Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 14, Abril de 2011 devarim O despertador tocou por Paulo Geiger Encorajando o questionamento: entrevista com o rabino Levi Kellman O rabino, o jumento e a pérola por Francisco Moreno Carvalho E mais: Artigos dos Rabinos Sérgio Margulies e Dario Bialer Jacques Fux e Nelson Honeiff: Reflexões a partir do cinema Entrevista exclusiva com a Nobel de Química Ada Yonath Marina Lemle Moacyr Scliar: escritor judeu-brasileiro Berta Waldman Brit HaKehilá: O Pacto da Comunidade Rabino Marcelo Polakoff
Adinâmica da produção da revista me faz escre ver este editorial durante um período de grande instabilidade no Oriente Médio e no Norte da África, num momento em que é muito arriscado prever o futuro político da região.
A Líbia está imersa numa guerra civil. O Egito e a Tu nísia balançam entre inéditos regimes democráticos e renovadas ditaduras militares. Os incessantes protestos po pulares potencializam a possibilidade de mudanças pro fundas nos demais países da região. As únicas exceções são o Catar, sede do canal de televisão Al Jazeera, que para muitos tem papel preponderante nos acontecimentos, e Gaza, onde o Hamas mantém a população sob controle.
Outro país da região isento de anomalias é Israel. Mas este é muito diferente de todos os demais. Sua população, incluindo os palestinos dos territórios ocupados, não está sujeita à mesma dinâmica.
Eu, evidentemente, torço para que a maior parte dos povos da região se pacifique o quanto antes sob regimes democráticos de formato ocidental. Mas isto é apenas um desejo forte, não tenho evidências de que acontecerá em curto prazo.
O que sim me parece evidente é que nada será como antes. Da mesma forma como a invenção da imprensa cor roeu lentamente as monarquias absolutistas da Europa, a revolução tecnológica que gerou a comunicação instantâ nea e sem fronteiras pode estar moldando um novo mun do no seio do Islã. Este processo parece-me irreversível, mesmo que os acontecimentos atuais não resultem em de mocratização imediata.
E suspeito que, quando este novo mundo vier à luz, testemunharemos o nascimento de um movimento reli gioso reformista islâmico, em moldes semelhantes ao que originou a moderna expressão religiosa judaica, da qual a ARI é um dos expoentes em nosso continente.
Os governos absolutistas e as vertentes fundamenta
listas da religião provêm da mesma concepção de mun do. Ambos derivam de uma visão autoritária de socieda de onde uma camada de nobres – no caso dos governos –, ou de sábios – no caso das religiões – dita regras definiti vas e incontestáveis.
Nesta visão, a autoridade dos mandatários provém di retamente da palavra de Deus, no caso das religiões, ou das razões do Estado, no caso dos governos, das quais eles são os únicos intérpretes. Sintomática desta ideologia é a frase de Kadafi: “Eu não posso renunciar porque não sou nem rei nem presidente, eu sou a Líbia, eu sou o povo”.
O iluminismo, ao mesmo tempo em que varreu as di taduras autoritárias para o lixo, provocou a separação entre religião e Estado e promoveu a democratização de ambas.
A democracia cobra dos cidadãos o preço da participa ção nos assuntos da nação e a corresponsabilidade na es colha dos caminhos. Da mesma forma, a Reforma Judai ca obriga aos seus seguidores o exercício constante de es colhas conscientes e informadas, em relação às quais as leis e os costumes do passado têm uma influência, porém não mais do que isto. A sensibilidade do momento comunitá rio e a cuidadosa transformação dos formatos objetivan do a manutenção do conteúdo também exercem influên cia no judaísmo da Idade Moderna.
A Devarim existe para contribuir com o processo das escolhas informadas e conscientes de todos os brasileiros envolvidos ou interessados no judaísmo. Os textos que transitam por nossa revista não seguem todos a mesma orientação e não representam posições políticas ou reli giosas fechadas da ARI – até porque elas não existem, vis to que vivemos um constante processo de reavaliação e transformação.
Expomos aqui um amplo leque de ideias, algumas con traditórias, com o objetivo de provocar em cada um dos leitores a reflexão e o estudo. Espero que esta nova edição da revista atinja o seu objetivo.
Evelyn Freier Milsztajn Presidente da ari
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editorial
Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 14, Abril de 2011
P R es I dente d A ARI evelyn Freier Milsztajn
R A b I nos d A ARI sérgio R. Margulies dario e bialer
dIR eto R d A Rev I stA Raul Cesar Gottlieb
Conselho e d I to RIA l beatriz bach, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio R. Margulies e d I ção
Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um) e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) Paola Nogueira • Tainá Nunes Costa
F oto GRAFIA s istockphoto.com
Rev I são de t exto Mariangela Paganini (libra Produção de textos)
Colaboraram neste número: Ada Yonatah, berta Waldman, Rabino dario e. bialer, Francisco Moreno de Carvalho, Jacques Fux, Rabino levi Kellman, Rabino Marcelo Polakoff, Marina lemle, nelson hoineff, Paulo Geiger, Rabino sérgio R. Margulies.
os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista devarim ou da ARI.
os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br devarim@arirj.com.br Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ biblioteca virtual devarim: www.docpro.com.br/devarim
devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
sumário
A benção pela saúde Rabino Sérgio R. Margulies 3
A necessidade do pluralismo religioso: Gavizon, Medan e os jogos mal formulados Rabino Dario E. Bialer 11
Moacyr Scliar: um escritor judeu-brasileiro Berta Waldman 16
A imagem revelada a quem persevera: entrevista com Ada Yonath, Prêmio Nobel de Química Marina Lemle 23
Brit HaKehilá: O Pacto da Comunidade Rabino Marcelo Polakoff 30
O rabino, o jumento e a pérola, ou como lidar com o Outro Francisco Moreno de Carvalho 39 Encorajando o questionamento: entrevista com o Rabino Levi Kellman 45
A Cabala, o Caso Dreyfus e o caçador no filme Bastardos Inglórios Jacques Fux 50
Usinas de verdades Nelson Hoineff 57 Cócegas do Raciocínio Paulo Geiger......................................................................................... 60
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a pelabençãosaúde
“O lugar em que temos razão está pisoteado e duro como um pátio. Mas dúvidas e amor escavam o mundo como uma toupeira, como uma lavradura. E um sussurro será ouvido no lugar onde houve uma casa que foi destruída.”1
O corpo
Ao despertar abrimos os olhos. Olho em hebraico é ain, escrito com as letras ain, iud, nun, que também compõem o verbo laanot – respon der e a palavra oni, pobreza. A relação etimológica é conceitual: ao vermos a mazela da pobreza respondemos. A resposta é a restauração da dignidade do corpo do outro. O corpo é sagrado. A miséria o profana.
Ao despertar agradecemos pelo funcionamento das funções vitais. Então o corpo é vestido e alimentado. Os comentaristas da Torá observam: o ser hu mano é o único animal que se veste a fim de que tenha consciência do cuidado para com o corpo e o único que faz da alimentação um ato de reverência. As sim, desperto e cuidado, segue o corpo: os pés conduzindo e as mãos realizando.
Este é o corpo que contemplamos. Casa do nosso espírito. Moradia da cen telha divina que emana em nosso espírito. Este é o nosso corpo: um templo. Tal como o templo religioso é denominado a Casa de Deus – Beit Adonai – nosso corpo também é um templo.
O templo do corpo
O templo religioso é a casa que cuidamos para abrigar a mensagem divi na, tal como o corpo preserva a dimensão divina, pois imagem e semelhan
rabino sérgio r. margulies
Os comentaristas da Torá observam: o ser humano é o único animal que se veste a fim de que tenha consciência do cuidado para com o corpo e o único que faz da alimentação um ato de reverência.
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ça do Criador e guardião do espírito. No templo recitamos orações e o mesmo fa zemos para o funcionamento do corpo. No templo há um altar e para o corpo criamos altares: o lar do convívio, a mesa de refeição e a cama para descanso e rela cionamento sexual.
No templo há uma luz eterna que fica acesa permanentemente e no corpo há um órgão que não pode cessar: o cora ção. No templo lemos a Torá por meio do instrumento denominado iad (mão) e o corpo é instrumentalizado para colocar em prática a mensagem divina.
Quando o templo de nosso corpo está com a saúde plena sendo capaz de responder aos estímulos, potencializamos o sentido de completude na vida. Porém, a completude fica abalada diante do corpo fragilizado pela doença.
Para o templo que havia em Jerusalém peregrinávamos no ato chamado regalim, palavra hebraica derivada do termo pé e similarmente nosso corpo peregri na na jornada da vida em busca dos múltiplos encontros. O templo exige uma rotina, no antigo eram as oferendas, no novo são as preces. O corpo, tal como o templo, exi ge hábitos disciplinares. A realização das orações no tem plo requer o minian, grupo de no mínimo dez pessoas em que todos são iguais, da mesma forma que não podemos subestimar ou superestimar o corpo de ninguém. Alguns têm mais habilidade e destreza para algo, porém isto não os torna melhores. O antigo sacerdote do Templo trajava -se de modo especial e também nosso corpo deve ser vesti do num cuidado não da vaidade excessiva, mas da valoriza ção pertinente. Assim, nosso corpo é um templo sagrado.
A destruição do Templo
O primeiro Templo em Jerusalém foi construído pelo Rei Salomão, cujo nome hebraico Shlomo é oriundo da palavra shalom, que significa paz e completude (estar em paz e encontrar completude são complementares). O Tem plo, desta maneira, era o símbolo do que almejamos: ser completos. Destruído pelos babilônios em 586 a.e.c. foi restaurado e novamente destruído pelos romanos no pri meiro século da era comum. O desespero tomou conta do povo judeu pela ruína da centralidade da vida judaica. Quando o templo de nosso corpo está com a saúde ple na sendo capaz de responder aos estímulos, potencializa mos o sentido de completude na vida. Porém, a completu de fica abalada diante do corpo fragilizado pela doença. É
como se o templo do corpo desmantelas se. Tentamos restaurar a saúde, reconstruir o templo do corpo. A esperança se renova, mas às vezes se frustra: uma nova destruição. Desespero.
A constatação de que o templo do cor po sucumbe e não mais responde ao nos so comando trás a sensação de exílio. Sen timo-nos como as vítimas da Babilônia e de Roma: exilados. É como se o corpo es tivesse fora de nós, é exílio de nós pró prios.2 O temor de outro exílio surge: o exílio do convívio. Confinados ao hospi tal, asilo ou casa receamos pelo “deserto da solidão’’.3
O destruidor
Quando o Templo de Jerusalém foi definitivamente destruído, a pergunta: quem causou isto? A resposta ób via: o Império Romano. Quando o templo de nosso corpo adoece a pergunta: o que causou isto? A resposta óbvia: um vírus, uma bactéria, um acidente, um componente genéti co ou fisiológico. No entanto, diante da dor, a obviedade das respostas cede a uma formulação distinta.
A literatura rabínica sugere: o próprio povo causou a destruição do Templo por tornar-se vulnerável ao invasor externo. No tormento também atribuímos a nós próprios a responsabilidade sobre a doença que nos aflige. Culpa mo-nos. A racionalidade não subsiste à agonia e, assim, o espírito afogado atribui a si a responsabilidade pelo que aconteceu. A lógica das explicações fica subvertida: como Deus é bondoso e misericordioso, então eu – o doente –sou o culpado pela aflição que recai sobre mim. Ou isto, ou outra lógica igualmente subvertida: ira a Deus, afinal Ele, em Sua onipotência, é a causa de todas as causas. Am bas as conclusões desprovidas de sentido podem levar a ati tudes extremas e assim à doença física uma nova doença pode ser dramaticamente adicionada. Por isso, a importân cia do equilíbrio, fonte de saúde espiritual.
Reconstruindo os escombros
Diante do Templo destruído, os rabinos buscaram dar significado para o ocorrido. A destruição levou os judeus
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à dispersão. Dispersos poderiam levar a mensagem judaica para os quatro cantos do mundo. A destruição, nem almejada nem acalentada, foi fato. Para lidar com este fato foi formulado um ensinamen to que desse sentido aos caminhos antes inesperados na jornada da vida.
Quando o corpo é acometido pela doença, em paralelo ao tratamento mé dico, podemos tentar encontrar um novo sentido para a existência. A ausência do vigor físico pode dar margem a uma sen sibilidade espiritual aguçada. A enfermi dade pode provocar um reequilíbrio das prioridades, um balanço dos valores e uma reordenação nas prioridades.
O doente precisa indubitavelmente da medicina, mas também necessita apoio e respeito.
Através da visita e da preocupação dos amigos, familiares e da comunidade o espírito do corpo cambaleante é fortalecido.
preocupação dos amigos, familiares e da comunidade o espírito do corpo camba leante é fortalecido. É como se no cam po de batalha do corpo doente um aliado surgisse. Se a tarefa médica é medir a pres são arterial e ministrar remédios, a religio sa é medir a pressão da alma e ministrar o afeto, sugere Heschel. Talvez o espíri to fortalecido no corpo enfraquecido ala vanque a recuperação e, mesmo que não, com certeza cria os alicerces da dignidade de uma vida reconhecida e valorizada.
Os esteios da construção
A enfermidade nos faz enxergar o tempo desperdiçado que antes parecia ser inesgotável. A maneira de encontrar novos sentidos poderia ser outra, mas sendo a doença fato além do controle, o enfermo pode tornar-se um exemplo de postura perante a adversidade. Deste modo, resgata sua autoestima e ensina aos outros a preciosidade da vida. Dei xa de estar no exílio de si e no deserto da solidão.
Tanto o primeiro quanto o segundo Templo em sécu los distintos foram destruídos na mesma data: dia nove do mês de Av. O Talmud afirma que neste exato dia e mês nas cerá o Messias. Não é mera coincidência e sim uma men sagem contundente: não se resignar e com coragem se re erguer, não se abater e com fé se superar.
Parceiros da reconstrução
A destruição do Templo de Jerusalém transformou toda a região num desolado campo de batalha. O rabino Abraham Heschel afirma: “A doença é um assalto, o pa ciente um campo de batalha e um soldado”.4 Um soldado precisa de uma tropa. Quem é a tropa nesta luta? A luta solitária carece de recursos necessários para vencer a bata lha, mas mesmo que sozinhos tenhamos a força, esta so lidão carrega o peso da indagação: vencer a luta para que se estou sozinho? “Se uma pessoa sentir quando está mor rendo [ou enferma]... que deixou de ter significado para os outros, essa pessoa está verdadeiramente só”.5
O doente precisa indubitavelmente da medicina, mas também necessita apoio e respeito. Através da visita e da
A visita ao enfermo é um importante preceito religio so, mas o diálogo neste encontro de apoio não flui natu ralmente. Um tem receio de expor sua fragilidade e outro de se espelhar na dor alheia. O silêncio poderia ser culti vado, pois a presença do visitante já traduz a intenção. O silêncio, porém, é incômodo. Assim, uma oração pode ser o elo da comunicação. A oração ecoa a intenção indivi dual e é a voz comunitária. A oração demonstra que o en fermo não é único em seu tormento. Isto não diminui o sofrimento da dor física, mas pode atenuar a aflição espi ritual e reduzir a pressão da alma de quem enfrenta o desconsolo de não entender o porquê de sua situação. Atra vés da oração pode perceber que o motivo do sofrimento é frequentemente inexplicável.
A bênção que roga pela saúde do enfermo é denomina da mi she-berach, que significa “Aquele que abençoou”. É dirigida a Deus que abençoou nossos patriarcas e matriar cas e líderes como Moshé. Ao conectar o doente aos nos sos ancestrais, a bênção rompe o isolamento e ensina que a fatalidade de uma adversidade pode acontecer com qual quer um, independentemente de suas virtudes e falhas.
O profeta bíblico Irmiáhu (Jeremias) que viveu no pe ríodo da destruição do primeiro Templo clamou: “Cura -me, ó Eterno, e serei curado! Salva-me, e serei salvo!”.6 Posteriormente, os rabinos na elaboração da Grande Ora ção (Amidá) recitada diariamente utilizaram as palavras do profeta no plural. Assim, do profeta aprendemos que a oração, como expressão da fé diante da mazela, é anti ga e dos rabinos aprendemos que a dificuldade não é sin gular, pode acontecer com todos. E ainda dos rabinos
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aprendemos a validade de emprestar palavras milenares para resgatar uma espe rança e preencher o vazio de quem não sabe o que dizer ao compartilhar da ago nia do sofrimento.
O permanente
A bênção pela saúde supera o medo. O medo nos faria dirigir a Deus como crianças temerosas de uma punição e an siosas por uma proteção. A bênção é a di mensão do adulto espiritual que não con sidera Deus como causa da punição ou re compensa e sim como a força transcendental capaz de impulsionar a existência humana – seja lá qual for a circunstância – para algo significativo.
A visita ao enfermo é um importante preceito religioso, mas o diálogo neste encontro de apoio não flui naturalmente. Um tem receio de expor sua fragilidade e o outro, de se espelhar na dor alheia. Uma oração pode ser o elo da comunicação, ecoa a intenção individual e é a voz comunitária.
ças – a busca da cura no ato humano divinamente inspirado; diante dos estron dos pontua o profeta “a voz silenciosa”, que representa o doar de si para o outro e propicia a presença divina se manifestar. Após a destruição do Templo a pre sença divina – shechiná – permaneceu permanentemente no Muro que restou do Templo destruído.9 Nas eventualida des em que o templo de nosso corpo fica abalado, que também nele haja a perma nente presença divina.
Notas
1. Trecho de poema do poeta israelense Yehuda Amichai (1924-2000), tradução de Nancy Rozenchan.
2. Inspirado na interpretação da rabina Amy Eilberg do Sal mo 137, em Healing of Soul, Healing of Body, Jewish Lig ths Publishing, Vermont, EUA, 1994.
3. A expressão é de Norberto Elias, A Solidão dos Moribundos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, Brasil, 2001.
A bênção pela saúde não é uma barganha com Deus. Se o desígnio divino fosse negociável, seriamos capazes de controlar Deus e O transformaríamos num ídolo. A bênção é uma conexão que reconhece a capacidade humana de en contrar uma dimensão para a vida até então não percebida.
