Revista Lume - Edição 45 - Fevereiro/2021

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lume Mato Grosso

Revista nº. 45 • Ano 7 • Fevereiro/2021

Artistas do Cerrado

Exposição de Artes Visuais em Chapada dos Guimarães. Pag. 22

DOENÇAS CONTAGIOSAS AO ALCANCE DE TODOS SANTOS RECEBE “CARGA” DE NOIVAS JAPONESAS EM 1959 PEABIRÚ, O CAMINHO INCA PERDIDO NO TEMPO CEL IPORAN, O HERÓI ESQUECIDO A MÚSICA HALLELUJAH, DE LEONARDO COHEN AMERICANIDADE - AUGUSTO DOS ANJOS

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PREPARAÇÃO DE ALIMENTOS EM FESTA DE SANTO, EM SANTO ANTÔNIO DE LEVERGER. FOTO: JOÃO CARLOS VICENTE FERREIRA



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C A RTA D O E D I TO R

JOÃO CARLOS VICENTE FERREIRA Editor Geral

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esde o surgimento da revista impressa no Brasil em 1812, essa mídia tradicional sofreu diversas transformações ao longo do tempo. Com o advento da internet, as mudanças foram ainda mais drásticas: surgiu uma necessidade de se acessar as notícias de forma imediata, fazendo com que as revistas que permaneciam somente no meio impresso ficassem para trás. Para se adaptar aos moldes dos dias atuais, os veículos procuraram se reinventar ao criar setores para publicar conteúdo na internet, assim expandindo a marca para atingir mais pessoas. Questionados, alguns jornalistas se pronunciaram sobre esse assunto. Marcos Coronato, editor executivo da revista Época, relatou a preocupação do veículo em fazer com que as matérias do site tenham o maior “ciclo de vida” possível, exaltando a figura do editor que proporciona um olhar mais experiente e pode tornar a publicação mais interessante para dessa forma atrair mais leitores. Na revista Veja a situação é bem parecida. Daniel Bergamasco, editor online, revelou que há alguns anos o veículo investiu na plataforma online, e isso permitiu algumas mudanças na redação: intercâmbio entre editores e união dos jornalistas, deixaram de existir papéis definidos. Daniel acredita que a versão online ainda não conseguiu se igualar a edição impres-

sa quando se trata de impacto, na medida em que as revistas causam um efeito nostálgico e forte ao se abrir, por exemplo, uma foto que ocupa uma página inteira. É algo que captura a atenção do leitor de uma maneira que os sites não conseguem fazer. A revista impressa é desenvolvida considerando que o leitor terá um tempo maior dedicado ao texto, desta forma a produção de conteúdo é mais aprofundada. Entretanto, as chamadas “pautas quentes” podem não resistir até o final de semana (quando a revista é veiculada), valorizando a necessidade do site. Giovana Romani, editora sênior da revista Glamour, acredita na exclusividade da revista impressa, já que existe uma curadoria limitada para a veiculação. A principal diferença apontada por Giovana está na questão do título, o online exige “sujeito, predicado, ação e informação relevante”, em contrapartida a revista é mais fluida. Para mim não ocorrerá o fim da revista impressa, mas sim uma depuração daquilo que temos em nosso mercado, tanto no Estado, quanto no país afora. Os editores e jornalistas migrarão, em sua maioria, para sites. Ficarão os que tem proposta editorial que atinja os objetivos do leitor, especialmente daquele mais exigente e que busca qualidade. Estamos buscando encontrar o caminho certo para nossa LUME MATO GROSSO


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EXPEDIENTE

lume Mato Grosso

PESCUMA MORAIS Diretor de Expansão e de Projetos Especiais ELEONOR CRISTINA FERREIRA Diretora Comercial JOÃO CARLOS VICENTE FERREIRA Editor Geral MARIA RITA UEMURA Jornalista Responsável JOÃO GUILHERME O. V. FERREIRA Revisão ÁLEX VICENTE, AMÉRICO CORRÊA, ANA CAROLINA H. BRAGANÇA, ANDRÉIA KRUGER, ANNA MARIA RIBEIRO, BENEDITO PEDRO DORILEO, BRUNO HENRIQUE BRITO LOPES, CARLOS FERREIRA, CECÍLIA KAWALL, DIEGO DA SILVA BARROS, EDUARDO MAHON, ELIETH GRIPP, ENIEL GOCHETTE, EVELYN RIBEIRO, FELIPE DE ALBUQUERQUE, FRANCISCO E. DE BRITO JR., JOSANE SALLES, JUDI OLLI, JULIANA RODRIGUES, LIANE CARVALHO OLEQUES, LUCIENE CARVALHO, LUIZ CARLOS NEMETZ, MARIA CLARA BENGEMER, MILTON PEREIRA DE PINHO - GUAPO, RAFAEL LIRA, RAFAEL M. ALMEIDA, ROSE DOMINGUES, RUTH ALBERNAZ, THAYS OLIVEIRA SILVA, VALÉRIA CARVALHO, WLADIMIR TADEU BAPTISTA SOARES, YAN CARLOS NOGUEIRA Colaboradores ANDREY ROMEU, ANTÔNIO CARLOS FERREIRA (BANAVITA), CECÍLIA KAWALL, CHICO VALDINEI, EDUARDO ANDRADE,

HEITOR MAGNO, HENRIQUE SANTIAN, JOSÉ MEDEIROS, CORRÊA, JÚLIO ROCHA, LAÉRCIO MIRANDA, LUIS ALVES, LUIS GOMES, RAI REIS, MAIKE BUENO, MARCOS BERGAMASCO, MARCOS LOPES, MÁRIO FRIEDLANDER, MOISÉS INÁCIO DE SOUZA, SAMUEL MELIN Fotos OS ARTIGOS ASSINADOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES. LUME - MATO GROSSO é uma publicação mensal da EDITORA MEMÓRIA BRASILEIRA Distribuição Exclusiva no Brasil RUA PROFESSORA AMÉLIA MUNIZ, 107, CIDADE ALTA, CUIABÁ, MT, 78.030-445 (65) 3054-1847 | 36371774 99284-0228 | 9925-8248 Contato WWW.FACEBOOK.COM/REVISTALUMEMT Lume-line REVISTALUMEMT@GMAIL.COM Cartas, matérias e sugestões de pauta MEMORIABRASILEIRA13@GMAIL.COM Para anunciar ROSELI MENDES CARNAÍBA Projeto Gráfico/Diagramação EXPOSIÇÃO DE ARTES VISUAIS “ARTISTAS DO CERRADO” FOTO: ROSELI MENDES CARNAÍBA Capa


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SUMÁRIO

12.

PARA QUANDO VOCÊ FOR

50. LITERATURA

14. SOCIEDADE

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54. LITERATURA

60. 58. 66.

LITERATURA

RETRATO EM PRETO E BRANCO

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SAÚDE

Doenças Contagiosas ao Alcance de Todos

Conversamos com o médico e escritor Ivens Cuiabano Scaff sobre doenças contagiosas, lobby da indústria farmacêutica e literatura

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O SENHOR É MÉDICO E LECIONA INFECTOLOGIA EM UMA UNIVERSIDADE DE MATO GROSSO. COMO SE DEU O INTERESSE POR ESSA ÁREA DA CIÊNCIA QUE ABORDA DOENÇAS INFECIOSAS E PARASITÁRIAS? »»No meu tempo de faculdade, formei-me na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a matéria relacionada a infectologia se chamava Medicina Tropical e era focada em saúde pública, doenças endêmicas como Esquistossomose e Doença de Chagas e não havíamos experimentado os avanços na área de estatística, epidemiologia e informática e no conhecimento sobre os anti-

bióticos. Meus interesses na época eram Clinica Médica, Gastroenterologia e Endoscopia digestiva. Ao retornar a Cuiabá em 1976 os hospitais estavam repletos de casos de malária vindos do norte de Mato Grosso, fui então me aproximando da área da infectologia. Com o início da epidemia da AIDs na década de 1980, o atendimento no setor público aos pacientes HIV-soropositivos com o acompanhamento de alunos passou a ser minha principal atividade. O SENHOR ACREDITA QUE APARELHOS DE GINÁSTICA TODOS SUADOS TRANSMITEM DOENÇAS? E CORRIMÃO, MAÇANETA,

BARRAS DE SEGURANÇA DE ÔNIBUS, UTILIZADAS POR PASSAGEIROS? É PARANÓIA OU EXISTE FUNDAMENTO NESSE TEMOR? »»Não é paranóia. As mãos podem auxiliar na transmissão tanto de doenças que se transmitem por contato como por via aérea. Assim a Influenza (gripe clássica) como a H1N1 transmitidas por aerossóis também são veiculadas por contato com mãos contaminadas. Afecções intestinais sejam por vírus(rotavirus) como por bactérias(salmonelas) ou por mãos contaminadas por toxinas(toxinas estafilocócicas). As mãos também são importantíssimas na veiculação de bactérias (ás vezes multi-resistentes aos antibió

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SAÚDE

»»ticos) nas infecções hospitalares. Entre as doenças sexualmente transmissíveis a sífilis na sua forma secundária(cutânea) e mesmo o HPV podem, mesmo que raramente, ser veiculadas pelas mãos. Lavar as mãos frequentemente com sabão comum (não existe vantagem em que seja anti-bacteriano) e/ou usar o álcool em gel podem fazer a diferença. QUAIS SÃO AS MAIORES INCIDÊNCIAS DE DOENÇAS CONTAGIOSAS EM MATO GROSSO? QUAL É A PORTA DE ENTRADA PARA ESSE TIPO DE CONTÁGIO? »»A tuberculose pulmonar que apresenta transmissão aérea e é bastante relacionada a baixa condição socioeconômica e ambientes

O MÉDICO E ESCRITOR IVENS SCAFF (AO CENTRO) DURANTE POSSE NA AML

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insalubres sejam favelas ou presídios. A vacina BCG e o descobrimento e tratamento precoce dos casos é a forma de enfrentamento.A hanseníase também é um problema importante em nosso estado. O contágio se dá pela convivência íntima e continua com os pacientes e o tratamento precoce é uma grande arma no combate a essa moléstia tanto individualmente como para barrar a disseminação. As viroses Dengue, ZiKa e H1N1 tem recentemente assolado o nosso estado. Já a Leptospirose, A Doença de Chagas e a Esquistossomose não tem entre nós a importância que tem em outras regiões do país.Continuam sendo diagnosticados novos casos de infecção pelo HIV ape-

sar de a informação sobre os modos de contágios estar em todas as mídias. Entre as viroses emergentes já foram identificados casos em Mato Grosso de Hantaviroses que são transmitidos através da urina de roedores (que vivem nas plantações muito próximas das residências) e que podem causar febre hemorrágica com acometimento pulmonar e renal. EXISTEM PROGRAMAS E/ OU POLÍTICAS PÚBLICAS DE GOVERNO QUE VISEM INIBIR EPIDEMIAS? CASO AFIRMATIVO, QUAIS SÃO? »»Temos vacinação em rede pública para hepatiteB, H1N1 e gripe clássica. Os bancos de sangue fazem triagem dos doadores para HIV, hepatites Be


O SENHOR É A FAVOR OU CONTRA A LIBERAÇÃO DA FOSFOETANOLA-MINA, DESENVOLVIDA POR PESQUISADORES DA USP? »»Uma substância passa por quatro fases antes de ser liberada como medicamento indicado para combater uma doença. Fase I: testagem em laboratório para avaliar a ação da resposta in vitro, fase II: aplicação da substância em pequenos grupos que não possuem a enfermidade com o objetivo de avaliar efeitos adversos, fase III: aplicação da substância em pequenos grupos de pacientes que apresentam a doença para aferir se os resultados in vitro se repetem in vivo, Fase III a aplicação da substância em grupos maiores de pessoas em vários países. Só após estes estudos mulicentricos a substância é liberada para uso. Mesmo assim a Talidomida foi liberada e em seguida proibida após se constatar que ela causava má formação nos fetos. Por outro lado o ácido Valpróico que tem o nome comercial de Depakeneseria capaz de eliminar o vírus HIV in vitro (fase I), já é usado em milhares de pacientes com disritmia cerebral sem grandes efeitos adversos (fase II), aguarda-se a fase III e a IV para ser usado como re-

médio para a cura definitiva da infecção pelo HIV. Quanto a Fosfoetanolamina os pesquisadores não cumpriram as etapas e estudos recentes mostram que ela falhou mesmo na fase I. O SENHOR ACREDITA QUE A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA FORMOU, AO LONGO DO SÉCULO PASSADO UM CARTEL DE LOBISTAS QUE SE INFILTROU EM TODOS OS SETORES DE NOSSA SOCIEDADE E CONTRUIU UM LABIRINTO DE MANIPULAÇÃO, ENGANO E CONTROLE , VISANDO TÃO SOMENTE GANHAR DINHEIRO COM AS DOENÇAS EM CURSO? »»Penso que uma descoberta de importância envolveria tantos pesquisadores que este segredo logo seria revelado, seria comprado por empresas concorrentes. QUAL É A OPINIÃO DO SENHOR SOBRE O FATO DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA, QUE FAZ MAIS DE UM TRILHÃO DE DÓLARES POR ANO COM A VENDA DE DROGAS PARA AS DOENÇAS ATUAIS, EM OBSTRUIR, SUPRIMIR E DESACREDITAR INFORMAÇÕES SOBRE A ERRADICAÇÃO DE DOENÇAS POR MEIOS NATURAIS? A CURA OU ERRADICAÇÃO DE UMA DOENÇA PODERIA LEVAR AO COLAPSO O MERCADO DESSA INDÚSTRIA? »»Por um lado temos os imensos interesses financei-

ros da indústria farmacêutica. Por outro a ingenuidade e desejo de acreditar em soluções mágicas frente a problemas de difícil solução que todos temos. Dos dois lados a ganância,a dos donos da indústria e dos espertos.

