitado 19901999 (2001), e, posteriormente, com o ensaio Minhas imagens 1952-2002 (2003). Em 1961, a família muda -se definitivamente para Tel Aviv, onde Perlov, anos mais tarde, desenvolve seu aguçado senso de observação e pre cisão formal por meio das janelas de seu apartamento.

Do privado ao político

Se em Israel David Perlov realiza dezenas de filmes, os mais expressivos e eloquentes são aqueles em que vida e obra, passado e presente, ficção e documentário, parti

cular e coletivo, privado e político estão fundidos, como que amalgamados. Mes mo num país que escolheu como lar, Per lov realiza um cinema na contracorren te do cinema produzido e requerido pe las autoridades israelenses de então. Nos anos 1960, diferentemente das artes plás ticas, da música e da literatura, o cinema em Israel era visto como mero instrumen to de propaganda ideológica afinado à es tética do realismo socialista soviético. So bre aqueles que compunham o órgão ofi cial de fomento ao cinema israelense, Per lov costumava dizer: “Eles veem com os ouvidos”.

Não à toa, seu filme Em Jerusalém (1963), documentário em média-metra gem influenciado pelos ventos que so pravam da Nouvelle Vague francesa, foi pouco apreciado pelo statu quo israelense, pois, além da inventividade formal, Per lov filma mendigos de Jerusalém, grupo social no seio do qual, segundo uma poe tisa ouvida pelo filme, nasceria o Messias. Apesar de ter sido premiado no Festival de Veneza de 1963 e ser considerado um marco do cine ma moderno israelense, o filme teve como consequência o isolamento do cineasta pelas autoridades políticas locais. Perlov buscava liberdade estética e política em um momento histórico pontuado por legislações e autoridades pouco flexíveis em Israel, cujos projetos cinematográficos reivindicados não valorizavam experiências formais empe nhadas em dar espaço ao humano. Eles queriam filmes so bre ideias, datas comemorativas, cerimônias, inaugurações. Perlov queria filmes sobre pessoas.

Em Em Jerusalém já se encontram, portanto, muitos dos preceitos do projeto estético cuja consagração se dará com Diário 1973-1983, realizado 10 anos depois, a partir de 1973, quando o cineasta vive uma espécie de “exílio” forçado em seu próprio apartamento. Em plena Guerra de Yom Kipur, Perlov reivindica a liberdade de um escritor e a precisão de um atirador para filmar e mirar a realidade do mundo exterior através dos enquadramentos de suas janelas – janelas do apartamento, janelas da televisão. Relacio nando a escritura de um diário filmado a um ato de guer

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ra, assim como de desespero, Perlov confere ao gênero uma radicalidade que não existia no cinema israelense de então. Em Diário 1973-1983 é a primeira vez, nes sa cinematografia, que a investigação so bre si e sobre o olhar político daquele que filma se torna uma questão cinematográ fica. É a primeira vez, nessa cinematogra fia, que a enunciação em primeira pessoa toma forma, situada na voz corporificada e ritmada do próprio Perlov.

Epifanias do cotidiano

“Maio de 1973. Eu compro uma câmera 16mm. Eu começo a filmar para mim mesmo e por mim mesmo. O cine ma profissional não me interessa mais”, diz ele no primeiro capítulo de seu diário, recusando a partir de então um cinema de tramas, intrigas e dramas, um cinema de ilusões, trapaças e mistificações – em bora mais adiante admita que, em diver sos momentos, recaia nos dramas que a própria realidade oferece. Fascinado pela origem ilusionista do cinema com Georges Méliès, assim como pela imagem dos malabarismos com bolas vermelhas feitos por seu pai, Perlov vai buscar na imanência do cotidiano familiar, com seus en treatos, pormenores e tempos “mortos”, o movimento mágico da vida. Em Diário 1973-1983, a narração e a montagem constituem o trabalho de um per pétuo aprendiz de prestidigitador empenhado em tornar evidente que a intimidade não está naquilo que se mostra, mas naquilo mesmo que se oculta.

Ao filmar sua família, seus amigos, suas viagens, sobretudo para a França e para o Brasil, e os eventos dramáticos do país em que vive, como a Guerra de Yom Kipur em 1973 ou a invasão do Líbano em 1982, Perlov postula uma nova maneira de olhar e um novo documentário: um cinema que, tendo renunciado às tramas e às intrigas, seja calcado na observação dos espaços, públicos e privados, na captação de fragmentos do cotidiano e na apreensão de pequenos gestos e expressões de rostos anônimos.

quando retorna ao Brasil, reencontrando amigos, revisitando paisagens afetivas de São Paulo, especialmente da Vila Maria na, onde morou, e ouvindo novamente a ária de Bach de sua juventude, na época tocada em uma rádio católica da cidade, Perlov parece próximo, pela estrutura optada, de encontrar algo. Seria uma ima gem perdida da infância? Um truque de mágica de seu pai? O rosto por nós des conhecido de sua mãe? Uma superstição esquecida de Dona Guiomar? “Nunca re faça seu caminho, ou você queimará seus pés!”, ela lhe dizia.

Judeu laico, Perlov, em diversos mo mentos refazendo seu caminho, eviden cia uma relação religiosa com a capacida de revelatória da imagem ao reter instan tes e ao produzir memórias. A tensão com a proximidade de Belo Horizonte, cidade carregada de tristes lembranças, de onde saiu ainda criança, é amplificada com a menção à mãe, Ana, figura pouco evoca da e envolta em brumas, da qual prefe re não falar. Tais memórias, sobretudo as que se referem a Ana Perlov, passam en tão a habitar um doloroso, obscuro e para sempre silenciado fora de campo, como se, para garantir a continuidade da vida, fosse preciso abandonar a origem no mo mento mesmo em que ela é enunciada. Ainda assim, haveria nesse movimento elegíaco algum se gredo na superfície da imagem, alguma epifania: entre o efêmero visível e o sagrado a ser revelado, entre o que é explícito e o que – de tão íntimo – precisa ser ocultado.

No sexto e último capítulo de Diário 1973-1983, Per lov nos conta que, desde a infância, era um admirador dos enquadramentos proporcionados pelas janelas do trem que ligava Belo Horizonte a São Paulo, enquanto retém seu olhar numa janela de um vagão da Estação da Luz, evo cando, talvez, a gênese de sua trajetória – que não está lon ge da imagem-gênese da exibição cinematográfica, o trem dos irmãos Lumière. Já a questão pessoal está diretamente ligada, nesse mesmo capítulo, ao passado e a uma ausência:

Autobiografia como biografia do outro

A construção de uma “intimidade” familiar propos ta pelo Diário 1973-1983 não se dá, portanto, na explo ração intimidante que o termo primeira pessoa vem assu mindo em tempos de reality shows, de hipertrofia da subje tividade e de um voyeurismo consentido e midiatizado. De modo contrário, sua trajetória biográfica nos é revelada aos fragmentos, ainda que organizados cronologicamente, e

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sua subjetividade emerge não de uma interioridade essencial, mas da observação da exterioridade do mundo, com seus ritmos, movimentos, suas permanências e mudanças. Como quem perscruta os confins da memória à procura de um rosto perdido, de um grito surdo, de um nome es quecido e da música da infância, Perlov busca uma ima gem capaz de nos evidenciar algo só possível de ser apre endido pela observação atenta e insistente dos pormeno res da vida. Nessa espécie de caderno de notas audiovi suais, sua autobiografia se torna biografia do outro, bio grafia de todos nós.

Ao filmar sua família, seus amigos, suas viagens, so bretudo para a França e para o Brasil, e os eventos dramá ticos do país em que vive, como a Guerra de Yom Kipur em 1973 ou a invasão do Líbano em 1982, Perlov postula uma nova maneira de olhar e um novo documentário: um cinema que, tendo renunciado às tramas e às intrigas, seja calcado na observação dos espaços, públicos e priva dos, na captação de fragmentos do cotidiano e na apreen

são de pequenos gestos e expressões de rostos anônimos. No quinto e penúltimo capítulo de seus diários Perlov afir ma, a partir da imagem das pernas de um homem corren do, que só importa o movimento do homem que corre, e não de onde ele vem ou para onde está indo. “A observa ção se tornou parte do meu ser”, enfatiza.

Nos anos 1990, David Perlov retoma, agora em vídeo, o formato dos diários filmados com o seu Diário revisita do 1990-1999 (2001), porém os organiza de outra for ma, mais próxima do ensaio fílmico. Dividido em três ca pítulos temáticos, “Infância protegida”, “Rotina e rituais” e “Volta ao Brasil”, acompanhamos, no primeiro, tal qual um home movie ou um filme doméstico, explicitamente amador, a infância de seus netos, tão distinta do que fora sua própria infância em Belo Horizonte. No segundo, o olhar de Perlov indaga a rotina política de Israel, o assas sinato do primeiro ministro Yitzhak Rabin, a ascensão de Benjamin Netanyahu, os rituais de simulação da política e da televisão, assim como diversos outros tipos de ritu

A subjetividade emerge da observação da exterioridade do mundo, com seus ritmos, movimentos, permanências e mudanças.
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ais que compõem o dia a dia do país. No terceiro e últi mo capítulo, Perlov retorna ao Brasil, refazendo pela últi ma vez, como em um gesto de despedida, suas viagens ao Rio de Janeiro e a São Paulo e Belo Horizonte, cidade de suas evocadas e doídas memórias de infância.

Destaca-se ainda na carreira de David Perlov o curta -metragem Em teu sangue, vive (1962), Menção Honrosa no Festival de Veneza e primeiro filme feito em Israel so bre o Holocausto, abordando, por meio das fotografias do período, a ascensão do regime nazista, os campos de concentração e o julgamento de Eichmann, um dos arquite tos do genocídio. Anos mais tarde, em Memórias do julga mento de Adolf Eichmann (1979), Perlov volta ao tema e entrevista, na própria sala de estar de sua casa, algumas das testemunhas do julgamento, fundindo nesse simples ges to, literalmente, o privado ao político.

A temática do trauma também aparece em Biba (1977), um filme direto e pessoal sobre o luto de uma mulher que perdera o marido na guerra de Yom Kipur. Sem nenhuma mistificação nacional, a dor da protagonista Biba, mora dora de uma moshav (comunidade rural cooperativa) em Kfar Yehoshua, é, pela primeira vez no cinema israelense, particularizada, abordada sob um ponto de vista familiar e pessoal, e não simplesmente encarada como consequência de uma “baixa” nacional.

Ainda que todos os filmes de David Perlov sejam atra vessados por grandes temas da história judaica, não há hie rarquia de interesses. Transitando do geral ao particular, do coletivo ao íntimo, do privado ao político, Perlov sai de

um filme sobre o luto para um documentário sobre a vida em um kibutz no norte de Israel, Tel Katzir 1993 (1993), com seus conflitos, desafios e a chegada de novos imigran tes, retomando, sem nenhuma nostalgia, imagens desse mesmo kibutz feitas trinta anos antes. Em todas essas ima gens, Perlov busca uma poética do cotidiano que dá forma ao mundo e a seus habitantes.

A poesia, como não poderia deixar de ser, além de for ma, é também tema de alguns de seus filmes. Em Em bus ca do Ladino (1981), o cineasta vai atrás da língua quase desaparecida, mas ainda sobrevivendo por meio da música, dos judeus espanhóis expulsos da Península Ibérica no sé culo XV. Já em Encontros com Nathan Zach (1996), Perlov apresenta um retrato de seu amigo próximo, com quem manteve uma amizade por quase quarenta anos, e um dos grandes poetas de Israel.

A eternidade ao redor da esquina

Reaprender a enxergar – por meio da política como ati vidade do próprio olhar – e posteriormente estruturar na montagem o que se enxergou na filmagem foi o desafio de David Perlov ao longo de sua carreira, encerrada em 2003 com o ensaio fílmico Minhas imagens 1952-2002 (2003). Dividindo o filme em três momentos, Perlov propõe uma reflexão sobre a memória pessoal e coletiva a partir de fo tografias, suas e de outros fotógrafos, que marcaram sua trajetória. Na terceira e última parte, o cineasta debruça -se sobre as fotos que ele mesmo tirara nos últimos anos de

O Desafio de Perlov foi reaprender a enxergar, por meio da política como atividade do próprio olhar.
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sua vida e sempre do mesmo ângulo: uma mesa num café de Tel Aviv, na esquina de sua casa. Perlov não busca o melhor ân gulo, mas um ângulo possível e propício a que algo se passe na frente de sua câme ra. Um ângulo que restitua a nosso deli rante mundo a sua “normalidade”.

Entretanto, aquilo a que chamamos de normalidade, no caso das imagens produzidas por Perlov, constitui a pró pria argamassa dos rituais cotidianos: sentar num café, abrir um jornal, espe rar um ônibus, hesitar, conversar com as mãos, entrar em uma galeria e, no caso particular de Tel Aviv, ter a bolsa revistada (não sem a afetividade de um vigia sui generis), dentre tantos outros rituais já naturalizados. Nessa busca pela restitui ção ritualística da vida, Perlov empreen de uma narração que, pouco a pouco, vai se tornando cada vez mais vertiginosa, como uma liturgia que celebra a preciosa e contínua imanência do mundo.