A bênção é o reconhecimento do potencial divino que reside em cada de um nós. Ensina o rabino Morde chai Kaplan (1881-1983) que “Deus não fez a pólio’’7 e como ensinou séculos antes o profeta bíblico Eliáhu (Elias) que “Deus não está no vendaval... não está no es trondo... não está no fogo”. 8 Diante da pólio – doen
4. Heschel, A.I., O paciente como pessoa, em O Último dos Profetas, Ed. Manole-Co munidade Shalom, São Paulo, Brasil, 2000.
5. Elias, N. op.cit., o termo entre colchetes é inclusão do autor deste artigo.
6. Tradução da Bíblia Hebraica, Gorodovits, D. e Frindlin, J., Editora Sefer, São Pau lo, Brasil, 2006.
7. Questions Jews ask: Reconstructionist answers, Kaplan, M. Reconstructionist Press, Nova Iorque, EUA, 1956.
8. Tanach: Melachim alef [Reis 1] 19:11-12.
9. Midrash Tehilim.
Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union Colle ge (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
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a necessidade do pluralismo religioso
Gavizon, Medan e os jogos mal formulados
O projeto Gavizon-Medan estava preocupado com a dinâmica entre as populações laica e religiosa em Israel, com a relação entre Torá e Estado e com as decisões que podem transformar uma democracia em teocracia.
Lembro-me de uma frase num filme que teve um impacto marcante para mim. O filme “Uma Mente Brilhante” conta a história do genial matemático John Nash, criador da teoria dos jogos, um modelo para estudar a interação entre os indivíduos. A partir da análise de como se comportam num jogo específico, o modelo consegue prever o comportamento deles em outras situações. Esta teoria foi tão bem sucedida que, mesmo estan do inicialmente prevista para entender o comportamento apenas no campo econômico, é atualmente usada também em sociologia, filosofia, psicologia e biologia, entre outras.
Quando Nash começa a frequentar a universidade, um professor fez para a turma a pergunta que me comoveu: quem de vocês vai ser o próximo prêmio Nobel? Muitos levantaram as mãos. Não me lembro se ele também o fez, mas Nash foi premiado com o Nobel em 1994.
Nessa época eu estudava sociologia na universidade de Buenos Aires, que contava com a estrutura típica das universidades públicas latino-americanas. Salas de aula com janelas quebradas, sem ar-condicionado nem calefação, superpopulação de alunos, às vezes mais de 300 numa sala, a metade sentada no chão. Greve uma vez por semana, movimentos de esquerda comparando o sio nismo com o nazismo, professores mal pagos, orçamento para pesquisa qua se zerado. Baratas, banheiros quebrados... enfim... esta é a educação em países que ainda sonham com um dia ser do Primeiro Mundo.
rabino dario e. bialer
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Quando morei em Jerusalém e estudei na Universidade Hebraica, maravilha do liguei para um amigo, contando sobre todas as possibilidades que a universidade oferecia, o campus maravilhoso, os espe taculares cursos de judaísmo, etc. e ele me respondeu: está ensinando aí agora o mais recente Prêmio Nobel de economia, não perca a oportunidade! Lembrei-me do fil me. Decidi aproveitar todas as palestras, mesmo as de assuntos fora da pós-gradua ção em educação que eu estava cursando.
Foi assim que eu conheci o projeto Gavizon-Medan. Ruth Gavizon, juíza se cular da Suprema Corte, e Jacob Medan, rabino bem ortodoxo, estavam preocupa dos com a dinâmica entre as populações laica e religiosa em Israel, com a relação entre Torá e Estado e com as decisões que podem transformar uma democracia em teocracia e advertiram sobre a necessida de urgente de criar um novo pacto social para alcançar uma unidade nacional que contemple a diversidade.
O projeto redigido por eles trata em seu primeiro ca pítulo da Lei do Retorno, de cidadania e da Lei das Con versões, resgatando sempre os consensos alcançados e dei xando num plano secundário as divergências. Destacando a importância de ouvir e aprender da experiência do outro, construindo um modelo em que todas as partes não somente se toleram, mas vivem e agem em conjunto.
Consegui uma cópia daquele documento e o levei para ler mais detidamente em casa. Primeiramente, fiquei em polgado pela saudável iniciativa, depois um pouco cético pelas dificuldades óbvias de sua implementação e, por fim, acabei o texto irritado pela miopia destes dois intelectuais que foram incapazes de enxergar na sociedade israelense outros atores a não ser os laicos e os ortodoxos.
Uma iniciativa que visa o pluralismo, o diálogo e um novo pacto social em Israel não pode desconhecer que 78% dos judeus israelenses, de uma ou de outra forma, se reconhecem como tradicionalistas em questões vincu ladas aos rituais judaicos. Desconhecer as linhas liberais dentro do judaísmo é manter o statu quo hoje instalado no rabinato de Israel, que impõe a crença de que a úni
Quando o venerável rabino ortodoxo Chaim Druck man, chefe da Comissão de Conversão, foi demitido al Uma iniciativa que visa o pluralismo, o diálogo e um novo pacto social em Israel não pode desconhecer que 78% dos judeus israelenses se reconhecem como tradicionalistas em questões vinculadas aos rituais judaicos. Desconhecer as linhas liberais dentro do judaísmo é manter o statu quo hoje instalado no rabinato de Israel, que impõe a crença de que a única forma de ser religioso é ser ortodoxo.
ca forma de ser religioso é ser ortodoxo. É evidente que Medan não se preo cupava em incluir os liberais, pois não os considera minimamente, mas também Gavizon não se preocupou com eles, pois essa não é a sua luta. Ela luta para dimi nuir o poder político da ortodoxia, mas sem de forma alguma questionar a “pos se” integral da religião pelos ortodoxos. Fui à palestra no dia seguinte disposto a questionar esses pontos, no momento das perguntas públicas ou em alguma outra oportunidade em privado.
A palestra foi muito interessante, pró pria destas universidades onde ganhar um prêmio Nobel não parece ser uma piada, mas uma aspiração séria num país sério, que valoriza a educação, as ciências e a cultura, mas não consegui esclarecer mi nhas dúvidas. Diante de minha coloca ção de que ser religioso é muito mais amplo do que ser ortodoxo, a resposta que tive foi a de que em Israel os conservado res e reformistas não têm força representativa na sociedade.
Eu sei que os movimentos liberais em Israel têm mui to trabalho pela frente e que precisam alcançar uma for ça social e política muito mais significativa. Nesses pon tos ainda somos muito fracos e devemos assumir isso para repensar nossa missão com mais coragem e compromisso.
Sei também que naquele momento – cinco ou seis anos atrás – a situação era ainda mais precária do que hoje, mas uma proposta séria e responsável que preten de refundar a sociedade israelense, tendo a diversidade e o diálogo como bandeiras, não pode continuar a incentivar a falsidade da categorização abrangente do tecido so cial apenas entre laicos e religiosos. Principalmente quan do o elemento religioso é representado pela ultraortodoxia, com sua força política totalmente desproporcional à quantidade de seguidores e com impacto notável na vida pessoal de todos os cidadãos israelenses – o que causa enormes danos e ameaça o caráter judaico do Estado que supõe estar preservando.
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guns anos atrás por causa das maquinações da política ul traortodoxa, o assunto das conversões passou finalmen te a preocupar também a setores da comunidade ortodo xa moderna.
Milhares de conversões perfeitamente legítimas que ele tinha supervisionado foram retroativamente declara das nulas e sem efeito, adicionando injúria ao insulto que esse campo tinha sofrido no início do ano, quando o Ra binato-Chefe de Israel resolveu desafiar a legitimidade das conversões autorizadas pelo Conselho Rabínico Ortodo xo da América.
Esse tipo de decisão, totalmente contrária à Halachá e às normas cívicas mais básicas, denigre o ser humano e ten ta roubar dele sua identidade, como vem acontecendo há décadas com a não aceitação dos judeus convertidos pelos movimentos Reformista e Conservador.
O Comitê Neeman1 foi formado há dez anos para re solver essa problemática tão sensível no seio da sociedade, mas suas resoluções e recomendações nunca foram imple
mentadas, e ainda hoje temos uma situação sem solução e com sérias perspectivas de piorar. O monopólio da ortodo xia na definição mais íntima e individual da identidade de uma pessoa está decretando implicitamente que o judais mo é apenas uma expressão religiosa e de uma única in terpretação. Portanto... de que diversidade está se falando?
Donniel Hartman, filho do genial Hartman, mas com uma intensa luz própria, é um dos expoentes mais ilumi nados da ortodoxia moderna na atualidade. Em sua fun ção de diretor no Shalom Hartman Institute em Jerusa lém (nome da instituição fundada por seu pai em home nagem a seu avô), expressa ideias que cuidam com muita sensibilidade da preservação do antigo e da necessidade de confrontar o moderno com todas as ferramentas intelectuais e religiosas que dispomos em nossos dias. Ele se per gunta: por que deveríamos celebrar o pluralismo e de que forma ele é celebrado, neste trecho de um discurso profe rido na American University, College of Arts and Scien ces, em 2004:
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Algumas pessoas me perguntam: por que celebrar o pluralismo? Podemos entender que você queira abraçar o outro por conta de conveniência política. Mas qual é o va lor real do pluralismo? Você vê isso como a expressão de uma profunda convicção reli giosa? O pluralismo não enfraquece a con vicção? A convicção e a fé não exigem que se tenha a sensação de possuir a verdade exclu siva e praticar a única forma válida? Pode ser alguém realmente devoto e ter convic ções profundas sabendo que o outro também tem valor?
Penso que as pessoas cometem um gran de erro ao igualar o pluralismo com o rela tivismo. Eles pensam que se você é um plu ralista você realmente não tem convicções sé rias. Se você tem convicções sérias você deve dizer: eu sei a verdade, não me incomodem com outras visões.
O monopólio da ortodoxia na definição mais íntima e individual da identidade de uma pessoa está decretando implicitamente que o judaismo é apenas uma expressão religiosa e de uma única interpretação. Portanto... de que diversidade está se falando?
Então eu me pergunto: qual é o valor de viver num mun do pluralista, numa cultura pluralista? Por que celebrar a di versidade? Acredito que o segredo da força e da vitalidade da América reside em sua celebração da diversidade. E isto sig nifica abrir mão do ideal de obrigar uma visão monolítica para todas as pessoas.
A celebração da diversidade é a expressão plena de um mandamento bíblico muito profundo. As pessoas pensam que o maior mandamento da Bíblia é: “E amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Eu não nego que este seja um mandamen to importante. Eu não nego que seria uma ótima coisa se as pessoas resolvessem implementá-lo.
No entanto, deixem-me dizer-lhes sobre um outro man damento bíblico que é ainda mais difícil de absorver e é ain da mais importante: “Veahavtem et hager ki mitzryim bee retz gerim haitem” – E amarás ao estrangeiro porque estran geiro fostes na terra do Egito. O amor ao próximo é muito mais simples, porque o próximo é alguém que vive perto de você, é alguém que você reconhece, alguém que você pode pre ver o comportamento.
Mas o mandamento também é de amar ao desconhecido, e eu não usaria apenas o termo desconhecido, mas também “o outro”, o radicalmente outro. Como fazer para encontrar o outro? Por que é tão importante que eu abrace o outro? O que os outros te proporcionam como ser humano?
O outro te cura do absolutismo. O outro te obriga a não considerar as tuas próprias convicções como sendo a verdade exclusiva. O outro te força à criação do espírito crítico, de ser capaz de perceber um mundo diferen te do teu e de abandonar o absolutismo e o triunfalismo. O outro te liberta da obsessão maníaca de verdade exclusiva, de um úni co caminho para Deus, de uma única for ma de viver uma vida digna.
Há uma diferença entre a celebração da diversidade (pluralismo) e o relativismo. No relativismo você não tem de expor suas con vicções a críticas. Você pode dizer: “Eu gos to”. “Eu gosto de bolo de chocolate, do que você gosta?” Eu não tenho que justificar, eu não tenho que dar razões. Já no pluralismo você está sempre aberto à crítica dos outros. No pluralismo não se pode simplesmente dizer: “Eu gosto”. É necessário apresentar argumentos inteli gentes para justificar suas convicções. E eu digo que pode haver convicção e profundidade se você aprender a ouvir sua própria música sem ter de negar o outro. Aceitação sem negação. Eu não tenho que negar o outro a fim de afirmar o que eu tenho.
Como alguém que vive em Jerusalém e que estuda o Tal mud e a filosofia, permitam-me contar-lhes o que um sábio disse ao estudante que o procurou. O sábio estava ensinando, e ele estava ensinando coisas diferentes. E, se você já estudou Talmud, você sabe que não há uma só página do Talmud em que não haja divergência. Um diz uma coisa e outra pessoa diz outra coisa. E sempre há discordância.
O estudante disse ao sábio: “Como posso estudar a Bíblia se este me aponta um caminho e este outro me aponta para o outro lado? Este me diz que é permitido e este me diz que é proibido? Como posso tornar a Bíblia o meu modo de vida se sua argumentação me confunde?”
O conselho do sábio foi: “Assei leibcha chadarim chadrai” – Faça do seu coração uma sala com muitas câmaras. E co loque em cada câmara um diferente ponto de vista. Ouça a Hillel e ouça a Shammai. Saiba como lidar com o contraditó rio. Eu sempre digo aos meus alunos na universidade: vocês se tornarão filósofos quando entenderem as razões daqueles que discordam de vocês. Ser capaz de ouvir a validade e a força daqueles que não concordam com vocês é o caminho mais se guro para desenvolver suas próprias convicções.
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Às vezes eu me pergunto se somos Am Echad, um único povo, ou se se trata de um encontro de subgrupos em rela ção aos quais cada um vê ao outro como Reachá, como um próximo, ou se diretamente esse outro é um estrangeiro.
Penso que depende muito do momento e das circuns tâncias de como nos reconhecemos e nos vinculamos. Já vivemos divididos em tribos quando ingressamos na ter ra de Israel, já fomos um único povo com um rei para todos, o reino já foi dividido nos reinados de Israel e de Judá, que preferiam se aliar a potências estrangeiras do que entender-se com os judeus do outro reino, já fomos diferentes seitas no tempo do Segundo Templo, já tive mos enormes brigas ideológicas com enorme respeito e união nos tempos da Mishná e do Talmud, já fomos du rante séculos pequenas kehilot autônomas, mas também solidárias, espalhadas pelo mundo, já sofremos unidos a Shoá e cantamos felizes o Hatikva e Ierushalaim shel Zahav quando reconstruímos um Estado e quando re conquistamos Jerusalém.
A conjuntura histórica atual exige a grandeza de acei tar que não precisamos pensar igual, sequer concordar. Precisamos construir uma sociedade onde todas as vo zes sejam ouvidas e uma lei que contemple a todos. E se essa lei aparenta ser contraditória e nos levar por mais de um caminho ao mesmo tempo, deixemos de ser dogmá ticos, abramos o Talmud e façamos do nosso coração uma sala com muitas câmaras.
Sinceramente, eu desconheço as conclusões do Comi tê Neeman, mas sei que suas propostas nunca foram seriamente consideradas. Sei um pouco mais sobre o conteúdo
do documento Gavizon-Medan e posso dizer que, mesmo com o pluralismo que ele apresenta, sob uma interessan te dialética, está ausente – em sua concepção – a trama so cial israelense, que não é de forma alguma reduzida à sim ples dicotomia “ortodoxo ou antirreligioso”.
O governo israelense pode declarar animadamente sua boa vontade em ouvir todos os setores do judaísmo mundial e seus ministros podem visitar comunidades reformis tas da Diáspora e destacar a vida judaica e espiritualidade. Porém, se mais tarde, não com palavras, mas com ações e decisões, continuar ignorando as vozes de centenas de mi lhares, então evidentemente estamos participando, todos nós, de um jogo que está mal formulado a partir de suas regras básicas.
Se Israel se orgulha por seus muitos prêmios Nobel e se tem a capacidade de incentivar carreiras de excelên cia em suas universidades é porque, em matéria de educa ção, ciência e tecnologia, se espelha nos Estados Unidos e na Europa. Seria bom que nos assuntos religiosos desista de dar largos passos na direção de seus vizinhos do Orien te Médio.
Notas
1. O prof. Yakov Neeman, líder da comunidade ortodoxa, convocou rabinos refor mistas e conservadores para alcançar um consenso a respeito do problema das con versões em Israel. Esse comitê foi instituído em 1998, mas suas recomendações, enviadas ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, nunca foram aplicadas.
O rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Isra elita – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico La tinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Aires, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém.
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m oacyr s cliar: um escritor judeu-brasileiro
berta Waldman
Com o falecimento do escritor Moacyr Scliar em fevereiro deste ano, a literatura e a cultura brasileiras perderam a mais importante expressão ficcional judaica em português. Integrante da Academia Brasileira de Letras, Scliar era um dos escritores brasileiros mais traduzidos no exterior e seu livro O Centauro no Jardim foi considerado um dos 100 melhores romances judaicos do século 20.
“O Bom Fim daquela época era, como eu disse, um bairro de pequenas casas, povoado por famílias de artesãos, de pequenos comerciantes/.../ Estranhos.
Ora, o estranho tem habilidades e forças que o nativo não tem. O estranho é frágil como uma larva; treme por qualquer coisa, vive assustado. Não fala a língua do lugar. /.../ Mas ele espia e expia. E aí – no olhar – está o primeiro po der do estranho. Ele vê o que os outros não veem.”
Moacyr Scliar1
Os imigrantes começam a ganhar visibilidade no Brasil entre 1910 e 1940, com a publicação de diferentes jornais e revistas, principal mente no Rio de Janeiro e em São Paulo, que traziam matérias em “macarrônico”2, sendo o autor mais conhecido do período Alexandre Ribeiro Marcondes, autor de Juó Bananere que, por sua vez, escreveu La Divi na Increnca, paródia da Divina Comédia, de Dante3.
Se até certo momento histórico o imigrante é representado por um escri tor da terra, que o enxerga de fora de sua condição, desenhando-o com os tra ços de uma visão muitas vezes oficial e tipificada, autores eles próprios imigran tes começam a surgir em meados do século XX, estendendo sua produção até a atualidade, substituídos pelas segunda e terceira gerações que sustentam ain da uma literatura de dupla face, num estágio de identidade cultural experimen tado como colisão, mescla e fusão de culturas, tradições e histórias diversas.