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C, Sífílis (que vem aumentando entre nós).Penso que temos falhado quanto a palestras nas escolas.

O SENHOR É UM ESCRITOR CONSAGRADO EM MATO GROSSO E NO BRASIL, ACREDITA QUE A LITERATURA PODE CONTRIBUIR PARA MELHORAR A VIDA E A SAÚDE DAS PESSOAS? PORQUE? »»As doenças muitas vezes foram temas da literatura. A peste que acometeu o exército grego como castigo de Apolo na Ilíada de Homero. A hidra de sete cabeças dos pântanos de Lerna como alegoria da malária. A relação de cuidador e doente no A morte de Ivan Ilich. O sanatório de tuberculosos da A montanha Mágica de Tomas Mann. De novo a tuberculose em A dama das caméliase Floradas na Serra.A meticulosa descrição de uma enxaqueca em Médico de Homens e de Almas, biografia de Lucas, médico e evangelista.A fantástica descrição de um ataque de sezão em Sarapalha de Guimarães Rosa,Os estudos de Susan Sontag e Elizabeth Kobler-Ross.Mas acho que o principal papel da literatura, além do prazer de se escrever e ler, é possibilitar o desenvolvimento do pensamento crítico... e criativo.

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PA R A Q UA N D O VOCE FOR

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CECÍLIA KAWALL Mora em Chapada dos Guimarães, é guia de ecoturismo e de aventura, empresária, fotógrafa e escreve para Lume MT.

Caverna Aroe Jari

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TEXTO E FOTOS CECÍLIA KAWALL

ora” dar uma volta por aqui novamente? Eu sei que muita gente tem aflição de fazer o passeio da Caverna Aroe Jari porque não gosta de ficar no escuro... mas posso garantir que desta vez você pode ir tranquilo, esta é a maior caverna de arenito do Brasil. Ela tem 1.500 metros de extensão e os salões tem muitos metros de altura e largura. Em nenhum momento do passeio você tem que se abaixar ou espremer dentro dela! E se quiser ficar só nas partes de fora as trilhas te oferecem tantas opções de cores e formações rochosas que é possível se deliciar no entorno mesmo. Tem cerrado, matas e veredas incríveis com todo seu esplendor e riqueza. Uma outra coisa muito legal é que não é só uma caverna não, hoje tem quatro cavernas abertas para visitação: Aroe Jari que é a maior e principal, a gruta da Lagoa Azul, a caverna Kiogo Brado e a Pobe Jari. Todas elas são na mesma área ,mas cada uma delas tem características muito diferentes entre si. Reserve um dia inteiro, vá sem pressa, aproveite todo percurso fazendo uma caminhada sem dificuldades ou opte pelo trator que passa por um mirante lindo de onde avistamos toda planície pantaneira, a cidade de Cuiabá ao longe e até o Ninho da Águia. De toda forma não deixe de visitar!

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SOCIEDADE

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A Prostituição Feminina e o Capitalismo

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urante toda a história da humanidade, as civilizações partilharam de uma determinada cultura. Tal cultura se manifestou na arte e até mesmo nas relações sociais entre

POR YAN CARLOS NOGUEIRA*

os povos. É nesse contexto que afirmamos que a prostituição esteve presente em muitas dessas tradições. Na Roma e na Grécia ela era fortemente ligada à mitologia, fazendo parte da vida cotidiana em so-

ciedade. Bom, trataremos o assunto de forma mais genérica, discorrendo sobre a prostituição feminina, uma vez que ela é a mais comum e a mais difundida nas sociedades desde os tempos antigos.

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SOCIEDADE

Você deve se questionar: a partir de que momento a prostituição toma as formas que ela tem atualmente, se há tantos anos ela era parte de uma determinada tradição, cultura e mitologia? É no seio do processo de formação do Estado burguês da sociedade capitalista que encontramos nossa resposta. Com o advento das revoluções burguesas ocorridas no século XVIII, as desigualdades se agravaram. Era, desde o surgimento do patriarcado, responsabilidade da mulher cuidar dos filhos e do lar doméstico. Entretanto, o

capitalismo do século XIX encontrou no patriarcado as bases materiais para a opressão da mulher na sociedade de classes. O surgimento da Questão Social na Europa Ocidental se tornou um importante fator para entender os vínculos gerados entre os homens e as mulheres. A consequência desastrosa da exploração do capital sobre a mulher resultou na maçante discrepância de salário e oportunidades em relação ao homem operário. O abandono de diversas mulheres na sociedade de classes ocasionou na situaALEXANDRA KOLLONTAI

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ção de miséria levando-as a prostituição dentro das cidades europeias. Fica claro, para nós, que este problema não é algo natural em que a mulher escolhe por simples e espontânea vontade, mas é um caminho que se pensa quando a renda e a oportunidade não se fazem mais presentes em suas vidas, ou, quando influenciadas por algum objetivo material imposto pela sociedade de classes, isto é, um benefício. É, de acordo com o que foi posto, que entendemos o malefício do caráter opressor do capitalismo. Com este fato, é certo dizer que a prostituição não é aceitável para uma nova ordem de um novo projeto de sociedade que penso, em meu particular, ser o comunismo. Para elucidar nossa compreensão recorremos a mulher membro do partido bolchevique e militante durante a Revolução Russa de 1917: Alexandra Kollontai. Segundo a teórica marxista: “A moral hipócrita da sociedade burguesa encoraja a prostituição pela estrutura de sua economia exploradora, enquanto ao mesmo tempo cobre impiedosamente de desprezo qualquer menina ou mulher que é forçada a tomar este caminho” (discurso para a terceira conferência de toda Rússia de líderes dos Departamentos Regionais das Mulheres, 1921). Neste sentido, dialogando sobre a prostituição feminina, que devemos nos per-


lumeMatoGrosso guntar: É a prostituição um trabalho?O que é a prostituição? E mais, é possível eliminar este mal dentro do status quo vigente de economia? Para nós, comunistas revolucionários, a prostituição não pode ser vista como profissão. A atividade funciona pelas regras máximas do neoliberalismo econômico, onde o mercado se regulamenta através da oferta, da demanda e da procura, neste caso, o mercado da venda de corpos. Além disso, há ainda um importante fator para combatermos a atividade. Segundo Kollontai, o homem que busca os serviços sexuais da mulher, que se encontra nesta condição, não a vê como um ser humano que tem direitos e necessidades, mas coloca-a como depende de seu dinheiro e de sua situação privilegiada economicamente. Esta relação mercantilizada fortalece a desigualdade entre homem e mulher, colocando

esta última em situação de violência física e psicológica, bem como certifica a ideia do corpo da mulher como propriedade privada. A base para o comunismo, além da abolição da propriedade privada dos meios de produção, é a união entre os trabalhadores. O sentimento de coletividade deve imperar entre nós. A prostituta é alguém que se afasta do trabalho coletivo por ser excluída do processo de trabalho nos modos de produção capitalista. Esse processo, no capitalismo, não visa a igualdade de salários e de condições entre os gêneros, ele exclui a participação política da mulher e dificulta seu acesso. A emancipação total da mulher não virá via um sistema que jamais vai visar sua necessidade de trabalhar como os homens. O capitalismo pode até provocar melhorias, mas jamais a libertação total da mulher.

Isso porque o sistema econômico em que vivemos foi planejado desde o princípio para que a mulher seja submissa, nas esferas domésticas ou do mercado de trabalho. Devemos lutar por uma sociedade igualitária, justa, onde todos estejam envolvidos para a coletividade das riquezas produzidas. Para nós, a moral burguesa, a família tradicional conservadora, a desigualdade entre os gêneros e a prostituição devem ser sumariamente eliminadas! Só assim caminharemos para a solidariedade, a justiça e a equidade social entre os trabalhadores. (*) Estudante do curso de Serviço Social da UFMT, comunista convicto, leitor impulsivo, militante do movimento LGBT. Divide seus estudos entre economia política do trabalho e as relações de gênero e sexualidade nas sociedades de classes.

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MEMÓRIA

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orto de Santos, quinta-feira, 23 de abril de 1959. O dia mal tinha amanhecido e o cais do porto santista já estava apinhado de gente. Dezenas de famílias estavam próximas ao armazém de bagagens aguardando a atracação do “América Maru”, que vinha de uma longa viagem, de 53 dias, desde Yokohama, na Terra do Sol Nascente. À bordo do navio nipônico vinha uma “carga” especial, que chamou a atenção do inspetor da Alfândega quando este, ainda no largo da barra, questionou o comandante a respeito do que estava sendo trazido ao Brasil. “Hanayome”, dissera o comandante exibindo um sorriso malicioso. O brasileiro conhecia o equivalente japonês para vários nomes de cargas, mas aquele lhe era novidade. É que “hanayome” significa “noivas”, e entre os trezentos e cinquenta passageiros da embarcação, vieram doze jovens “casadas por procuração” em sua terra natal justamente com jovens japoneses que aqui haviam desembarcado

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Santos Recebe “Carga” de Noivas Japonesas em 1959 POR SERGIO WILLIANS DOS REIS (*)

três anos para conhecer de perto as possibilidades de trabalho na agricultura ou em diferentes ocupações no comércio ou na indústria. Chegados como imigrantes, os moços haviam sido incorporados à Cooperativa Agrícola de Cotia e nela encontraram condições de trabalho e ganho que os autorizavam assumir, entre outras coisas, o compromisso sério do casamento. Desta forma, logo que o “América Maru” atracou e amarrou-se ao cais, lágrimas escorriam dos dois lados, dos olhos dos que estavam em terra e dos que vinham a bordo do navio. A notícia do desembarque inusitado logo percorreu o cais e despertou a curiosidade dos brasileiros. Muitos aventaram e até apostaram que testemunhariam a decepção dos homens nipônicos em terra, ao verem suas esposas, acreditando que o casamento fora às cegas. Ledo engano. Os rapazes, que estavam muito bem vestidos, sapatos lustrosos e cabelos alinhados, já conheciam suas mulheres e elas também os conheciam.

Assim, após o cumprimento de todo o protocolo de desembarque, às 11 horas, deu-se finalmente o encontro dos namorados. Mas quem imagina que eles correram um na direção do outro e ficaram rodopiando de maneira efusiva, imaginou errado. Não houve beijos, nem “chuva de arroz”, nem alianças, nem ao menos apertos de mão. O que houve foi apenas um cumprimento respeitoso de um aceno de mão e reverência. Porém, eles estavam no Brasil, onde algumas novas regrinhas poderiam ser incorporadas. Assim, à moda ocidental, as recém-casadas brindaram com taças de champanhe o encontro com os maridos e algumas autoridades que foram até Santos recebê-las, como o cônsul-geral do Japão, sr. Uyeno, o sr. Kiyomi Ohira, diretor-gerente da Cooperativa Agrícola de Cotia, o sr. Otávio Teixeira Mendes Sobrinho, diretor do Departamento de Imigração e Colonização no Estado de São Paulo, e o sr. Gilberto de Carvalho Pimentel, chefe da Inspetoria de Imigração em Santos.

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MEMÓRIA

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ESTUDANTE DO CIENTÍFICO »»Entre os jovens que aguardavam ansiosamente na beira do Cais de Santos estava o lavrador Sadatsugu Tamura, de 27 anos. Ele aguardava com expectativa a chegada de sua esposa Mitsuko Tamura, de 25 anos. Ambos haviam sido colegas de estudos em Saitama-ken. Concluído o curso equivalente ao científico no Brasil, Tamura partiu para estudar mecânica. Mas, não tendo melhores oportunidades no Japão, resolveu ir para Brasil, na qualidade de imigrante, para trabalhar em São José dos Campos numa fazenda da Cooperativa Agrícola de Cotia. Quando alcançou condições de unir-se em matrimônio com sua amada, enviou procuração para o casamento para poder trazer a sua Mitsuko. Tamura já tinha preparado tudo: móveis, casa e todos os pertences. Perguntando se ia casar no religioso, declarou: “Nós casaremos só no civil. Se o patrão quiser casaremos no religioso”. Ao seu lado estava Hideo Isezaki, de 24 anos, de Morro Grande, proximidades de Cotia. Falante, desconfiado, “arrastando” o português, estava à espera da sua esposa Shinoe, de 23 anos. Ambos nasceram em Kotchi-Ken e sempre trabalharam na lavoura. Suas famílias eram conhecidas e estavam certas de que haveria felicidade na união dos dois.