Ainda que todos os filmes de David Perlov sejam atravessados por grandes temas da história judaica, não há hierarquia de interesses. Transitando do geral ao particular, do coletivo ao íntimo, do privado ao político, Perlov sai de um filme sobre o luto para um documentário sobre a vida em um kibutz no norte de Israel, Tel Katzir 1993.

tica fotográfica, uma homenagem aos fo tógrafos que Perlov amava e uma decla ração de amor ao cotidiano, como na fa mosa frase do pintor Pierre Auguste Renoir: “Encontrar a eternidade ao redor da esquina”.

Ao longo de sua trajetória, David Perlov nunca abandonou o desenho, cuja in tensa criação permaneceu vibrante em suas diferentes fases, dialogando com sua obra cinematográfica considerada auto biográfica. Foi durante sua permanência em Israel que a produção plástica de Per lov, possivelmente a face mais “íntima” de sua obra, floresceu. Enquanto seu cine ma documentário, mesmo em sua verten te mais pessoal, prima pela reflexividade e pela recusa a certa noção espetacular de intimidade, a obra plástica de Perlov nos dá ver a ver, justamente, aquilo que lhe era mais familiar: a face onírica, mágica, lúdica, irônica, erótica, insone e ilusória da vida.

Minhas imagens 1952-2002, cujo título original é My Stills 1952-2002, constitui uma espécie particular de “still life”: não a natureza morta eternizada, mas a natureza viva que continua num perpétuo ainda. Finalizado no ano de sua morte, esse filme-testamento é uma reflexão sobre a prá

Ilana Feldman é pesquisadora, crítica e realizadora. Curadora da mostra David Perlov: epifanias do cotidiano, uma realização da Ci nemateca Brasileira, do Centro da Cultura Judaica e do Instituto Mo reira Salles, com apoio da Embaixada de Israel.

A argamassa dos rituais cotidianos: sentar num café, abrir um jornal, esperar um ônibus.

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l ições de u ma i srael e mpreendedora

Israel ostenta a maior densidade de start-ups do mundo. Somadas, passam de três mil e oitocentas. A bolsa americana Nasdaq, que lista um grande número de empresas de tecnologia do mundo todo, possui mais empresas israelenses listadas do que empresas do continente europeu.

victor dweck

Aprimeira vez em que associei Intel a Israel foi quando meu pai, após uma visita ao Technion, Instituto de Tecnologia Israelense, nos anos 1990, me trouxe de presente uma apostila da Faculdade de Engenha ria Elétrica, falando sobre a arquitetura do chip 8088 da Intel. Metade das páginas em inglês, metade em hebraico, fiquei impressionado que, naquele instituto de tecnologia, um aluno poderia realmente aprender como funciona va aquele chip, o famoso processador do meu primeiro computador.

Alguns anos depois, estudando Engenharia Elétrica na Universidade Fede ral do Rio de Janeiro (UFRJ), pude voltar a folhear a mesma apostila com um pouco mais de conhecimento. Mesmo cursando uma boa disciplina de Arqui tetura de Computadores, seguia impressionado com o nível de detalhe com o qual ensinavam a arquitetura daquele processador em Israel.

O que eu não sabia naquele momento, e só descobri recentemente por oca sião da leitura do livro Start-Up Nation, de Dan Senor e Saul Singer (publica do no Brasil pela Editora Évora sob o título Nação Empreendedora), é que aque le chip havia sido desenvolvido em Israel, nos laboratórios da Intel em Haifa, e que a IBM o havia escolhido em 1980 para ser o processador utilizado no seu primeiro computador pessoal, o PC.

No livro, a história da Intel de Israel é contada desde os seus primórdios, quando Dov Frohman, sobrevivente órfão da Shoah naturalizado israelense, que integrara a primeira equipe de engenheiros da Intel americana após sua fundação em 1968, conseguiu persuadir os sócios da empresa a montar o pri meiro laboratório de desenvolvimento fora dos EUA. Naquela época, em 1973,

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a empresa enfrentava um período de escassez de engenheiros na Califórnia. Dov aproveitou o momento para realizar um desejo antigo: voltar a Israel trazendo uma tecnologia de ponta para ser desenvolvi da por lá.

O relato também relembra o período da Guerra do Golfo em 1991, quando o mesmo Dov decidiu manter a fábrica da Intel aberta, contrariando ordens do go verno. Ele acreditava que fechar a fábri ca, mesmo que por alguns dias, seria co locar em risco o futuro sucesso da ainda pequena economia hi-tech israelense. Foi comunicado aos funcionários da empresa que “ninguém seria punido por não comparecer”.

Para sua surpresa, e de toda a dire toria da Intel americana, no dia seguin te à decisão, mesmo havendo um ata que iraquiano ao país, 75% dos funcio nários apareceram para trabalhar. Passa dos mais uma noite e mais um ataque, a presença aumentou para 80%. A mensa gem da filial israelense da Intel era clara: nem com bombas caindo em seu país aquela fábrica iria parar sua produção de chips.

A trajetória da Intel de Israel demonstra bem algumas características presentes na sociedade israelense, que a transformaram em um celeiro de empresas start-ups de tecnologia: o espírito sionista de Dov, que dedicou sua carreira para desenvolver uma tecnologia de ponta em e para Israel e a responsabilidade e dedicação para entregar o melhor produto a qualquer custo, mesmo vivendo em um período de guerra.

lhor a empresa enfrentar logo essa mu dança de conceito para que não acabas se tendo de enfrentar depois a Muralha de Energia – o problema insolúvel do superaquecimento de chips mais velozes dentro de computadores portáteis com espaço cada vez menor para ventoinhas. Os momentos da Intel de Israel des critos acima demonstram bem algumas características presentes em abundância na sociedade israelense, indispensáveis para transformá-la em um celeiro de empresas start-ups de tecnologia: o es pírito sionista de Dov, que dedicou sua carreira para desenvolver uma tecnolo gia de ponta em e para Israel; a respon sabilidade e dedicação para entregar o melhor produto a qualquer custo, mesmo vivendo em um período de guerra, e, ainda, a chutzpá 1 e perseverança da equipe de Haifa para convencer a ma triz americana a mudar completamente de paradigma.

Superando a Muralha da Energia

Mais recente, a última grande história da Intel israe lense relatada no livro conta como o grupo de Haifa foi responsável pela grande guinada que a empresa deu em 2003 ao lançar o processador Centrino para laptops Foram necessários três anos para convencer a matriz da empresa de que a única saída para seguirem produzindo chips cada vez mais velozes, sem que o superaquecimento inviabilizasse o acoplamento do chip a computadores portáteis, seria reduzindo a frequência do clock de pro cessamento – que dita o ritmo em que são executadas as operações dentro do processador – e distribuindo com mais eficiência as instruções fornecidas ao chip . Isso ia contra a tendência do mercado, em que mais velocidade de clock sempre significara melhor desempenho. O que a equipe israelense estava sugerindo era que seria me

Podemos adicionar a essas caracterís ticas outras citadas inúmeras vezes no li vro como responsáveis em maior e menor grau pelo sucesso israelense na criação de start-ups. Entre elas, está o serviço militar obrigatório, com seu efeito disciplinador, gerando costumeiramente uma ampla rede de bons re lacionamentos pessoais e ainda formando elites intelec tuais ao selecionar os jovens mais qualificados para seus grupos especiais – é comum ver jovens que pertenceram a esses grupos lançando start-ups ou então indo traba lhar para uma delas.

Uma outra é a presença de excelentes universidades, com qualidade reconhecida internacionalmente e famo sas por estarem entre as instituições que mais publicam artigos científicos no mundo. As políticas de incentivo do governo para o desenvolvimento do setor de alta tec nologia, desde a criação do Estado, com a intervenção direta de Shimon Peres há 60 anos, é outro fator. E não menos importante, a população de imigrantes que soma quase 40% da população do país, com destaque para a enorme massa de imigrantes soviéticos, tecnicamen te qualificados, que inundou o país no início dos anos

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1990. O imigrante, de acordo com os autores do livro, tem mais apetite para arriscar e ousar, dado que já se su jeitou ao risco de se deslocar para morar lá.

Densidade de start-ups

Hoje, o país ostenta a maior densidade de start-ups do mundo. Somadas, passam de três mil e oitocentas. A bol sa americana Nasdaq, que lista um grande número de em presas de tecnologia do mundo todo, possui mais empre sas israelenses listadas do que empresas do continente eu ropeu. Citando apenas algumas dessas companhias, temos

a Teva, que atua na área de genéricos farmacêuticos, a Che ck Point, fornecedora de produtos para segurança de da dos, e a Given Imaging, desenvolvedora de equipamen tos médicos, famosa pela pillCam, uma pílula que filma e transmite em tempo real seu percurso pelo aparelho diges tivo e é muito usada para diagnósticos gastroenterológicos.

Em 2008, os investimentos de capital de risco recebidos em Israel per capita foram 2,5 vezes maiores que nos EUA, mais de 30 vezes maiores que na Europa, 80 vezes maiores que na China e 350 vezes maiores que na Índia. Em números absolutos, Israel nesse período atraiu per to de US$ 2 bilhões, mesmo valor de captação do Reino

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Unido, cuja população é nove vezes maior que a de Israel.

Tive a oportunidade de viver nesse país start-up entre 2004 e 2008. Ao cur sar o mestrado em Engenharia de Ge renciamento de Informação no Tech nion, pude estudar com professores que sonham com o Prêmio Nobel e com alu nos que sonham em ser o próximo Bill Gates ou Steve Jobs. Dando aula para turmas de graduação, vi alunos com um compromisso dentro de sala que nunca tinha visto antes. Muitos deles julgavam -se “velhos” por ainda estarem na gradu ação com vinte e poucos anos, atrasados pelos anos no exército, pois se compara vam aos jovens de outros países, como os americanos. Por conta disso, davam tudo de si nas aulas para terminar logo, bem formados, e partir para o mercado de trabalho. Um pou co da autoconfiança e chutzpá israelense podiam ser vis tas também quando muitas vezes alunos vinham chora mingar míseros décimos de pontos na nota, pois eles jul gavam que 10 era a nota mínima aceitável para refletir seu desempenho.

Tive a oportunidade de viver nesse país startup entre 2004 e 2008. Ao cursar o mestrado em Engenharia de Gerenciamento de Informação no Technion, pude estudar com professores que sonham com o prêmio Nobel e com alunos que sonham em ser o próximo Bill Gates ou Steve Jobs.

com o governo de Israel, a empresa ga rante ter postos de troca por todo o país e ainda carros cujo preço fica mais bara to do que o seu similar a gasolina. Isso é garantido pela proposta de negócio que a empresa vislumbra.

Voltando ao livro, a história que é contada logo na in trodução demonstra o nível de audácia que pode ter um projeto de start-up israelense. Um caso emblemático é o da Better Place, a empresa israelense que foi criada com o maior investimento inicial já visto no país, um aporte de US$ 200 milhões. O israelense Shai Agassi, seu fundador, era até 2007 o executivo mais cotado para assumir o cargo de CEO da multinacional alemã SAP. Naquele ano, após ser convidado para participar do Forum for Young Leaders, em Davos, e sair de lá intrigado com o desafio lançado aos líderes ali presentes – “O que fazer para termos um mun do melhor em 2030?” –, decidiu dar vida ao projeto que apresentara no encontro. Sua ideia? Retirar o mundo da dependência do petróleo.

Nesse projeto audacioso, a Better Place busca solucio nar a problemática do carro elétrico – custo alto para a ba teria e tempo longo de recarga – criando uma rede de pos tos de abastecimento para carros elétricos, em que o motorista vai trocar a bateria de seu carro ao invés de recar regá-la. Além disso, em parceria com a Renault-Nissan e

Nas palavras do próprio Shai, “a Better Place funcionará da mesma forma que uma provedora de celular: você comprará um plano de uso do carro baseado em quilometragem no lugar dos minutos e terá um carro elétrico. Assim, a empresa pode rá diluir o custo da bateria e do carro pe los anos de compromisso que você assinou com ela. Bem-vindo à época do carro 2.0!” Assisti uma vez a uma palestra de Shai Agassi no Technion e fiquei impressiona do com seu discurso. Ele dizia que uma pessoa poderia ter na vida três momentos profissionais. O primeiro deles seria o momento de tra balho. Nesse período, a maior preocupação que a pessoa tem é a de realizar bem suas tarefas. O segundo momento seria o da carreira. Nessa fase, a pessoa já se preocupa em construir um futuro profissional, tem ambições bem definidas e busca trilhar o rumo certo para alcançá-las. O úl timo momento, que são poucas as pessoas que o atingem, é o momento da missão. Ele definiu que sua missão seria entregar às filhas um mundo melhor do que aquele que re cebeu e, para isso acontecer, acreditava que o mundo te ria de deixar de depender do petróleo. Dessa maneira, os países hostis a Israel se enfraqueceriam sem que qualquer guerra humana acontecesse e, de quebra, suas filhas vive riam num país mais seguro.