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Se procurarmos marcas da tradição judaica na literatura brasileira, poderemos distinguir autores que as colocam entre parênteses (e esse é o caso de Clarice Lis pector), embora elas apareçam de forma incontornável, escapando do domínio do escritor, enquanto outros deliberadamen te as trazem à epiderme do texto, caso do escritor Moacyr Scliar.
Brasileiro, nascido em Porto Alegre, no bairro do Bom Fim, e judeu, filho de imigrantes da Europa Oriental, Scliar, nascido em 1937 e falecido em fevereiro de 2011, traz para sua literatura as mar cas dessa dupla identidade. O que o destaca no contexto da literatura brasileira é o fato de ser ele dos raros escritores a te matizar fielmente o fenômeno da imigra ção judaica no país, particularmente no Rio Grande do Sul.
O filão da mestiçagem literária que versa sobre a inserção do estrangeiro entre nós – além do interesse do assunto num país que entra no processo de industrialização escorado na força de trabalho que vem de fora e conta, hoje, com um enorme contigente de estrangeiros em sua formação –tem resultado muitas vezes em literatura de bom nível. É o caso, para citar alguns exemplos, de Antônio de Alcânta ra Machado, que mapeia a cidade de São Paulo, acompanhando os passos da trajetória de integração dos italianos e ítalo-paulistanos pelos bairros da cidade; de Lya Luft, que registra a imigração alemã no sul do país; de Raduan Nas sar, que traz à sua Lavoura Arcaica um tom árabe; e de Mil ton Hatoum, que recupera Um Certo Oriente em Manaus.
Assim, as histórias ouvidas e vividas na infância têm um lugar importante na obra de Scliar, que relata a vida de judeus emigrados da Rússia e de outros países da Europa, que vieram ao Brasil trazendo na bagagem o fardo de seus sonhos e, aqui chegados, constatam que a América não frutifica milagres, nem mesmo esperanças comunitárias de redenção.
que cultural entre imigrantes e brasileiros ou entre a primeira geração de imigran tes e a de seus filhos já adaptados ao país (A Guerra no Bom Fim)6; na construção de personagens que vivem o conflito de terem de escolher entre a tradição de seus pais e a cultura hegemônica (Os Deuses de Raquel)7; e, ainda, na utilização de certas matrizes formais da cultura judaica (a pa rábola, a intertextualidade com a Bíblia e a Cabalá), retomadas em outra clave.
O bairro judaico do Bom Fim, em Porto Alegre, onde Scliar foi criado na década de 30, era povoado por famílias de artesãos e de pequenos comerciantes imigrantes que costumavam se reu nir para evocar sua infância na Europa e contar histórias, que encontraram no menino um ouvinte privilegiado. Alfabe tizado na esteira desses narradores, Scliar se torna um deles, mas passou a contar escrevendo.
Esse tipo de literatura é um pouco a contrapartida da literatura dos viajantes. Mudou o olhar, o ponto de vis ta, a época e a intenção de quem escreve. Além disso, o imigrante em geral não volta, permanece no país, cons trangido a amalgamar à sua tradição os padrões da nação que o acolhe.
Os resultados desse modelo de narrativa, em Scliar, atualizam-se de diferentes maneiras; na composição de fi guras híbridas que permeiam sua obra, como o centauro (O Centauro no Jardim)4; a sereia (O Ciclo das Águas)5; no enredo que se articula de modo a deixar aflorar o cho
Foto: Beto Scliar
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Assim, as histórias ouvidas e vividas na infância têm um lugar importante na obra do autor, que relata, em vá rios de seus livros, a vida de judeus emigrados da Rússia e de outros países da Europa, que vieram ao Brasil trazen do na bagagem o fardo de seus sonhos e, aqui chegados, constatam que a América não frutifica milagres, nem mes mo esperanças comunitárias de redenção. Dedicam-se ao comércio, organizam-se em guetos, como o do Bom Fim em Porto Alegre, e vão, de geração a geração, diluindo suas ilusões na mediocridade característica da classe média bra sileira que passam a integrar.
Em sua primeira obra – A Guerra no Bom Fim – po de-se notar que, no itinerário percorrido pelo protagonis ta Joel e seus companheiros, o autor demarca muito bem a representação do judeu já nascido no Brasil, inserindo-o num fogo cruzado de culturas figurado literariamente na heterogeneidade de vozes narrativas.
No nível do enredo, o autor promove colagens fazen do conviver realidades distantes. Por exemplo, transporta a II Guerra Mundial a Porto Alegre e os filhos de imigran tes investem fantasiosamente contra os nazistas, na terra e no mar, na praia e nas ruas, ajudados por heróis díspa res que vão do Deus Jeová ao Homem Borracha, do Go lem ao Príncipe Submarino, de Sansão ao Homem Mon tanha. Aí é inegável a aproximação da ficção de Scliar com a vaga hispanoamericana do realismo fantástico, pouco de
senvolvido na literatura brasileira.Num movimento opos to, o autor finca os personagens num tempo histórico, fa zendo-os viver sua história pessoal vinculada ao microgru po familiar, ao macrogrupo do gueto, ambos inscritos no painel da história brasileira, de onde ecoam, no roman ce, sinais, como a expansão do parque fabril de São Pau lo, a morte de Getúlio Vargas, os movimentos estudantis e de esquerda.
Uma vez crescidas, o inimigo das crianças não é mais o nazista, mas o mesmo que assola a classe média brasileira: a pobreza. Se, por um lado, judeus e negros mantêm, além da vizinhança topográfica (os negros vivem na Co lônia Africana próxima ao Bom Fim), uma equivalência de destinos determinada pela pobreza comum, por outro lado, essa equivalência tenderá a se romper, porque, na se quência de gerações, a ascensão social será franqueada aos judeus, enquanto os negros continuarão à margem do pro gresso econômico-social brasileiro.
Além dessas aproximações, o autor cruza a história do Brasil com a história do Estado de Israel, a Guerra dos Seis Dias, introduzindo os conflitos entre judeus e ára bes. Quando Joel e seus amigos chegam à idade adulta e fazem uma viagem a Israel, entra em cena um par do pro tagonista, mas no campo inimigo: o árabe Abu Shihab, que tinha perdido sua terra, em l948, tomada pelos ju deus. Assim como Joel lutara contra os nazistas nas ruas
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do Bom Fim, Abu Shihab investirá contra os judeus. A identificação entre am bos vai se traçando, e os dois se mostram especulares no sofrimento, na frustração, na diferença.
Um exemplo privilegiado do cruza mento de culturas que caracteriza a fic ção de Scliar pode ser avaliado no modo como o autor traz a barbárie nazista para Porto Alegre, neste mesmo romance. Ao longo do texto, o autor vai oferecendo ao leitor pistas que lhe permitam che gar ao episódio: repetidas vezes se fazem ameaças (o alemão, o polonês, o negro) de transformar os judeus em churrasco, numa alusão clara aos fornos cremató rios. O narrador informa também que o Brasil havia acolhido uma grande leva de alemães nazistas depois da Segunda Guerra Mundial. Assim, quando os fi lhos do alemão Ralf Schmidt resolvem prender o velho Samuel para presenteá -lo ao pai no dia de seu aniversário, já tinham sido cria dos os suportes de verossimilhança. O autor, entretan to, terá que utilizar o fantástico e enquadrar o episódio no carnaval, momento de inversão da ordem, para levar
O autor promove colagens fazendo conviver realidades distantes, transporta a II Guerra Mundial a Porto Alegre e os filhos de imigrantes investem fantasiosamente contra os nazistas, na terra e no mar, na praia e nas ruas, ajudados por heróis díspares que vão do Deus Jeová ao Homem Borracha, do Golem ao Príncipe Submarino, de Sansão ao Homem Montanha.
adiante os aspectos grotescos e mórbidos dos acontecimentos.
Quando os filhos de Ralf matam gra tuitamente o velho judeu e o transformam em churrasco, eles estão promoven do a passagem de uma expressão metafó rica a literal, e alçando a situação ao plano fantástico. É a mulata Maria, mãe das crianças criminosas que, em sua ignorân cia (ela não sabe o que o leitor sabe), co meça a comer o corpo de Samuel. Para além dos aspectos macabros que o episó dio suscita, podemos interpretá-lo pelo viés antropofágico. Quando Maria come a carne humana, o autor a transforma numa canibal nativa. Ela é a autoctone em oposição ao marido e aos filhos (que se parecem ao pai), o europeu civilizado, branco. Pelo comportamento do branco europeu e do nativo, o leitor é levado a avaliar uma das consequências banais da colonização: a corrupção dos nativos pelo europeu, este o verdadeiro bárbaro, numa inversão clara da óptica colonialista. Com este episódio, o autor ilustra um crime macabro, ao mesmo tempo que inclui uma tomada de posição com relação ao processo bárbaro de coloniza
Capas: Cia. das Letras
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ção a que o branco e europeu submeteu o Brasil e a América Latina.
Entre a tradição, a inserção no país e os olhos voltados para Israel, o lugar do judeu é intersticial. É desse lugar que emana a ficção de Scliar. A vida no in tervalo apresenta dificuldades que seus heróis se esforçam por superar, à medi da que o processo de mestiçagem étnica e cultural segue seu curso.
Vivendo a ilusão de uma emancipa ção comunista (Mayer)8, na indiferença com relação à tradição dos antepassados (Raquel)9, na carência de uma educação judaica (Marcos)10 ou com a atitude de arrivismo (Guedali)11, a aspiração mais recôndita dos protagonistas da segunda geração de judeus nos livros do autor é a composição de um espírito judaico num corpo gói12 para eliminar a diferença no plano aparente. É devido ao culto desse corpo que Guedali recusa a sopa de beterraba, o peixe, o pão ázimo da Páscoa,13 alimen tos inadequados para o seu ventre de longos intestinos de centauro. Já Mayer Guinsburg, para sofrimento dos pais, insiste em comer carne de porco14 para somar com a ma terialidade do corpo gói. Nas narrativas de Scliar, o corpo dos judeus passa por metamorfoses as mais grotescas e angustiantes. É na singularidade física, nas doenças do corpo, que o judeu exprime sua fragilidade e sua neces sidade de atenção. A vagina dentada de Rosa15 e a parte equina de Guedali16 configuram o estigma de uma dife rença, assim como a dificuldade de confrontação com o mundo exterior.
Entre a tradição, a inserção no país e os olhos voltados para Israel, o lugar do judeu é intersticial. É desse lugar que emana a ficção de Scliar. A vida no intervalo apresenta dificuldades que seus heróis se esforçam por superar, à medida que o processo de mestiçagem étnica e cultural segue seu curso.
Raquel percorre, ao volante de seu carro, as ruas de Porto Alegre, sem parar; Joel também não pára, no sobe-desce morros a bordo de um gabinete dentário ambulante; Guedali cavalga pelos Pampas. To dos estão a caminho. Essa condição tran sitiva inerente às personagens é a marca de seu nomadismo. Aí, a Terra Prometi da é um horizonte inacessível, que as im pele a ir, sem nunca chegar.
Localizando-se fora e dentro de seu grupo de origem, vivendo de dentro a experiência de hibridização de que tra ta, Scliar, com seu estilo coloquial, a vi são crítica da realidade que o caracteri za e a construção de seus heróis fracassa dos, insere-se na literatura brasileira que se vem desenvolvendo no Brasil nas últimas décadas, destacando-se como o re presentante mais fecundo desse encontro particular de culturas nas letras brasileiras contemporâneas.
Notas
1. A condição judaica – das Tábuas da Lei à mesa da cozinha. Porto Alegre, LPM, 1985, pp. 92-93.
2. Macarrônico é o termo utilizado para marcar a mescla do português com algum idioma estrangeiro, sendo principalmente aplicado ao italiano.
3. Veja-se, a propósito, o ensaio de Carlos Eduardo Schmidt Capela: “Representações de migrantes e imigrantes: o caso de Juó Bananére”, In Revista da Biblioteca Mário de Andrade, vol. 52, 1994. Cf, ainda, de Jean-Jacques Marchand (org.) La lettera tura dell’emigrazione (Gli scrittori di lingua italiana nel mondo). Torino, Fondazio ne Giovanni Agnelli, 1991.
4. O Centauro no Jardim. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
5. O Ciclo das Águas. Porto Alegre, Globo, 1975.
6. A Guerra no Bom Fim. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1972.
7. Os Deuses de Raquel. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1975.
Outros seres híbridos aparecem nos romances e con tos de Scliar. Vivem na carne a situação de crise perma nente de identidade, amputando, inclusive, uma de suas partes para poder sobreviver. É essa diferença que os judeus filhos de imigrantes tentarão apagar, buscando, se gundo a visão do autor, a redenção no esquecimento de seu passado coletivo, igualando-se aos outros não como pretendia Mayer Guinsburg em sua utopia romântico-re volucionária, mas pela via homogeneizadora do capita lismo. Mesmo distanciadas de suas origens, as persona gens não alcançam se libertar delas, e o sinal do vínculo que alimentam é dado por sua permanente locomoção:
8. Personagem de O Exército de um Homem Só. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1973.
9. Personagem de Os deuses de Raquel. Op.cit.
10. Personagem de O ciclo das Águas. Op.cit.
11. Personagem de O Centauro no Jardim. Op.cit.
12. Gói – não judeu.
13. Referência à matzá – pão não fermentado que se consome na festa de Pessach, a Páscoa judaica.
14. A carne de porco, segundo Levítico 11:13, é de ingestão proibida aos judeus, por se classificar o animal como impuro
15. Personagem de A Guerra no Bom Fim. Op.cit.
16. Personagem de O Centauro no Jardim. Op.cit.
Berta Waldman é professora aposentada do Departamento de Teoria Literária da Unicamp e professora de literatura hebraica e ju daica da USP.
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Alexander Raths
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a imagem revelada a quem persevera entrevista de Ada Yonath, nobel de Química
por marina lemle
Como a hibernação dos ursos polares pode contribuir para a saúde das pessoas? Em nada, se não houver no meio uma mente curiosa, criativa e tenaz. Mas há: Ada Yonath, pesquisadora do Instituto Weizmann de Ciências, em Israel, e Prêmio Nobel de Química de 2009.
Inspirada por um artigo científico que descrevia como o ribossomo (parte da célula que fabrica proteínas) do urso do Polo Norte se organiza para funcio nar durante os meses de hibernação, e assumindo que isso é uma estratégia na tural, ela pesquisou organismos que vivem em condições extremas, como bac térias do Mar Morto.
Isso foi na década de 80. Desde então, passou a vida buscando enxergar algo muito, muito pequeno: a estrutura do ribossomo. Ridicularizada duran te décadas por parte da comunidade científica internacional, que considerava seu objetivo impossível, ela contou com o apoio dos institutos Weizmann e Max Planck, em Berlim, onde montou um laboratório próprio.
Ao longo dos anos, desenvolveu diversas técnicas hoje largamente utiliza das em laboratórios de biologia estrutural. Com a evolução das tecnologias de cristalografia com luz síncrotron, e já com o apoio dos parceiros de institutos de pesquisa americanos, no ano 2000 ela obteve as primeiras imagens com definição, permitindo interpretar a estrutura, a conformação e o funcionamento dos ribossomos. O feito lhe rendeu o Nobel de Química.
Mas o que isso tem a ver com a saúde humana, afinal? A maioria dos anti bióticos hoje age nos ribossomos da bactéria. Sem proteína, ela morre. Conhe cendo melhor o funcionamento do ribossomo, é possível produzir antibióticos
Nobel de Química de 2009, a israelense Ada Yonath levou mais de 20 anos tentando enxergar a minúscula estrutura do ribossomo – e conseguiu.
Fotos: Marina Lemle
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que dificultem o desenvolvimento de resistência nas bactérias. Segundo Ada, as infecções por superbactérias podem reduzir a expectativa média de vida da população mundial nas próximas décadas a índices inferiores aos de antes dos antibióticos. Apesar do prognóstico sombrio, as indústrias farmacêuticas não parecem interessadas no assunto.
Ada Yonath nasceu em 1939 num bairro ortodoxo de Jerusalém. Seu pai, dono de uma mercearia, morreu quan do ela tinha apenas 11 anos, após longo período doente. Se a vida já era difícil, ficou mais dura para Ada, sua mãe e sua irmã pequena. Para ajudar, ainda adolescente ela enca rou trabalhos braçais improváveis para uma futura Nobel. Mas, aos 20 anos, após servir ao Exército, sua sorte mu dou: estimulada pela oferta de uma bolsa de estudos, en trou para a Universidade Hebraica de Jerusalém, onde graduou-se em química e obteve mestrado em bioquímica e biofísica. Feliz na carreira científica, ela prosseguiu douto rando-se pelo Instituto Weizmann, onde estudou o pro cesso de biossíntese da proteína.
A intensa vida acadêmica não lhe impediu de ter uma vida pessoal. Casou-se aos 25 anos, teve uma filha que vi rou médica e agora orgulha-se também da neta, que lhe conferiu seu título favorito: o de “avó do ano”.
Ada Yonath esteve no Brasil em janeiro, para uma visi ta ao Laboratório Nacional de Luz Síncroton (LNLS), em Campinas. Ela concedeu entrevista à revista Devarim na Hebraica de São Paulo, onde proferiu palestra. Questionada sobre judaísmo e fé, mostrou-se desinteressada por reli gião. “Sou atraída pelos seres humanos”, esclareceu.
Devarim: A senhora veio de um lar ortodoxo?
Ada Yonath: Meus avós eram ortodoxos, meus pais também. Meu pai tinha barba, kipah, talit. Meus pais não eram tão religiosos quanto meus avós, mas respeitavam seriamente o shabat, Yom Kipur, não comiam camarão...
Devarim: Como foi a sua infância?
Ada Yonath: Meus pais tinham uma mercearia. Meu pai era muito doente, e a minha mãe cuidava dele. Ele ti nha um problema nos rins, ia e voltava do hospital, esta va sempre em recuperação. Não havia tratamento bom naquela época. Meu pai morreu quando eu tinha 11 anos. Minha irmã ainda era bem pequena. Éramos muito po bres e ficamos mais pobres ainda, então tive que trabalhar duro. Nos mudamos para Tel Aviv, onde morava a irmã da minha mãe. Fiz todo tipo de trabalho: fiz faxina, sanduí
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ches, trabalhei em fábrica, dei aulas para crianças da redondeza. O que me ofere ciam, eu aceitava.