A VEDETA DO PORTO »»Entre as doze moças, havia uma que se destacava. Usando um chapéu elegante, ela chamou a atenção dos repórteres que cobriam aquele fato inusitado. A moça era Yumiko Nibino. Muito sorridente, ela empunhava uma máquina fotográfica e parecia ser a mais feliz de todas. Ao contrário de suas colegas, ela chegou a correr para encontrar-se com o marido, Katsuhiko Nibino, de 25 anos, lavrador do sítio Nishimoto, em São Roque. Yumiko tinha 21 anos, era filha de

lavradores e conheceu Nibino em Kin-Ken. Por sua alegria, Yumiko foi apelidada pelos fotógrafos e cinegrafistas como a vedeta do Porto de Santos. Era, sem sombra de dúvida, o par mais fotogênico do dia. CASAIS EM FESTA

»»Após deixarem a área do porto, os noivos e os convidados foram para o Hotel Ushio, que ficava na Rua Braz Cubas, onde estava instalada a sede do Atlanta Futebol Clube. Alí, no terraço do prédio, se reuniram os casais: Hideo e Shinoe, Katsuke e Mitiko, Shigue-


lumeMatoGrosso mitsu e Mitsuko, Shunzuke e Moyo, Kazuyoshi e Etsuko, Miyoko e Fugio, Eikiti e Junko, Ktsuji e Satoyo, Itio e Mariko e Katsuniko e Yumiko. Durante o almoço oferecido pela Colônia Japonesa de Santos, com direito a comidas típicas do Japão, como makizushi (folhas de algas marinhas com arroz enrolado, peixe em conserva, ovos); kombu (algas marinhas); camarão gigante; saladas à moda nipônica e sashimi (peixe cru em fatias), iniciou-se uma série de dis-

cursos, como os do cônsul Uyeno, do sr. Teixeira Mendes Sobrinho, do DIC e do sr. Kiyomi Ohira, diretor-gerente da Cooperativa Agrícola de Cotia. Depois do almoço as esposas recém-chegadas ao Brasil foram levadas a conhecer a cidade de Santos e à tardinha rumaram para São Paulo, de onde seguiram para os sítios onde seus maridos já estavam alocados. Nove ficaram em terras paulistas, dois foram para o Paraná e um para o Rio de Janeiro.

(*) Sergio Willians dos Reis é jornalista, escritor e pesquisador, é presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santos e diretor cultural da Sociedade Humanitária dos Empregados do Comércio. Também é membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

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R E P O RTAG E M ESPECIAL

O Cerrado Onde Nasci RUTH ALBERNAZ

Sem Título RAI REIS

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RUTH ALBERNAZ é artista visual interdisciplinar, bióloga, ilustradora e curadora independente de Arte.

Há Um Silêncio Sobre O Cerrado? “Nem tudo que é torto é errado. Veja as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado.” (Nicolas Behr)

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TEXTO RUTH ALBERNAZ

Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil, corresponde a 25% do seu território, na região central. Paisagem natural que se estende por 13 estados e se conecta com a Mata Atlântica, Amazônia, Caatinga e o Pantanal. É berço de pequenas águas e das nascentes dos grandes rios que formam as principais bacias hidrográficas brasileiras. Tem uma rica diversidade de unidades de paisagem como a vereda, mata de galeria, campo limpo, palmeirais, capão, campos rupestres e Cerradão. Possui a maior concentração de plantas medicinais por metro quadrado e rica diversidade animal com destaque para a riqueza de espécies de aves. No entanto, numerosas espécies de plantas e animais estão ameaçadas ou correm risco de ex-

FOTOS HENRIQUE SANTIAN

tinção. Estima-se que 20% das espécies nativas e endêmicas não são protegidas por nenhuma das áreas protegidas legais e pelo menos 339 espécies de animais que ocorrem no Cerrado estão ameaçadas de extinção (CEPF, 2017 p.33). O Cerrado é também uma paisagem cultural com centenas de comunidades tradicionais e locais. Atualmente, no bioma habitam povos indígenas, quilombolas, geraizeiros, ribeirinhos, retireiros do Araguaia, morroquianos, quebradeiras de côco e milhares de cidades. Em Mato Grosso, o maior continuum de Cerrado conservado encontra-se dentro do Parque Indígena do Xingu, paisagem manejada há milhares de anos, que após a diáspora imposta pelo Estado brasileiro (1961) é ocupado por 15 etnias.

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R E P O RTAG E M ESPECIAL

Cerrado Alado ÂNGELA GODINHO

Há um silêncio sobre o Cerrado brasileiro, assim o professor e pesquisador Carlos Eduardo Mazzetto começa seu livro “O Cerrado em Disputa”. Há muitos silêncios por parte das instituições governamentais nas diversas escalas e também por parte da sociedade que permite os massacres, principalmente da biodiversidade do Cerrado. Depois do bioma Mata Atlântica, é o mais ameaçado de extinção. É necessário o conhecimento, a pesquisa, a arte e a manutenção das culturas do Cerrado para que esse patrimônio sócio-biodiverso não seja extinto. É urgente políticas públicas para conservação do que ainda existe e está sob ameaça. AS GRAÇAS Fabrícia Campello

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Nesse cenário bastante controverso, centenas de artistas do Cerrado vivem em paisagens dominadas pelo setor do agronegócio com produção de commodities e contaminadas com o uso de agrotóxicos. Sabemos que os impactos são assustadores e incalculáveis, principalmente na saúde humana, contaminação da água, do solo e do ar. Com a expansão dessa atividade econômica, surgem os conflitos socioambientais caracterizados pela desocupação humana em função da produção e dos interesses econômicos de pequenos grupos de empresários do setor. Essas mudanças ambientais e, consequentemente, no nosso modo de viver, de ver e sentir a vida frente a esse processo desenfreado de des-envolvimento e ocupação dos territórios ocasionam grande vulnerabilidade cultural. Muitas perguntas permeiam o imaginário dos artistas do Cerrado que procuram resistir e re-existir pelas suas artes difundindo as riquezas do bioma ou os seus dilemas. É importante destacar o que Daniel Pellegrim, artista-pesquisador que viveu em Chapada dos Guimarães, reflete a respeito do giro decolonial dos artistas de Mato Grosso:


É de fundamental importância trazer marcadores do tempo da arte com a temática do Cerrado em Mato Grosso. Há muitas décadas, artistas trazem como narrativa principal a paisagem do bioma ou elementos de sua biodiversidade, com destaque para os pintores: Benedito Nunes com suas emblemáticas Lixeiras (Curatella americana), as paisagens do chapadense Márcio Aurélio, a ictiofauna de Jonas Barros, cotidianos da vida rural de Nilson Pimenta, a diversidade de paisagens de Miguel Penha, a Chapada de Renato Campello e os poemas visuais de Ruth Albernaz, bem como, o acervo histórico de imagens do fotógrafo Mario Friedlander. Em 2014 aconteceu a exposição coletiva Fecundo Cerrado no Museu Morro da Caixa D’água Velha, realizada pelos artistas Benedito Nunes, Carlos Lopes, Guadá Senatore, Rosylene Pinto e Ruth Albernaz. O fotógrafo Tchélo Figueiredo realizou, em 2016, duas exibições da exposição Cinco Elementos do Cerrado, a qual foi cancelada no primeiro espaço expositivo por sofrer censura. No mesmo ano, as artistas Imara Quadros e Ruth Albernaz apresentaram a instalação Aqui jaz o Cerrado, no Museu de Arte e de Cultura Popular - MACP/UFMT no

contexto da exposição coletiva Intersecções da Arte em Território Interdisciplinar com curadoria de José Serafim Bertoloto. Em 2020, os artistas Caio Ribeiro e Henrique Santian apresentaram a exposição virtual Atenção Há Tensão que pode ser visitada ao acessar atencaoexpo.wixsite.com As artistas Rosylene Pinto e Ruth Albernaz participam da galeria virutal do Museu do Cerrado, projeto da Universidade de Brasília (museocerrado.com.br). UM SOBREVOO SOBRE A ARTE DE CHAPADA DOS GUIMARÃES »»Para conhecer a arte de Chapada dos Guimarães é necessário perceber em escala temporal ampliada, refletir sobre os conceitos de arte e decolonizar o olhar. A região abriga dezenas de sítios arqueológicos com artes rupestres (pinturas ou inscrições) indicação de ocupação por humanos há mais de 10 mil anos. A região também foi ocupada por povos indígenas e quilombos. Pensando a arquitetura como uma linguagem da arte, há um marco histórico importante em Chapada dos Guimarães, de acordo com o IPHAN: O primeiro bem tombado em Mato Grosso foi a Igreja de Santana do Sacramento, na Chapada dos Guimarães, em 1957. Localizada ao norte de Cuiabá, a cidade foi fundada como aldeamento jesuítico em 1751, mas a igreja só foi construída, em taipa de pilão, depois da expulsão dos padres, em 1779.

Poesia de Quintais RENATO CAMPELLO

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[...] Muitos artistas e trabalhos artísticos, resistindo e existindo do modo que conseguem, parecem – assim como a vegetação do Cerrado, com suas árvores de cascas grossas, que têm a capacidade de se queimar inteiras e ainda assim continuarem vivas e ressurgirem com suas flores – ter desenvolvido força e formas para assumir as fronteiras que os constituem, tornando-se aptos a buscarem caminhos diferenciados de legitimação e autonomização que necessariamente não precisam estar no “trajeto único” das artes visuais, que se impõe sobre os artistas em termos globais (PELLEGRIM SANCHEZ, 2015 p.84).


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R E P O RTAG E M ESPECIAL Na década de 1980, chegou um grupo de ambientalistas em Chapada dos Guimarães e alguns desenvolveram atividades artísticas, com destaque para a artista Andrea Antonon com a série de pinturas intitulada “Entre Nuvens e Montanhas” e os trabalhos em papel artesanal pintados com pigmentos naturais, como óxido de ferro, que pesquisava na região. Com essa temática, a artista fez sua primeira exposição individual no Museu de Arte e de Cultura Popular com curadoria de Aline Figueiredo em 1988. Atualmente a artista vive e trabalha no Rio de Janeiro (www.andreaantonon.com). Nesse período, a ecologista-artista Eliana Martinez cria séries de colagens de elementos da biodiversidade do Jamacá (para os chapadenses anciões João Macá) sobre papéis artesanais. Em 1984, o pintor naturalista Miguel Penha muda-se para Chapada, onde vive até os tempos atuais. Sua pintura sai do surrealismo e se aprofunda nas paisagens ligadas à sua memória de infância e ancestralidade indígena. Na mesma temporalidade a jornalista e aquarelista Maria Liete Silva (Lika) produzia papéis com fibras da Chapada, os quais serviam de suportes para as famosas colagens de Bené Fonteles, que viveu por um

período no Jamacá. Contemporaneamente, Margot Gaebler (Meg) realiza experimentos com fibras nativas da Chapada, em especial com fibras de lírios do brejo nativos do Jamacá De Baixo (Cachoeira do Índio). Ainda nos anos 80, a artista Ruth Albernaz aprende a artesania do papel reciclado/ fibras naturais no I Festival de Inverno de Chapada com a papeleira goiana Mirian Pires, a qual desenvolve grande produção em papel entre os anos de 1999 a 2005. Na década de 1990, o pintor e gravurista Noam Salzstein, que havia frequentado o ateliê do museu Lasar Segall em São Paulo, chegava com sua arte em Chapada dos Guimarães, cria uma grande série de xilogravuras com paisagens do Cerrado e cenas do cotidiano. Pintava em óleo sobre tela e identificava suas obras como arte naif. Poderemos considerá-lo o primeiro xilogravurista de Mato Grosso? Outros artistas iniciaram suas experimentações e estudos ainda nos anos 90, como as pintoras: Suely Reindel, Keila Silveira Silveira, Glória Albernaz, Eliana Muxfeldt e Márcia Castrillon; esculturas em Cerâmica de Maria de Lurdes Torres (Lurdinha); colagens de elementos do Cerrado sobre espelho/ moldura de Buriti de Rogério Lenzi.