Se a empresa de Shai conseguirá colocar em prática esse ambicioso projeto, eu não sei. Mas que certamente Israel, com todas as empresas start-ups que pipocam de norte a sul do país, será dentro de dez anos um better place, disso eu não tenho a menor dúvida.

Notas

1. Palavra de difícil tradução para o português, significando um misto de atrevimen to com audácia.

Victor Dweck é mestre em Engenharia de Informação pelo Tech nion (Instituto de Tecnologia Israelense), ex-maskir da Chazit Ha noar e sócio da ARI.

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a missão da World u nion for p rogressive Judaism na a méri C a l atina e no Brasil

mike grabiner

AWorld Union for Progressive Judaism (WUPJ, União Mundial pelo Judaísmo Progressista) foi fundada em 1926 em Londres, quando Lily Montagu e Claude Montefiore, membros da Sinagoga Liberal de Londres, convidaram líderes judeus, representando comunidades liberais da França, Alemanha, Grã-Bretanha, Índia, Tchecoslováquia1, Romê nia, Suécia e dos Estados Unidos a participar de uma conferência em Londres objetivando a formação de uma união internacional de judeus progressistas.

O termo “progressista” foi escolhido como uma maneira de incluir todas as formas do judaísmo modernizado. Vieram cem delegados que aprovaram una nimemente a proposta. A WUPJ foi fundada e Montefiore eleito como seu pri meiro líder voluntário, tendo Leo Baeck como seu sucessor entre 1939 e 1953.

Quando Baeck assumiu, os países afiliados já incluíam a Austrália, a Hun gria, os Países Baixos, o Mandato Britânico da Palestina e a África do Sul. Inicialmente os esforços da WUPJ foram direcionados para os países da Europa Central. Em meados do século XX, década de 1950, os braços da WUPJ já ti nham alcançado a Argentina, o Brasil, o Uruguai e o Caribe.

No final da década de 1980 a queda do comunismo levou ao crescimento de nossas atividades na antiga URSS e outras nações da Europa Oriental, sem perdermos o foco nas Américas do Sul e Central. A WUPJ também jamais dei xou de ser uma constante defensora do judaísmo em Israel na era posterior à Segunda Guerra Mundial.

Hoje a WUPJ, organização guarda-chuva internacional que abrange os movimentos Reformista, Progressista, Liberal e Reconstrucionista, representa o maior grupo de judeus religiosos do mundo. Um milhão e oitocentas mil pessoas são filiadas globalmente em 45 países e 1.200 congregações.

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O maior grupo de judeus religiosos do mundo

Hoje a WUPJ, organização guarda -chuva internacional que abrange os mo vimentos Reformista, Progressista, Li beral e Reconstrucionista, representa o maior grupo de judeus religiosos do mun do. Um milhão e oitocentas mil pessoas são filiadas globalmente aos movimentos que constituem a WUPJ em 45 países e 1.200 congregações.

A missão da WUPJ é fortalecer os va lores e a vida judaica em Israel e em co munidades judaicas em todo o mundo, apoiando e promovendo um enfoque progressista da tradição judaica. O escritório central da WUPJ fica em Jerusalém, a partir de onde trabalhamos para cumprir nossa missão, com a colaboração de nossos constituintes e afiliados pelo mundo afora, construindo e apoiando comunidades, conectando vidas, desenvolven do lideranças, educando os jovens e defendendo a justiça.

Atuação da WUPJ no Brasil

No Brasil, a WUPJ trabalha em conjunto com a liderança regional local no Conselho Latino-Americano em muitas das áreas descritas acima e ajuda várias comunida des menores que não têm nem rabino nem outra lideran ça profissional. Convidamos representantes destas congre gações para estudar em seminários de liderança oferecidos em suas próprias cidades ou em programas de treinamen to de liderança para participantes do mundo todo, como o famoso Seminário de Liderança Beutel, que acontece no Centro Internacional de Educação Saltz em Jerusalém.

Nos últimos anos também convidamos membros des tas comunidades a participar do Lashir B’Nefesh2, evento anual de música/chazanut, cuja 5ª edição aconteceu em março deste ano na Congregação Israelita Paulista (CIP), em São Paulo. Trouxemos o Rabino Clifford Kulwin, de Nova Jersey, para colaborar com as comunidades de Forta leza e de Brasília, que não têm rabino, por ocasião de Pes sach, onde ele liderou sedarim e encontrou-se com líderes comunitários, após o que visitou também Rio de Janeiro e São Paulo, quando predicou e liderou estudos. Congre

gantes desta região participaram de seminários para jovens em 2010 e professores estão inscritos no seminário para educa dores que acontecerá em julho em Israel. Neste momento a WUPJ, associada à liderança regional local, está empenha da em identificar e treinar novos rabinos para o futuro. Há muito poucos rabinos progressistas no Brasil, e, para que o nos so movimento possa crescer, precisamos ter mais rabinos. A WUPJ é parceira do Hebrew Union College nos Estados Uni dos e em Israel, do Leo Baeck College em Londres e do Abraham Geiger College em Berlim, no que tange ao treinamento e à colocação de rabinos em todo o mun do; é muito promissor vermos que há um pequeno grupo de futuro rabinos latino-americanos começando a trilhar o seu caminho pelo sistema.

A WUPJ apoia o enfoque das regiões latino-america nas ao cooperar plenamente com seu movimento parale lo não ortodoxo (Massorti – Conservador) para criar uma base liberal forte.

Isto com frequência enfrenta dificuldades, mas esta mos comprometidos com este tipo de associação e verda

Neste momento a WUPJ, associada à liderança regional local, está empenhada em identificar e treinar novos rabinos para o futuro. Há muito poucos rabinos progressistas no Brasil, e, para que o nosso movimento possa crescer, precisamos ter mais rabinos. Mutlu

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deiro pluralismo. Descobrimos que o judeu brasileiro não ortodoxo realmente se interessa pelo judaísmo liberal, portanto precisamos trabalhar juntos para oferecer uma alternativa religiosa ao Chabad.

Identidade judaica e inclusiva

Vejo muitas das atividades que acabo de descrever não só como essenciais para o crescimento do judaísmo liberal no Bra sil, mas também como parte da minha própria caminha da judaica. Fui educado em uma sinagoga ortodoxa cen tral na Inglaterra, mas optei pela Reforma: eu queria man ter uma identidade judaica forte mas também queria viver no mundo moderno e estar ativamente envolvido na vida e no pensamento atuais.

A WUPJ apoia o enfoque das regiões latino-americanas ao cooperar plenamente com seu movimento paralelo não ortodoxo, Massorti –Conservador –, para criar uma base liberal forte.

ro de falecimentos é maior do que o de nascimentos. Por toda a diáspora só faz crescer o número de judeus que escolhe se casar fora da comunidade e é cada vez maior a porcentagem de nossas crianças que não é educada judaicamente. Tudo isto nos trouxe a um processo constante de envelhecimento e diminuição da po pulação. A identidade judaica está se tor nando mais variada.

Vi o judaísmo reformista como um casamento entre o judaísmo autêntico e os valores liberais, igualitários e in clusivos que sempre valorizei tanto. Dois rabinos reformis tas extraordinários me levaram a um envolvimento cada vez maior com o movimento reformista. Passei a assumir responsabilidades cada vez maiores no movimento refor mista na Grã-Bretanha e finalmente na World Union, ba sicamente por não querer que judeus fundamentalistas ul traortodoxos falassem ao mundo em meu nome ou em nome do povo judeu. Tenho que acrescentar ter sido mui to influenciado pelo sucesso fenomenal do enfoque mul ticomunal dado pelo Limmud3 tanto na Grã-Bretanha como no resto do mundo.

Estou convicto de que nós, os movimentos progres sistas, precisamos trabalhar com todos os que compar tilham a nossa agenda pluralista para combater a cres cente influência do fundamentalismo ortodoxo. Atual mente sou presidente do Conselho Diretor da JCOSS (Jewish Community Secondary School), a primeira es cola secundária judaica pluralista da Inglaterra, porque acredito na importância da agenda pluralista não só para o futuro do judaísmo progressista como também para o futuro do povo judeu.

Um relatório recente apresentado pelo Instituto de Pla nejamento de Políticas Judaicas demonstrou sem sombra de dúvidas que o mundo judeu vem se modificando mui to depressa; com a exceção gritante de Israel, na maio ria das comunidades judaicas no mundo inteiro o núme

As relações entre Israel e a diáspora são fortes, mas estão sob pressão. As gerações mais jovens es tão menos interessadas em seus irmãos judeus, já que pro vavelmente estão expostas a opiniões negativas sobre Israel e têm pouca ou nenhuma experiência pessoal sobre Israel que possa lhes servir como fonte de orgulho. Hoje em dia mais de 90% dos judeus vivem em 20% dos países mais desenvolvidos. Apesar disso, as doações dos judeus estão pequenas, e a parcela de sua filantropia que vai para cau sas judaicas está diminuindo, e esta situação tende a ficar ainda mais crítica na medida em que a geração mais velha e comprometida passe o bastão para a geração seguinte.

Considerando-se esta análise, a Agência Judaica de Is rael, de cujo Conselho Diretor eu agora faço parte repre sentando a WUPJ, traçou três estratégias-chave: conec tar os judeus através de experiências contínuas de Israel e “gente”; inspirar através de modelos de desenvolvimento de lideranças, educação e desempenho, e habilitar através do ativismo social em Israel.

É interessante observar que estas estratégias são mui to semelhantes ao trabalho que nós da WUPJ já fazemos há algum tempo. Reforçar a identidade judaica e a conexão dos judeus pelo mundo entre si e com Israel é a essên cia do que somos. Claramente está tudo muito certo com a nossa missão e nossas prioridades. Nosso desafio é con tinuar trabalhando cada vez mais vigorosamente em nos sos quatro programas estratégicos-chave:

– Apoiar e estabelecer comunidades progressistas no mundo ajudando-as a conectarem-se entre si e com Israel;

– Aumentar nosso apoio aos Programas Internacionais para Jovens e Jovens Adultos, em especial em Israel;

– Expandir o papel do Centro Saltz de Educação em Jerusalém como o braço educativo da WUPJ para lideran ças laicas internacionais, educadores e treinamento para jo vens adultos;

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– Expandir o nosso papel na defesa da justiça com a recente chegada do nosso novo presidente, Rabino Stephen Fuchs, e com ênfase cada vez maior na transmis são da nossa mensagem.

Voltar os holofotes para o Brasil

Creio firmemente que, graças à nos sa visão inclusiva, além de ter um papel muito importante a desempenhar junto aos nossos constituintes e afiliados, ajudando a acelerar mundialmente o crescimento do juda ísmo progressista, a WUPJ também tem outro papel cru cial a representar, que é o de assegurar o futuro mais forte possível para o povo judeu.

Os próximos anos trarão ao Brasil eventos esportivos internacionais da maior importância: a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Os ho lofotes do mundo estarão voltados para o Brasil, e o País estará justamente orgulhoso de toda esta merecida atenção. Isto nos leva a pensar que também nós da WUPJ devería mos voltar os holofotes para o nosso próprio trabalho no Brasil, continuando a proporcionar-lhe a atenção e o cari nho que lhe é devido.

O Brasil, com aproximadamente cem mil judeus, tem a segunda maior população judia da região, e é um parceiro de grande importância dentro da WUPJ, o que já era ób vio em 2008, quando o Rio orgulhosamente foi anfitrião por ocasião da Conferência Regional Latino-Americana

da WUPJ, maravilhosa celebração de his tórias de sucesso regionais e de prosperi dade de nossas comunidades locais. Esta foi também a região que mandou a maior delegação à nossa última conferência bia nual em San Francisco, EUA, um tributo à crescente influência da região dentro de nossa família global.

Valorizamos sobremaneira os esforços dos ativistas que estão liderando a WUPJ na América La tina, da mesma forma com que reconhecemos o valor da revista Devarim, que está fazendo um excelente trabalho de divulgação do pensamento judaico moderno no Brasil. É uma honra e um enorme privilégio para nós termos a oportunidade de trabalhar com líderes laicos tão extraor dinários na WUPJ com o objetivo de assegurar a continui dade e o crescimento dinâmico da vida judaica na região.

Notas

1. Tchecoslováquia: país que existiu na Europa Central entre 1918 e 1992, no terri tório ocupado hoje pelos países República Tcheca e Eslováquia.

2. Lashir B’Nefesh – “Cantando com a alma”: encontro periódico, iniciado em 2008, com o objetivo de troca de experiências e aprimoramento de chazanim e shlichei tsibur das kehilot brasileiras.

3. Limmud, palavra hebraica para aprendizado, é um programa educativo original mente desenvolvido na Grã-Bretanha em 1980 e hoje exportado para outros lo cais e que reúne um impressionante número de pessoas e temáticas.

Mike Grabiner é Chairman da World Union for Progressive Judaism (WUPJ).

Traduzido do inglês por Teresa Roth.

Vi o judaísmo reformista como um casamento entre o judaísmo autêntico e os valores liberais, igualitários e inclusivos que sempre valorizei tanto.
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Em 1991, após a queda da antiga URSS, dezoito jovens da Congregação Há-Tikvah”, em Kiev, reintroduziram o movimento reformista na Ucrânia.