Devarim: Como era você como criança, antes do seu pai morrer?
Ada Yonath: Eu tinha muita curiosi dade. Uma vez eu quis saber a altura da nossa varanda e fui empilhando móveis para chegar até ela. Subi na estrutura e caí. Quebrei um braço e machuquei as minhas duas mãos gravemente. Usei uma atadura durante seis meses. Em outra oca sião, fiz um experimento com líquidos, água e querosene. Meu pai foi fumar na varanda e houve um pequeno incêndio. Mas ele riu da minha aventura.
A categoria mais competitiva de todas era química. Resolvi tentar a prova mais difícil porque achei que, se chamasse atenção logo, poderia assegurar uma vida na universidade. É preciso maximizar as próprias oportunidades.
melhor coisa que eu podia fazer para fi car perto da minha mãe.
Devarim: E então nasceu uma cientista?
Ada Yonath: Eu gostei muito de bio química, mas sou interessada em tudo, em tudo! Eu nem sabia que na universidade se fazia pesquisa e que existia uma profissão chamada “cientista”, na qual a pessoa podia dizer “estou interessada em estudar por que o céu é azul”, fazer um experimento e ser paga para isso (risos)... Um dia, perguntei a um professor o que ele fazia no laboratório dele. Ele me con vidou a ir até lá e respondeu: “Eu levei muito tempo para entender, ainda estou estudando...”
Devarim: E sua mãe, o que fazia?
Ada Yonath: Ela falava quatro línguas, fazia muitos trabalhos artísticos manuais, cozinhava e cuidava de nós. Mas não tinha a saúde muito boa.
Devarim: Você acompanhou o desenvolvimento de Israel. Como o país alcançou um nível tão alto de educação e de senvolvimento científico em tão pouco tempo?
Ada Yonath: É um país muito pequeno. Judeus são educados para ser médicos ou outras profissões que têm a ver com conhecimento.
Devarim: Por que a senhora escolheu a química?
Ada Yonath: Meio por acaso, talvez por sorte. Eu gostava de tudo em ciência – biologia, física, até mate mática era interessante. Eu queria ir para um kibutz, mas não podia deixar minha mãe doente com minha irmã pe quena, então a coisa mais interessante para mim era estu dar. Eu sabia que havia uma universidade em Jerusalém, a Universidade Hebraica, não muito longe de onde mo rávamos em Tel Aviv, que oferecia uma ótima bolsa de estudos, e eu poderia continuar a trabalhar como profes sora. Tentei física primeiro, mas nem olharam para mim. A categoria mais competitiva de todas era química. Re solvi tentar a prova mais difícil porque achei que, se cha masse atenção logo, poderia assegurar uma vida na uni versidade. É preciso maximizar as próprias oportunida des. Fui aceita em química e foi assim que entrei. Foi a
Devarim: O fato de ser judia influenciou a sua escolha pela ciência?
Ada Yonath: Não, eu desconectei minhas relações di retas com Deus antes.
Devarim: Como isso aconteceu?
Ada Yonath: Quando eu tinha uns nove ou dez anos, meu primo, que era um alto general do Exército, avisou que estaria em Jerusalém com sua esposa grávida em Yom Kipur. Ele pediu à minha mãe para preparar uma refeição para sua esposa, porque o Exército só dava sanduíches e isso não era bom para ela. Então minha boa mãe decidiu fazer isso por eles, e também porque o pai doente não po dia jejuar, então ela decidiu cozinhar só para eles e o pai, ninguém mais comeria. Mas era preciso confirmar que eles viriam, e me foi dito que só quem poderia ligar era eu, que ainda não era bat-mitzva. O telefone era na loja e ela esta va escura, então deixei uma fresta da porta aberta para dis car e fiquei pensando “Deus está vendo”, e pensei que no momento em que eu começasse a discar Ele descobriria e meu dedo pegaria fogo. Eu liguei, e nada ruim aconteceu. Cresci acreditando que Deus puniria estas transgressões, e de repente nada acontece! Há coisas boas no judaísmo, mas minha linha direta foi cortada ali.
Devarim: A senhora acredita na existência de algo maior, não explicável pela ciência?
Ada Yonath: Há muitas coisas inexplicáveis.
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Devarim: Mas a senhora tem algum tipo de fé?
Ada Yonath: O que você quer dizer?
Devarim: Eu não sei.
Ada Yonath: Eu acredito que a hu manidade será melhor, sim! (Yeah!)
Devarim: A senhora nunca se sentiu atra ída pelo judaísmo liberal?
Ada Yonath: Eu sou atraída pelos se res humanos. Seres humanos, se são bons, são bons, se são belos, são belos, se são in teligentes, são inteligentes.
Devarim: Então religião não é impor tante?
Ada Yonath: Não é uma questão para mim. Mas para muita gente é importante.
Hoje o que parte dos antibióticos faz é parar o ribossomo. Sem proteína, não há vida. Isso é sabido
há muito tempo, mas hoje entendemos como isso acontece, e por isso podemos fazer melhores antibióticos e usar este conhecimento para lutar contra a resistência, que é um grande problema dos antibióticos.
Devarim: Em 2009 a senhora ganhou o prêmio Nobel por sua pesquisa com ribossomos. Poderia explicar a sua importância?
Ada Yonath: O ribossomo é a máquina que recebe a informação genética e fabrica as proteínas. Quase tudo em cada criatura viva é feito por proteínas. A produção é constante, se não há produção, a gente morre. Doenças infec ciosas são causadas por bactérias, como pneumonia e tu berculose, problemas estomacais e muitos outros. Se fizermos as bactérias pararem de se manter vivas, elas vão mor rer. Hoje o que parte dos antibióticos faz é parar o ribos somo. Sem proteína, não há vida. Isso é sabido há muito tempo, mas hoje entendemos como isso acontece, e por isso podemos fazer melhores antibióticos e usar este co nhecimento para lutar contra a resistência, que é um gran de problema dos antibióticos.
Devarim: Por que as bactérias se tornam resistentes?
Ada Yonath: Porque nos automedicamos e porque os médicos do mundo todo prescrevem um monte de antibióticos. Antibióticos são feitos de bactérias, usamos um tipo de bactéria contra outra. Uma se arma contra a ou tra. Eventualmente uma bactéria, por mutação, encontra formas de combater a outra. Isso é resistência e vai sem pre acontecer, porque, como todo ser vivo, a bactéria tem
o impulso de lutar para manter-se viva. A questão é quão rápido e quão resistente. Se uma bactéria cresce em dez minutos, nesse intervalo se tem uma nova geração.
As mais lentas levam oito horas – são três gerações por dia, com suas mutações. Três anos para elas é como a nossa evolução inteira. Quase todos os antibióticos co meçam pelos ribossomos, hoje entende mos os mecanismos envolvidos. A ques tão para nós agora é como minimizar isso, como cercar os pontos de ligação de for ma que as mutações sejam menos impor tantes ou influentes. O que fazemos hoje é trabalhar com pares de antibióticos –um fortalece o outro. Há muitos códigos de ligação envolvidos, então até que haja mutações para cobrir todos levará muito mais tempo. Estas informações estão à disposição das indústrias farmacêuticas.
Devarim: E há interesse dessas indústrias?
Ada Yonath: Pergunte a elas, mas não há muito não.
Devarim: Por que não?
Ada Yonath: Você sabe no que as empresas estão in teressadas?
Devarim: Dinheiro.
Ada Yonath: Se você precisa tomar insulina todo dia, isso é mais rentável para a indústria do que uma infecção de cinco dias. Primeiro, vende mais. Segundo, as pessoas que têm o que se chama de doenças do envelhecimento pagam caro para se livrarem delas, enquanto infecções são mais comuns em países pobres, com pouca higiene e ou tros fatores que contribuem para infecções. As indústrias não lucram muito com antibióticos. Elas sabem que mais cedo ou mais tarde os medicamentos ficarão obsoletos.
Devarim: E a produção para a saúde pública?
Ada Yonath: Fale com as indústrias sobre saúde pú blica... Você mal consegue falar com governos sobre isso, e governos nós elegemos, quer falar com indústrias sobre saúde pública? O que eu tento dizer a eles é que, se desde a década de 1950, por causa dos antibióticos, a expectativa
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média de vida subiu de 50 para 80 anos, isso pode retornar aos índices de antes de 1950, e a indústria não terá mais esses pacientes, e o lucro vai cair. Mozart, Kafka, Chopin e Schubert, todos morreram jovens, com infecções. Em duas ou três décadas acho que vamos voltar a este patamar.
Devarim: A senhora pretende produzir antibióticos?
Ada Yonath: Só se eu abrisse uma empresa, e eu real mente não quero fazer isso. Não tenho nada contra elas, mas acho que nenhuma empresa se interessaria em investir no que estamos fazendo agora. A informação será publica da logo e poderão usá-la. A empresa terá que pagar, por que a patente da ideia, do Instituto Weizmann, vem junto com a publicação do paper. Temos dinheiro público e pro vemos a informação ao público. Durante tantos anos tra balhei de acordo com a minha vontade, não vou passar a trabalhar de acordo com o dinheiro. Há boa pesquisa sen do feita em empresas. Mas, neste estágio da minha vida, estou fazendo coisas que não interessam a elas.
Devarim: Havia quem duvidasse da possibilidade de se obter as imagens e estruturas dos ribossomos. Como foi este processo?
Ada Yonath: Quando comecei esse trabalho de crista lografia já haviam tentado e estava publicado que era im possível. Fui chamada de maluca, sonhadora, iludida e até mentirosa. Após 13 anos, começamos a ter pequenos re sultados para mostrar ao mundo, não muito convincentes e ou fáceis de explicar. Mas após 16 anos estava claro que não era apenas um sonho. As técnicas e condições de medição tinham que ser melhoradas, desafiamos os limites e as estruturas vieram.
Devarim: A senhora se surpreendeu com o prêmio?
Ada Yonath: Quando comecei, eu não pensava nis so. Após dez anos comecei a achar que talvez estivéssemos certos. Depois o pensamento passou a ser: se conseguir mos, é trabalho de nível de Nobel. Ninguém me prometeu o prêmio, havia muitos “se”. Quando os resultados come çaram a vir, quando outras pessoas começaram a se juntar ao trabalho, e chegaram a me questionar porque publiquei tudo com tantos detalhes, de forma que outros poderiam reproduzir, aí percebi a possibilidade. Quando as primei ras estruturas começaram a aparecer, em 2000, e quando começamos a entender as primeiras funções, me enchi de excitação e achei que era imbatível. Fiquei muito feliz com
O Instituto Weizmann, localizado em Rehovot, onde trabalham cerca de mil pesquisadores.
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Kirsty
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o Nobel, mas não tão feliz como quando elas apareceram.
Devarim: Como a senhora vê a ética na ciência hoje?
Ada Yonath: Muito difícil essa per gunta, não há uma única resposta, não posso generalizar. A forma como fui cria da cientificamente era de dividir tudo que alcançava. Mas no Ocidente, já na quele tempo, havia muita egotrip e ou tros fatores que impediam a troca de in formações. Foi ficando mais competiti vo, os financiamentos mais difíceis de conseguir. Eu não gosto, mas não sei julgar.
Não há conexão entre ciência e gênero. É possível fazer ciência e ser mãe, fazer teatro ou dança e ser mãe, e a sociedade apoia. Não há diferença nas contribuições. É a visão da sociedade que deve mudar, não a ciência.
visão da sociedade que deve mudar, não a ciência.
Devarim: O que mudou na sua vida de pois do Nobel?
Ada Yonath: Eu falo com pessoas como você.
Devarim: A senhora acha que a relação de Israel com os vizinhos vai melhorar?
Ada Yonath: Estou certa disso. As pessoas querem viver. Veja a luta entre Alemanha e França. Hoje eles são mais do que o seu ódio. Durante 70 anos de comunismo na Euro pa, eles se matavam. Hoje existe a Comunidade Europeia.
Devarim: Ser mulher ajudou, atrapalhou ou foi irrelevan te na sua escolha pela carreira científica?
Ada Yonath: Foi irrelevante. Não há conexão entre ciência e gênero. É possível fazer ciência e ser mãe, fa zer teatro ou dança e ser mãe, e a sociedade apoia. Não há diferença nas contribuições. Talvez haja uma diferen ça no número de artigos publicados, mas não muita. É a
Ciência nos laranjais
Devarim: Como a senhora vê a relação entre judeus de Is rael e de fora?
Ada Yonath: São todos seres humanos.
(Mais informações: http://nobelprize.org/nobel_prizes/chemistry/laureates/2009/yonath.html)
Marina Lemle é jornalista.
Localizado
em Rehovot, ao Sul de Tel Aviv, o Instituto Weizmann é um dos centros de pesquisa mais impor tantes do mundo. Cerca de mil mestres e doutores participam anualmente dos estudos desenvolvidos por 18 departa mentos de seis faculdades: Bioquími ca, Biologia, Química, Física, Matemá tica e Ciências da Computação.
Para encarar os desafios da pes quisa moderna, foram criados diversos centros multidisciplinares, onde cien tistas de áreas completamente diferen tes trabalham juntos em estudos que abrangem desde o funcionamento das células até a inteligência artificial.
À época da fundação do Instituto, em 1934, havia cerca de 400 mil ju deus na Palestina. Rehovot era uma pequena comunidade agrícola cerca da por laranjais. A visão de construir ali um centro de excelência foi do químico Chaim Weizmann, que mais tarde veio a ser o primeiro presidente de Israel. Sionista, ele acreditava que isso seria crucial econômica e politicamente para um futuro Estado judeu. Seu sonho foi apoiado pelos amigos Israel e Rebecca Sieff, que fundaram o Instituto de Pes quisa Daniel Sieff, em memória de seu filho. Weizmann e outros dez químicos orgânicos e bioquímicos então monta ram seus laboratórios pioneiros.
Em 1949, pouco depois da declara ção de independência de Israel, já eram
60 laboratórios em nove áreas de pes quisa de ponta. O instituto ganhou o nome de Weizmann, seu idealizador e primeiro diretor. Hoje, mais de 2.500 pessoas trabalham no instituto e cer ca de 500 pesquisadores visitantes vindos do mundo inteiro complemen tam sua formação nesse centro de ex celência israelense. (Mais informações: www.weizmann.ac.il)
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b rit HaKe H ilá: o pacto da c omunidade
Avaliando avaliações
Aempresa aumentou suas vendas em 18% no primeiro quadrimestre do ano em relação ao ano anterior. Seu lucro líquido aumentou 15% no mesmo período. Indubitavelmente o negócio vai muito bem...
Acontece que, em geral, no mundo da economia, não é muito difícil avaliar o sucesso de uma determinada empresa, ou desta ou daquela loja ou operação financeira. Talvez as contas sejam um pouco mais difíceis num caso do que noutro, porém o fato é que a forma de medir os resultados é bas tante simples.
A avaliação do trabalho de uma kehilá necessita contar com ferramentas capazes de propor as perguntas corretas e de ter ao mesmo tempo a capacidade de projetar os instrumentos que nos permitam realizar as valorações necessárias para encontrar as respostas almejadas.
Pois bem, quando transpomos essas perguntas para o âmbito puramente co munitário, a coisa fica mais complicada. Bastante, aliás. Nem sequer está mui to claro qual ou quais devam ser as perguntas. Como saber se estamos fazen do as coisas direito? A kehilá está crescendo ou não? Em que estamos errando?
Não se trata apenas da velha questão da diferença conceitual entre uma ava liação quantitativa e uma evolução qualitativa. Obviamente isso também faz parte do problema. Trata-se também de compreender a necessidade de contar com ferramentas capazes de propor as perguntas corretas (uma coisa não mui to simples), e de ter ao mesmo tempo a capacidade de projetar os instrumen tos que nos permitam realizar as valorações necessárias para encontrar as respostas almejadas.
Caso contrário, o que acontece comumente é apelar quase exclusivamente para a intuição dos dirigentes para “avaliarem”, num sentido muito condescen dente do termo, como a comunidade está indo em geral (diria “em geral” de mais). Evidentemente, o número de bar e bat mitzvá ou a quantidade de pes
rabino marcelo polakoff
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soas que comparecem ao shabat poderia ser um indicador, porém a verdade é que é muito pobre para essa finalidade.
A avaliação do trabalho de uma kehilá sem dúvida vai além desses dados... E o fato de contar com uma missão e uma visão muito bem redigidas ajuda, porém é no míni mo insuficiente.
Do outro lado do balcão
E as famílias? A pergunta tem a intenção de refletir por alguns instantes sobre de que forma está cada família com prometida com a própria kehilá. Vale dizer que certamen te poderemos perguntar se, além de pagar uma contribui ção social, as famílias levam a sério ou não seu pertencer à comunidade.
Como fazer essa medição? Como avaliar esta respon sabilidade que nos une como famílias a um determinado arcabouço comunitário? Até onde vai esse compromisso?
Muitas vezes a liderança comunitária peca por omis são por não reclamar das famílias sócias um compromisso maior com a kehilá. A desculpa tende a se apoiar numa ideia falsa de que quanto menos for exigido das pessoas, mais pessoas se unirão à comunidade.
Não me parece uma boa ideia, considero-a até mes mo bastante pobre, pois pressupõe que não vale a pena
esperar mais de cada família, justamente quando o vir tuoso passa pelo contrário, já que no próprio pedido de um compromisso maior se revela a confiança dos diri gentes no potencial crescimento das famílias em termos comunitários.
As demandas não devem ser unilaterais. Uma comu nidade que funciona bem não é aquela na qual somen te seus membros exigem da comunidade certos padrões, certas práticas e atividades de determinado nível e sentido, mas é aquela que, além disso, deve também consti tuir uma fonte de demandas, justamente porque confia em seus membros e busca deles essencialmente a mesma coi sa: certos padrões, certas práticas e atividades de determi nado nível e sentido...
Além da dimensão administrativa
Já de cara poderíamos sugerir que, salvo exceções, a en trada de uma família nova na comunidade está quase ex clusivamente ligada a um ato meramente administrativo.
Uma ficha é preenchida com dados, é definida uma contribuição social e a forma de pagamento e a família será incluída entre os assinantes do sistema informativo comunitário, via e-mail, website, impresso, telefonemas ou o meio que for.
Detalhe da sinagoga de Córdoba, Argentina.