Nada Mais Será Como Antes II DANI TAMARA

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Em 1993, o Instituto de Ecologia e Populações Tradicionais do Pantanal - ECOPANTANAL realizou a campanha “Chapada Sem Queimadas”, coordenada por Ruth Albernaz, Clóvis Matos e Epaminondas Carvalho, tendo como parte da programação a ação de intervenção urbana com painéis de grandes dimensões que foram alocados na Praça Dom Wunibaldo. Os artistas participantes foram: Aleixo Cortez, Gervane de Paula, Jonas Barros e Nilson Pimenta. Em 1998, a família de artistas composta por Renato Campello, sua companheira Angela Godinho e a filha Fabrícia Campello abrem o ateliê/galeria Coração da América no centro de Chapada dos Guimarães. Atualmente, a família de pintores se dedica à arte e se divide em temporadas no sítio na região da Cachoeira Rica e temporadas na casa/studio na cidade. Em 2003, a Prefeitura Municipal de Chapada dos Guimarães realizou a exposição coletiva com 09 artistas mulheres: Marcia Bobroff, Keila Silveira, Suely Reindel, Ana

Chica Benzedeira ANDERSON MOURA

Flávia Garcia, Lídia Paixão, Sonia Castrillo, Mariazinha Bezerra, Jakeline Alves e Stephania Batista. No mesmo ano, o artista e produtor cultural Daniel Pellegrim muda-se para Chapada e abre a Pellegrim Galeria de Arte, um espaço que movimentou a cena cultural da cidade, expondo obras de artistas como, Carlos Lopes e Roberto de Almeida.

Representantes do Grupo dos Mascarados com a Flâmula em homenagem ao padroeiro do grupo, São Benedito, antes da apresentação em louvor ao santo em Poconé-MT MÁRIO FRIEDLANDER

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R E P O RTAG E M ESPECIAL A artista visual Regina Pena, de grande relevância para a cultura de Mato Grosso, viveu por alguns anos em Chapada dos Guimarães. Pintou muitas obras numa série com a paisagem do bairro Aldeia Velha, assemblages e desenvolveu oficinas com crianças do bairro O espaço público de cultura denominado Sala da Memória encontra-se fechado e é administrado pela Associação Casa de Guimarães, possui uma exposição permanente com obras de artistas importantes na cena cultural do Estado. Em 2020/21, mesmo em tempos de pandemia, em Chapada dos Guimarães pode-se encontrar diversos ateliês em atividade e acessíveis com agendamento: Miguel Penha, no bairro Aldeia Velha; no centro Eliana Muxfeldt, Marcia Bobrof e Ruth Albernaz; no Vale da Benção, o fotógrafo Henrique Santian; No Vale do Jamacá, os fotógrafos Mario Friedlander e Jeane Martins, os pintores Noam Salztein e Helenice; no bairro Bom Clima, a ceramista Lucileicka David; na região da Florada da Serra, Anderson Moura, Suely Reindel, Alena Maggi, Clóvis Irigaray e Sandra Vissoto; no bairro Santa Elvira, Renato Campello, Angela Godinho e Fabrícia Campello; na região do centro geodésico da América do sul, o fotógrafo Izan Peterle.

EXPOSIÇÃO ARTISTAS DO CERRADO - 2021 Exposição Coletiva Artistas do Cerrado é um projeto da produtora cultural Roseli Carnaíba, moradora e proprietária do espaço cultural Casa Di Rose, com atividades em Chapada dos Guimarães desde 2014. Esta proposta foi contemplada pelo edital Mostras e Festivais da Lei Aldir Blanc em Mato Grosso - 2020. A curadoria foi realizada pela artista-bióloga Ruth Albernaz, tendo como metodologia de trabalho visitas aos ateliês e escuta das narrativas atuais que cada artista convidado está se envolvendo em seus experimentos e fazeres artísticos. A arte-educadora Micheli Sierra é responsável por ações educativas no contexto da exposição com foco no patrimônio cultural de Chapada dos Guimarães. A assessoria de imprensa para divulgação do projeto é de Alessandra Barbosa, jornalista e animadora cultural. A montagem ficou por conta do Rodrigo Leite. O assistente de montagem, Plínio Suzuqui e a mediadora, Clara Luz Sierra. Os/as artistas convidados/as são: Alena Maggi, Anderson Moura, Angela Godinho, Dani Tamara, Fabrícia Campello, Henrique Santian, Lucileicka David, Mário Friedlander, Rai Reis, Renato Campello, Ruth Albernaz e Sandra Vissoto. A artista italiana Alena

»»A

Compassion ALENA MAGGI

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O Agro É Fofo SANDRA VISSOTTO

Maggi vive em regiões do Cerrado há mais de três décadas. Atualmente, tem seu ateliê em espaço com fragmento de Cerrado na borda da Chapada. É uma pintora muito delicada em seus traços, retrata o Cerrado em conexão com suas vivências no universo xamânico e a força do conhecimento ancestral. A imagem da “Flor da Vida” é recorrente em suas obras potencializadas por uma paleta de cores com predominância de verdes pastéis, lilases e tons iridescentes como, dourado e cobre. Anderson Moura nasceu em Rondonópolis. É historiador, guia de turismo e artista. Traz como narrativa central a afrobrasilidade e elementos da cultura popular. Apresenta esculturas figurativas com personagens populares em movimentos de danças que remetem às festas tradicionais, com visualidades do siriri, cururu ou à cenas do cotidiano. Suas obras se destacam pela capacidade do artista de gerar movimentos de grande riqueza visual. Moura busca para suas obras o conceito de reutilização de papéis como proposta de produção de uma arte de baixo impacto ambiental. Angela Godinho é uma artista singular. É preciso visitar o conjunto de sua produção artística para melhor apreciar e compreender sua narrativa. Transita entre o abstracionismo e o figurativo; Traz grande intensidade de cores, oferece muitas possibilidades interpretativas e aponta vestígios de cenas do cotidiano, da presença humana indireta. Nos faz refletir sobre o instante e o efêmero, assim como, a captura das cenas cotidianas. Suas pinturas recebem colagens de

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elementos da biodiversidade local criando disparadores de imaginação. Utiliza-se de suportes a partir de reutilização, como papelão, sobras de tintas, retalhos de tecido, lonas e ferros. Participa com três obras, duas de grandes dimensões com a temática fragmentos do cerrado e cenas do cotidiano. Dani Tamara é arquiteta e artista visual, começou suas experimentações artísticas em 2001, traz como temática principal mandalas em conexão com paisagens naturais. Suas obras valorizam a potência das cores, das formas abstratas e a presença de elementos figurativos quase dissolvidos. A artista Fabrícia Campello, nasceu em uma família de artistas e vive em Chapada dos Guimarães desde 1998. Trabalha com técnicas e suportes diversificados, aquarela, acrílica sobre tela, óleo e xilogravura. Participa da exposição com a obra que traz como narrativa as mulheres indígenas. O fotógrafo Henrique Santian trabalha com a cultura dos Waurá desde 2012. Apresenta nesta exposição a série Terra em Transe composta por sete imagens captadas no contexto da cultura Waurá, povo indígena que habita o Alto Xingu no Território Indígena do Xingu - TIX. Troá MICHELI SIERRA

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A ceramista Lucileicka David vive em Chapada dos Guimarães, tem um ateliê bem estruturado e trabalha com uma grande produção de peças utilitárias e esculturas em cerâmica. Nesta exposição participa com uma escultura figurativa com imagem de mulher afrodescendente, presença feminina dos quilombos de Chapada. Mário Friedlander, paulistano de ascendência alemã, chegou muito jovem à Chapada dos Guimarães, no início da década de 1980. Desenvolveu inúmeros trabalhos na área ambiental, foi um dos fundadores da Associação para Recuperação de Ambientes - ARCA. Na exposição Artistas do Cerrado, o fotógrafo trouxe um conjunto de imagens de festas da região de Poconé. Micheli Sierra é arte-educadora e responsável pelas ações educativas da exposição. Participa com um vídeo de 4’30” que descreve o processo de construção da escultura intitulada Troá O fotógrafo cacerense Rai Reis apresenta nesta coletiva dois lambes de grandes dimensões com a temática indígena, sendo uma das obras premiada no 25º Salão Jovem Arte - MT e uma fotografia de paisagem do Cerrado. A pintora Keila Silveira começou a estudar retratos e pinturas de paisagens no início da década de 1990. Vive na zona rural de Chapada dos Guimarães, onde elabora presépios e instalações de arte com elemen-

Negra Benga LUCILEICKA DAVID

tos do Cerrado. Nesta exposição apresenta uma pequena instalação composta por um quadro de assemblage que dialoga com um arranjo de elementos da biodiversidade e uma obra de seu acervo em lápis grafite com imagem figurativa de um lobo-guará, espécie ameaçada de extinção. Renato Campello é um pintor da natureza. Dedica-se exclusivamente à arte há mais de 40 anos. Vive em Chapada desde O Pajé Waujá entoa canções de passagem no ritual do Kwuarup HENRIQUE SANTIAN

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lumeMatoGrosso A Mulher Que Corre Com A Loba KEILA SILVEIRA

1998 com Angela Godinho e sua filha Fabrícia Campello. Nesta mostra apresenta duas obras de paisagens com riqueza de detalhes e fino trabalho com as cores, uma obra traz a paisagem em dia de neblina. Ruth Albernaz vive em Chapada dos Guimarães desde os seis meses de idade e tem parte de sua ancestralidade em profunda conexão local. Participa com duas obras onde o Cerrado se encontra em momentos antagônicos, uma apresenta a paisagem queimada e a outra remete à sua memória de infância. Sandra Vissoto é uma artista múltipla que transita entre diversos suportes e temáticas. Formada em Artes Visuais no Rio de Janeiro, tem grande experiência no setor cultural. Na exposição apresenta um tríptico, lançando mão de pinturas e assemblages com imagens que buscam refletir sobre a conversão da paisagem do Cerrado em campos de monocultura.

A exposição Artistas do Cerrado tem a intenção de abrir janelas da imaginação, propor novas formas de olhar para a arte e para o Bioma Cerrado. Não temos nenhuma intenção de esgotar esse assunto, sonhamos com a continuidade da temática em outras edições e possíveis itinerâncias. REFERÊNCIAS CITADAS OU CONSULTADAS CEPF, Critical Ecosystem Partnership Fund. Perfil do Ecossistema Hotspot de Biodiversidade do Cerrado. 506 p., 2017. Acesso em https://www.cepf.net/sites/default/files/ cerrado-ecosystem-profile-pr-updated.pdf BIOGRAFIA, Revista. Daniel Pellegrim. http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com/2012/03/daniel-pellegrim-artista-visual.html http://www.chapadadosguimaraes.com.br/ reoarque.htm

SERVIÇO Exposição de Artes Visuais “Artistas do Cerrado” Local: Casa di Rose - Rua do Penhasco, 105, Centro, Chapada dos Guimarães Data: de 13 de Fevereiro a 4 de Abril de 2021 Horário: Sábados, domingos e feriados das 14h às 20h Agendamento de Visita: (65)99603-2633 (whatsapp)

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HISTÓRIA

Peabirú

Caminho inca perdido no tempo

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ilenar, o “Caminho do Peabiru”, foi uma estrada Inca que tinha inicio nos Andes peruanos e se estendia ate o Oceano

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DA REDAÇÃO

Atlântico, mais precisamente ligando as cidades de Cusco no Peru ao litoral do estado de São Paulo. Com cerca de três mil quilômetros, esse caminho percorria os

territórios de Bolívia e Paraguai, além do Brasil e Peru. Outras ramificações do caminho levavam até aos estados do sul do país chegando ao Rio Grande do Sul.


FOTOS DIVULGAÇÃO

Itu e Sorocaba. Depois seguia em direção sul do estado, dividindo-se em duas ramificações: uma à esquerda e outra à direita. ROTAS ALTERNATIVAS Infelizmente, a intensa ocupação humana destruiu o “Peabiru”, hoje restam pouquíssimos vestígios. Os mais importantes deles, até o momento, localizam-se no município paranaense de Pitanga. Ainda não é possível saber a rota exata do Caminho, mas, é possível traçar um roteiro aproximado. O tronco paulista, que começava em São Vicente e Cananéia, seguia a direção do rio Tietê – município de Itu – rio Paranapanema – rio Itararé – nascente do rio Ribeira do Iguape. Entrando no estado do Paraná, percorria os atuais municípios de Doutor Ulisses, Cerro Azul, Castro, Tibagi, Reserva, Cândido de Abreu, Pitanga, Palmital, Guaraniaçu, Corbélia, Nova Aurora, Tupãssi, Assis Chateubriand, Palotina e Guaíra.

O tronco principal catarinense, iniciava-se, provavelmente, no Massiambu (Palhoça), seguindo por Florianópolis, litoral norte – rio Itapocu, depois passava pelos municípios de Guaramirim, São Bento e Mafra. Entrava no Paraná e passava pelos atuais municípios de Rio Negro, Campo do Tenente, Lapa, Porto Amazonas, Palmeira e Castro, trecho usado depois pelos tropeiros que povoaram todo o sul brasileiro. O “Peabiru” deixava o estado do Paraná por Guaíra. Havia outra passagem por Foz do Iguaçu, que foi usada por Alvarez Nunes Cabeza de Vaca em 1542. Depois o caminho era rumo ao norte, até a serra de Santa Luzia, perto de Corumbá/MS. Em Puerto Suarez penetrava na Bolívia. Passava por Cochabamba, Sucre e Potosí. Nesses locais existiam caminhos incas com várias opções para alcançar o Pacífico, as mais próximas eram Tacna, Montegua e Arequipa.