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20 anos de desafios na u C rânia

rabino alexander dukhovny

Ainda menino, na Ucrânia, minha mãe me orientou a não acrescentar creme de leite ao meu borsch (sopa de beterraba feita com caldo de carne). Quando eu perguntei “Por quê?”, ela só soube dizer “Tradi ção!”. Esta foi a minha educação judaica. Foi um desafio...

Muito embora o pai dela tivesse sido rabino hassídico, ela nunca recebeu explicações convincentes de por que os judeus descansam no sábado ou por que observam a kashrut, já que tanto seu pai como a maior parte de sua famí lia fora exterminada no Holocausto. Ela cresceu durante o governo comunista, quando era proibido praticar o judaísmo ou qualquer outra religião. Junto com sua família, minha mãe praticava o judaísmo secretamente. De novo – desafio!

Quando estive na Holanda em 1990, visitando meu irmão, conheci um rabino cuja aparência surpreendeu-me. Pensei que aquele homem não pode ria ser um rabino: não usava nem “peyot” nem chapéu e capote pretos (naque la época eu achava que esta era a aparência dos rabinos). Tratava-se do Rabino Awraham Soedentorp. A partir daí eu me apaixonei por esse tipo de judaísmo: um judaísmo humano, com a cara da gente. Meu próximo desafio passou a ser encontrar um judaísmo humanizado.

Um par de anos mais tarde, já tendo trabalhado como cientista na Acade mia Nacional Ucraniana de Ciências, eu me pus em campo para tentar respon der às minhas próprias questões sobre judaísmo. Após a queda do comunismo

Quando estive na Holanda em 1990, conheci um rabino cuja aparência surpreendeu-me. Pensei que aquele homem não poderia ser um rabino: não usava nem “peyot” nem chapéu e capote pretos (naquela época eu achava que esta era a aparência dos rabinos). A partir daí eu me apaixonei por esse tipo de judaísmo: um judaísmo humano, com a cara da gente.

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entrei para o seminário rabínico “Leo Baeck College Center of Jewish Education” (LBC-CJE) em Londres para iniciar meus estudos rabínicos.

Durante o meu primeiro ano de estu dos em Londres eu me considerei supe raltruísta, afinal de contas, havia abando nado um bom emprego do qual gostava e que pagava bem, um belo apartamen to e um carro, para ir morar numa “cela monástica”. Eu tinha ido a Londres para “sofrer” (bem dentro da maneira tradicio nal judaica). Foi só durante o meu segun do ano de treinamento rabínico que pude compreender que não tinha vindo só pelos judeus da Ucrânia – eu tinha vindo também para descobrir quem eu era. E, de novo, aqui havia um desafio.

Agora, doze anos depois de ter sido or denado rabino, ao lado de um grupo de dedicados líderes laicos, profissionais e para-rabinos, estou restabelecendo um movimento progressista forte e irrever sível na Ucrânia, desafio e mais desafio.

O judaísmo reformista chegou à Ucrânia em 1826, oito anos após o estabelecimento da primeira congregação reformista em Hamburgo. Em 1991, há vinte anos, após a queda da antiga URSS, dezoito jovens congregantes da comunidade “Há-Tikvah”, em Kiev, reintroduziram o movimento reformista –progressista na Ucrânia.

“É preciso guiar uma congregação com a mesma delicadeza com que se grelha um filé de peixe”.

O que dizer então das mais de quarenta congregações às quais hoje em dia eu sirvo? Se vocês me perguntarem como eu gerencio estas congregações, poderia responder como naquela piada do rabi no que estava procurando emprego: ao candidatar-se para uma posição, os com ponentes da comissão de seleção infor maram que estavam à procura de um ra bino responsável. Nosso candidato res pondeu: “Eu sou o seu homem – em to dos os lugares em que já trabalhei, sem pre que alguma coisa dava errado, a con gregação afirmava que eu tinha sido o responsável”.

Uma história que começa em 1826

O judaísmo reformista chegou à Ucrânia em 1826, oito anos após o estabelecimento da primeira congregação reformista em Hamburgo. Em 1991, há vinte anos, após a queda da antiga URSS, dezoito jovens congregantes da comunidade “Há-Tikvah”, em Kiev, reintroduziram o mo vimento reformista-progressista na Ucrânia.

Hoje estamos no mapa da Ucrânia com sete sinagogas cujos prédios foram doados pelo governo no âmbito da res tituição das propriedades judaicas confiscadas durante o co munismo; com 47 congregações reformistas e 13.000 mem bros engajados em diferentes programas comunitários; com 14 jardins de infância e escolas dominicais; com grupos do vibrante movimento juvenil “Netzer”, e com uma ampla variedade de programas culturais, educacionais e projetos de ação social (Tikkun Olam). São vinte anos de desafios!

Enquanto estive na Inglaterra estudando para ser rabi no aprendi algo essencial: o judaísmo tem tanto que ver comigo como com o meu povo. Trata-se de um judaís mo vivenciado. Uma vez um dos meus professores disse:

Ser rabino do movimento progres sista na Ucrânia é uma responsabilidade enorme e uma tarefa carregada de desafios. No decorrer de minha vida aprendi muitas coisas, mas uma é crucial para o trabalho de um rabino: delegar. Não tenho como fazer sozinho o trabalho na Ucrânia. Tenho um colega rabino, uma equipe de dedicados líderes laicos, funcio nários congregacionais pararrabínicos, além do apoio da World Union for Progressive Judaism (WUPJ) e do Eas tern European Council of the Progressive Rabbis (EEC PR), que eu dirijo.

As congregações às quais sirvo são diferentes umas das outras. Algumas têm entre 80 e 90 congregantes (não po demos esquecer que a cidade inteira, um antigo shtetl, só tinha estes 80 ou 90 judeus, e todos pertencem a uma si nagoga progressista – que sucesso!). Outras congregações têm mais de mil membros. Algumas têm seus próprios templos, outras são como tribos nômades – os congregan tes se reúnem em lugares diferentes a cada shabat.

Em algumas congregações que não podem contar com profissionais, líderes laicos preencheram o vácuo, fato no tável em um país que não tem tradição de trabalho vo luntário, e onde a população luta pelo sustento básico (o aposentado ucraniano médio, inclusive muitos em mi nhas congregações, ganha o equivalente a 130 dólares por mês, enquanto que o salário médio gira em torno dos 200 a 350 dólares mensais. Este dinheiro não vai muito lon

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ge, vejam que um par de sapatos simples custa entre 60 e 100 dólares).

A hostilidade contra os judeus progressistas

E aqui se nos apresenta mais um desafio: embora não haja mais antissemitismo promovido pelo governo na Ucrânia, os judeus progressistas são hostilizados pelas ins tituições ultraortodoxas ucranianas do Chabad. Os outros 50 rabinos da Ucrânia, que servem a mais de 160 congre gações ultraortodoxas, todos nascidos em Israel ou nos Es tados Unidos, não consideram legítimas as congregações progressistas ucranianas; rejeitam a Reforma como um ju daísmo que não seria nem autêntico nem adequado. Cos tumo responder a eles dizendo: “Mas nós não acreditamos em Deus, na Torá, nas mitzvot e em ma’assim tovim (boas ações) igual a vocês?

Claro que acreditamos! Mas o fato de que a questão persiste apesar de todas as evidências define o desafio que o judaísmo progressista enfrenta se realmente pretende im pactar o futuro dos judeus da era pós-URSS.

É possível que os meus colegas ultraortodoxos sim plesmente não saibam que, ao final do século 18, os ju deus se defrontaram com o mundo moderno na Alema nha e o judaísmo reformista foi uma das respostas aos desafios daquele momento. Um dos caminhos foi con frontar os novos pensamentos e as novas ideias da mes ma forma como o judaísmo já tinha feito quando se de parara com o mundo greco-romano. A esta resposta da mos o nome de Reforma. Um outro caminho foi o de in sistir em que nada poderia mudar, por mais irrefutáveis que as ideias modernas viessem a ser. A esta atitude da mos o nome de Ortodoxia.

As ideias do judaísmo reformista chegaram à Ucrânia com o Iluminismo, nas primeiras duas décadas do século 19. Entre as primeiras mudanças na educação judaica po demos contar a introdução de matérias seculares no currí culo judaico em Lviv, Uman, Kharkiv, Zitomir e Odessa. Depois destas mudanças vieram as primeiras congregações reformistas em Lviv e Odessa, com a construção dos pri meiros templos. Quase dois séculos depois, estamos mais uma vez no mapa da Ucrânia. As palavras fortes do Rabi

Embora não haja mais antissemtismo pelo governo na Ucrânia, os judeus progressistas são hostilizados pelas instituições ultraortodoxas ucrania nas do Chabad.

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no Dr. Tony Bayfield, líder dos judeus reformistas britânicos, ecoam em nossos corações quando afirmamos que:

– Claro que acreditamos em Deus –, mas não no Deus da literatura medieval, que recompensa os justos e fulmi na os pecadores.

– Claro que acreditamos na Torá –, mas não num do cumento extra-histórico que atravessou o espaço sideral de Deus a Moisés sem intervenção humana.

– Claro que acreditamos em mitzvot –, mas não em uma lista arbitrária de 613 itens congelada em algum mo mento do século 13.

– Claro que acreditamos em “ma’assim tovim” (boas ações) –, de fato louvamos a Deus igualmente pelo com portamento que temos para com os nossos semelhantes, como através das orações durante os serviços religiosos.

Temos aqui uma ótima base para argumentarmos que o judaísmo progressista é pura e simplesmente o judaís mo em sua forma de expressão mais natural e podero sa no início do século 21. “Creio firmemente que juntos podemos formar uma parceria global para cuidarmos do

planeta e uns dos outros”, disse o Rabino Dr. Awraham Soedentorp, que atua como Comissário da Carta da Ter ra, ao receber a renomada Medalha de Ouro Inter-reli giosa “Paz Através do Diálogo”. É este o tipo de judaísmo humano que eu amo, e que eu venho trazendo para a Ucrânia de nossos dias.

O papel da WUPJ na URSS

Devemos orgulhosamente prestar homenagem à World Union For Progressive Judaism pelo restabelecimento da vida judaica na antiga URSS: nos últimos 20 anos a WUPJ vem desempenhando papel fundamental na criação de ins tituições, programas e lideranças formando os alicerces do judaísmo progressista na ex-URSS.

Desde o início destes esforços a WUPJ se manteve comprometida com o princípio de que uma vida judaica duradoura precisa estar enraizada na força da congregação. Os resultados do trabalho da WUPJ são essenciais: o esta belecimento e a capacitação das congregações e dos centros

Moscou é uma das maiores congregações do movimento progressista na antiga União Soviética. Mikhail Bistrov / iStockphoto.com
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comunitários que incorporam elementos religiosos, educacionais, culturais, sociais e outros igualmente importantes da vida em comunidade.

Quando a União Soviética desmoro nou, no final da década de 1980, havia ainda quase três milhões de judeus viven do em áreas sob controle do regime co munista. A WUPJ imediatamente entrou em ação, mandando voluntários e rabinos ao encontro destes judeus e propondo o objetivo histórico de renovar a vida judai ca para a segunda maior dispersão judaica depois da América do Norte.

O desafio para a WUPJ era claro –com tantos judeus em busca de direção e precisando ser orientados, como poderia o nosso movimento reformista, progres sista, deixar de ser uma das “mãos esten didas” dando as boas-vindas aos judeus de volta aos seus?

Claro que acreditamos em Deus, mas não no Deus da literatura medieval, que recompensa os justos e fulmina os pecadores. Claro que acreditamos na Torá, mas não num documento extra-histórico que atravessou o espaço sideral de Deus a Moisés sem intervenção humana.

Claro que acreditamos em mitzvot, mas não em uma lista arbitrária de 613 itens congelada em algum momento do século 13.

O mundo judaico maior é pluralis ta em sua trama, refletindo uma varieda de de orientações religiosas. Como seria possível que milhões de judeus da antiga URSS, depois de não terem tido acesso às suas tradições judaicas por quase um século, voltassem à vida judaica sem a possibilidade de optarem pelo judaís mo liberal se assim o quisessem?

De imediato e sem nenhuma dúvida a WUPJ sentiu -se na obrigação de associar-se, assim como outros movi mentos religiosos judaicos, à sagrada tarefa de revitalizar o judaísmo na antiga URSS. Até hoje a resposta tem sido avassaladora e um bom exemplo disto é o movimento re formista na Ucrânia.

Desde o estabelecimento da primeira congregação da WUPJ em Moscou, em 1990, Congregação Hineini, a World Union já ajudou a criar quase 100 congregações pela Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e pelos Países Bálticos.

A formação de paraprofissionais comunitários

Comunidades judaicas precisam de profissionais trei nados com conhecimento de judaísmo, e também de lí deres laicos (voluntários). Através do Instituto de Estudos

Judaicos Modernos, fundado em Moscou em 1993, a WUPJ treinou um núcleo de paraprofissionais comunitários instruí dos e judaicamente habilitados a liderar a crescente rede de comunidades religiosas filiadas à WUPJ.