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Nada disso é demais. E naturalmente é imprescindível, porém atrevo-me a afir mar que não basta. Porque mesmo que implicitamente o fato de se tornar sócio de determinada kehilá possa indicar que a nova família concorda com seus princí pios gerais, não é frequente explicitar os referidos princípios e, quando isso é fei to, estes costumam ser tão amplos que acabam por não dizer mais do que be las palavras...
Do diagnóstico à proposta
Com esses dados na pasta, lá pelo ano 2003 e em colaboração com Clau dio Epelman (naquela época diretor exe cutivo da Comunidade Judaica de Cór doba e, desde 2006, na direção executi va do Congresso Judaico Latino-Americano), nos vimos diante do desafio.
Mesmo que implicitamente o fato de se tornar sócio de determinada kehilá possa indicar que a nova família concorda com seus princípios gerais, não é frequente explicitar os referidos princípios e, quando isso é feito, estes costumam ser tão amplos que acabam por não dizer mais do que belas palavras...
no judeu é recebido formalmente como membro de “Klal Israel”, da comunida de hebraica.
Na tradição do nosso povo, vale lembrar que um brit (pacto) conta também com o caráter de “neder” (uma promes sa religiosa), na qual não somente a pala vra é empenhada, mas fundamentalmen te a ação sustenta nos fatos essa palavra empenhada.
E caso isso seja pouco, todo pacto que se preza tem necessariamente associado a ele um conteúdo dual.
Sobre estes fundamentos essenciais, criamos o “Brit HaKehilá”, o “Pacto da Comunidade”, um pacto que reflete em termos concretos que a família e a comu nidade se constituem como espelho uma da outra, evidenciando que o que acon tece em um de seus polos, inevitavelmente se verá refleti do no outro.
Queríamos criar um dispositivo que permitisse ao mesmo tempo modificar estes três fenômenos já descritos e tão repetidos na vida das comunidades judaicas, a saber:
1 – a falta de instrumentos de avaliação do trabalho comunitário
2 – a ausência de solicitações claras e específicas em re lação ao que a kehilá espera de cada família
3 – a forma exclusivamente administrativa em que se dá a associação à comunidade.
A ideia, confesso, não foi inovadora, já que é uma das ideias fundadoras do nosso povo. Contudo, talvez o seu desenvolvimento o seja. Trata-se do “Brit HaKehilá”, do “Pacto Comunitário”.
Um brit para todos
Não é preciso se assustar, nem se esconder. Não é um “brit milá” generalizado…
Porém é um “brit”, visto que um “pacto” ou um “brit” é o que origina uma identidade específica. Por isso, assim como o povo de Israel surgiu como tal ao pé do Monte Sinai quando aceitou o pacto da lei, simbolizado na en trega da Torá, é também a partir do brit (neste caso do “brit milá” que é o “pacto da circuncisão”), que um meni
A ideia também visava mudar o paradigma de associa ção, já que paralelamente ao ato administrativo, na verda de previamente a ele, o interesse familiar de fazer parte da kehilá se vê cristalizado na assinatura de um compromisso claro e completamente explícito.
Este “Brit HaKehilá”, após várias consultas a diversos dirigentes e umas tantas idas e vindas de conversas com pessoas-chave da comunidade, teve o potencial para se tornar em si mesmo a melhor plataforma de avaliação comu nitária e familiar.
A elaboração
A leitura completa do mesmo permite ter uma ideia exata do que significa. Entretanto, é conveniente desmem brar o processo através do qual nos demos a luz.
Com o Talmud à mão, lembramos que, segundo Pi rkei Avot, em Tratado dos Princípios, o mundo inteiro se sustenta tão somente sobre três pilares: o estudo (Torá), o desenvolvimento espiritual (Avodá) e a prática das boas ações (Guemilut Chassidim). Não foi muito complicado perceber que provavelmente toda kehilá que se preza en contrará nestes três pilares uma espécie de guia abrangente de todo o seu trabalho. O Centro União Israelita de Cór
3 O documento do “Pacto Comunitário”, que deve ser assinado por cada família e depois é inserido no Livro da Comunidade.
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doba não seria a exceção à regra. Mesmo assim, e de alguma forma isto já foi suge rido por nós anteriormente, talvez a mis são esteja clara, porém, para que seja pos sível avaliar se ela está sendo alcançada, é necessário tornar o seu desenvolvimento mais concreto.
Assim, começamos a considerar quais eram os valores e conceitos centrais que englobavam cada um desses três pilares, de forma tal que eles fossem se tornando mais visíveis. E se tomarmos como exem plo o pilar da Torá, que no sentido amplo implica tudo que cerca o desenvolvimen to intelectual, vimos que era possível subdividir em educação formal para crianças e jovens, educação para adultos, aprendizagem de idiomas etc. Claro que todos esses pontos já faziam parte do traba lho comunitário, mas era preciso explicitá-lo.
Acreditamos que o Pacto Comunitário é uma boa opção para muitas comunidades judaicas. É uma ferramenta adequada para o planejamento do trabalho comunitário, sua avaliação, geração de compromissos claros para os dirigentes e os sócios.
cada família considerar durante os dez dias que precedem Iom Kipur, solici tando que o assinassem se concordassem com seu conteúdo.
A data não foi escolhida por acaso, já que esses são os dias do “cheshbón ha nefesh”, do “balanço espiritual”. E, ape sar desse balanço ter sido pensado para se estar voltado para o passado, acrescentar como parte dessa avaliação pensar sobre os compromissos para o futuro foi uma proposta muito boa. Naquele Iom Kipur centenas de famílias incluíram seus pactos assinados no Sefer da Kehilá, o Livro da Comunidade, especialmente elaborado para essa finalidade, inaugurando assim um costume que se propagou no tempo e perdura até hoje.
Escolhemos fazê-lo testemunhando o valor apontado e acrescentando uma fonte judaica que sustentasse o refe rido valor, como introdução a cada um dos compromissos que fariam parte do “Brit HaKehilá”.
No caso do segundo ponto do Pacto Comunitário, e apenas a título de exemplo, o resultado foi o seguinte:
“... nele medita dia e noite...” (Josué 1:8)
O estudo como prática permanente é um valor que sus tentamos há mais de 3.000 anos.
Como família, nos comprometemos a participar de pelo menos uma das diversas propostas de estudo judaico e como Centro União Israelita nos comprometemos a organizar dife rentes propostas de estudo.
Este esquema se repetiria para cada um dos onze pon tos que constituíram em 2003 a primeira proposta do Brit HaKehilá. Fica claro aqui com o que a comunidade se compromete e com o que a família se compromete.
E depois de uma lida integral do Pacto Comunitário, começa a ficar muito mais simples analisar se o trabalho da kehilá está sendo bem realizado e o mesmo se aplica aos compromissos assumidos por cada família.
Um novo ritual
Em Rosh Hashaná de 5764 (2003) propusemos (e de fato distribuímos) o primeiro Pacto Comunitário para
Ano após ano, foi se tornando um novo costume co munitário ao começo de cada ano novo. É que nos parece que um bom começo é concordar justamente com a ideia de entender a vida judaica em função de um brit, de um pacto. É precisamente nesse sentido que este pacto apenas afirma e reafirma o trabalho sagrado compartilhado entre a família e a comunidade.
Renovando compromissos
A ideia de renovar anualmente este brit se concretiza com a firmeza aplicada para poder manter nossa palavra e ao mesmo tempo na capacidade de adequá-la constante mente ao nosso presente, sem perder a visão do passado.
Por isso, a duração anual do Brit HaKehilá está basea da no fato de os pactos que funcionam serem aqueles pas síveis de serem renovados com certa continuidade.
Foi assim que no ano seguinte e durante o mês an terior a Rosh Hashaná, o mês de Elul, que também é de preparação espiritual, propusemos à comunidade que su gerissem acréscimos ou modificações à primeira versão do Brit HaKehilá.
Os onze pontos originais foram com o tempo aumentando, ano após ano, e já se transformaram em 21, somen te com a participação das famílias que queriam acrescen tar compromissos, ou porque a mesma kehilá ia encon trando outras vertentes concretas para o desenvolvimen to do ser judeu.
3 A “Autoavaliação Familiar”, para ser debatida pelas famílias em suas casas.
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E a avaliação?
Nunca faltou. O Pacto Comunitário produziu como consequência a edição de um “Shnatón” (um anuário), cujo índice estava, e continua estando, baseado em cada um dos pontos do Brit HaKehilá.
Para ficar mais claro: depois de termos apresentado o Pacto no Rosh Hashaná 5764, no ano seguinte e parale lamente à distribuição do novo pacto do ano 5765, que acabava de começar, entregamos a cada família o Shnatón, que não era nem mais, nem menos do que a publicação detalhada do que a kehilá havia feito ou deixado de fazer em relação a cada ponto do Pacto.
Avaliar o trabalho comunitário passou a ser uma das atividades centrais da kehilá, e a intuição tinha passado a ser dispensável. Os compromissos estavam assumidos pre viamente e bastava somente informar o que havia sido fei to como consequência.
Ao mesmo tempo, no próprio anuário e no final do relatório comunitário, foi editada uma “Autoavaliação fa
miliar” para que na mesa das festas fosse debatido nas ca sas como haviam sido concretizados os compromissos que haviam sido assumidos no âmbito familiar.
Seguindo o exemplo do segundo ponto do pacto que já utilizamos, era classificado como “baixo, regular, bom, muito bom ou ótimo” aquilo que havia sido assinado no ponto em questão.
Em termos concretos: Como avaliam o compromisso fa miliar de participar de pelo menos uma das diversas propos tas de estudo judaico?
É assim que em todos e em cada um dos compromis sos existe uma forma direta e muito representativa de ava liá-los, também a partir do seio de cada família. O senti do é claro, como repetimos por escrito no final de cada avaliação:
Esperamos que esta autoavaliação tenha sido positiva, o que já por si só o é, por estimular esta conversa familiar. E mesmo quando não tenham sido cumpridos todos os compro missos, um novo ano, junto com o novo pacto comunitário que assinaremos, é a melhor motivação para continuar avan
O Anuário detalha o que a Comunidade fez e deixou de fazer com relação aos compromissos assumidos para o ano que finda.
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çando na construção compartilhada de uma Comunidade responsável.
E aqueles que não querem assinar?
A pergunta é importante. No caso das nossas famílias sócias, numa insti tuição de quase 100 anos, era impossí vel coagir todas as famílias a assinarem o Pacto quando já tinham muito tempo como membros da kehilá. Consequente mente não fizemos isso, mas, sim, suge rimos que todos o referendassem. E de fato quase todos o fizeram, exceto um par de famílias que não quiseram assinar, especialmente pela questão da doação de órgãos, mas naturalmente continuam fazendo parte da comunidade.
A ideia de renovar anualmente este brit se concretiza com a firmeza aplicada para poder manter nossa palavra e ao mesmo tempo na capacidade de adequá-la constantemente ao nosso presente, sem perder a visão do passado.
uma decisão fácil e que as idiossincrasias particulares da nossa comunidade tam bém não pesam a seu favor.
Fenômeno semelhante ocorreu com a questão da doação de órgãos, neste caso fundamentalmente devido à ignorância generalizada das famílias em relação a esta delicada questão.
A maioria acreditava se tratar de uma prática absolutamente proibida pela lei judaica, quando de fato é quase exata mente o oposto. Por isso escrevemos o compromisso de tal forma a assegurar que cada família “considerasse a doação de ór gãos como uma mitzvá”.
Um modelo “exportável”
Pois bem, toda família nova que se aproxima da kehilá não tem alternativa a não ser assinar o Pacto para ser con siderada sócia. Se não fosse assim, a proposta perderia o sentido, porque, tal como foi assinalado por nós, a kehilá tem também todo o direito de aceitar somente os sócios que concordarem com seus objetivos.
Dificuldades
Os pontos mais difíceis foram o da kashrut e o da doa ção de órgãos.
Ambos suscitaram muito debate e a redação final in clui parte desses debates.
No caso da comida kasher, o compromisso solicitado às famílias da kehilá é “considerarem uma incorporação pau latina” deste preceito. Não é um dado menor, já que se for considerado seriamente, aos olhos da kehilá basta para fa zer parte do Pacto.
Tentamos desta forma preservar a autonomia e a liber dade de decisão que sempre caracterizaram nosso povo, mas acompanhadas de uma análise séria de todos os temas, especialmente aqueles que estão contaminados com muitos preconceitos. Neste sentido, se a mitzvá da kashrut é considerada com seriedade, mas ao mesmo tempo não as sumida, também basta.
Preferiríamos que todas as famílias adotassem esta die ta judaica, porém também compreendemos que não é
Acreditamos que este Pacto Comunitário é uma boa opção para muitas comunidades judaicas do planeta. E naturalmente não tem que ser uma cópia no que tange ao seu conteúdo, tampouco à sua metodologia.
Não obstante, é um ferramenta que demonstrou ser adequada para o planejamento do trabalho comunitário, sua avaliação, geração de compromissos claros tanto para os dirigentes com para os sócios e também é uma espécie de boas-vindas especial na hora de inscrever novas famí lias na kehilá.
Existirão comunidades que poderão utilizar este dis positivo para criar sua própria agenda comunitária; outras poderão emular as virtudes deste brit para medir os “resul tados comunitários”, ou usarão algo semelhante para me dir o compromisso de cada família, e em outros lares, pas sará despercebido, ou será considerado pouco relevante.
Porém, em Córdoba, e há quase oito anos, o Brit HaKehilá é parte constitutiva da nossa comunidade. E isso também podemos assinar.
Marcelo Polakoff é rabino do Centro Unión Israelita de Cordoba, Argentina, e presidente da Assembleia Rabínica Latinoamericana do movimento Massorti (Conservador) para o período 2010-2012. Ra bino formado pelo Senior Educators Program da Universidade He braica de Jerusalém, é graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Belgrano (Buenos Aires) e Mestre em Estudos Ju daicos pelo Jewish Theological Seminar de Nova York.
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o rabino, o jumento e a pérola, ou como lidar com o o utro
Devemos promover o Bom Nome de Deus entre as nações. Mesmo que a lei permita uma coisa, deve-se ultrapassar a lei, sair da halachá e ir para a meta-halachá com o intuito de se obter algo maior, o respeito e a possibilidade de diálogo e coexistência com o Outro.
Nos últimos tempos ecoam notícias inquietantes oriundas de segmen tos da ortodoxia judaica. Nada mais ligado a discussões sobre uso ou não de determinados aparelhos no shabat, ou se, afinal, descobriu-se um porco ruminante em alguma ilha da Oceania. O tema agora é bem mais sério.
Um grupo de trezentos rabinos ortodoxos decretou, há alguns meses, que judeus não devem vender ou alugar imóveis para não-judeus na Terra de Isra el (leia-se, para cidadãos árabe-israelenses), pois isto representa uma violação aos preceitos da Torá.
Alguns rabinos ligados ao movimento dos colonos judeus na Autoridade Palestina invocam preceitos e tradições e alertam: o termo “homem” aplica-se apenas aos judeus. Não-judeus têm uma alma diferente, sub-humana. Portan to as leis referentes à proibição de assassinato não são aplicáveis aos não-judeus.
Grande festa nas hostes antissemitas, que, com estas posições, só reforçam a milenar acusação contra os judeus de misoginia, de ódio à espécie humana.
Os rabinos que lidam com imóveis foram desmentidos e atacados por ou tros rabinos tão ortodoxos quanto. Os racistas que usam solidéu representam minoria entre os judeus e recebem o repúdio que lhes é merecido por parte de setores expressivos da sociedade israelense.
Apesar disto, ficamos diante da pergunta: o que está acontecendo? De onde surge tanto racismo, tanta exclusão em nome da religião, em nome da fé?
7 Compete ao homem procurar o conheci mento de Deus ou seguir suas paixões e ten dências naturais e submergir na natureza e em seus instintos. Ilustração de Gustav Dore (1832-1883) sobre as muralhas de Jericó.
Poderíamos dizer que esta é uma pergunta retórica. Afinal, das mais dife rentes fés e religiões, em especial o cristianismo e o islamismo, emanam e ema naram, ao longo dos séculos, os mais atrozes crimes, as maiores exclusões, as maiores negações ao direito do Outro existir enquanto tal.
Francisco moreno carvalho
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O problema é que entre os judeus costuma-se proclamar que tal característica nos é estranha. Que o judaísmo é uma religião ética, que não converte ninguém à força, que respeita o direito à diferença. Neste sentido, os rabi nos ortodoxos que demonstram estas vergonhosas posições não só não representam o judaísmo, em termos numéri cos, mas são quase que sua antítese. Afinal, foi o judaísmo o primeiro sistema de pensamento a proclamar a unidade da espécie humana, oriunda de um mesmo pai primordial (Adão), criado à imagem e semelhança de um único Deus, universal, Deus de todos os homens.
Afinal, o que significa um grupo de rabinos que se ocu pam de negar direito de propriedade a não-judeus sobre partes da Terra de Israel, ou mesmo defenderam atitudes racistas diante dos crimes feitos em nome da religião, como as Cruzadas, o Santo Ofício, os homens-bomba do Ha mas e as atrocidades do Taleban e da teocracia xiita do Irã?
O problema é que, ao tentarmos relativizar estes gra ves fenômenos que ocorrem no mundo religioso judai co, incorremos no risco de jogarmos para debaixo do ta pete um sério problema. Se hoje não podemos mais falar em “judaísmo” como um único bloco monolítico, a pre
dominância institucional da versão ortodoxa do mesmo em Israel torna necessário que se entenda melhor quais os pontos de partida, quais as premissas que regem esta ver são do judaísmo no que diz respeito à sua relação com o mundo não judeu.
Um primeiro componente que temos que tratar aqui é, digamos, filosófico. Qual o status que o judaísmo rabínico confere à figura do não-judeu? Como resumo desta ques tão, temos posições extremas que se espelham em duas fi guras no pensamento judaico: Maimônides (Rambam) e Yehuda Halevi, ambos do século XII.
Para Maimônides, o “ser judeu” é meramente conse quência, função, da escolha de um indivíduo ou grupo em servir a Deus seguindo seus mandamentos que constam na Torá. Reafirmando o que já existia na tradição anterior, ju deu é todo aquele que nega a idolatria. Mais do que um povo escolhido, os judeus foram o povo que escolheu se guir a Deus na sua forma mais sublime, no cumprimento dos mandamentos da Torá.