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O termo “Peabiru” vem do tupi, através da junção dos termos “pe” (caminho) e “abiru” (gramado amassado). No entanto, distintas definições nos são apresentadas: “Caminho forrado”; “Caminho antigo de ida e volta”; “Caminho pisado”; “Caminho sem ervas”; “Caminho que leva ao céu”, entre outras. Este caminho é citado pela primeira vez no livro “História da Conquista do Paraguai, rio Prata e Tucu-mã”, escrito por Pedro Lozano, padre jesuíta nascido em 1697. Outras referências importantes estruturadas em outras obras, são a “Revista Comentário” nº 49 (1971), do historiador Hernani Donato e o livro “Peabiru – Os Incas no Brasil”, de Luiz Galdino (1999). Segundo referências, o caminho possuía oito palmos de largura ou cerca de 1,3 metros, sendo o ponto de partida a região de São Vicente (SP). Provavelmente seguia-se ao longo do vale do rio Tietê até a região de

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HISTÓRIA

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A CONSTRUÇÃO DO PEABIRU Os estudiosos ainda não sabem quem abriu o “Caminho do Peabiru”. Há três hipóteses principais: »»1) “Caminho da Terra Sem Mal” – A primeira hipótese supõe que o “Peabiru” tenha sido aberto pelos guarani ou por povos anteriores – talvez os itararé. Originária do Paraguai, a tribo teria se deslocado para o litoral sul do Brasil entre os anos 1000 e 1300. O “Peabiru” teria sido aberto nessa migração, cujo objetivo era a procura de um paraíso, a Terra Sem Mal. »»2) “Caminho dos Incas” – Supõe a construção da trilha como uma iniciativa inca ou pré inca. Neste caso, o Peabiru seria uma via aberta para a prospecção de territórios do Atlântico, visando o comércio com povos indígenas pré-colombianos do Paraguai, MS, PR, SP e SC. Primeiro uma estrada de comércio. Depois quem sabe, uma estrada de penetração definitiva das poderosas civilizações andinas no Atlântico sul. Como via de mão dupla, o “Peabiru” permitiu a chegada dos guaranis aos Andes. Mesmo sem relações duradouras, as idas e vindas de guarani e inca pelo Caminho deixaram vestígios de uma certa influência cultural na ‘astronomia’ (leitura e uso de manchas da Via Láctea), ‘estatística’ (semelhança do ainhé, cordão de cipó guarani com o quipu dos incas), ‘música’ (flauta de pã), ‘ar-

mamento’ (semelhança da macaná, borduna guarani com a maqana incaica), denominação de fauna e flora: ‘sara’ (espiga, em guarani; milho em quêchua), ‘cui’ (animal roedor, nos dois idiomas), ‘jaguar’ (felino, nos dois idiomas), ‘mandioca’ e ‘ioca’ / iuca, suri (ema, nos dois idiomas). »»3) “Caminho de São Tomé” – Segundo essa versão, o “Peabiru” teria sido aberto por São Tomé, apóstolo de Cristo. Segundo Sérgio Buarque de Holan-

PAY SUMÉ

da, a devoção suscitada pela descoberta deste Caminho de Tomé na América no século 16 foi tal, que quase desbancou o de Santiago de Compostela: “Pouco faltaria em verdade que não apenas na Índia, mas em todo o mundo colonial português, essa devoção tomasse um pouco o lugar que na metrópole e na Espanha em geral… “tivera o culto bélico de outro companheiro e discípulo de Jesus, cujo corpo se julgava sepultado em Composte-


lumeMatoGrosso VESTÍGIO DE CIVILIZAÇÕES ANTIGAS, ENCONTRADO NA TRILHA DO PEABIRU

la”. A passagem de Tomé pelo Novo Mundo foi mencionada por índios, padres, autoridades e colonos europeus no século 16. A versão corrente é que um homem branco, barbudo, teria chegado ao litoral brasileiro “andando sobre as águas”. Foi chamado de Sumé. Em sua peregrinação, teria ido ao Paraguai, abrindo o Caminho. Ali foi visto e chamado de Pay Sumé. Saindo do Paraguai, a misteriosa figura teria continuado até os Andes. Os pré incas o chamaram de Kuniraya. Mais tarde, recebeu dos incas o nome de Viracocha. Após um período no Peru, ele teria ido embora, também “andando sobre as águas”.

INTERLIGANDO POVOS E CULTURAS O Caminho do Peabiru tem toda uma parte ligada à cultura indígena. Um aspecto interessante é que ele também pode ser relacionado com a astronomia indígena. Observando o mapa do “Peabiru” percebemos que ele inclui, na verdade, diversos caminhos. Vamos nos ater a um só, que foi percorrido pelo pioneiro Aleixo Garcia. Este se inicia em Florianópolis, no oceano Atlântico e vai até Potosi na Bolívia, pegando depois as estradas dos Incas e indo terminar no oceano Pacífico. Ou seja, é um caminho transcontinental pré-colombiano. O Caminho

do Aleixo – talvez o mais importante de todos – não é na direção norte-sul e nem leste-oeste, mas sim “inclinado”. Ele vai aproximadamente de sudeste para noroeste. Ao notar essa inclinação a primeira pergunta que se coloca é a seguinte: por que os primeiros índios escolheram essa direção ao abrir a trilha? E como eles se orientaram para percorrer esse caminho? É espantoso constatar que os guarani de Florianópolis falaram para o navegador Aleixo Garcia que conheciam Potosí nos Andes. Que sabiam com o ir e como voltar. Isso tudo a pé, em 1524, mais de 2000 quilômetros em linha reta – naturalmen-

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HISTÓRIA

VIA LÁCTEA

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TRILHA PEABIRÚ

te seguiam os acidentes naturais, rios e tudo o mais – mas a direção inicial-final era sudeste-noroeste. Ao olhar para o céu, em condições propícias, vemos a Via Láctea, que é chamada pelos guarani de Caminho da Anta (Tapirapé), ou Morada dos Deuses. È natural supor que o caminho da Terra Sem Mal, para eles era aquele caminho que estava lá em cima, no céu. Que é o Caminho dos Deuses, dos espíritos, é a própria Via Láctea. Não são só os nossos índios ancestrais que viam assim. Pesquisando na História notamos que egípcios, os gregos, os indianos, todos viam a Via Láctea como um caminho. Os

antigos nos falavam que havia um tesouro no fim e outro no começo do arco-íris. E a gente vivia sonhando em encontrar o começo e o fim dele. Fazendo uma comparação, os índios brasileiros e também os peruanos, queriam saber onde começava ou terminava o arco-íris celeste, ou seja, a Via Láctea. Seguindo a Via Láctea, por terra, viam que o fim do Caminho ia dar no mar, no oceano Atlântico. E a Terra Sem Mal ficava ali, ou lá, em algum lugar. Por isso é que os nossos povos ancestrais foram à direção do mar. Por isso é que na maioria dos mitos indígenas, o profeta, o Sumé, vem do mar. Por-

que ele vem daquela ponta da Via Láctea à qual o índio não tem acesso. Muito bem, pensa o índio, mas e do lado contrário do Caminho da Anta, o que existe? O índio não sabe. Então ele vai procurando na terra, seguindo a Via Láctea. E acaba chegando no outro lado, que também não tem fim, chega num outro mar, o oceano Pacífico. Então a idéia básica é essa. O Caminho que nossos povos ancestrais percorreram é aquele da Via Láctea, quando está mais alta no céu. E que é também, aproximadamente o caminho que liga as posições do nascer-do-sol no verão com o pôr-do-sol no inverno. Ou, sudeste - noroeste

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MEMÓRIA

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UBIRATÃ NASCENTES ALVES é membro da AML - cadeira nº 1. ubirata100@gmail.com

Cel. Iporan O herói esquecido

E

ra homem de extraordinária bravura, perspicácia e natural inteligência que o levou a superar armadilhas da traiçoeira guerra e os poderosos ini-

POR UBIRATAN NASCENTES ALVES

migos alemães em diversas de suas ações, salvando a vida de seus irmãos de farda, gente humilde dos trópicos sulistas em uma frígida Europa. Não permitiu Deus que morres-

se antes de voltar ao seu Torrão e apesar de esquecido por muitos, obteve reconhecimento através medalhas do Exército Americano do Norte, bem como da Inglaterra.

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MEMÓRIA

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O menino Iporan Nunes de Oliveira veio a este mundo em 20 de dezembro 1917, em Cuiabá, foi o terceiro filho do casal Joaquim Pinto de Oliveira e Theonila Nunes de Oliveira, residiam em frente a Paróquia São Gonçalo no Porto, ao lado do 1º Batalhão PM Daniel de Queiroz. Possuía uma ancestralidade diferenciada remontando ao Brigadeiro do Exército Português, Jerônimo Joaquim Nunes, o qual chegou a estas terras no ano de 1805, e mais tarde em 1828 assumiu pelo partido Federalista no Império, o cargo de Governador da Província de Mato Grosso. A vida estudantil teve início na Escola Pública “Senador Azeredo”, que funcionava no prédio onde foi até pouco a Casa do Artesão, o ginásio e secundário cursou no Liceu Cuiabano. Apesar de obter sucesso em concurso para agente na Delegacia Fiscal, prefere se transferir para a Capital Federal, o Rio de Janeiro, objetivando preparo aos exames da Escola Militar de Realengo. Estando capacitado, logra ingressar na almejada Academia do Exército Brasileiro em abril de 1940, declarado Aspirante a Oficial em 8 de janeiro 1944, em plena 2ª Guerra Mundial. Consciente da estrutura organizacional da futura Divisão de Infantaria Expedicionária na guerra, foi voluntário para servir no

11º Regimento de Infantaria, em São João Del Rei/ MG, direcionando-se a um dos segmentos que certamente integraria a Divisão que ia partir aos combates na Europa. Iporan retorna à Vila Militar, no Rio de Janeiro, em março de 1944, para iniciar uma cansativa e longa rotina de preparo físico da tropa que antecedeu ao embarque, finalmente o 11º Regimento embarca para a Itália em 22 de setembro, parte do 2º Escalão da Força Expedicionária Brasileira. Recordando, comandava a FEB o Ministro da Guerra de Getúlio Vargas, Gal. Eurico Gaspar Dutra. Desembarcam na Itália em 11 de outubro 1944, sendo submetidos ao período de adaptação e ao novo armamento, antes de irem para o front em novembro, iniciava o inverno. Aparecem os entraves iniciais, a comunicação de tropas falando idiomas díspares, costumes, material bélico diferenciado utilizando tecnologias desconhecidas, não bastassem esses fatores, havia o relevo e o clima rigoroso, que não foram suficientes para conter o ímpeto de nossa tropa. Iporan, agora 2º Tenente, exercendo o comando de um pelotão da 2ª Companhia, obtém o primeiro arrojado resultado, mostrando destemor em 12 de dezembro, durante o ataque a Monte Castelo, fortemente guarnecido pelo

inimigo, seu pelotão conquistou o vilarejo de Falfare. O monte com altura de 977 m, era coberto de neve escorregadia, atingiu nesse inverno – 20º C, ficando a 60 Km de Bolonha, necessário ser tomado para permitir o avanço dos Aliados ao norte, as bem armadas tropas alemães, usavam a metralhadora MG42 que disparava 1200 tiros/minuto. As investidas foram arduamente rechaçadas, a primeira sofrida pelo exército americano que repassou a missão às tropas brasileiras, no total quatro tentativas entre 24 de novembro de 1944 até 21 de fevereiro de 1945, quando foram vencidas as tropas inimigas por nossos heróis pracinhas. Sofremos também perdas, como no povoado de Abetaia, os alemães deixaram nossos soldados se achegarem e os metralharam, dos corpos petrificados no gelo, anéis e relógios foram subtraídos. Superado os aguerridos combates de La Serra nos dias 23 e 24 de fevereiro 1945, onde os pracinhas sobrepujaram o forte inimigo, Ten. Iporan segue a outro desafio Castelnuovo. Provavelmente a vitória mais rápida dessa guerra, nossas tropas iniciam o cerco da cidade bem cedo no dia 5 de março 1945, esperavam as tropas americanas darem ordem e desfechar o ataque. O 1º Batalhão do 11º Re-


lumeMatoGrosso FAMÍLIA DE IPORAN, JÁ CASADO COM ALTAYR DE LIMA BASTOS DE OLIVEIRA

gimento de Infantaria, logo dominou Precaria, enquanto o 2º Batalhão desse RI, apesar dos fogos, em movimento que lhe custou 22 baixas, alcançou o terreno a Sudeste. O Comandante Aliado, General Willis D. Crittenberger, exortando ao ataque o Batalhão do Major Gross, às 6 da tarde, com ajuda considerável da artilharia, estava em poder da FEB Castelnuovo ! A tomada de Montese, em 14 de abril, impoz o lema da FEB, “A Cobra Fumou”… Haviamos recebido o encargo de conquistar esta urbe, era o último baluarte alemão nos Apeninos, assim ficariam abertas as portas do Vale do Pó na-

quele setor. A investida iniciou às 9h do dia 14, com dois pelotões da 2ª Companhia no ataque, um deles era exatamente o do bravo Ten. Iporan. A patrulha, fortemente armada, com 21 homens, sendo três especialistas em minas, partiu de seu posto de combate em Biccochi, de início alcançou logo Montaurigula sem encontrar resistência. Dominaram essa estratégica elevação e prosseguiu através da encosta sul, rumo geral leste-oeste. Após atingir a metade da elevação, em forma de uma colina alongada, encontrou um campo de traiçoeiras minas antipessoal, o próprio escla-

recedor da patrulha havia entrado alguns passos no campo, quando felizmente puderam notá-las, algumas estavam expostas. Entrou em ação a equipe caça-minas, retirando ao fim o total de 82, salvando assim muitas vidas e talvez a própria missão. Ao chegar perto ao topo das elevações de Montese, o pelotão perdera ligação com o regimento, rádio não funcionava, os cabos foram rompidos com os tiros da artilharia, seguiram isolados. O Ten. Iporan adentrando com seu pelotão em Montese, toma de início a torre local, onde fez vários prisioneiros, e manteve posição de resistência