Alguns dos egressos deste programa de treinamento, assim como outros estu dantes, continuaram a sua instrução em seminários rabínicos do movimento (Leo Baeck College de Londres; Abraham Gei ger College de Berlim; Hebrew Union College de Jerusalém) e agora trabalham como rabinos nas maiores congregações do nosso movimento na Rússia (Moscou e São Petersburgo), na Ucrânia (Kiev e Simferopole) e na Bielorrússia (Minsk). Eu sou um destes seis rabinos reformistas que trabalham na antiga URSS e gosto muito do meu trabalho na Ucrânia: acho prazeroso instruir judeus para que eles e seus filhos possam saber quem são, de for ma diferente do que aconteceu comigo e com meu irmão quando éramos crianças. Gosto de viver e isto me faz compre ender como é importante ajudar os ju deus ucranianos a manter sua identidade e a compreen der, como aconteceu comigo, que um judaísmo com a cara da gente é multicolorido e multifacetado. O judaísmo tem a ver comigo e com cada um de nós.

Minha decisão de trabalhar na Ucrânia representa uma posição especial e outro desafio: eu tinha me casado com minha colega Rabina Erlene Wahlhaus-Dukhovny no dia de nossa ordenação, e minha falecida esposa trabalhava em Londres. Desafio passou a ser uma palavra-chave em nos sa família. E ainda não deixou de ser.

No entanto, alguns judeus ucranianos ainda são de opi nião que o judaísmo é coisa do passado. Mas o judaísmo não é só coisa do passado, é também do presente e do fu turo. E aqui temos um lindo desafio!

O Rabino Alexander Dukhovny é o Rabino Chefe das Congrega ções Judaicas Progressistas de Kiev e da Ucrânia e o presidente do Conselho de Rabinos Progressistas da Europa Oriental. Traduzido do inglês por Teresa Roth.

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l imites para a l egalidade

ricardo luiz sichel

Muitos algozes nazistas, quando do julgamento em Nuremberg, simplesmente afirmaram que cumpriam ordens. Alegavam que os crimes teriam sido cometidos em nome de ordens dadas, e es tas se baseavam em leis de cunho racista, que respaldavam o seu comportamento. As normas racistas foram aprovadas pelo Parlamento Alemão (Reichstag), integravam, portanto, o Ordenamento Jurídico e não poderiam, desta forma, ser descumpridas.

Passados 65 anos do final da 2a Guerra Mundial, como devemos nos com portar em face do primado da lei? Quais os limites? Recentemente, foi publi cado pela imprensa o seguinte relato sobre um evento em Israel:

A estudante de Medicina Nofrat Frankel, de 25 anos, foi detida quando re zava no local junto com 40 outras mulheres. Após um protesto de judeus orto doxos que a viram com o xale (talit, em hebraico), a polícia a retirou do local e a manteve detida por duas horas, para então determinar que ela fique longe do Muro das Lamentações durante pelo menos 15 dias, segundo uma porta-voz.

Micky Rosenfeld, porta-voz da polícia, disse que a estudante supostamente violou uma decisão da Justiça israelense que, seguindo os preceitos ortodoxos, proíbe que as mulheres usem trajes religiosos no local sagrado.

“As tensões explodiram, houve empurrões e gritos e a polícia interveio para evitar a violência”, disse Rosenfeld, acrescentando que não houve feridos e nin guém mais foi preso.

Frankel pode ser condenada a até seis meses de prisão e multa de 10 mil shekels (2.000 dólares) por realizar um gesto religioso ofensivo, segundo Anat

O Estado passa a ser considerado como “de Direito”, isto é, as regras de convivência não passariam mais a decorrer da vontade do soberano, estando reguladas e limitadas pela lei. Entretanto, este conceito passa a ser insuficiente, em especial, após o Holocausto. Não basta a existência formal de uma norma legal, para a garantia de que uma ditadura não esteja instalada, em detrimento das liberdades individuais.

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Hoffman, diretora de um grupo que patrocina as “Mulheres do Muro”.

A acusada também segurava uma Torá, pergaminho bíblico judaico, con trariando a tradição ortodoxa, mas a polí cia não citou isso como razão para detê-la.

O grupo de Hoffman defende maior abertura à participação das mulheres nas orações no Muro das Lamentações, e nas últimas duas décadas teve frequentes atri tos com os ortodoxos. Ela disse que esta é a primeira vez que uma das suas segui doras é presa.1

O império da lei

Narro este fato sem entrar no mérito de seu conteúdo; entretanto, não se pode deixar de reconhecer que Israel é um Es tado Democrático de Direito, onde o que prevalece é o “Império da Lei”. Esta questão já foi aborda da em uma grande quantidade de passagens, como a que retrata uma ocorrida com o Imperador Frederico o Gran de, em seu Palácio de Verão, que reclamou de um molei ro, exigindo a demolição de um moinho. O moleiro não se impressionou com a ordem imperial e respondeu: “Majestade, ainda há juízes em Berlim”.2 O moleiro confiava no sistema democrático e na limitação do poder real; para ele vigia o império da lei e não a vontade do soberano.

A ação e a crítica não podem ser suprimidas, porém a discordância não pode implicar na violação de um preceito legal. Dentro do regime democrático devem os grupos organizados, em primeiro lugar, cumprir a lei, uma vez que esta decorre da aprovação pelos Poderes do Estado, sendo estes legitimados através da representação popular.

te, em especial, após o Holocausto. Não basta a existência formal de uma norma legal, para a garantia de que uma ditadu ra não esteja instalada, em detrimento das liberdades individuais. Estabelece-se, por tanto, a necessidade de que este “Estado de Direito” também seja “Democrático”, passando a denominá-lo “Estado Demo crático de Direito”.

A inclusão da expressão “Democráti co” se prende à necessidade de que a for malidade de normas legais não garante a dignidade da pessoa humana. Não basta a existência de um normativo legal, este deve ter cunho democrático, garantindo direitos elementares, como a liberdade de expressão e movimentação, a inexistência de juízos de exceção e a garantia de que o processo siga aos ditames legais, garantin do-se às partes o contraditório e a defesa, em suma, a legitimação pela democracia. Respeitadas es tas premissas, não tem o cidadão como fugir do chamado “Império da Lei”.

O estabelecimento da lei tem o condão de garantir a paz social, evitando que as pessoas recorram a “Juízos Pri vados”, tornando transparentes os processos e estabelecen do a coexistência de pessoas em sociedade, de forma que esta não seja ditada pela força, pelo poder econômico, mas sim pela igualdade jurídica dos indivíduos.

O estudo das normas legais, dentro da tradição do Di reito Romano, obriga ao exame do constitucionalista aus tríaco e judeu Hans Kelsen, que se baseou na existência de uma “Norma Fundamental”.3 Estabeleceu, como con sequência, a existência de uma pirâmide, onde esta “Nor ma Fundamental” ocupa o ápice e que balizaria e limi taria o alcance das normas inferiores. Estabelece-se, des ta forma, o controle concentrado de constitucionalidade, tendo como primeiro texto legal a Constituição da Áus tria de 1920.

O Estado desta forma passa a ser considerado como “de Direito”, isto é, as regras de convivência não passariam mais a decorrer da vontade do soberano, estando reguladas e limitadas pela lei. O Estado de Direito passa a ser consi derado todo aquele ente onde a lei regulamenta as relações jurídicas. Entretanto, este conceito passa a ser insuficien

Esta igualdade pode e deve ser relativizada em face do poder econômico de uns em detrimento de outros, uma vez que o Estado protege os desiguais de forma não igual, porém não criando a existência de “cidadãos de segunda classe”, mas dando aos menos favorecidos a possibilidade de se tornarem “iguais” aos mais favorecidos.

Discordância ou violação da lei?

Neste contexto, pergunta-se qual o papel de um gru po organizado em face da discordância deste sobre algum preceito legal e de que forma pode e deve agir. A ação e a crítica não podem ser suprimidas, porém a discordância não pode implicar na violação de um preceito legal. Den tro do regime democrático devem os grupos organizados, em primeiro lugar, cumprir a lei, uma vez que esta decor

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re da aprovação pelos Poderes do Estado, sendo estes legi timados através da representação popular. O cumprimen to à lei, atendendo ao preceito da legalidade, é de vital im portância para a manutenção das liberdades democráticas.

Entretanto, o fato de observar a lei não implica na con cordância com os seus termos, cabendo à sociedade, atra vés de seus organismos, promover a alteração desta. Nor malmente, os Estados Democráticos são constituídos por três Poderes: o Executivo, a quem incumbe implementar as leis, bem como propor a alteração destas, o Legislativo, a quem é atribuído a prerrogativa de aprovar as Leis, e o Judiciário, cuja competência se centra em fazer aplicar e valer a norma legal. Deve ser observado que os dois pri meiros Poderes têm os seus titulares eleitos pelo sufrágio direto universal, sendo representantes da sociedade civil e, portanto, um retrato desta.

Assim, em havendo discordância com um determina do preceito legal, incumbe aos grupos organizados mobi lizar os seus simpatizantes para que, quando das eleições, obtenham uma representação parlamentar simpatizante à sua ideia e, desta forma, promover a pretendida alteração. Caso, entretanto, a questão se centre na forma com que determinada norma legal vem sendo implementada ou in terpretada, incumbe o acionamento do Poder Judiciário, para que este fixe a interpretação adequada e dê a necessá ria organicidade ao Sistema Jurídico como um todo.

A pressão popular é válida, porém respeitados os limites legalmente estabelecidos. Não se pode cair na falácia dos que clamam pelo denominado “clamor popular”, uma vez que este, historicamente, foi distorcido e manipulado. Por outro lado, o anseio da sociedade civil, no Brasil, pode acarretar, na forma como autoriza a Constituição Federal,

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na apresentação de Projeto de Lei por iniciativa popular, como ocorreu no caso da Lei denominada de “Ficha Lim pa”. O fato é que houve a iniciativa de grupos organiza dos, mas o processo legislativo foi respeitado.

O Estado de Direito e o status da mulher

Voltando ao caso inicialmente citado, ocorrido em Is rael, onde uma mulher foi presa por práticas religiosas, deve se observar que Israel é uma democracia plena, onde processos são conduzidos por um Poder Judiciário inde pendente. A discordância de uma lei deve ser combatida nos foros político (Parlamento) ou legal (Judiciário) ade quados, mas não através do descumprimento de determi nada norma. A representação parlamentar decorre da participação nas eleições.

Outra questão relevante decorre no Estado Democrá tico de Direito do status conferido à mulher. Os direitos da mulher, atualmente amplamente reconhecidos em nos sa sociedade, são recentes. No Brasil, até 1962, com a Edi ção do Estatuto da Mulher Casada, esta era considerada re lativamente incapaz, dependendo do marido para o exer cício de atos da vida civil. Os direitos da pessoa humana tiveram seu marco importante com a Revolução France sa, onde em uma das imagens conhecidas, destaca-se o pa pel da mulher4:

O hino nacional francês é um discurso em defesa do fim da tirania5:

Avante, filhos da Pátria,

O dia da glória chegou!

Contra nós da tirania,

O estandarte ensanguentado se ergueu.

Apesar deste clamor por liberdade, somente no sécu lo XIX é que se tem notícia do surgimento do movimen to feminista, onde questões relativas à liberdade sexual, ao aborto e à igualdade de direitos passaram a ser discutidas. Esta temática também não passou despercebida pela reli gião, apesar de inúmeras resistências de setores mais con servadores.

Até hoje a Igreja Católica discute o papel da mulher no culto religioso, fato esse já aceito pelo judaísmo não orto doxo e por várias igrejas protestantes, merecendo destaque a anglicana. Vale lembrar que o direito ao voto concedi

do às mulheres é relativamente recente, sendo introduzido em 1917 na Rússia, em consequência da Revolução, em 1920 nos Estados Unidos da América e em 1932 no Brasil.

A questão da igualdade de direitos à mulher até hoje ainda encontra resistências, em especial quando observa da a sua participação nos Parlamentos, em cargos de dire ção de grandes empresas, em tratamento discriminatório com relação a salário e vantagens laborais e com relação a maus tratos domésticos, onde o autor da agressão é, mui tas vezes, pessoa que coabita com a mesma.

Para tanto foi editada a Lei Maria da Penha (Lei nº 113340/2006), cujo nome é uma homenagem a uma mu lher vítima de violência doméstica praticada pelo marido e que ficou paraplégica. Em termos mundiais, temos ain da o caso de mutilações em órgãos genitais, feitas em paí ses africanos, sob o manto de prática religiosa, a lapidação (morte por apedrejamento) pena à qual a sra. Sakineh foi condenada no Irã, com base em processo judicial duvidoso, isto sem falar na brutalidade da forma de execução.

Igualmente lamentável o fato de que, em algumas na ções árabes, o culpado pelo estupro é a vítima. Vale lem brar que no Brasil, até 2002, na forma do Código Civil de 1916, era passível de nulidade o casamento contraído no caso de defloramento da mulher desconhecido pelo ma rido; “mulher honesta” era sinônimo de virgindade. Ob servamos destes conceitos que o ato sexual, de prerrogati va exclusiva dos homens, era vedado às mulheres solteiras, o que remonta aos tempos medievais onde esta prática era considerada pecaminosa.