Por isso, vemos ao longo de sua obra de legislação ra bínica uma série de decisões, que acabaram incorporadas ao universo da halachá, coerentes com este ponto de vista.
5 O que está acontecendo? De onde surge tanto racismo, tanta exclusão em nome da religião, em nome da fé? (Estátua de Caim no Jardim de Tuileries, Paris)
Sarah Bossert
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Por exemplo, a Mishná no tratado Bikurim (primícias) declara que um prosélito, alguém convertido ao judaísmo, ao ofer tar as primícias não deve dizer “Deus de meus pais” e em outras ocasiões deve di zer “Deus de teus pais” (Bikurim 1:4). O converso não tem genealogia física com os Patriarcas. Vem Maimônides e corrige a Mishná. Segundo ele, o converso deve dizer “Deus de meus pais”. Ao se conver ter, torna-se filho de Abraão e Sara. A fi liação aos Patriarcas não é sanguínea, ge nética. O homem é capaz de se recriar na história a cada dia.
Sendo assim, não há nenhuma diferença ontológica entre judeu e não-judeu. Ambos foram criados à imagem e seme lhança de Deus. Compete ao homem procurar o conhe cimento de Deus ou seguir suas paixões e tendências na turais e submergir na natureza e em seus instintos. Pode escolher servir a Deus pelo caminho da Torá, pode esco lher servi-Lo por outros caminhos, não tão sublimes na vi são de Maimônides, mas nem por isso dignos de repúdio.
Para Maimônides, não há nenhuma diferença ontológica entre judeu e não-judeu. Ambos foram criados à imagem e semelhança de Deus. Compete ao homem procurar o conhecimento de Deus ou seguir suas paixões e tendências naturais e submergir na natureza e em seus instintos.
Certas edições da Mishná trocaram o termo “homem” por “Israel”. Contudo, fica claro pelo contexto que a frase origi nal, a intenção primeira do texto, refere -se a homem como tal, sem qualquer co nexão com determinada religião ou gru po étnico. Portanto, era estabelecido no texto mais antigo a igualdade de todos os homens e esta era a concepção predomi nante no pensamento rabínico original e a que representa e encontra eco nas prin cipais correntes do judaísmo.
Em seu livro Cuzari, Yehuda Halevi envereda pelo ca minho oposto. O rei cázaro está ávido por interpretar o sonho que lhe diz “tuas intenções são certas, mas teus atos não” e para isso chama um cristão, um muçulmano, um filósofo e um judeu para descobrir do que se trata. Ao fim e ao cabo se interessa por converter-se ao judaísmo. Mas o representante do judaísmo, no livro, lhe diz: isto nunca será possível. Os judeus são intrinsecamente, ontologica mente, diferentes dos outros povos. Só aos judeus foi dado o dom da profecia, o dom de conhecer a Deus. Nenhu ma decisão ou ato humano podem mudar esta realidade.
As duas posições extremas sintetizam diferentes abor dagens a esta temática no pensamento judaico. Para talvez rastrearmos como se desenvolveram, qual a mais antiga ou a mais preponderante, devemos olhar para uma passagem na Mishná de Sanhedrin (Sanhedrin 4:5). Numa discussão sobre a pena de morte, se diz que quem mata uma pessoa é como se tivesse matado um mundo inteiro e quem sal va uma vida, é como se salvasse um mundo inteiro. Assas sinato nada mais é do que uma forma de genocídio. Fala também da singularidade, da riqueza intrínseca, que exis te em cada ser humano.
O segundo componente desta questão é o legal. O direito rabínico, como outros sistemas jurídicos da Antiguidade e do medievo, não comporta o conceito de di reito universal. Entre os gregos e romanos havia uma lei para os cidadãos e outra para os estrangeiros. Esta marca está presente também na halachá. Isto envolve questões bem concretas, de dia a dia. As leis de shabat não dizem respeito aos não-judeus. Também as leis de pureza e impureza sexual não lhes são aplicáveis. Mas uma sorte de leis deram muito o que falar entre os detratores do judaís mo, as que dizem respeito aos danos pecuniários e à devolução de algo perdido. A lei rabínica não obriga um judeu a devolver algo que um não-judeu perdeu. Como ambos são regidos por sistemas jurídicos distintos, não há a pos sibilidade de se aplicar leis pecuniárias comuns.
Mas aqui entra em cena uma história relatada no Tal mud Yerushalmi, tratado Bava Metziah 8: c. Refere-se a rabi Shimon ben Shetach, que viveu mais ou menos no sé culo I AEC. Figura importante no pensamento rabínico. Era nassi, presidente, do Sinédrio, a mais alta corte religio sa. Portanto, não estamos falando de um rabino qualquer, funcionário público ou dirigente de uma pequena yeshivá.
Certo dia, Shimon ben Shetach despachou seus discí pulos para que lhe comprassem um jumento. Eles encon tram um árabe (neste contexto, daquela época, “árabe” era o que vivia nas “aravot”, nos ermos; num significado pare cido ao termo latino paganus) de quem compram o tal ju mento. No caminho de volta, descobrem que no mesmo há uma pérola escondida, da qual o antigo dono não tinha conhecimento. Chegam então felizes a seu mestre e con tam o que aconteceu. Este lhes pergunta: o árabe sabia da existência da pérola? Os discípulos logo respondem “não”.
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E arrematam: mestre, não temos que devolver algo perdido por um não judeu. A pérola é sua segundo a lei.
Simon ben Shetach lhes repreende e responde: devolvam-lhe a pérola. Que ele diga: grande e justo é o Deus de Israel. Pois todas as pérolas do mundo não va lem o bom Nome de Deus.
O que se passa aqui não é uma ques tão de marketing, de ser “bom moci nho”. Mas sim um conceito profundo: Hilul Hashem, profanação do Nome de Deus. Devemos promover o Bom Nome de Deus entre as nações. Mesmo que a lei permita uma coisa, deve-se ultrapassar a lei, sair-se da halachá e ir-se para a meta -halachá com o intuito de se obter algo maior, o respeito e a possibilidade de diálogo e coexistência com o Outro.
Na Mishná, em Sanhedrin, era estabelecida a igualdade de todos os homens e esta era a concepção predominante no pensamento rabínico original e a que representa e encontra eco nas principais correntes do judaísmo.
sion. Nos seus dias o reino dos macabeus prosperava e os judeus tinham, também, seu exército.
Mas é de Yehuda Halevi, o mesmo que advogava a diferença ontológica entre ju deus e não-judeus, que nos vem uma per gunta crucial. Em determinado momen to, o rabino judeu dirige-se ao rei cáza ro e aponta como os judeus jamais ma taram pela sua fé, jamais oprimiram nin guém, não massacraram. O rei então res ponde: “Não fizeram pois não tinham o poder para tal. Se um dia tiverem, farão estas mesmas coisas”.
Alguns setores da ortodoxia em Israel acreditam que os tempos em que devíamos nos preocupar com a profanação do Nome de Deus já passaram. Seriam resquícios dos dias da Diáspora, quando os judeus viviam como minoria. Por acaso, Shimon ben Shetach era irmão da rainha Shlomt
E então, que resposta surgirá em nos sos dias? A de que se resgate os princípios éticos que nortearam gerações de sábios que preferiam o bom Nome de Deus à aplicação fria de regulamentos, ou daremos razão ao rei dos cázaros?
(Para Antônio de Gouveia Junior, companheiro de inter mináveis conversas, in memoriam )
Francisco Moreno Carvalho é médico e historiador.
7 Moisés quebra o primeiro conjunto de tábuas com os Dez Mandamentos (gravura de Julius Schnorr Von Carosfeld 1794-1872). 5 Estátua de sal da esposa de Lot, próxima ao Mar Morto.
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e ncorajando o questionamento: e ntrevista com o rabino l evi Kellman
Colocamos a palavra Deus também no feminino e rezamos pela paz misturando árabe e hebraico. São ideias radicais colocadas dentro de um contexto tradicional, o que faz sentido para os congregantes da Kol Haneshamá e para mim.
7 “A primeira aula é como preparar as ca deiras numa sala, é preciso pensar muito em como preparar o espaço porque isto tem uma importância enorme na mensagem que será passada”.
Orabino Levi Kellman, fundador da sinagoga Kol Haneshamá de Jeru salém, a primeira sinagoga Reformista de Israel, esteve no Brasil em novembro passado, liderando um seminário de estudos promovido pela seção latino-americana da World Union for Progressive Judaism – WUPJ, que reuniu mais de 30 rabinos de toda a região. Na ocasião ele con cedeu a seguinte entrevista para Devarim.
Devarim: O movimento reformista se caracteriza por uma abordagem racional do judaísmo e a Kol Haneshamá combina isto com uma prática ritual muito próxima aos primórdios do Chassidismo, com ênfase na expressão espontânea e na música introspectiva. Como o senhor explica isso?
Levi Kellman: Eu acredito mais em biografia do que em ideologia, desta forma a minha abordagem judaica foi formada pela família na qual fui cria do. Meu pai foi um rabino conservador, filho de um rabino ortodoxo. Minha mãe era filha de um rabino reformista e juntos eles nos ensinaram a amar e apreciar todos os caminhos judaicos. Era normal passar um shabat com nos sos parentes ortodoxos no Brooklin e o outro com nossos parentes reformis tas em Chicago ou em Long Island. Proporcionando aos seus filhos estas expe riências completamente diversas, meus pais nos transmitiram um profundo respeito por todas as expressões do judaísmo, de uma forma que quase não se encontra mais hoje em dia.
No entanto, eu não fui influenciado unicamente pela família. A intensida de dos anos 60 nos Estados Unidos – o movimento contra a guerra no Vietnã, a contracultura expressa no poder transformador da música e na espiritualida de, a grande suspeição contra a autoridade – tudo isto teve um papel muito im
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“Pode parecer para muitos que fazemos uma combinação esquisita de Reforma com Chassidismo, mas quem chega à nossa congregação vê que somos muito tradicionais, pois rezamos com muita kavaná.”
portante em minha visão de mundo. Eu tenho um grande amor pela música e um igualmente grande compromisso para com a transformação social. E como música e trans formação social são partes do judaísmo, fica claro que eu não inventei nada de novo.
Aliás, cada vez que eu imaginei ter achado algo novo e interessante na minha vida fora do judaísmo acabei descobrindo que aquilo também era judaico. O exem plo mais forte que eu experimentei sobre isso aconteceu com a ioga. Por muito tempo eu pratiquei ioga diaria mente. Eu meditava com o sidur ao lado e um dia o ven to soprou pela janela, virou as folhas e parou na brachá [benção] “Elohai, neshamá she natata bi tehorá hi” [meu Deus, a respiração1 que pusestes em mim é pura]. Eu ti nha 19 anos e achava que a respiração da ioga era uma coisa nova e maravilhosa e o sidur veio me dizer que ela é judaica também.
Pode parecer para muitos que fazemos uma combinação esquisita de Reforma com Chassidismo, mas quem chega à nossa congregação vê que somos muito tradicio nais, pois rezamos com muita kavaná [intenção]. No entanto, colocamos a palavra Deus também no feminino e rezamos pela paz misturando árabe e hebraico. São ideias radicais colocadas dentro de um contexto tradicional, o que faz sentido para os congregantes da Kol Haneshamá e para mim.
Devarim: Para conduzir os serviços religiosos no forma to da Kol Haneshamá é preciso que a congregação com partilhe do mesmo “comprimento de onda”. Como o se nhor faz isso?
Levi Kellman: Bem, duas coisas acontecem ao mes mo tempo. De um lado eu tenho uma personalidade for te e sou eu quem determina o que vamos fazer a cada mo mento. Ao mesmo tempo, tenho que ser muito sensível, escutar e sentir onde a congregação está e onde ela quer chegar. A tefilá [reza] é quase um diálogo entre a congregação e eu. E às vezes eu estou num clima e a congrega ção está noutro. Eu tenho que me ajustar ao momento, às vezes sou eu quem os puxa e às vezes são eles que me em purram. Posso entrar na sinagoga com muita vontade de cantar e dançar e achar a congregação mais introspectiva. Existem ocasiões nas quais consigo fazê-los entrar na mi nha e também acontece o contrário, ou, quem sabe, che gamos juntos a um meio termo.
A arquitetura da minha sinagoga ajuda muito este pro cesso. A bimá [palco a partir do qual se conduz os serviços religiosos] fica a poucos centímetros do solo e as pessoas se sentam em torno dela, o que permite que elas olhem umas para as outras, em vez de dirigir todos os olhares apenas para o palco. A primeira aula que eu dou aos estudantes de Rabinato [Kellman é professor no Hebrew Union College em Jerusalém] é como preparar as cadeiras numa sala. Não
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que haja uma forma certa e uma errada, mas é preciso pensar muito em como pre parar o espaço porque isto tem uma im portância enorme na mensagem que será passada. Depois de arrumar as cadeiras é necessário sair do prédio e entrar de novo para avaliar o que as pessoas sentem ao entrar no ambiente.
Eu acho que o que acontece na tefilá da Kol Haneshamá é a metáfora da rela ção muito especial que mantemos lá en tre o líder e a congregação. E eu acredi to que este tipo de relação funciona bem para todos os tipos de liderança. Eu acre dito que o líder que tenta levar a congregação onde ela não quer ir e não entende qual o seu momento e onde ela está situ ada vai falhar. Assim como um líder que se limita a escu tar sua congregação e apenas faz o que a congregação exi ge dele não é um líder verdadeiro.
O líder que tenta levar a congregação onde ela não quer ir e não entende qual o seu momento e onde ela está situada vai falhar. Assim como um líder que se limita a escutar sua congregação e apenas faz o que a congregação exige dele não é um líder verdadeiro.
tavam. Já com o meu outro avô, o rabino chassídico, todos vinham beijar sua mão. Isto não acontece mais hoje em dia, o que eu acho muito bom. Os anos 60 me deixaram com uma forte suspeição às figu ras autoritárias. Quero que cada um tome o controle de suas vidas e que cada um seja a sua própria figura autoritária. Meu papel como rabino não é dizer o que as pessoas devem fazer e sim ajudá-las, com orientação e ensinamento, a entender o que querem fazer. O que elas farão é uma decisão delas e não minha.
Devarim: A meditação é uma técnica oriental, desenvolvida a partir de uma mentalidade completamente diferente da judaica. Como é possível combinar judaísmo com meditação?
O mundo judaico está se movendo para fora do mode lo de sinagoga onde o rabino e a Torá ficavam lá em cima, distantes da congregação. Há hoje uma distância muito menor entre o rabino e a congregação. Quando meu avô, o rabino reformista, entrava num ambiente todos se levan
Levi Kellman: No passado houve uma forte tradição judaica de meditação, mas, principalmente após o ilumi nismo, o mundo judaico se tornou muito racional e a tra dição de meditação foi esquecida. Temos muitas evidên cias de meditação judaica, começando pelo Tanach [a Bí blia] onde o Salmo 65, verso 2, diz “lechá dumiá tehilá”
“Os anos 60 me deixaram com uma forte suspeição às figuras autoritárias. Quero que cada um tome o controle de suas vidas.”
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[para Vós silêncio é louvor], em outras palavras: ficar quieto é uma forma de reza. A Mishná [parte do Talmud] relata que cer tos rabinos esperavam até uma hora antes de estarem prontos para recitar a Amidá [parte central da reza judaica]. A Mishná não nos diz como eles faziam sua medi tação, mas é certo que temos uma tradi ção de mais de 1.500 anos na qual a regra não era de simplesmente recitar as pala vras da Amidá, mas de estar pronto para recitá-la, de fazê-la sair de uma região muito íntima e pro funda de seu ser. E temos também a Cabala, desenvolvida na Idade Média, que tem uma forte tradição na meditação.
Meu papel como rabino não é dizer o que as pessoas devem fazer e sim ajudá-las, com orientação e ensinamento, a entender o que querem fazer.
Devarim: Uma coisa que nos intriga é a distância do Chassidismo “original”, que lemos nos livros e que se parece com tudo o que o senhor falou até agora, e o de hoje, com sua centralidade extrema no ritual. O que aconteceu?
Todas estas tradições foram submersas, assim que parte do meu papel, e de outros professores, é trazer estas tra dições de novo para a superfície. Não há dúvida que pro fessores budistas tiveram uma grande influência no mun do judaico deste século. Há um intenso diálogo budista -judaico acontecendo neste momento. Por exemplo, Syl via Boorstein é uma judia praticante e escreveu um livro maravilhoso intitulado “Funny, you don´t look like a Bu dhist” [Engraçado, você não parece um budista] cujo sub título é “como ser um fiel judeu e um budista apaixona do”. Ela está envolvida no treinamento de rabinos e cha zanim [cantores litúrgicos] com o objetivo de aprofundar sua experiência espiritual.
É um fenômeno que está crescendo atualmente e que reflete os nossos tempos. Penso que na geração dos meus avós, onde os rabinos eram figuras autoritárias, muito fre quentemente eles negligenciavam sua vida espiritual. Eu me lembro de um professor daquela geração que dizia aos seus alunos que quando eles estavam liderando um serviço religioso eles não podiam rezar, pois sua função era liderar a reza e não rezar. E isto é exatamente o oposto do que eu penso. Para mim, se quem está liderando a reza não está rezando, ele está falhando completamente.
Algumas pessoas que vêm à sinagoga podem não ter o mesmo conhecimento judaico que os rabinos e chazanim, mas isto não significa que sejam menos sábias ou sensíveis. E estas pessoas, ao perceber que a reza não é importante para quem a está conduzindo, se dirão: “Se o líder não en contra significado na reza, como ela terá significado para mim?” É muito importante comunicar quão importante a reza é para você.
Levi Kellman: O que aconteceu é típico dos movimentos revolucionários que começam com uma mensagem muito cla ra, mas que já na terceira ou quarta gerações se dilui significativamente. Os fun dadores e as primeiras gerações do Chassidismo estavam cheios de paixão, mas como eram acusados de não serem suficientemente “tradicionais” foram se transformando e hoje são superaderentes ao ritual ortodoxo.
Devarim: O senhor acha que algo parecido pode aconte cer conosco, com a Reforma?
Levi Kellman: Este é um processo natural e, de uma certa forma, já temos isto. Existem “reformistas ortodo xos”, pessoas que ficam muito incomodadas se o serviço não tiver certas melodias ou até mesmo se não man tiver uma certa disposição das pessoas no espaço da sina goga. Eu não conheço a ARI, mas com certeza vocês têm isto por aqui.