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MEMÓRIA contra os alemães, contribuindo em larga escala para a vitória da FEB nesta batalha. Esta foi a primeira tropa brasileira a romper o dispositivo defensivo e adentrar na fortificada defesa dos alemães, momento em que as demais unidades engajadas na batalha sofriam perdas consideráveis em razão da obstinada resistência. Demonstrou nosso herói, coragem, decisão, vontade, senso de cumprimento do dever e iniciativa. Após o longo combate, onde se conquistou o chão palmo a palmo, foi conseguido, no final do dia, dominar as resistências inimigas, fazendo-as retrair após sofrerem mais baixas. Caindo a noite de

abril 14, dominadas as encostas sudoeste da cidade e quebrada a capacidade defensiva da infantaria alemã, que, desnorteada, abandonou suas posições, deixando no campo de luta alguns mortos e oito prisioneiros. Enquanto em nosso lado, houve só um morto e três feridos. Os irresignados germanos na noite de 14 para 15 de abril, não obstante Montese encontrar-se sob domínio das tropas brasileiras, abrigava ainda um elevado número de soldados inimigos, fato que não impediu a artilharia germana de efetuar sobre essas terras, naquela noite, cerca de 2.800 tiros. Na manhã do dia 15, ainda embaixo de maciço fogo da artilha-

O PELOTÃO DO TENENTE IPORAN, ANTES DO ATAQUE A MONTESE

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ria alemã, a tropa brasileira ultimou a limpeza da urbe. Essa batalha ficará marcada para sempre na memória dos nossos soldados, pelas lições de bravura e competência operacional dos “pracinhas”. A bela conquista repercutiu favoravelmente nos altos escalões e mereceu dos generais americanos os mais efusivos elogios. “Na jornada de ontem, só os brasileiros mereceram as minhas irrestritas congratulações; com o brilho de seu feito e seu espírito ofensivo, a Divisão Brasileira está em condições de ensinar às outras como se conquista uma cidade”. Gen Crittenberger - Cmt IV Corpo de Exército. Destaque para um mo-


lumeMatoGrosso mento marcante da FEB, a rendição em uma única ocasião, de quase 20 mil soldados de Hitler e Mussolini, a maioria da 148ª Divisão de Infantaria do Führer, entre 29 e 30 de abril, quase igual o total de nosso contingente em terra e ar, 25.834 indivíduos. A nossa Força em sua arrancada final, ainda chegou na cidade de Turim, depois em 2 de maio de 1945, na cidade de Susa, onde fez junção com as tropas francesas, esta na fronteira franco-italiana. Hitler cometendo suicídio em 30 de abril, a capitulação logo ocorreu, na cidade de Reims – França, em 07 de maio 1945, e finaliza o conflito iniciado em 1939 que ceifou cerca de 85 milhões de vidas. Por sua bravura e senso de heroísmo o Tenente Iporan foi condecorado: »»Pelos EUA, o General Charles Gerhalt, lhe agra-

ciou a “Silver Star Medal”, entregue no 16° BC, em Cuiabá, em 15.07.1946. »»Pelo Reino Unido, o Mal. de Campo Sir Harold Alexander lhe conferiu o título de “Member of the Order of the British Empire”, no Palácio Guanabara, em 15.06.1948. Por esses feitos e por irrepreensível conduta militar o Ten. Iporan recebeu mais láureas: »»Cruz de Combate de 1ª e de 2ª Classe; »»Medalha de Campanha; »»Medalha de Guerra; »»Ordem do Mérito Militar, Grau de Oficial, e »»Medalha Mal. Mascarenhas de Moraes Finda a 2ª Guerra Mundial, o herói cuiabano segue abnegado nas fileiras do Exército Brasileiro, retornando para sua terra natal, casou-se com a Sra. Altayr de Lima Bastos de Oliveira, em 30 de dezembro de 1948, surgindo desta feliz

união 4 filhos e diversos netos. Ele serviu ainda no 3° RI ; 5° RI; Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais; e no Estado Maior do Exército no período de 1960 até 1964, na Comissão de Promoçõens do Exército, indo enfim para a reserva no posto de Coronel. Várzea Grande cedeu seu nome correto à uma rua, em Cuiabá outra, mas grafada R. Capitão Iporã. Perdeu, como inevitável, a derradeira batalha para morte ocorrida no dia 03 de dezembro 2011, em Niterói/ RJ, faleceu de causas naturais, o veterano da FEB, Coronel Iporan Nunes de Oliviera. Em sua despedida o 21° Grupo de Artilharia de Campanha prestou-lhe as justas e devidas honras militares, ocorrido no Crematório do Cemitério Parque da Colina - Pendotiba, nessa mesma urbe. “Feliz a Nação que não esquece dos seus Heróis”

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ARTIGO

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Significado da música Hallelujah, de Leonard Cohen

POR CAMILA FERNANDES

ertamente você já ouviu uma das versões dessa música em um casamento por aí. O famosa “aleluia” do refrão é figurinha carimbada nas celebrações matrimoniais. Agora, se você não é uma pessoa que frequenta casamentos, pode ser que conheça Hallelujah como “a música do filme do Shrek”. As duas opções são válidas, não estamos aqui para julgar ninguém. O fato é que Hallelujah se tornou um verdadeiro clássico. A música foi regravada diversas vezes e ganhou versões em diferentes idiomas. Mas, mesmo com toda a popularidade, os mistérios sobre o verdadeiro significado da letra nunca deixaram de pairar sobre a canção de Leonard Cohen. As apostas vão de música religiosa à canção deprimente e melancólica, e você vai perceber que as duas fazem sentido. Que tal tentar entender com a gente o

verdadeiro significado de Hallelujah, do Leonard Cohen? Ela é mais uma daquelas músicas que têm significados surpreendentes. A versão de Hallelujah, que vamos analisar é uma das que foram gravadas pelo compositor, Leonard Cohen, que ele cantava em seus últimos shows. Existe outra versão que ficou muito famosa, que é a do Jeff Buckley. Apesar de serem, em essência, a mesma música, as duas têm letras um pouco diferentes. Isso porque Leonard Cohen escreveu páginas e mais páginas com possíveis estrofes para a música. Ele usou quatro na primeira versão, depois foi alterando e intercalando outras. Já quando Jeff Buckley regravou, Cohen entregou a ele os manuscritos da música para que ele escolhesse as estrofes que usaria. É por isso que as versões de Hallelujah podem ter interpretações diferentes. Com isso esclarecido, é hora de começar a análise!

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ARTIGO ANÁLISE DA LETRA DE HALLELUJAH, DE LEONARD COHEN:

Hallelujah, hallelujah Hallelujah, hallelujah

I’ve heard there was a secret chord (Eu ouvi dizer que havia um acorde secreto) That David played and it pleased the lord (Que Davi tocava e agradava ao Senhor) But you don’t really care for music, do you? (Mas você não liga muito para música, não é?)

Hallelujah ou Aleluia vem do hebraico Halləluya. A primeira parte, Hallelu, pode ser traduzida como louvai ou elogiai. Já a segunda parte, Jah ou Yah, é uma abreviação para Yahweh, que significa Deus. Hallelujah, portanto, é comumente traduzida como louvado seja Deus.

Logo na primeira estrofe, a música já traz uma das várias referências bíblicas que veremos ao longo da letra. Os dois primeiros versos falam sobre Davi, personagem bíblico ao qual é atribuída a autoria do livro de Salmos — pequenos cânticos e poemas de louvor. De acordo com a música, havia uma nota secreta nos salmos de Davi que agradava a Deus. No terceiro verso, no entanto, ele questiona o interlocutor sobre seu real interesse pela música. Aqui ainda não fica claro a quem o compositor está se referindo, mas pode ser que seja ao próprio Deus.

Your faith was strong, but you needed proof (Sua fé era forte, mas você precisava de provas) You saw her bathing on the roof (Você a viu se banhando no telhado) Her beauty and the moonlight overthrew you (A beleza dela e o luar arruinaram você)

It goes like this: the fourth, the fifth (É assim: a quarta, a quinta) The minor fall, the major lift (A menor cai, a maior ascende) The baffled king composing Hallelujah (O rei perplexo compondo Aleluia) Como se assumindo que o interlocutor de fato não entende de música, a composição começa a explicar o que acontece na canção. A quarta, a quinta, a menor e a maior são as quatro notas que compõem a melodia de Hallelujah, inclusive no refrão; Você já deve ter notado que todas as estrofes da música terminam com Hallelujah, e é claro que isso não é coincidência. Pode se tratar de uma referência ao fim dos Salmos, em que se cantava o aleluia, assim como também pode ser uma menção irônica ao ensinamento bíblico de que se deve sempre louvar e dar graças a Deus, não importa qual seja a situação.

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O primeiro verso da segunda estrofe pode ser uma referência à história de Tomé, o discípulo que precisou tocar a mão de Jesus para acreditar que ele havia ressuscitado. Em seguida, a letra volta a falar de Davi, mas em outro contexto. Os dois versos se referem à passagem em que ele vê uma mulher se banhando no telhado, se encanta pela beleza dela e se deixa levar pelo desejo. Ao contrário da primeira estrofe, em que Davi agradava a Deus, aqui ele desagrada. She tied you to a kitchen chair (Ela te amarrou à cadeira da cozinha) She broke your throne and she cut your hair (Ela destruiu seu trono e cortou seu cabelo) And from your lips she drew the Hallelujah (E dos seus lábios ela tirou o Aleluia) Em seguida, temos uma referência a Sansão e Dalila. A história diz que Sansão tinha uma força anormal, que ele havia recebido de Deus para proteger seu povo. No entanto, Deus havia dito a ele que nunca deveria cortar os cabelos, porque eles eram a fonte dessa força.


lumeMatoGrosso A Dúvida De Tomé CARAVAGGIO

Acontece que Sansão também se deixa levar pela beleza de uma mulher, Dalila. Ela o trai, e ele perde a força. Mais uma vez, temos o Hallelujah no final, só que agora em um tom de súplica, de quem pede perdão por ter errado. Hallelujah, hallelujah allelujah, hallelujah Now, maybe there’s a god above (Agora, talvez haja um deus acima) As for me, all I ever learned from love (Quanto a mim, tudo o que eu aprendi sobre o amor) Is how to shoot at someone who outdrew you (É como atirar em alguém que sacou a arma primeiro) De louvor, na primeira estrofe, e traição na segunda, passamos para a descrença e o ceticismo. A letra traz a ideia do amor como autodefesa, dizendo que o que aprendeu sobre amar é que na verdade se trata de uma vigilância constante para se proteger dos outros.

But it’s not a cry that you hear tonight (Mas não é um choro que você ouve esta noite) It’s not some pilgrim who claims to have seen the light, no (Não é um peregrino que alega ter visto a luz, não) It’s a cold and it’s a very broken Hallelujah (É um Aleluia frio e muito sofrido) No entanto, apesar da traição e das decepções, a terceira estrofe também nos diz que a intenção da música não é se lamentar. Trata-se, ainda, de uma espécie de agradecimento — mesmo que seja frio e sofrido. Hallelujah, hallelujah Hallelujah, hallelujah Hallelujah, hallelujah Hallelujah, hallelujah Oh, people, I’ve been here before (Ah, pessoal, eu já estive aqui antes) I know this room and I’ve walked this floor (Eu conheço este quarto e já pisei este chão)

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You see, I used to live alone before I knew you (Veja, eu costumava viver sozinho antes de te conhecer)

Nos dois últimos versos, a letra volta a falar sobre como o amor não é aquilo que imaginamos. O amor não é um canto de vitória, mas apenas um suspiro.