Separação entre Estado e religião

Todas estas questões somente evidenciam a necessida de de se promover a separação do Estado e da Religião. As relações com o Estado devem ser laicas e não submetidas a uma sistemática de consciência, na medida em que o ho mem se volta a Deus e às normas destes por um dever de cumprimento de obrigações de caráter moral, o que não ocorre com a relação deste para o Estado. Thomas Jeffer son asseverava:

“Acreditando que a religião é um assunto que cabe exclusi vamente entre o homem e seu Deus e ele não deve prestar con tas a ninguém por sua fé ou o seu culto e que os poderes legis lativos do governo devem alcançar somente as ações e não opi niões, eu contemplo com reverência soberana que a vontade

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do povo americano declarou que toda sua legislação não de veria ‘fazer nenhuma lei estabelecendo religião, ou proibindo o livre exercício profissional’, assim, construir um muro de se paração entre Igreja e Estado”.6

Em 1789, sustentavam os pais da Revolução France sa que o homem somente poderia ser livre se estivesse in dependente da religião, o que veio a ser legalmente esta belecido em 1795. Entretanto, devo recordar que esta não é uma questão pacificada em todas as nações, citando-se, por exemplo, o Reino Unido, onde seu monarca é o che fe da Igreja Anglicana.

A junção de religião com o Estado gera problemas, transformando espaços religiosos em locais de disputa po lítica. O espaço deixa de ser público, para se tornar em ins trumento de ação de um determinado grupo. Levando em conta o muro, cujo local traz em si uma simbologia, uma história de todo um povo, transformá-lo em “proprieda de” de um determinado grupo, que se apodera do mes mo, transforma-o em um ídolo do século XXI, perdendo o caráter espiritual do local, para transformar em bandei ra e supremacia de uma ideologia sobre outras eventual mente discordantes.

Igualmente, merece destaque a Revolução Russa, de outubro de 1917, que levantou a bandeira da emancipação da mulher. Porém, todos estes movimentos acabaram por esbarrar na falta de democracia, o que implica na ausência de liberdade. Não se pode esquecer os estreitos laços do sionismo com o socialismo marxista, principalmente atra vés de movimentos halutzianos, nos quais assumem destaque os ainda existentes Hashomer Hatzair, fundado na Galícia em 1914 e se organizando, em 1916, em Viena, e o HabonimDror, fundado em 1929 em Londres.

Neste sentido, em existindo um Estado Teológico, onde tribunais religiosos, como os rabínicos, têm jurisdi ção, onde o emocional ganha espaço em relação ao racio nal, onde o papel das pessoas e nesse ponto a sua igualda

de perante a lei é determinada por sentimentos subjetivos, desprovidos de critérios objetivos, fica questionável a im plementação das garantias e igualdades conquistadas pelo homem, uma vez que estas partem da premissa do respei to às diferenças, à opção sexual e ao gênero.

A questão religiosa leva em conta aspectos emocio nais, enquanto as relações jurídicas e para com o Estado devem se ater a ponderações de natureza jurídica, onde são considerados os direitos da cidadania. Neste ponto vale lembrar o contido na Declaração dos Direi tos do Homem e do Cidadão, proclamados pela Revolu ção Francesa, em 1789: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. A Organização das Nações Uni das, em 1948, editou a Declaração Universal dos Direi tos Humanos, onde consta: “Toda pessoa tem capacida de para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.

Assim, enquanto aspectos religiosos estiverem inseridos na lei estes devem ser cumpridos. O que parece ser ques tionável, e de certa forma atentatória a princípios demo cráticos elementares, é o desrespeito da lei, mesmo que não se concorde com o referido texto legal. A manifestação es tatal, através da edição e revogação de leis, somente pode ocorrer por ação do Poder Legislativo, cabendo ao Judi ciário zelar pela sua adequada aplicação.

O respeito aos direitos humanos

Entretanto, toda esta autonomia está vinculada à ob servância de princípios universais de respeito a direitos hu manos, onde se deve questionar a imposição da pena de morte e a falta de igualdade entre homens e mulheres, na medida em que esta questão não pode mais ser de

Marje
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finida no âmbito do local. O Holocausto, com 6 milhões de judeus mortos, pa recia, em um primeiro instante, ter des pertado a consciência humana da neces sidade de se respeitar a dignidade do ho mem, porém a história tem-nos mostrado que a barbárie, a perseguição e a repres são ainda mostram sua face, dizimando povos, torturando opositores e destruin do esperanças.

O povo judeu não pode se omitir da dor do oprimido. Atualmente, observa mos no mundo árabe a eclosão de uma série de revoltas populares, que acaba ram por depor regimes autoritários do Egito, da Tunísia, além dos conflitos em outras nações. Muitos se questionam acerca de qual posição adotar, em face do receio pelo desconhecido, do risco do fundamentalismo, porém é inaceitá vel dar sustentação a regimes que negam os direitos humanos, que fulminem com as liberdades.

Outra questão relevante decorre no Estado Democrático de Direito do status conferido à mulher. Os direitos da mulher, atualmente amplamente reconhecidos em nossa sociedade, são recentes. No Brasil, até 1962, com a Edição do Estatuto da Mulher Casada, esta era considerada relativamente incapaz, dependendo do marido para o exercício de atos da vida civil.

Incontestável o direito destas populações em lutar pelo estabelecimento das liberdades democráticas, mes mo que através de movimentos onde a liderança não seja visível. Entretanto, a atenção da coletividade internacio nal deve estar focada no regime que será instalado após a queda do autoritarismo, sem, entretanto, querer impor uma modalidade estereotipada, uma vez que não se pode impor a uma sociedade as “verdades” de outra; o parâmetro para análise passa pelo respeito à dignidade da pessoa humana.

Nos importar com os dramas não se limita a denunciar a opressão, a violação aos direitos humanos, mas também oferecer respaldo espiritual e material para o perseguido, em função das profundas marcas decorrentes da opressão, da perseguição e da tortura. “Separem-se da desumanida de nazista! Demonstrem por atos que vocês pensam dife rente” e “Um fim no terror é melhor do que um terror sem fim”.7 Estas marcas permanecem, mesmo quando o per seguido é livre. “São noites de silêncio. Vozes que clamam num espaço infinito. Um silêncio do homem e um silên cio de Deus”.8

A inquietação com a situação da opressão nazista in

comodou Dietrich Bonhoeffer, pena que outros se omitiram. Para um amigo ele falou:

“Cheguei à conclusão de que eu cometi um erro em vir para a América. Devo viver este período difícil da nossa história nacio nal com o povo da Alemanha. Eu não terei direito a participar da reconstrução da vida cristã na Alemanha depois da guerra se não partilho os desafios junto com o meu povo. Os cristãos da Alemanha terão que enfren tar a terrível alternativa por desejar a derrota de sua pátria, a fim de que a civiliza ção cristã possa sobreviver ou lutar pela sua vitória e, assim, destruir a civilização. Eu sei que tenho que escolher uma dessas alter nativas, mas eu não posso fazer essa escolha estando em segurança.”

O que se pode questionar, voltando à questão nuclear, é se o Estado não separa o laico da religião e nesta o ser humano é tratado com discriminação de gênero, se o respeito à dignidade humana está sendo resguardada. Confundir o âmbito espiritual com o relacio namento de caráter institucional e político é um caminho perigoso, na medida em que pode fazer ruir a democracia.

Ricardo Luiz Sichel é Conselheiro da ARI, Procurador Federal jun to ao INPI e Professor-Adjunto de Direito Civil da UNIRIO, doutor e mestre em Direito da Propriedade Intelectual pela Westfälische Wilhelms Universität, em Münster (Alemanha).

Notas

1 http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/conteudo.phtml?tl=1&id =945903&tit=Judia-com-xale-e-detida-em-local-sagrado-de-Jerusalem, acesso em 22/09/2010.

2 http://www.preussen-chronik.de/thema_jsp/key=thema_preu%25dfen-mythos. html, acesso em 22/09/2010.

3 Grundgesetz.

4 http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://2.bp.blogspot. com/_9ZRFORu4LqY/S9C-8spdNKI/AAAAAAAAADs/oU6sjM7adnE/s1600/ revolucao-francesa-.jpg, acesso em 24/09/2010.

5 Allonsenfants de la Patrie, Le jour de gloire est arrivé! Contre nous de la tyrannie, L’étendard sanglant est levé, (bis)

6 http://candst.tripod.com/tnppage/qjeffson.htm, acesso em 24/09/2010.

7 Rosa Branca, Sophie Scholl “Darum trennt Euch von dem nationalsozialistischen Untermenschentum! Beweistdurch die Tat, daßIhrandersdenk” .

8 Agenda de Frei Tito de Alencar Lima (pouco antes de seu suicídio).

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o ração a lêinu l esha B êa C h

o Alêinu representa uma belíssima oração judaica, símbolo da expressão de nossa finitude enquanto seres humanos perante esse mistério inescrutável que chamamos de deus.

rabino reuben nisenbom

Aoração Alêinu Leshabêach começa com estas palavras: “Devemos lou var ao Senhor de todas as coisas e outorgar grandeza ao Criador do Universo”. É a oração que conclui o serviço religioso. Também intro duz, em Rosh Hashaná e Iom Kipur, a seção que inclui o toque do shofar, denominada Malchuiot (o reino de Deus), que tem lugar no serviço adicional denominado Mussaf, quando solenemente é proclamada a era messiânica de Deus.

No ritual ashkenazi, nestas duas festividades, o rabino ou o oficiante e/ou a congregação se ajoelham literalmente. No restante do ano há só uma incli nação de joelhos e cabeça quando chegamos às palavras: vaanachnu korim (nos ajoelhamos) umishtachavim (nos prostramos, nos inclinamos) umodim (e glorifi camos, agradecemos).

É uma oração de versos curtos, cada um contendo umas quatro pala vras com um ritmo marcado e com formas paralelas em cada verso em re lação ao anterior. É uma das mais sublimes orações judaicas, escrita em lin guagem exaltada.

Um rabino do século III da era comum é considerado seu autor, porém é quase certo que seja anterior a essa época. Tradições populares atribuem sua composição a Josué/Yehoshua, ou aos homens da Grande Assembleia, durante o período do 2° Templo, o que faz sentido, já que ela não cita a futura restauração do Templo e faz referência à prática da prostração no Templo.

Por outro lado, no misticismo primitivo da corrente cabalística denomina da Merkavá (a carruagem do profeta Ezequiel) foram encontradas versões do Alêinu Leshabêach. No século IV da era comum esta oração foi colocada an tes do Kadish.

Este artigo estreia uma nova seção em Devarim, na qual rabinos liberais das congregações da América Latina escreverão sobre o significado, a história e as transformações no texto das orações. A cada número da revista será abordada uma reza diferente.

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significado e história das rezas

O conteúdo da oração

O tema central é o reino de Deus e seu louvor atra vés do gesto de se colocar de joelhos (literalmente ou não) diante da sua gloriosa majestade pela escolha de Israel, Seu povo. O parágrafo final contém a esperança fervente de que no Dia de Deus, esse dia final da história, com a ins tauração do Seu reino messiânico, todos os povos reconhe cerão Adonai como o único e verdadeiro Deus.

Alguns parágrafos do Alêinu marcam fortemente a não escolha dos outros povos, o horror diante da idolatria, o desaparecimento dos ídolos e da veneração de outros deu ses. Isto levou a situações de agudo conflito entre o mun do gentio e o judaísmo e inclusive a situações de censu ra destes parágrafos e à perseguição dos judeus em algumas comunidades.

Censura

Na Era Medieval esta oração foi censurada pela igreja, porque via nela um insulto ao cristianismo, já que há uma parte que diz: “shehem mishtachavim lehevel varik umitpa lelim el el lo ioshía” (porque [os não judeus] se prostram diante da vaidade e do vazio e rezam para um deus que não salva – lo ioshía) e os cristãos viam isso como uma blasfê mia a Jesus. Alguns judeus apóstatas dos séculos XIV ao XVII concluíram que o valor numérico de varik e de io shía coincidia com o nome de Ieshu (Jesus).

Em algumas comunidades judaicas cuspia-se quando se chegava à palavra varik, contudo o Rabbí Isaiah Horowitz proibiu esse costume indecoroso. Os judeus defenderam -se dos éditos de censura de 1703 na Prússia, renovados em 1716 e 1750, dizendo que a oração é pré-cristã e também alterando o tempo do verbo, do presente “shehem mishta chavim” (eles se prostram), para o passado “shehaiú”, ou seja, “eles [os pagãos] costumavam se prostrar”.

Esta frase foi finalmente eliminada do ritual ashkenazi, se bem que os judeus sefaradim e orientais a mantiveram e hoje está restaurada novamente entre alguns ashkenazim.

O tema messiânico na segunda parte do Alêinu foi utilizada como uma profissão de fé, tal qual o Shemá, e cantada pelos mártires por Kidush Hashem (para san tificar o Sagrado nome de Deus), como o caso do mar tirológio dos judeus de Blois em 1771 e dali em dian te até aos terríveis tempos da Shoah, pelas vítimas antes

de morrer, que afirmavam sua fé inquebrantável na vin da do Mashiach.