E é por isto que é sempre vital achar formas de tra zer gente jovem, com seu espírito de rebelião e questiona mento. Isto é muito difícil e às vezes doloroso para a co munidade. A coisa natural para uma comunidade é lutar para se manter como é. Manter-se homogênea com pes soas que pensam da mesma forma. Mas ao mesmo tem po acredito que é muito importante trazer jovens famílias, que nos desafiem, que nos contestem, que não nos dei xem acomodados.
Falar é simples, mas fazer não é nada fácil. Porque as pessoas têm muito medo de danificar coisas que amam e respeitam profundamente. Desafios implicam sempre em perigo e é muito compreensível que haja resistência aos desafios. Mas ao mesmo tempo é também muito perigo so parar no tempo, empacar. O equilíbrio entre estes dois polos é uma dança muito complexa. Ninguém quer causar desconforto a pessoas que são membros da congregação há anos, muito pelo contrário todos sabem que eles merecem o máximo de carinho, respeito e consideração. Porém, se pensarmos apenas neles a congregação naufraga.
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“Nós inovamos há 25 anos, por que não podemos inovar hoje de novo?”
Nossa congregação tem apenas 25 anos e já temos esta luta. Temos pessoas que não querem mudar uma vírgu la do que introduzimos de forma revolucionária 25 anos atrás. Eu penso: nós inovamos há 25 anos, por que não po demos inovar hoje de novo? Porque esta é a verdade por trás das mudanças – tudo o que é statu quo hoje foi um dia revolucionário. Mas de alguma forma as pessoas realmen te sentem uma grande necessidade de manter o que existe e isto é muito perigoso.
Devarim: Uma questão sempre presente em todas as mu danças é a unidade do povo judeu, porque é evidente que apenas muito raramente todos caminharão no mesmo pas so ou até mesmo no mesmo caminho. Mas todos querem manter a unidade. O senhor poderia comentar sobre isto?
Levi Kellman: Muitas vezes a questão da unidade é usada por demagogos para matar dissensões e questiona mentos quanto a sua forma particular de agir. E penso que abafar a dissensão é oposto à essência judaica. Você percebe, já no Talmud, que uma das grandes forças do judaísmo é que ele encoraja o questionamento. E não há contradição alguma entre ser um só povo e manter um le que de opiniões divergentes, mesmo quando fortemente divergentes. E mesmo discordando da opinião do outro você pode entender que, ainda assim, ambas são a pala
vra do Deus que vive.
Este é um conceito muito profundo. Parte da essên cia judaica está no fato de que nós encorajamos o questio namento. Uma das minhas histórias favoritas do Talmud é a relação entre Rabbi Yochanan e Raish Lakish, que fo ram companheiros de estudos por muitos anos, até que Raish Lakish morre e Yochanan fica sozinho e desconso lado. Ele passa a estudar com seus alunos mais brilhantes, porém cada vez que ele emite uma opinião seus alunos se apressam a justificá-la, até que certo dia Rabbi Yochanan explode: quem precisa de vocês?! Certamente eu creio que minhas opiniões estão certas! Raish Lakish era meu companheiro de estudos justamente porque ele me desafiava constantemente apontando as falhas do meu pensamento. É para isto que serve um parceiro: para fazer você descobrir os teus erros e não para aplaudir os teus acertos.
E para mim a essência da unidade judaica é a habili dade de acolher diferentes pontos de vista. Mais uma vez isto parece simples, mas é na verdade muito difícil. No en tanto, este é um importante valor judaico: abrigar eterna mente a ideia que podemos estar errados.
Notas
1. Neshamá em hebraico significa tanto respiração como alma. É comum encontrar esta brachá traduzida como “meu Deus, a alma que pusestes em mim é pura”.
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a c abala, o c aso d rey F us e o caçador no F ilme b astardos i nglórios
Parceria Devarim-Hillel publica textos
A abordagem pluralista do judaísmo aproximou naturalmente a revista Devarim da ARI do Hillel Rio de Janeiro. O Hillel é uma organização presente em diversos países do mundo, que tem por objetivo incentivar e celebrar a identidade judaica dos jovens em idade universitária. Mas o Hillel é muito mais do que isto: a valorização da atividade intelectual, os debates e a vivência judaica marcam sua atuação em todo o mundo – e resultaram numa parceria pela qual, a partir deste número, a Devarim passará a contar em cada edição com um texto elaborado por um membro do Hillel.
Em 2009, Quentin Tarantino lança mais um de seus filmes: Inglou rius Basterds (Bastardos Inglórios) que gira em torno de um grupo de extermínio judeu que tem o intuito de amedrontar os nazistas. Este grupo chamado de Bastardos Inglórios é formado por oito ju deus que têm como objetivo “escalpelar cem nazistas ou morrer tentando” (Tarantino, 24min11s2009).
A ficção de Tarantino envereda por dois caminhos diferentes que se cru zam: de um lado, o grupo de extermínio judeu que busca aniquilar o maior número de nazistas possível e, do outro, Shoshana Dreyfus, única sobrevi vente de uma chacina executada pelos nazistas em terras francesas e que en contra uma possibilidade de vingança, tema muito trabalhado por Tarantino em suas obras, sobretudo em Kill Bill I (2003) e II (2004). Inúmeras inter pretações e relações podem ser traçadas a partir deste filme, entretanto foca rei neste artigo apenas no mito do Golem e no Caso Dreyfus, além de com parar o caçador de judeus que aparece no filme (Hans Landa) com o “caça dor de nazistas” (Simon Wiesenthal).
O Golem e a Cabala
O Golem designa algo imperfeito, uma matéria disforme. Antes do so pro de seu criador, não tinha vida e, mesmo após adquirir vida, continua sendo um ser desajeitado, idiota, autômato legendário, como vemos em de finições do vocábulo Golem.
No gueto de Praga, os judeus estavam sendo saqueados e mortos, e o ra bino Judá Loew (1529-1609), matemático, cabalista e talmudista, moldou
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em argila um grande boneco com forma humana. Escre veu na testa do boneco a palavra emet, que significa verda de. A partir de então, o boneco de argila tornou-se vivo e saiu do gueto para atacar os agressores dos judeus. Após re solver o problema, o Golem quer continuar vivo; porém, deve ser destruído, o que acontece somente se for apagada a primeira letra da palavra emet. Desaparecendo essa letra, forma-se a palavra met, que significa “morto” em hebrai co. Esse jogo com as letras e as palavras, bem como o po der da combinação de letras hebraicas, identificam a ideia da criação e seu caráter imperfeito, uma vez que o Golem é um monstro um pouco “idiota”, indicando que a mons truosa criatura construída pelo homem, que é incapaz de criar vida, torna-se um erro já em sua concepção.
A manipulação de letras e a relação com os números que podem criar e destruir mundos é uma das ideias cen trais da Cabala. A Cabala (recepção) é uma tradição eso térica do judaísmo, na qual todas as letras do alfabeto têm um valor numérico1 e sua combinação é capaz de criar e destruir.
A Cabala pode ser considerada, num contexto literário, como uma teoria da escrita e da interpretação, uma encar nação do desejo da diferença, em que interpretar signifi ca revisar e defender contra outras influências. De acordo com Harold Bloom, a lição que a Cabala pode dar à in
terpretação contemporânea é que o significado dos textos tardios é sempre errante, como os judeus.
Tarantino utiliza a possibilidade da existência de um Golem em seu personagem The Bear Jew (O Urso Judeu), representado pelo Sargento Donny Donowitz e interpretado pelo ator Eli Roth. Este personagem é central para a trama do filme: a crueldade dos bastardos com os nazistas come ça a se espalhar e um dos responsáveis por essa barbárie é o próprio Bear Jew. Com um taco de beisebol e um olhar profundo, talvez sem alma, o sargento Donny Donowitz “esmaga o cérebro dos nazistas”. A possível relação do The Bear Jew com o Golem é construída no diálogo de Hitler com o General Frank:
Adolf Hitler: Nein, nein, nein, nein, nein, nein! Quanto mais terei que aturar desses porcos judeus? Abatem meus ho mens feito moscas. Sabem o novo boato que espalharam para provocar pânico? Que golpeiam meus rapazes com um bastão. Que o homem a quem chamam de “Urso Judeu” é um Golem.
General Frank: Mein Fuhrer, isso é só mexerico de solda do. Ninguém acredita que o “Urso Judeu” seja um Golem.
Adolf Hitler: Por que não? Eles escapam de serem pegos como aparições. Eles aparecem e desaparecem quando querem. Vocês querem provar que eles são de carne e osso? Então tra gam-nos a mim! Vou pendurá-los nus, pelos calcanhares, na Torre Eiffel! E depois jogar os corpos deles nos esgotos para os
O cemitério judaico de Praga, onde está enterrado o Rabino Judá Loew, criador da lenda do Golem; por falta de espaço, as lápides foram sobre postas umas às outras.
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ratos de Paris se banquetearem (Tarantino, 24min14s, 2009).
Nesse trecho percebemos a presen ça de alguns conceitos relativos à Caba la e ao Golem. Mesmo sendo um conhe cimento místico, a menção da existência de um sargento que “golpeia feito mos ca” os nazistas e que “escapam de serem pegos como aparições” coloca em foco as crendices populares. Aqui o Golem de Ta rantino teria sido criado para espalhar o medo e o pavor dos carrascos judeus. Não tem o intuito de proteger, como sua con cepção cabalística, mas de exterminar o maior número de nazistas possível.
Além disso, assim como um Golem cabalístico, o Urso Judeu construído por Tarantino não tem questionamentos exis tenciais e nem é capaz de reflexões mais profundas. É um ser concebido para um propósito específico que, no caso do fil me, é matar e causar medo. O persona gem de Eli Roth encarna muito bem o papel de um “idio ta” muito forte e aterrorizador que vibra e entra em transe quando golpeia e esmaga o cérebro dos nazistas. Esse tran se também é muito bem retratado na cena final do filme em que ele despeja centenas de tiros na cabeça de Hitler quando o encontram no cinema durante a exibição do fil me de Goebbels.
Tarantino utiliza a possibilidade da existência de um Golem em seu personagem The Bear Jew (O Urso Judeu), representado pelo Sargento Donny Donowitz e interpretado por Eli Roth, personagem central para a trama do filme: a crueldade dos bastardos com os nazistas começa a se espalhar e um dos responsáveis por essa barbárie é o próprio Bear Jew.
Como visto, o processo de dar vida ao Golem inclui a necessidade de se es crever em sua testa a palavra emet (ver dade). A verdade colocada aqui pelo Te nente Aldo Raine é que uma vez nazista, nazista para sempre. A identificação de um nazista é necessária, é a verdade única. Por isso a marcação na testa dos nazis tas com a suástica, seu símbolo máximo.
O Caso Dreyfus
Outra relação que podemos construir do filme com o Golem é o fato do Tenente Aldo Raine, interpretado por Brad Pitt, marcar a testa dos nazistas que não são mortos com uma suástica:
Aldo Raine: Agora que sobreviveu à guerra o que fará quando chegar em casa?
Soldado Nazista: Vou abraçar minha mãe como nunca abracei.
Aldo Raine: Que lindo! Pergunte se ele vai tirar o uni forme.
Soldado Nazista: Vou tirá-lo e pretendo queimá-lo.
Aldo Raine: Foi o que pensamos. Não gostamos disso. Gos tamos de nazistas de uniformes para identificá-los. De ime diato. Mas se tiram o uniforme, ninguém saberá que são na zistas. E não gostamos nada disso. Então lhe darei uma coisa para não tirar mais (Tarantino, 36min40s, 2009).
Em 1984, Alfred Dreyfus, um oficial judeu do Estado-Maior francês foi acusa do e condenado por alta espionagem em favor da Alemanha. O caso repercutiu muito devido a inúmeras falhas no pro cesso e pelo fato de Alfred Dreyfus ser o único judeu com cargo de oficial do exér cito francês. O julgamento foi realizado a portas fechadas e o veredito, unânime, foi a deportação perpétua para a Ilha do Dia bo. Após diversas revisões e discussões, o processo tomou uma direção racista: de um lado os que estavam a favor da justiça e do outro, os que manifestavam abertamente seu antissemitismo e pregavam a mort aux juifs, independentemente da culpa ou inocência de Dreyfus. Dos partidá rios da justiça, o mais importante foi Emile Zola que es creveu o famoso “J’accuse”, carta endereçada ao presidente da República da França e que foi severamente punido sen do obrigado a se refugiar na Inglaterra para fugir da prisão.
A questão principal do Caso Dreyfus é bem descrita por Hannah Arendt:
“O caso do infeliz capitão Dreyfus havia mostrado ao mundo que, em cada judeu, mesmo o nobre e o multimilio nário, havia ainda algo do antigo pária que não tem nação, para quem os direitos humanos não existem e de quem a sociedade teria prazer de retirar os seus privilégios” (Arendt, 1975, p. 166).
“Os judeus em sua diáspora estavam ameaçados. Encontravam-se num processo grande de integração e durante o pro cesso falharam “por não enxergarem que se tratava de uma or ganizada luta política contra eles” (Arendt, 1975, p. 167). Nunca puderam compreender que o que estava em jogo no processo Dreyfus era muito mais que o simples status
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social, pois não se tratava de algo mais que um mero antis semitismo social. Começava aí o jogo de poder na Europa que culminaria com o extermínio em massa de judeus na 2ª Guerra Mundial.
Theodor Herzl, um dos fundadores do Sionismo, foi o jornalista de um jornal austro-húngaro responsável pela cobertura do processo e ficou abismado pela grande onda antissemita francesa que ocorreu durante o julgamento. A partir de suas reflexões e observações, Herzl se deu con ta de que nem a integração às culturas aparentemente “su periores” seria capaz de livrar os judeus da discriminação. Em 1895 escreve sua principal obra Der Judenstaat – Ver such Einer Modernen Lösung der Judenfrage (O Estado Ju deu – Uma Solução Moderna para a Questão Judaica), na qual discorre sobre a necessidade de uma reconstrução da soberania nacional dos judeus da diáspora em um Esta do próprio.
A questão que se coloca desde o caso Dreyfus até a criação do Sionismo é que mesmo os judeus estando inte grados a determinada cultura e país, mesmo a falta de conhecimento dos próprios judeus em relação às suas cren ças e religião, o fato de pertencer ou ter pertencido ao povo judeu ainda despertava a discriminação e o pre conceito. O fato de Alfred Dreyfus ter sido condenado por ser judeu mostra que o ideal de justiça naquela épo
ca não enquadrava os judeus, que se achavam erronea mente integrados na sociedade em que viviam. O Sionis mo foi concebido para que um Estado zelasse pelo bem -estar e segurança desse povo que viveu na diáspora por dois mil anos.
Gershom Scholem, em seu texto “Judeus e Alemães”, mostra as relações do povo judeu com a cultura alemã. En tre 1800 e 1900 os judeus assimilaram os valores alemães, foram entrando cada vez mais na sociedade do país onde viviam, julgando assim que o antissemitismo seria dissipa do. Até mesmo a “interminável exigência judaica de um lar transformou-se logo numa ilusão estática de estar em casa” (Scholem, 1994, p. 75). Sentiam-se confortáveis, se guros e em paz no país onde viviam. Porém, Scholem de monstra que tudo isso não passava de uma mera ilusão, que havia em significativa parte dos alemães uma repul sa e um ódio latente. Qual não foi a surpresa de muitos judeus totalmente integrados quando marchavam para a morte nos campos de extermínio, como foi o caso de Otto Lippman, de Hamburgo, “daqueles que até o momento do assassinato clamavam que eram melhores alemães do que aqueles que os estavam conduzindo à morte” (Scho lem, 1994, p. 75).
Em Bastardos Inglórios, Tarantino mostra em sua cena inicial o “caçador de judeus”, coronel Hans Landa, bri
Detalhe do relógio astronômico na cidade de Praga, República Checa.
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lhantemente interpretado por Christoph Waltz, à procura da família Dreyfus, judeus escondidos numa fazenda fran cesa. Todos, exceto Shoshana Dreyfus, foram fuzilados pe los nazistas. Shoshana foge e durante anos vive completa mente assimilada até adotando um nome francês: Emma nuelle Mimieux. Apesar de nutrir forte ódio aos nazistas, durante o período em que viveu como proprietária de um cinema, integrou-se à sociedade local.
A trama do filme se passa quando Shoshana é assedia da por um oficial nazista que propõe a estreia de um filme de Goebbels em seu cinema. Shoshana vê uma oportuni dade de se vingar dos nazistas pelo assassinato de sua fa mília e de pôr fim à guerra. Tarantino constrói assim sua versão de luta e vingança dos judeus, especialmente a vin gança de Shoshana Dreyfus.
A personagem de Melánie Laurent aceita que a estreia de um filme nazista, com a presença dos mais importan tes e poderosos nazistas, aconteça em seu cinema. Mesmo já assimilada à cultura francesa e se escondendo dos caça dores de judeus, Shoshana Dreyfus vê uma oportunidade de vingança contra aqueles que mataram seus pais. O caso Dreyfus é um caso de injustiça promovido pelo Es tado francês, mas também mostra a ingenuidade judaica que acreditava estar complemente inserida nos países que habitavam. Muitos desses judeus assimilavam a cultura e a língua das regiões que habitavam e julgavam que seus no vos países os protegeriam como cidadãos.
A versão de Tarantino retrata inicialmente a assimila ção de Shoshana Dreyfus à cultura francesa e, posterior mente, a possibilidade de vingança, a possibilidade de lu tar contra a hegemonia nazista. A concepção do Sionismo é a criação de um Estado forte que protegeria todos os ju deus do mundo, além de oferecer uma pátria para eles. O Sionismo é a luta para que pogroms, perseguições e genocídio não possam acontecer novamente. Tarantino elabo ra seu ‘Sionismo’ de forma sui generis a partir da criação
do grupo de extermínio Bastardos Inglórios e com a quei ma do cinema com todos os nazistas dentro.