No começo da estrofe, a letra fala sobre “já ter estado aqui antes”. Essa é uma expressão muito usada no inglês pra falar não só sobre estar em lugar específico, físico, mas sobre já ter vivido determinada situação. Portanto, pode ser que Leonard Cohen esteja dizendo que já passou por isso antes, que não é a primeira vez que lida com a situação descrita na música. No terceiro verso, ele se refere diretamente a um interlocutor. Pode ser a pessoa amada, se interpretarmos como uma canção romântica sobre traição, mas também pode ser Deus, se entendermos a letra como uma oração que contesta a divindade por tê-lo deixado desamparado.

Hallelujah, hallelujah Hallelujah, hallelujah There was a time you let me know (Houve um tempo em que você me deixava saber) What’s really going on below (Tudo o que realmente acontecia) But now, now you never even show it to me, do you? (Mas agora você nunca me mostra isso, não é?)

And I’ve seen your flag on the Marble Arch (E eu vi sua bandeira no Arco de Mármore) But listen love, love is not some kind of victory march, no (Mas escute, amor, o amor não é como uma marcha de vitória, não) It’s a cold and it’s a very lonely Hallelujah (É um Aleluia frio e muito solitário) O Marble Arch é um dos monumentos mais visitados de Londres. Ele foi desenhado em 1827 para o Hall de Honra do Palácio de Buckingham e em 1855 foi transferido para o local atual, perto do Hyde Park. Que bandeira é essa a qual a letra se refere? Bom, o arco tem desenhos de anjos, guerreiros e um rosto no centro, que lembram muito a arte sacra.

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Aqui o cantor dá a entender que se sente desinformado sobre algo ou alguém, ou que o interlocutor não tem sido totalmente sincero. I remember when I moved in you (Eu me lembro de quando entrei em você) And the holy dove, she was moving too (E a pomba sagrada entrou também) And every single breath that we drew was Hallelujah (E cada suspiro que dávamos era um Aleluia) Sansão e Dalila PETER PAUL RUBENS


Hallelujah, hallelujah Hallelujah, hallelujah I’ve done my best, I know it wasn’t much (Eu fiz o meu melhor, eu sei que não foi muito) I couldn’t feel, so I learned to touch (Eu não podia sentir, então eu aprendi a tocar) I’ve told the truth, I didn’t come here to fool you (Eu disse a verdade, eu não vim aqui para te enganar) A última estrofe é a confissão final, onde o compositor/personagem assume que ele também errou. Mas que, acima de tudo, fez o melhor que podia e foi sincero. And even though it all went wrong (E mesmo que tudo tenha dado errado) I’ll stand right here, before the Lord of Song (Eu estarei aqui, diante do Senhor da Música) With nothing, nothing on my tongue but Hallelujah (Com nada, nada em meus lábios além de Aleluia) Nesse ponto da música nós já conseguimos entender o que é esse “tudo” que deu errado: a traição, o fracasso de um relacionamento, ou, seguindo pela linha religiosa, o fracasso da fé. Ainda assim, o compositor nos diz que jamais deixará de entoar seu aleluia diante do Senhor da Música. Pode ser uma nova referência a Davi ou mesmo à divindade.

11 DE NOVEMBRO DE 2016

»»Morreu aos 82 anos, o músico e poeta Leo-

nard Cohen, segundo informou a gravadora Sony Music Canadá em uma publicação em seu Facebook. A causa da morte não foi informada e a morte ocorreu dia 10 à noite. “Com profunda dor, nós informamos que o lendário poeta, escritor e artista Leonard Cohen faleceu. Perdemos um dos mais venerados e prolíficos visionários da música. Um memorial ocorrerá em Los Angeles. A família pede privacidade durante esse período de luto”, postou a gravadora. Nascido em Westmount, Quebec, Canadá, em 21 de setembro de 1934, Cohen havia lançado seu último álbum You Want it Darker no dia 21 de outubro deste ano. Considerado um dos maiores artistas do século 20, o canadense aprendeu a tocar guitarra ainda jovem e formou o grupo de música folk Buckskin Boys. No entanto, sua carreira começou com a literatura. Lançou o romance The Favorite Game (1963), o livro de poesias Flowers for Hitler, de 1964, e mais um romance Beautiful Losers (1966). Porém, o pouco sucesso das obras à época fez com que ele fosse para Nova York, onde conheceu a cantora Judy Collins. Com músicas no disco da artista, ele estreou no mundo musical em 1967, com a obra-prima Songs of Leonard Cohen - com os clássicos Suzanne e So long, Marianne. Cohen inspirou uma geração de talentosos músicos, incluindo Dylan, e continuou a compilar prêmios e sucessos. Um das maiores canções de sua carreira é Hallelujah, do álbum Various Positions, 1985, que é reproduzida em diferentes versões até os dias atuais. Entre os anos de 1990 e 1996, Cohen ficou afastado da música, mas voltou após descobrir que havia sido roubado financeiramente por seu agente Kelley Lynch. No Canadá, Cohen recebeu o título da Ordem do Canadá em 2003, antes de ser introduzido no Songwriters Hall da fama canadenses em 2006. Ele também recebeu o Prêmio Espírito Montreal Jazz Festival e o prêmio do Governador Geral do Canadá para a poesia. Finalmente, ele foi introduzido no Hall da Fama do rock’n’roll em março de 2008.

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Essa é a parte mais polêmica da música. Isso porque existem várias suspeitas de que ela se refere a uma relação sexual — teoria que ganhou ainda mais força depois de Jeff Buckley afirmou que o aleluia era um suspiro de prazer. Pra quem prefere dar uma interpretação mais leve, os versos podem ser uma referência nostálgica ao coração, ao amor, e até mesmo à religião e à fé.

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Livros Inacabados de Grandes Escritores

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is um fato interessante: quase todo escritor tem uma obra inacabada. Embora esses autores tenham razões convincentes o bastante para deixar uma obra inacabada, a morte do escritor é, geralmente, o motivo mais comum de interrupção. Abaixo uma lista de seis livros inacabados de grandes escritores e os motivos que os impediram de finalizá-las.

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JAMES JOYCE

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JOHN STEINBECK

GUSTAVE FLAUBERT


é uma releitura de Le Morte d’Arthur, escrito por Sir Thomas Malory, um dos primeiros livros que Steinbeck leu quando criança. O livro utiliza a obra de Malory como ponto de partida, mas em seguida assume um viés psicológico. Steinbeck chegou a afirmar que este livro seria seu maior feito. Porém, o autor morreu antes de concluir a obra. O livro inacabado de Warthon, Os bucaneiros foi publicado em 1938, mas após 50 anos de sua publicação foi concluído por Marion Mainwaring, uma estudiosa de Warthon, que utilizou as anotações deixadas pela escritora para completar a obra. A história narra o casamento de cinco garotas norte-americanas com ingleses. Único livro dessa pequena lista que nunca chegou a ser publicado, O templo de sapé foi a primeira tentativa de Waugh na literatura, e sua falha o deixou desnorteado. Waugh começou a escrever o livro em 1924, durante a universidade. A obra, altamente autobiográfica, é baseada em experiências vividas pelo autor em Oxford, com temas como loucura e magia negra. O que deu errado? Em 1925, Waugh entregou o manuscrito a um amigo chamado Harold Action, que criticou duramente a obra. “Era uma loucura, uma piada totalmente sem valor. Eu disse isso com uma franqueza brutal”, revelou posteriormente Action. A crítica deixou Waugh tão angustiado que ele queimou o manuscrito, foi para a praia e começou a nadar mar a dentro. Em sua biografia, Waugh escreveu “Eu tinha a intenção de me afogar? Certamente isso passou pela minha cabeça”. Mas, após algum tempo na água, Waugh foi atacado por uma água viva e voltou para a areia. Em seguida, Waugh passou um tempo afastado da ficção, mas escrevendo The Balance (O equilíbrio), conto que possivelmente teve muitos elementos de The Temple incorporados.

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O autor de Madame de Bovary, escritor Gustave Flaubert estava tão obcecado por este livro que afirmou ter lido 1.500 livros em preparação para escrever Bouvard e Pécuchet, que, esperava ele, seria sua obra-prima. Flaubert trabalhou incessantemente neste livro até sua morte, tendo feito apenas uma pausa de um ano entre 187576 para escrever três contos. O livro narra a história de dois amigos que largam o emprego e partem em busca de conhecimento no campo, mas falham em sua jornada intelectual. O livro foi publicado em 1880, mas, devido à morte de Flaubert, termina antes da conclusão da história. De acordo com manuscritos deixados pelo autor, o provável fim se daria com os amigos sendo expulsos pelos moradores da aldeia e retornando ao antigo emprego. Escrito durante os 37 dias em que Sade esteve preso na Bastilha, 120 dias de Sodoma foi concebido em um estreito papel de um rolo de 12 metros. Após a queda da Bastilha, Sade foi transferido para um asilo para loucos, mas antes, por temer que a obra se perdesse para sempre, escondeu-a. A obra foi encontrada ainda intacta e publicada em 1904. No total, apenas a primeira parte está escrita detalhadamente, as três partes restantes estão escritas em forma de notas. Stephen Hero serviu de modelo para Portrait of the Artist as a Young Man (Retrato do artista quando jovem), livro que Joyce tentou queimar durante uma discussão com sua mulher, Nora. Stephen Hero somente veio ser publicado três anos após a morte de Joyce. Embora tenha abandonado a obra, Joyce sempre julgou-a mais pessoal e autobiográfica que Retrato. O escritor se dedicou ao livro durante seus anos na Universidade de Dublin, entre 1901 e 1906. Publicado em 1976, As leis do rei Arthur e de seus nobres cavaleiros, de Steinbeck,

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AUGUSTO DOS ANJOS

Americanidade A Busca Pelo Intercâmbio Cultural Entre Os Povos Da América Do Sul: 54


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Augusto dos Anjos Poeta brasileiro

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POR DILVA FRAZÃO

ugusto dos Anjos nasceu no engenho “Pau d’Arco”, na Paraíba, no dia 22 de abril de 1884. Filho de Alexandre Rodrigues dos Anjos e de Córdula de Carvalho Rodrigues dos Anjos. Recebeu do pai, formado em Direito, as primeiras instruções. No ano de 1900, ingressou no Liceu Paraibano e compõe nessa época, seu primeiro soneto, “Saudade”.

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AMERICANIDADE

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Dado à sua genialidade, Augusto dos Anjos é considerado um dos poetas mais críticos de sua época. Foi identificado como o mais importante poeta do pré-modernismo, embora revele em sua poesia, raízes do simbolismo, retratando o gosto pela morte, a angústia e o uso de metáforas. Declarou-se “Cantor da poesia de tudo que é morto”. O domínio técnico em sua poesia, comprovaria também a tradição parnasiana. Durante muito tempo foi ignorado pela crítica, que julgou seu vocabulário mórbido e vulgar. Sua obra poética, está resumida em um único livro “EU”, publicado em 1912, e reeditado com o nome “Eu e Outros Poemas”. O poeta Augusto dos Anjos estudou, por influência de seu pai, na Faculdade de Direito do Recife entre os anos de 1903 e 1907. Formado em Direito, retornou para João Pessoa, capital da Paraíba, onde passou a lecionar Literatura Brasileira, em aulas particulares. Em 1908, Augusto dos Anjos foi nomeado para o cargo de professor do Liceu Paraibano, mas em 1910, foi afastado do cargo por desentendimentos com o governador. Nesse mesmo ano casa-se com Ester

Fialho e muda-se para o Rio de Janeiro, depois que sua família vendeu o engenho Pau d’Arco. Em 1911 foi nomeado professor de Geografia, no Colégio Pedro II. Durante sua vida, publicou vários poemas em jornais e periódicos. A publicação do livro “EU”, causou espanto nos críticos da época, diante de um vocabulário grotesco e sua obsessão pela morte: “podridão da carne, cadáveres fétidos e vermes famintos”. Como também por sua retórica delirante, por vezes criativa, por vezes absurda, como neste trecho do poema “Psicologia de um Vencido”: “Eu, filho do carbono e do amoníaco,/ Monstro da escuridão e rutilância,/ Sofro, desde a epigênese da infância,/ A influência má dos signos do zodíaco”. Em 1914, Augusto dos Anjos foi nomeado Diretor do Grupo Escolar Ribeiro Junqueira, em Leopoldina, Minas Gerais, para onde se mudou. Nesse mesmo ano, depois de uma longa gripe, foi acometido de uma pneumonia. Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos faleceu em Leopoldina, Minas Gerais, no dia 12 de novembro de 1914, com apenas 30 anos de idade.