Modificações rituais

No ritual reformista esta oração é cantada solenemen te diante do Aron HaKodesh, com a Arca aberta, símbolo da sua grande importância.

Originalmente no ritual reformista foram eliminadas as seguintes frases, por terem sido consideradas ofensivas aos outros povos, como “que não nos fez como o resto das nações e nos separou do resto dos povos, para que não compartilhássemos seu destino”.

No entanto, no novo Sidur “Mishkan Tefilá”, edita do pela Conferência de Rabinos Reformistas Americanos (CCAR), voltaram a incluir esta frase em hebraico, só que modificando a tradução para o inglês, que diz: “que nos deu um destino único entre as nações”. Em outra versão, o texto original em hebraico é modificado e diz “nosso destino é unificar Seu Nome e nossa missão concretizar Seu reino”.

O novo Sidur reformista americano inclui também ou tras versões tradicionais do Alêinu, com os seguintes pará grafos da oração original:

Ele estende os céus e fundamenta a terra. Sua majesto sa morada está nas alturas celestiais e o poder da Sua Presença, na magnificência do mais elevado. Ele é nosso Deus e não há outro.

Na verdade é nosso Rei incomparável, como está escrito na sua Torá: Conhece este dia e leva-o em teu coração, que o Eter no é Deus nas alturas celestiais e aqui na terra. Não há outro.

Portanto, temos esperança em Ti, Adonai, nosso Deus, que em breve [possamos] ver a glória do Teu poder, que fará desa parecer os ídolos da terra, e os deuses serão realmente destruí

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dos, e então será aperfeiçoado o mundo com o reino de Deus Todo Poderoso, e assim to dos os seres humanos invocarão Teu Nome e todos os ímpios dirigirão seus corações a Ti.

No Sidur conservador editado pelo Conselho Mundial de Sinagogas e pelo Seminário Rabínico Latino-Americano, versão do Rabino Marcos Edery z´l, não há referências às nações da atualidade e só se faz uma vaga menção à idolatria ou aos falsos valores de forma generalizada, sem citar os povos ou as sociedades de hoje.

No Sidur Imanu-El, editado por mim, tentei refletir as ideias mais universalistas dos valores judaicos, conforme a corrente reformista americana, que entende o ju daísmo como uma religião em evolução dentro dos pro cessos históricos, e a halachá (lei rabínica) não como um mandato fixo ou fortemente tradicionalista, mas também em evolução histórica.

Não queremos que nossos textos sagrados reflitam animosidade, juízos de valor e desqualificação de outros povos, religiões ou grupos humanos para reafirmar e fixar nossa cosmovisão religiosa e pertencimento como povo de Israel.

ginal e irreprodutível na maravilhosa ta refa, através do judaísmo nas suas múl tiplas versões, para criar uma sociedade humana com homens livres, criativos e dignos de seu nome pelo respeito e pela consideração com a sacralidade da vida.

Acredito que a versão do Alêinu em nosso Sidur Imanu-El reflete esses ideais: Reverenciemos o Deus da Vida e entoe mos orações ao Senhor da natureza, que ao criar os céus e a terra permitiu que Sua gló ria se expressasse no Seu universo e que Suas maravilhas fossem reveladas ao coração do homem. Ele é nosso Deus e não existe outro. Por isso nos inclinamos com reverência e agradecimento perante o Soberano do Uni verso, o Santo, bendito seja.

Discordo da inclusão dos textos mais chauvinistas do Alêinu, que refletem as novas correntes neotradicionalis tas dentro da Reforma, mais semelhantes ao conservado rismo do que às teologias originais e universalistas da re forma americana.

Não queremos que nossos textos sagrados reflitam ani mosidade, juízos de valor e desqualificação dos outros po vos, religiões ou grupos humanos para reafirmar e fixar nossa cosmovisão religiosa e pertencimento como povo de Israel. Por outro lado, assim como ficamos indigna dos quando outras religiões ou ideologias desqualificam a nós ou a grupos humanos, queremos continuar preservan do nossos ideais de respeito e dignidade para com todos.

O Alêinu representa uma belíssima oração judaica, símbolo da expressão de nossa finitude enquanto seres humanos perante esse mistério inescrutável que chama mos de Deus.

E, por fim, através dela, reafirmamos nossa convicção de ir trilhando, a cada dia, o caminho rumo à era messiâ nica, através do tikun olam, a reparação de um mundo com mais paz, mais justiça e justiça social, para uma sociedade de irmãos na riqueza de nossas diferenças.

Esta visão transforma a cada um de nós em meshutaf (parceiro) de Deus, neste reino messiânico, tendo cada um sua própria missão nesta vida, como ser único, ori

Alêinu leshabêach laadon hakol, latet guedulá leiotzêr bereshit, vanáchnu korim umishtachavim umodim lifnei mêle ch malchei hamlachim hakadosh baruchu. Venemar vehaia Adonái lemêlech al kol haáretz. Baiom hahu ihiê Adonái echad, ushmô echad.

Senhor, que não esteja distante o tempo em que Teu nome seja louvado em toda a terra, quando o ceticismo e o erro de sapareçam. Rezamos com fervor para que a chegada desse dia em que todos os homens como irmãos nos voltemos a Ti com amor, quando a corrupção e o mal deem lugar à integrida de e à bondade, quando a superstição deixe de escravizar as mentes e a idolatria não mais cegue os olhos, quando todos aqueles que habitam a terra saibam que só Tu és o Senhor e Pai e que todos nós, criados à Tua imagem e semelhança, nos tornemos um em espírito e em irmandade, para estar sempre unidos a Teu serviço. Então Teu reino messiânico se estabele cerá sobre a terra e se cumprirá a palavra do Teu profeta: “O Senhor reinará por todo o sempre”.

Nesse dia o Senhor será único e Seu nome único.

Neste dia te pedimos em forma especialíssima pelos enfer mos, pelos que estão tristes e por aqueles que estão sós em nos sa comunidade, pelos pobres e necessitados do nosso país, pelos judeus do silêncio e pelos nossos irmãos em Tzion.

O Rabino Reuben Nisenbom é membro da CCAR e fundador do Centro de Espiritualidade Judia Mishkán, de Buenos Aires, afilia da à WUPJ. Traduzido do inglês por Beatriz Gorenstin.

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Talmud: causa ou efeito?

Hápoucos meses quase todos os sites judaicos estamparam orgu lhosamente a notícia que a Coréia do Sul havia adotado o Talmud como livro de leitura obrigatória para os alunos da rede escolar. A origem desta onda foi uma entrevista concedida ao site israe lense Ynet pelo embaixador coreano em Israel. “Ficamos curiosos pelo alto nível de sucesso acadêmico dos ju deus e por seu altíssimo percentual de Prêmios Nobel... Concluímos que um dos motivos disto é que os judeus estu dam o Talmud”, explicou o embaixador.

Talvez os coreanos tenham que re pensar o assunto. É inegável que o Tal mud é fonte de grande sabedoria, es pecialmente por expor os vários ân gulos de um assunto e por incluir opi niões divergentes, mesmo quando de fendidas por grupos minoritários, sem desvalorizá-las.

No entanto, pouquíssimos (se é que algum) dos cientistas judeus admira dos pelos coreanos e pelo restante da humanidade estudou o Talmud. O mais próximo que chegaram foi ler casual mente alguns trechos esparsos dele.

Atribuir ao Talmud o sucesso dos ju deus na ciência é algo francamente du vidoso, pois a geração de conhecimen to não se faz por mera herança cultural ou familiar, mas sim através de muito esforço pessoal. E este esforço só fruti fica em ambientes onde impera a liber dade intelectual, onde é possível ques

tionar sem ser estigmatizado, onde os erros são entendidos não como fa lhas e sim como parte do processo de aprendizado.

O que a admirável obra chamada Talmud demonstra é que o questio namento, o debate, a valorização dos diversos pontos de vista são marcos eternos da vida judaica. São muito an teriores à explosão científica dos sécu los 19 e 20.

sociedade antiga. Quando os judeus puderam exercer sua inquietação e seu inconformismo livremente, produzi ram resultados maravilhosos para a hu manidade, tal como a visão ética mo noteísta, a estrutura política que cultiva a liberdade, o Talmud e os prêmios No bel da atualidade.

Ou seja, o Talmud é parte do efeito e não a causa do amor judaico pela in vestigação e pela especulação intelec tual. Os coreanos, em sua salutar bus ca por uma sociedade orgulhosamen te produtiva, já se esforçam para criar este ambiente. O Talmud, lido em seu contexto histórico, é uma fonte de ins piração, não um livro texto.

A inquietação intelectual e o não conformismo são traços característi cos dos judeus desde quando Abraão contestou a então visão dominante dos deuses interventores e Moshé desafiou a opressora estrutura escravocrata da e m p ou C as palavras

Anna Yu /
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Que medo eles têm de nós?

Naquinta-feira, 14 de abril de 2011, vândalos até o momento não iden tificados quebraram as janelas da sina goga Reformista de Raanana em Israel e picharam sua parede externa com frases ameaçadoras. Foi o terceiro in cidente desta natureza contra a sina goga nos últimos meses.

No dia seguinte, ao deixar a sina goga após o kabalat shabat, membros da congregação Massorti (Conser vadora) de Natania, não longe de Raa nana, foram agredidos com pedras jo gadas por pessoas também não iden tificadas.

Estes incidentes não são novos, muitos casos semelhantes foram re

gistrados nos últimos anos. Sem a menor dúvida, existem cidadãos israe lenses extremamente incomodados com o crescimento das vertentes reli giosas não ortodoxas, o que demons tra por um lado que a intolerância re ligiosa é um problema a ser resolvi do cada vez com mais urgência e, por outro lado, que os movimentos religio sos Reformista e Massorti têm ganha do cada vez mais adesão de judeus do Estado de Israel.

É o caso de perguntar: Que medo eles têm de nós? Que ameaça repre senta uma forma diferente de pensar que respeita todas as demais? Quem se sente incomodado por uma visão de

mundo racional e inclusiva? De onde deriva a insegurança que gera este medo? Cabe lembrar a composição “Pesadelo”, de Maurício Tapajós e Pau lo César Pinheiro, criada em 1972, em pleno período de chumbo da ditadura brasileira:

Quando o muro separa uma ponte une Se a vingança encara o remorso pune Você vem me agarra, alguém vem me solta

Você vai na marra, ela um dia volta E se a força é tua ela um dia é nossa Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando Que medo você tem de nós, ...

O melhor lugar do mundo é aqui

OInstituto

Weizmann de Ciências, localizado em Rehovot, Israel, foi reconhecido mais uma vez pela revis ta The Scientist como o “melhor lugar do mundo para trabalhos acadêmicos” fora dos Estados Unidos. O Weizmann

é considerado há muitos anos uma das cinco melhores instituições do mundo e já foi classificado em primeiro lugar várias vezes.

A revista ouve a opinião de milhares de pesquisadores no mundo todo, in

clusive do Weizmann, que é uma das maiores instituições do mundo em pesquisa multidisciplinar, com cinco faculdades – Matemática e Compu tação, Física, Química, Bioquímica e Biologia.

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Intactivistas – preconceito à vista?

Se consultarmos no Google a ex pressão “mutilação genital”, to das as primeiras referências relacio nam-se à retirada ou impeditivo de uso do órgão genital feminino, sendo que 100% das mesmas são veementes em sua condenação. Ainda prática corren te em muitos países, especialmente na África, acredita-se que existam mais de 100 milhões de mulheres que sofreram este tipo de intervenção, cujo objetivo declarado é, na maioria das vezes, ini bir a libido feminina, tida como pecami nosa ou indutora da subversão de va lores de suas comunidades. Mulheres que sofreram esta intervenção têm de nunciado o que sofreram quando con seguem fugir à repressão de suas so ciedades. O mundo ocidental, de ma neira geral, encara este como um ato de barbárie.

A circuncisão masculina, porém, prática religiosa judaica e muçulma na, tem sido aceita no mundo ociden tal sem maiores traumas, tendo sido in clusive adotada nos Estados Unidos durante muitos anos como prática de

saúde pública para o público em ge ral. Não é fácil encontrar, mesmo com toda a liberdade existente, algum ho mem circuncidado que se rebele con tra este fato.

Bem, parece que a aceitação cor rente deste rito ou costume pode es tar com os dias contados. Em novem bro próximo os cidadãos da cidade de São Francisco, Califórnia, serão convo cados para um referendo sobre o tema, em que poderão colocar a circuncisão de menores de 18 anos como prática ilegal, gerando para os adultos respon sáveis multas ou até mesmo detenção.

A discussão, proposta por grupos que entendem ser a circuncisão um ato tão bárbaro quanto a mutilação feminina, tem levado as comunidades judaica e muçulmana (ótima ocasião para estrei tar laços) a avaliar estratégias para a defesa comum de seus interesses, ou seja, a ratificação da legalidade da cir cuncisão. Os proponentes deste refe rendo, afiliados a grupos chamados de “intactivistas”, apesar de se declararem a favor da preservação integral do cor

po para crianças, têm como seu princi pal foco o combate à circuncisão, não sendo fácil encontrar referências que condenem igualmente, por exemplo, a realização de furos nas orelhas de me ninas (mesmo bebês) para colocação de brincos.