Coronel Hans Landa e Simon Wiesenthal
Christoph Waltz assume o papel do “caçador de judeus” com extrema habilidade e complexidade. O Coronel Hans Landa é um nazista poliglota, educado, cruel, versa do em diferentes culturas e bastante político. Procura in cansavelmente judeus que se escondem e é o responsável pela segurança do cinema onde se pretende fazer a exibi ção do filme para o alto escalão nazista. Descobre o com plô dos Bastardos Inglórios para matar Hitler e, diante da impossibilidade de evitar o assassinato de todos os líderes nazistas, faz um acordo com o tenente Aldo Raine para as segurar sua aposentadoria e sua segurança. No fim do fil me, após acordo fechado com o governo aliado, o tenente Aldo Raine encarrega-se de confeccionar pessoalmente a suástica em sua testa, sendo sua masterpiece.
Podemos também construir uma relação especular no sentido borgiano com um dos sobreviventes do Holocaus to chamado Simon Wiesenthal, conhecido como o “caça dor de nazistas”. Inteligente, versado, ardiloso e comple xo, Simon Wiesenthal durante anos perseguiu e deu pis tas do paradeiro de nazistas. Um livro recentemente pu blicado nos Estados Unidos, Wiesenthal – The Life and Le gends, afirma que Wiesenthal prestava serviços para o Mos sad, fato que muitos desconfiavam, mas que ninguém era capaz de assegurar.
Simon Wiesenthal era um sobrevivente dos campos de extermínio. Segundo afirma Joseph Wechsberg, “ele próprio tinha sido caçado por nazistas e passara por mais de uma dúzia de campos de concentração, na sua pátria, a Po lônia, e na Áustria, sobrevivendo a uma série de milagres” (Wiesenthal, 1967, p. 9). Em 1945, após sua libertação, trabalhou como voluntário para o Exército norte-ameri
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cano, ajudando a caçar os criminosos de guerra na Áustria. Em 1947 instala-se em Linz e funda o Centro de Documentação que ajudava os judeus a descobrir o pa radeiro de parentes desaparecidos, come çando aí o processo de identificação de milhares de criminosos nazistas que ha viam fugido. Depois de um período fe chado, o Centro de Documentação rea bre em 1961 com o objetivo de caçar os nazistas para que seus crimes fossem jul gados antes da expiação das leis punitivas.
Assim é descrito por Joseph Wechs berg o temido “caçador de nazistas”:
A versão de Tarantino retrata inicialmente a assimilação de Shoshana Dreyfus à cultura francesa e, posteriormente, a possibilidade de vingança, a possibilidade de lutar contra a hegemonia nazista.
“Era bem o homem com quem eu falara no telefone, amis toso e animado, mas sem nada que pudesse lembrar alguém que devota as 24 horas de cada dia à descoberta de assassinos foragidos. Ele me disse que emergia de um campo de concen tração, ao fim da guerra, com menos de 48 quilos, parecen do um ‘esqueleto com pele sobre os ossos’. Seus olhos são pen sativos e, como pude ver depois, podem tornar-se penetrantes. [...] Wiesenthal parece um homem extremamente tranquilo, mas essa aparência calma dissimula uma tensão a custo dis ciplinada e emoções fortemente recalcadas. Há nele uma in quietação interior, que afeta todos os que o conhecem de perto. Tem sobre os ombros um imenso peso. Pode ser por vezes um ouvinte interessado e silencioso, mas quando começa a falar e se emociona – o que quase sempre acontece – sublinha as pa lavras com largos movimentos de seus longos braços e os seus olhos brilham como se possuíssem poder hipnótico.” (Wiesen thal, 1967, p. 11).
Podemos facilmente comparar esse perfil, construído por Wechsberg do “caçador de nazistas”, com o perfil cons truído por Tarantino em seu “caçador de judeus”. Hans Landa também aparentava certa calma e lucidez, gran de ironia, mas escondia grande força e determinação para cumprir seus deveres. A cena onde o coronel entrevista a conspiradora Bridget Von Hammersmark, interpretada por Diana Kruger, mostra muito bem a calma, inteligên cia, tranquilidade e súbita crueldade e determinação com que o coronel Hans Landa resolve o problema.
Simon Wiesenthal, assim como o personagem de Ta rantino Hans Landa, era um homem de extrema inteligência, “persuasivo, com uma lógica de ferro e a sabedoria tal múdica de seus antepassados. Uma vez, ele me disse que
um dos seus mais destacados perseguido res germânicos lhe confessara: ‘Você me enganou durante longo tempo, Wiesen thal, por me ter dado a impressão de que era inteiramente inofensivo’. Wiesenthal riu, explicando que sua aparência inofen siva foi extremamente útil à perseguição de criminosos de grande agressividade” (Wiesenthal, 1967, p. 11). Como o per sonagem de Tarantino, Wiesenthal utilizou de sua aparente calma, educação e inteligência para a perseguição de alguns nazistas.
Assim mostramos algumas relações presentes no filme de Tarantino com alguns fatos literários, históricos e caba lísticos. Desta forma tentamos construir, num plano mais metafórico e inter-referencial, algumas relações presentes na ficção, no cinema, na história e literatura.
Referências
Arendt, Hannah. Origens de totalitarismo. Anti-semitismo, instrumento de poder. Rio de Janeiro, Editora Documentário, 1975.
Bastardos Inglórios. Direção: Quentin Tarantino. São Paulo, Universal Pictures, 2009. 1 DVD (153min), son., color., legendado.
Bloom, Harold. Cabala e crítica. Rio de Janeiro, Imago, 1991.
Kill Bill Vol. 1 & 2. Direção Quentin Tarantino. São Paulo, Miramax Filmes, 2003 & 2004. 2 DVD (110min & 134min) son., color., legendado.
Deleuze, Giles. A imagem-tempo Cinema II. São Paulo, Editora Brasi liense, 1990.
Scholem, Gershom. A Cabala e seu simbolismo. São Paulo, Perspecti va, 1978.
Scholem, Gershom. O Golem, Benjamin, Buber e outros justos. São Pau lo, Perspectiva, 1994.
Scholem, Gershom. O nome de Deus, a teoria da linguagem e outros es tudos de Cabala mística. Judaica II. São Paulo, Perspectiva, 1999.
Sosnowski, Saul. Borges e a Cabala: a busca do verbo. São Paulo, Pers pectiva, 1991.
Wiesenthal, Simon; Wechsberg, Joseph. O caçador de nazistas. Rio de Janeiro, Bloch Editores, 1967.
Notas
1. Por exemplo, o alef (A) = 1, o bet (B) = 2, e assim por diante.
Jacques Fux é professor da PUC-MG, doutor em Literatura Com parada pela Universidade Federal de Minas Gerais e Docteur em langue, littérature et civilisation françaises pela Université Charles -de-Gaulle.
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Marcela Barsse
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u sinas de verdades
Épraticamente consensual que uma grande parte dos melhores docu mentários que se fazem hoje no mundo tem origem em Israel. Pode haver muitas razões para isso. Uma é completamente pragmática. O documentário, em geral, não entretém. Como cinema de resultado, está muito abaixo da ficção. De uma historieta perfeitamente idiota, por exem plo, pode-se esperar um bom desempenho de bilheteria, com resultados satis fatórios para o produtor. Não de um documentário. Seja ele investigativo, den so, instigante, de um documentário não se pode esperar resultados financeiros atraentes. Nem mesmo em casos especialíssimos como o do excelente Trabalho Interno, que acaba de ganhar o Oscar da categoria. O público responde ao entretenimento, não à informação.
Por isso, documentários são geralmente feitos no contexto de sociedades que têm algo a dizer, com recursos específicos – e de maneira irredutível a outras formas de expressão –, algo que não pode ser ficcionalizado e, ainda assim, tem que ser contado. Não é absurdo associar a qualidade da produção documental à necessidade que uma sociedade tem de se exprimir.
E o que a sociedade israelense tem a dizer é, para o bem ou para o mal, um manancial inesgotável. O que se passa num lar israelense tende a ser ligeiramente mais rico do que o que acontece na casa do Big Brother Brasil.
O israelense Tomer Heymann, por exemplo, tem muito o que dizer. Seu filme The Queen has no Crown, apresentado em fevereiro no Festival de Cine ma de Berlim, traça um pequeno painel do que muitos outros israelenses têm engasgado.
Documentários são geralmente feitos no contexto de sociedades que têm algo a dizer, com recursos específicos – e de maneira irredutível a outras formas de expressão –, algo que não pode ser ficcionalizado e, ainda assim, tem que ser contado.
nelson Hoineff
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cinema em movimento
Tomer fala de suas experiências mais profundas, mas faz isso como se estivesse contando o resultado de um jogo de futebol. Está falando dele, mas dialogando com cada espectador.
A questão central é o esfacelamento de sua família, que vive em Nathania. A rainha é sua mãe, uma sionista que ainda jovem foi para Israel – cujos filhos agora estão dei xando o lar para estudar nos EUA, trabalhar nos EUA, tentar outra vida nos EUA. Ela se divorciou do marido, também sionista convicto, depois de 33 anos de casada. Hoje ambos não se falam. O lar, que era cheio, esvazia -se a cada ano. Os jantares de Pessach, que outrora eram concorridos, agora têm cada vez menos participantes e são mais artificiais.
A alegria lá, como em muitas outras partes, é forjada. Não há verdade no que estão cantando. A verdade foi-se embora com a família. O documentário de Tomer é sobre essa família. Por que ela faz hoje o caminho inverso do so nho sionista? Por que a utopia já não a alcança?
Aos 39 anos, Tomer pertence a uma geração de docu mentaristas particularmente inovadores, corajosos e con troversos em Israel. É um ativista de muitas causas: a libe ração dos territórios ocupados e os direitos civis de comunidades de diferentes orientações sexuais.
O realizador é uma importante voz dos movimentos anti-homofobia em todo o mundo. Isso está expresso em alguns de seus filmes exibidos em outros anos em Ber lim: Paper Dolls (2004) e I Shot my Love (2010), entre eles.
Para Tomer, o ativismo e as relações familiares são partes da mesma questão.
O irmão gêmeo de Tomer tem o mesmo nome de seu namorado: Ben. É uma situação embaraçosa, um dos pe quenos problemas cotidianos com que tem que lidar. Ou tro irmão desafia permanentemente o próprio ofício de fa zer filmes, que considera uma coisa menor, uma ativida de inútil. Atira, particularmente, sobre o método utiliza do por seu irmão para fazer esse filme.
Pois seu método é o seguinte: por mais de dez anos, Tomer não largou nem por um segundo a sua câmera portátil. Documentou tudo o que acontecia ao seu redor. Os encontros e desencontros com a mãe e o pai, as partidas de seus irmãos para sempre, o encolhimento da família, a solidão de sua mãe, o seu flerte com Ben, depois o tórrido namoro – e finalmente a separação, inde sejada por ele.
E, no entanto, não é Tomer o foco de seu filme. Ou por outra: The Queen has no Crown fala do diretor o tem po todo, e na primeira pessoa. Mas está falando mesmo é sobre o mundo que está ao seu redor. Sobre o seu país. So bre os entraves à expressão de sua sexualidade e o papel de sua família para tornar isso mais fácil ou mais penoso. So bre paixões e razões para viver. Sobre a inserção de cada um no seu núcleo familiar.
Há um importante vetor político nas proposições de Tomer: discutir como o Estado de Israel está tratando a sua gente; pensar por que tantas famílias, descendentes
No documentário de Tomer Heymann, a família, o cotidiano, as paixões e as razões para viver.
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de sionistas e sionistas elas próprias, têm deixado o país. O foco para isso está em sua mãe. Nesses dez anos ou mais, Tomer captou todas as suas reações à partida dos filhos, às suas revelações, aos jantares cada vez menos animados. A mãe subiu ao pal co com ele na primeira exibição do filme em Berlim.
O outro vetor está na maneira pela qual Tomer utiliza a câmera como um instrumento para surfar pela vida. Ele tem um papel político a cumprir, mas também uma experiência humanista a compartilhar. Na maior parte do seu fil me, Tomer parece profundamente feliz. Não se pode dizer a mesma coisa de mui tos outros personagens – e é fácil enten der porquê. A culpa e a intolerância estão por toda parte, mas não se pode imaginar que haja algu ma culpa a ser contabilizada pelo fato de Tomer viver bem a sua vida, a sua opção política, a sua orientação sexual.
O método do israelense Tomer Heymann é o seguinte: por mais de dez anos, não largou nem por um segundo a sua câmera portátil. Documentou tudo o que acontecia ao seu redor, os encontros e desencontros com a mãe e o pai, as partidas de seus irmãos para sempre, o seu flerte com Ben.
(na medida em que nada foi encenado e nem preparado como depoimento for mal); nada que não seja verdadeiro – ain da que seu irmão não ache isso e o classifique de “manipulativo, com essa camera zinha de merda”.
Não tenho certeza que seja uma came razinha de merda, mas estou seguro quan to aos limites da manipulação. Esse é um filme menos manipulativo do que um único acorde musical numa comédia ro mântica. Uma obra sobre emoção e per plexidade em estado bruto. Por isso, o do cumentário israelense tem sido tão rico, tão abrangente. Porque cada vez mais jo vens como Tomer encontram razões para pegar “uma camerazinha de merda” e sur preender todo mundo com duas horas repletas de verdades que todos precisavam ouvir – mesmo que algumas vezes não quisessem.
A contemporaneidade de The Queen has no Crown de riva dessa atitude. Não há nada no filme que não seja real
Nelson Hoineff é jornalista, crítico de cinema, produtor e diretor de cinema e televisão e sócio da ARI.
Não há nenhuma imagem no filme que não seja real, verdadeira.
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o despertador tocou
Derepente todo mundo, e todo o mundo, acorda com o barulho das manifestações de revolta e protesto, dos tiros dos tanques e das me tralhadoras rebeldes, das bombas lança das de aviões sobre alvos civis, no Orien te Médio e no norte da África. Mas o que hoje é, óbvia e ululantemente, aponta do, acusado, condenado, quase execu tado como violação de direitos humanos, prevalência do totalitarismo e da opres são como regime político, medievalismo como sistema cultural e social, ainda on tem era parte natural das estruturas inter nacionais contemporâneas, parceiras na configuração do mundo, sócias na explo ração e distribuição de riquezas, interlo cutores legais e aceitos, na visão, eivada de realpolitik, dos campeões da demo cracia, dos líderes mundiais, do Ociden te civilizado e progressista.
Enquanto se escrevem estas linhas, no fim da primeira quinzena de março, ainda não está claro aonde levará tudo isso, nem mesmo se levará à mesma coi sa em cada um dos lugares em que se exigem mudanças e em que algumas mudanças começam a acontecer. Não é provável que ao se lerem estas linhas haja maior clareza. O que sim está cla ro, e a percepção disso não devia ser tão repentina como está sendo para tan tos, é a natureza da estrutura política-so cial-cultural que alimentou a instabilidade e a efervescência daquela região como um dos focos constantes da instabilida de mundial, originadora e estimuladora de extremismos religiosos, da rejeição aos valores ocidentais, do conflito com Israel, do terrorismo.
O descontentamento, a frustração, a submissão de massas desprovidas de direitos e de dignidade podem facilmen te ser dirigidos a inimigos externos, se jam outras religiões, o Ocidente corrup to, o sionismo, os judeus, Israel. E foram. A ideia de um paraíso impossível na Terra
(direitos fundamentais, nível de vida, dig nidade) – impossível porque exigiria mu danças internas, inimaginável para os re gimes autoritários dominantes – é com pensada pela do paraíso divino, alcançá vel pelo ódio ao ‘outro’.
Parte do conflito com Israel (não todo) e da rejeição à convivência se alimenta dessa frustração. Daí a ideia, um pouco mas nem tanto fruto de wishful thinking, de que uma transformação democrática pode eliminar parte das motivações mais profundas dessa rejeição, e abrir uma me lhor perspectiva para uma convivência que se aproximaria cada vez mais da paz verdadeira. Porque a paz de Mubarak, e a de Hussein, embora honestas e cumpri doras de compromissos, ainda não são a paz verdadeira, ao menos na concepção de Rui Barbosa, que escreveu em Haia que a ‘paz verdadeira é a que emana do coração dos povos’.
É sob esse ângulo que as perspecti vas de uma ‘paz verdeira’, extensiva aos palestinos e a outros países da região, aumentam com a democracia. Porque quando de repente se fala na necessida de de que regimes democráticos subs tituam as autocracias republicanas, di tatoriais ou monárquicas que caracteri zam a região há décadas, não se está fa lando apenas do direito de depositar um voto numa urna de tanto em tanto tempo.
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Está-se falando da liberdade real de es colha, da liberdade de se inserir no mun do moderno, civilizado e progressista, do livre acesso à informação, do direito ao diálogo e à participação...
O que torna a convivência e a partilha de concessões mútuas infinitamente pre feríveis ao conflito é o que se arrisca per der no conflito e na guerra depois da con quista de tantos direitos, depois de ga nhar um passaporte para um futuro me lhor. Shimon Peres cansou de dizer (sen do chamado por isso de ingênuo utopis ta) que o melhor caminho para uma paz ‘verdadeira’ seria o progresso econômico e social dos palestinos.
Contanto que o vazio da transição não seja ocupado pelos fundamentalistas, re ligiosos, políticos oportunistas, chauvinis tas. Este é o grande perigo. E maior ainda o perigo de que, mesmo que isso aconte ça, todo mundo e todo o mundo adorme ça de novo, conivente – realpolitik – com o ‘caminho próprio’ da África do norte e do Oriente Médio. Ajustando seu desper tador para um dia, tarde demais, no qual fundamentalistas, chauvinistas, terroris tas façam realmente, ou tentem fazer, o que já hoje pregam como seu objetivo. Como fez Hitler, como fez Pol Pot, como fizeram certos líderes tribais africanos, como tenta fazer Ahmadinejad, o Hizbo lah, o Hamas, como se desenha que Cha vez quer fazer. Crônica anunciada. Tudo previsível. O despertador que agora está tocando não deve ser desligado jamais.
O fundamentalismo religioso, o extre mismo político, o chauvinismo alimentam -se da insatisfação dirigida ao ‘outro’. Os terroristas prometem um paraíso facil mente acessível, a partir de uma missão “divina”. Mas se o mundo terreno for me lhor, mais equitativo e justo, se se tiver o que perder com o conflito e a guerra, isso poderá ser fator mais preponderante do que a promessa de um paraíso como prê mio pelo ódio.
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p aulo g eiger cócegas no raciocínio