lumeMatoGrosso À MESA Augusto dos Anjos Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora, Antegozando a ensangüentada presa, Rodeado pelas moscas repugnantes, Para comer meus próprios semelhantes Eis-me sentado à mesa! Como porções de carne morta... Ai! Como Os que, como eu, têm carne, com este assomo Que a espécie humana em comer carne tem!... Como! E pois que a Razão me não reprime, Possa a terra vingar-se do meu crime Comendo-me também. FOTO DIVULGAÇÃO

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R E T R ATO E M PRETO E BRANCO

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Um homem de grandes paixões

eftali Reyes Basualto nasceu em 12 de julho de 1904, na cidade de Parral, no sul do Chile, mas aos 17 anos adotou o nome de Pablo Neruda em uma tentativa de esconder de seu pai o ofício que o apaixonava, sem que até hoje exista certeza sobre o que inspirou o pseudônimo. Desde jovem seu grande talento ganhou reconhecimento internacional e, em outubro de 1971, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Poeta apaixonado, Pablo Neruda provou os prazeres da vida, amou as mulheres e se comprometeu com o socialismo no Chile. O escritor morreu 12 dias após o golpe militar de Augusto Pinochet, há mais de 40 anos, e até hoje a justiça investiga se ele teria sido assassinado por conta de sua amizade com Salvador Allende. A obra de Neruda se caracteriza por sua universalidade, incorporada em obras como “Residência na terra”, “Canto Geral”, “Odes Elementares” e “Confesso que vivi” , ou ainda nos versos dedicados à dança, alegria, ao livro, ao mar, ao tempo, à tristeza ou ao vinho, ou com poemas como “As alturas de Machu Picchu”, com o qual introduziu a história sul-americana. A literatura de Neruda transcendeu as fronteiras graças a suas obras mais românticas: “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” e “Versos do Capitão”. Apesar de ter sido considerado um homem fisicamente pouco atraente, tímido e inseguro, Neruda se casou três vezes e teve pelo menos seis amantes furtivas, que o inspiraram a criar os famosos poemas de amor. “Um poeta deve estar sempre apaixonado, até o último minuto de sua vida”, confessou à jornalista Maria Esther Gillio, em uma entrevista em 1970. Em 1930, ele se casou em Batavia (atual Jacarta) com a holandesa Maria Antonieta

Hagenaar, sua primeira esposa, com quem teve uma filha, Malva Marina, que morreu aos oito anos de idade vítima da hidrocefalia. Mesmo casado, apaixonou-se pela artista plástica argentina Delia del Carril, 20 anos mais velha, que teve forte influência sobre o poeta, tornando-se uma espécie de “mãe intelectual” durante os 20 anos de convivência. Casado com Delia, viveu no México, onde começou um caso secreto com a soprano chilena Matilde Urrutia, que veio a ser sua terceira esposa, com quem passou seus últimos dias na casa de Isla Negra, onde estão os túmulos de ambos. No final, sua vida foi atormentada por um relacionamento que manteve com a sobrinha de Matilde, Alicia Urrutia. Pablo Neruda teve uma participação ativa no Partido Comunista e em 1945 tornou-se senador pelas províncias do norte de Tarapacá e Antofagasta, quando conheceu o socialista Salvador Allende. Em 1948, Neruda foi exilado pelo presidente Gabriel González Videla, que o acusou de injúria e também tornou ilegal o Partido Comunista. O poeta teve que fugir secretamente para a Argentina em um cavalo, e depois para a Europa. Em 1970, de volta ao Chile, Neruda foi apresentado como pré-candidato à presidência pelos comunistas, mas decidiu recusar a indicação para apoiar Allende, que se tornou presidente em 1971 e o nomeou embaixador na França. Neruda, que retornou ao Chile em 1972, foi um firme defensor do governo socialista e um forte opositor do golpe de Estado de Augusto Pinochet. O poeta também teve uma extensa carreira diplomática e foi cônsul em Yangum (Birmânia, atual Mianmar), Cingapura, México e Espanha.

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Pablo Neruda

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Americanidade

A Busca Pelo Intercâmbio Cultural Entre Os Povos Da América Do Sul:

Mário Vargas Llosa Referência na literatura da América do Sul

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ario Vargas Llosa nasceu em 28 de março de 1936, em Arequipa, no sul do Peru. Seus pais eram Ernesto Vargas Maldonado (aviador) e Dora Llosa Ureta. Com a publicação da novela A cidade e os cachorros (1963), Vargas Llosa foi consagrado como uma das figuras fundamentais do “boom” da literatura hispano-americana dos anos 1960. Como outros membros do mesmo grupo, seu trabalho rompeu com os canais da narrativa tradicional, assumindo as inovações da narrativa estrangeira e adotando técnicas como o monólogo interior, a

pluralidade de pontos de vista ou a fragmentação cronológica, geralmente colocados ao serviço de um realismo grosseiro. Por outro lado, o romancista peruano também deve importantes contribuições críticas e profundas reflexões sobre a arte da escrita, como a sua teoria sobre “demônios internos”, que tenta explicar a escrita como um ato de expulsão, por parte do criador, da elementos de consciência capazes de incubar distúrbios que apenas o ato de escrever pode exorcizar. O Prêmio Nobel de Literatura em 2010, coroou uma carreira exemplar.

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estabelecendo-se nessas publicações como portador padrão de um grupo que reagiu contra a narrativa social e documentalista da época. No final dos anos1950, ele finalmente conseguiu viajar e se instalar na Europa, onde começou a trabalhar na Radio Televisión Francesa e foi professor do Queen Mary College, em Londres. Publicou seu primeiro trabalho, Los bosses (1959), com apenas vinte e três anos, e com a novela La ciudad y los perros (1963) ganhou reputação entre os escritores que na época estavam criando o iminente boom literário ibero-americano. Vargas Llosa acabaria aparecendo entre os autores essenciais desse fenômeno editorial, e foi colocado para a sua relevância na linha de frente, juntamente com os narradores da estatura do colombiano Gabriel Garcia Márquez, os mexicanos Juan Rulfo e Carlos Fuentes, os argentinos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Ernesto Sábato e o uruguaio Mario Benedetti. O sucesso deste romance e o elogio que levou à sua carreira literária permitiram que ele deixasse um estágio precário e boêmio. No antigo continente, Vargas Llosa estabeleceu sua residência primeiro em Paris e depois em Londres (1967), de onde se mudou para Washington e Porto Rico.

AO ALTO, DA ESQUERDA PARA A DIREITA: 01 - MARIO VARGAS LLOSA, 02 - GABRIEL GARCIA MARQUES; 03 - JULIO CORTAZAR - 04- CARLOS FUENTEZ.

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BIOGRAFIA Mario Vargas Llosa passou sua infância entre Cochabamba (Bolívia) e as cidades peruanas de Piura e Lima. O divórcio e a posterior reconciliação de seus pais resultaram em mudanças freqüentes de endereço e escola; entre quatorze e dezesseis anos ele era um estagiário na Academia Militar Leoncio Prado, cena de sua novela La ciudad y los perros. Com dezesseis anos de idade, começou sua carreira literária e jornalística com a estréia do drama La huida del Inca (1952), um pouco de sucesso. Pouco depois de entrar na Universidade de São Marcos em Lima, onde estudou literatura. Ele realizou vários trabalhos para viver sem abandonar seus estudos: de um editor de notícias em uma estação de rádio para um registrador no Cemitério Geral de Lima. Em 1955, um escândalo causado pela sua tia Julia Urquidi (um episódio inspirado pela novela tia Julia e o escriba) agravou ainda mais sua situação, tendo que recorrer a alguns amigos para aliviar sua situação doméstica angustiante. Na capital peruana, fundou Cuadernos de Composição (1956-1957), juntamente com Luis Loayza e Abelardo Oquendo, e depois a Revista de Literatura (1958-1959),

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Em 1977 foi nomeado membro da Academia peruana de Língua e professor da cadeira Simon Bolivar em Cambridge. No campo político, sua ideologia sofreu ao longo dos anos mutações profundas. A rejeição visceral de todas as ditaduras e a abordagem da democracia cristã caracterizaram sua juventude; Na década de 1960, ele passou de um apoio explícito à Revolução Cubana para um distanciamento progressivo do comunismo e uma ruptura definitiva com o governo de Fidel Castro (1971) seguindo o chamado Caso Padilla. Ele acabou se tornando um forte defensor do liberalismo, mas sem renunciar aos avanços sociais alcançados pelo progressismo, e nos anos 1980 ele se envolveu ativamente na política de seu país. O promotor do partido Frente Democrático, cujo programa combinou o neoliberalismo com os interesses da oligarquia peruana tradicional, Mario Vargas Llosa apareceu como chefe da lista nas eleições peruanas de 1990, em que foi derrotado por Alberto Fujimori. Ele decidiu então se mudar para a Europa e dedicar-se completamente à literatura; Publicou artigos de opinião em jornais como El País , La Nación , Le Monde , Ca-

retas , The New York Times e El Nacional . Em 1993, obteve a nacionalidade espanhola, e um ano depois foi nomeado membro da Royal Spanish Academy. Mario Vargas Llosa foi distinguido, entre muitos outros prêmios, com os prêmios Príncipe das Astúrias das Letras (1986), Cervantes (1994) e Nobel Literature (2010). O reconhecimento máximo das letras universais veio em reconhecimento “a sua cartografia de estruturas de poder e suas imagens de resistência, revolta e derrota individual”.


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O TRABALHO NARRATIVO DE VARGAS LLOSA Sua produção narrativa começou em 1959 com as histórias dos patrões e alcançou a ressonância internacional com o romance A cidade e os cães (1963, Prêmio Biblioteca Breve de 1962), reflexão e denúncia da organização paramilitar Leoncio Prado School, onde o autor completou seus estudos secundários. A atmosfera fechada e opressiva daquela escola militar em Lima parece encapsular toda a violência e a corrupção no mundo atual; Os “cães” do título são os alunos do primeiro ano, submetidos a crueldade por parte dos anciãos. Deixando de lado seus problemas sociais e éticos, o romance mostra uma maturidade surpreendente pelo caráter ambíguo e mutável dos personagens, pela descrição precisa dos ambientes urbanos, pelo seu enredo sinuoso e pelo tratamento hábil do tempo narrativo. Longe de atenuar, o experimentalismo e a superposição de tempos, personagens e ações intensificam seu realismo brutal e chocante e o retrato de uma violência explícita ou subjacente. Como narrador, Vargas Llosa amadureceu precocemente: A cidade e os cães (1963) é o primeiro romance peruano completamente “moderno” em recursos expressivos. The Green House (1966), The Puppies (1967) e Conversation in The Cathedral (1969) o ungiram como um dos protagonistas do “boom” da novela hispano-americana dos anos sessenta e como o mais caracteristicamente neorrealista do grupo, com um virtuosismo técnico de enorme influência internacional. Seus romances posteriores, exceto o mais ambicioso de todos, A Guerra do Fim do Mundo (1981, um retrato afiado da heterogeneidade sociocultural da América Latina), abandonou o design de “romances totais” que até então o obcecavam e optaram pela reelaboração (irônica ou transgressiva) de formas ou gêneros subliterários ou extraliterários, apresentando com grande frequência uma reflexão sobre os limites da realidade e da ficção que recria aspectos da literatura de fantasia e do experimentalismo nar-

rativo sem cair completamente neles: farsa, em Pantaleón e os visitantes (1973); o melodrama, na tia Julia e o escritor (1977); ficção política antecipada, em Historia de Mayta (1984); A história do crime e do mistério, em Quem matou Palomino Molero? (1986) e Lituma nos Andes (1993); a narrativa erótica, em Elogio de la madrastra (1988) e Los cuadernos de don Rigoberto (1997); e política, em La fiesta del chivo (2000). Não há dúvida de que a narrativa ocupa o lugar central de sua produção abundante. Sua habilidade técnica magistral, sua capacidade de tornar cada um deles um mundo sólido capaz de auto-sustentabilidade e o fato de conceder uma autonomia total ao trabalho narrativo são suas virtudes fundamentais. Em todos os seus livros, incluindo aqueles que gostam de Pantaleón e os visitantes ou La tía Julia e o escritor, podem ser considerados menores, a forma adquire o maior grau de importância. Na tradição do romance dos ditadores, Vargas Llosa também publicaria um trabalho ambicioso e total, La fiesta del chivo (2000), no qual reconstrói com domínio absoluto a ditadura de Rafael Leonidas Trujillo, na República Dominicana. Seis anos depois, ele deu à impressão Travesuras de la niña mala (2006), uma história entre o cômico e o trágico em que o amor se mostra o dono de mil rostos. O herói discreto (2013) é, por enquanto, o romance mais recente dele.

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Ú LT I M A P Á G I N A

“ Me procurei a vida inteira e não me encontrei - pelo que fui salvo.” Manoel de Barros

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ILUSTRAÇÃO FERNANDO ROMEIRO




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