Seus argumentos são majoritaria mente antirreligiosos, argumentando que nenhuma religião deveria subsi diar o direito legal a um ato que, a seus olhos, é uma violência. Particularmente, alguns de seus líderes mais ativos têm estabelecido um discurso extremamen te agressivo contra os judeus, chegan do mesmo a divulgar histórias em qua drinhos em que um super-herói intac tivista combate os “mohel-monsters” (mohel é o responsável por executar a circuncisão ritual), estes paramentados sempre como judeus ortodoxos.

Poderia-se identificar nestes grupos uma estranha busca por um fundamen talismo laico, mas parece mesmo que em seu âmago reside, bem camuflado, é verdade, nosso bem conhecido an tissemitismo...

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Háum par de anos jornais repro duziram notícia israelense em que dois jornais locais, editados por comu nidades ultraortodoxas, haviam retoca do a foto oficial do ministério, retiran do duas mulheres que o compunham. Um criou sombras onde elas estavam o outro simplesmente as substituiu por dois homens.

Mais recentemente, a famosa foto em que aparecem Barack Obama e sua equipe acompanhando em Wa shington a operação em que o terro rista Bin Laden foi morto no Afeganis tão também foi editada, desta vez por um jornal norte-americano, igualmen te editado e direcionado à comunida

de ultraortodoxa, retirando-se da foto as imagens da Secretária de Estado, Hillary Clinton, e da Diretora de Con traterrorismo, Audrey Tomason.

Em ambos os casos, os jornais fo ram acusados de discriminar as mulhe res, retirando-as de contextos que in dicam seu sucesso em ambientes an tes dominados apenas por homens. Por sua vez, os editores justificaram-se indicando a necessidade de preservar seu público leitor das imagens femini nas, que burlariam suas rígidas normas de recato e decência.

Devarim, sempre preocupada em aprofundar as questões controversas que afligem o mundo judaico, identifi

cou uma explicação alternativa para o zelo daqueles jornais, dado que apenas as imagens femininas foram apagadas.

Levada às últimas consequências, a proibição de criar ídolos levou à proibi ção de se fazer imagens de Deus. Po rém, como a Torá menciona que o ho mem foi feito à Sua imagem e seme lhança, ao longo de nossa história proi biram-se também as imagens huma nas, algo seguido até hoje por algumas comunidades ultraortodoxas. Ao retirar apenas as imagens femininas dos jor nais, estas comunidades dão a enten der que chegaram a uma conclusão so bre o que muitos especulam há tem pos: Deus é mulher!

Revelando um dos mistérios da Torá
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O Relatório Palmer

Oprimeiro-ministro

da Nova Zelân dia, Geoffrey Palmer, foi incumbi do no ano passado pelo secretário-ge ral da ONU, Ban Ki-Moon, de estudar o incidente da abordagem pelo exérci to de Israel ao navio turco Mavi Marma ra, que tentava furar o bloqueio naval imposto por Israel à Faixa de Gaza. Na abordagem, soldados israelenses ma taram civis turcos, o que causou enor me comoção naquele país e um estre mecimento nas relações diplomáticas entre Israel e Turquia.

Palmer criou uma comissão com posta por um representante da Colôm bia, um representante da Turquia e um representante de Israel. O estudo da comissão será concretizado por um re latório a ser apresentado em breve. No entanto, seu conteúdo já vazou na im prensa e traz conclusões interessantes.

A primeira delas é que o bloqueio de Israel à Faixa de Gaza é legal, ple namente amparado pela legislação in ternacional em vigor. E que Israel tem o direito legal de abordar embarca

ções que estejam pretendendo furar o bloqueio mesmo fora de suas águas territoriais. Outra conclusão critica Is rael pelo uso de “força excessiva” ao abortar a tentativa do Mavi Marma ra. E uma terceira conclusão critica a Turquia por não ter impedido a tenta tiva de rompimento do bloqueio e por manter laços políticos e operacionais com a IHH, a organização islâmica que organizou a operação.

Fontes não oficiais relatam que o re latório ainda não foi liberado, pois estão em curso esforços diplomáticos para reduzir as críticas à Turquia, permitin do assim o restabelecimento de suas boas relações com Israel.

Se estas informações forem verda deiras, Israel terá logrado uma enorme vitória diplomática. E o que aconteceu com a flotilha deste ano, que foi proibi da de navegar a partir da Turquia e da Grécia, sugere fortemente a veracida de das informações.

Fica “apenas” o travo amargo na boca produzido por mais uma acusa

ção de “uso excessivo da força”. Vários relatórios da ONU já apontaram a lega lidade das ações de Israel para se de fender. No entanto, condenam supos tos excessos, no que parece ser uma tendência de sempre condenar Israel por alguma coisa. É o efeito do “outro ladismo” que assola o pensamento do mundo de hoje, pelo qual todos os en volvidos num conflito têm alguma par cela de razão e de culpa.

Mesmo ficando claro no Relatório Palmer quem é o agressor (a flotilha) e quem é o agredido (o Estado de Is rael), e que o agressor agiu de for ma deliberada e consciente, deseja -se que o agredido se defenda com flores. Temos uma enorme curiosida de de saber como reagiriam a um as salto estes que advogam esta insen sata linha de ação. Não existem regis tros de reações não violentas a agres sores violentos por parte dos demais países da ONU. Mas é exatamente isto que se exige constantemente de Israel. Por quê?

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cócegas no raciocínio

gerações

(Este artigo foi escrito há 25 anos para o Boletim da ARI e não perdeu a atualidade. Reeditado aqui não por preguiça para escrever novo texto, mas por expressar, ainda hoje, uma ideia que, na opinião do autor, merece continuar a ser compartilhada, e dis cutida, a cada geração. E 25 anos é o período de uma geração.)

Écomum visualizar a ideia de ‘pre servação do judaísmo’ através dos séculos e de gerações inteiras de ju deus como uma espécie de sujeição dos judeus à obrigação – por questões de fé, de tradição, de responsabilidade histórica e até sem percepção de qual quer ‘porquê’ – de manter vivo o acer to multimilenar legado por nossos an tepassados.

Tendemos às vezes a nos vermos como uma espécie de guardiães, servi dores, mantenedores dessa ‘entidade’, e a noção de guardá-la, servi-la, man tê-la é como a de proteger um objeto externo a nós, que nos foi confiado para que o passemos adiante, intacto, às gerações seguintes. ‘Intacto’ pode significar também que não o tocamos, ou seja, não o usamos. Servimos a ele, mas ele não nos serviu. ‘Preservar o ju daísmo’, nessa ótica, seria evitar que desapareça, e isso é visto como uma responsabilidade, uma missão, quase uma carga, um ônus.

A ideia de proteger o judaísmo (assu siag laTorá: ‘façam uma cerca em volta da Torá’) foi lógica para gerações intei ras que nasceram, cresceram e viveram dentro da prática judaica, nela forma

ram suas mentalidades, seus conheci mentos e seus comportamentos, e que tantas vezes a viram ameaçada de fora pelas conquistas, pelas perseguições religiosas, pelo antissemitismo, por he gemonias alheias, fossem religiosas, nacionais, econômicas, políticas, so ciais ou culturais. Proteger o judaísmo, para essas gerações, era defender um bem inalienável, a essência quase on tológica da própria vida, a base de to das as referências. Era defender aqui lo que as servia tanto quanto era servi do por elas, e sem o qual perder-se-ia toda noção de pertinência e de identi dade. ‘Construir uma cerca’, sim, mas em volta de algo vivo, feito da interação vibrante do judaísmo com os judeus.

Sabemos que essa interação teve múltiplos modelos através da histó ria judaica. A vocação de ‘continuar a ser’ aquele mesmo povo que nasceu de uma vontade explícita e de uma de cisão de sê-lo passou necessariamen te pela imperativa adaptação, em cada época, às condições mutantes. Ser o mesmo povo com e sem o templo, com e sem soberania nacional, com e sem concentração territorial, com e sem li berdade religiosa, política ou cultural passava, para cada um desses e mui tos outros contextos, por soluções di ferentes. Os próprios textos normativos básicos do judaísmo, a partir da Torá – Mishná, Guemará, Talmud –, são um exemplo de como a visão do significa do do judaísmo passa por interpreta ções acumulativas, que são as contri buições de gerações judaicas, cada uma em seu contexto.

p aulo g eiger

Cada geração, em cada lugar, em cada momento da história, criava uma forma viva de judaísmo capaz de so breviver, para que os judeus pudes sem vivê-la, se alimentar dela, comple tar-se com ela, serem homens inteiros. Os que atravessaram o deserto e rece beram a Torá, as tribos que se estabe leceram na Terra Prometida para nela realizar a Aliança, os que peregrinavam ao Templo três vezes por ano, os que voltaram da Babilônia para reconstruir o Templo, os macabeus, os que prefe riram morrer em Massada, os que estu davam nas academias de Iavne, Sura, Pumbedita e Jerusalém, os judeus de Alexandria, os judeus de corte, os filó sofos, médicos e poetas da Idade de Ouro, os judeus dos guetos da Idade Média, os mártires Al Kidush HaShem, os cabalistas, os financistas do início do mercantilismo, os chassidim, os mitnag dim, os falsos messias, os iluministas, os emancipados, os judeus do shtetl, os sionistas, os judeus das comunida des das diásporas, os que se revolta ram nos guetos durante o Holocausto, os chalutzim, os israelenses, todas es sas gerações criaram formas diferentes de tentar continuar a ser o mesmo povo, partilhar a mesma identidade. Qual des sas formas seria a expressão verdadeira do verdadeiro judaísmo? Quais as váli das, quais as não? Ou serão válidas to das? Como separar as diferentes for mas do conteúdo único e milenar que as engendrou e do qual floresceram?

Nossos pais trouxeram um modelo novo para a sociedade das liberdades, para a dispersão emancipada e univer

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salista dos novos tempos. Egressos de lugares e tempos de perseguição – e, depois, de Holocausto –, de isolamen to dentro de muros judaicos, trouxeram um judaísmo de certezas internas para plantar num terreno de temores e an gústias externas. Queriam uma cerca em volta da Torá, para que pudésse mos, as novas gerações, com a Torá, dentro da cerca, nos defender não só de invasores de fora mas também da conquistada liberdade de sair da cerca e esquecer a Torá. Esse é o modelo de comunidade que a geração de nossos pais ou avós construíram.

E, no contexto de nossos tempos, o que deve marcar a atuação da gera ção judaica de hoje, em sua criação de uma forma que seja a expressão do ‘ser o mesmo povo de sempre’, ou seja, da preservação do judaísmo? A geração atual, até bem pouco tempo, não en frentava nem reconhecia inimigos ex ternos. Os que existiam (e na verda de nunca deixaram de existir comple tamente) eram inimigos universais, e

não só dos judeus, reconhecíveis por todos, parte de uma luta ideológica contra toda forma de racismo e discri minação. A luta contra o antissemitis mo, tendíamos a pensar, não pertencia somente aos judeus, era parte da luta geral pela convivência, pela harmonia, pela soma de todas as diferenças.

Na esteira das liberdades e dessa aparente segurança, a geração atu al aprendeu a viver como igual, a não querer, não precisar, ser contra muros de proteção que também sejam de se gregação e isolamento. Não quer en trar e sair de cercas para encontrar uma parte de si mesma. Tem o direi to – e a consciência de tê-lo – de ser o que é e o que quer ser, e de exerci tar esse ser em todos os níveis de sua existência plural.

Para essa nova geração, a priorida de não era defender o judaísmo. Não era empreender uma missão salvado ra. Não era construir-lhe cercas exter nas. Era fazê-lo viver. Não servi-lo, mas fazê-lo servir-nos. O judaísmo de nosso

tempo convive com culturas sem fron teiras, com identidades plurais, com comportamentos universalizados, cos mopolitizados.

Recriar o judaísmo para que con tinue o mesmo – o grande desafio de cada geração – significa trazê-lo de volta para dentro de nós, pois so mos, em nosso corpos, mentes e espí ritos individuais e comunitários, a úni ca cerca, a única muralha que o pro tegerá como coisa viva, que o levará para onde estivermos, como parte de nosso ser. Na geração das liberdades e do pluralismo, o judaísmo não é car ga nem responsabilidade. É um valor ao qual temos direito por herança, que nos foi preservado para o que tenha mos para nós, e do qual podemos usu fruir sem sacrifícios. Então terá senti do todo sacrifício para preservá-lo. E nossas comunidades, nossas institui ções, muito mais que a proteção de seus muros, serão o espaço de nossa vivência, de nosso encontro, de nos sa criação judaica.

Mipan
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cócegas no raciocínio
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Há mais de um caminho para ser judeu

Associacão Religiosa do

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Israelita
Rio de Janeiro Aqui, todo judeu encontra seu judaismo www.arirj.com.br +55 21 2156-0400 WORLD UNIONFOR PROGRESSIVE JUDAISM Próximo está o Eterno de todos que O buscam, de todos que O buscam com sinceridade. Salmo 145:18

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