O propósito bíblico da Missão

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Lane, William Lacy

O propósito bíblico da Missão / William Lacy Lane.- -. Descoberta - Londrina - PR: 2023.

216 p.

ISBN - 978-65-87709-30-7 1. Missiologia 2. Teologia de Missão 3. Teologia de Missão Antigo e Novo Testamento I. Título

CDD (21) 266

1ª edição: abril /2023

Coordenação de produção: Eduardo Pellissier

Capa: Eduardo Pellissier

Projeto gráfico: Decomm Comunicação Visual

Revisão: Decomm Comunicação Visual

Impressão: Viena Gráfica

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Página na internet: www.editoradescoberta.com.br

DeDicatória

À Jenni Lynn, pela companhia, apoio e incentivo no ministério e neste trabalho, e aos filhos, Julia, William, Daniel, Samuel e Christina.

agraDecimentos

À Escola de Estudos Interculturais do Fuller Theological Seminary pela bolsa de pesquisador visitante (visiting scholar) no Global Research Institute e os recursos financeiros, moradia e acesso à biblioteca concedidos para a pesquisa e preparação deste livro.

À Faculdade Teológica Sul Americana pelo incentivo e apoio nesse projeto, e por ter proporcionado a mim a oportunidade de me afastar das atividades docentes para me dedicar seis meses à pesquisa e preparação deste livro.

Lista De abreviaturas

gr. - grego

heb. - hebraico

RA - Bíblia Revista e Atualizada

RC - Bíblia Revista e Corrigida

NVI - Bíblia Nova Versão Internacional

NVT – Bíblia Nova Versão Transformadora

As citações bíblicas seguem a Nova Versão Internacional, exceto quando indicado de outro modo.

Os termos hebraicos e gregos são transliterados de forma simplificada sem o uso da representação dos sinais diacríticos.

sumário

Primeira Parte

O Propósito Bíblico da Missão i Uma hermenêutica missiológica da Bíblia

Introdução | 15

Parte 1: Uma hermenêutica missiológica | 23

1. A Bíblia e a Missão | 25

2. Abordagem de leitura | 37

3. Molde canônico e literário da Bíblia | 42

Parte 2: Missão no Antigo Testamento | 53

1. Bases teológicas | 57

2. História do povo na terra de Deus | 89

3. Experiência de vida no temor de Deus | 116

4. Reflexão e autocrítica | 130

Conclusão | 181

Referência bibliográfica | 165

Segunda Parte

O Propósito Bíblico da Missão

A Missão no Novo Testamento

Introdução | 175

1. O Evangelho e Atos dos Apóstolos | 174

2. Propagação e Consolidação | 196

3. A Consumação | 240

Conclusão | 245

Referências Bibliográficas | 251

introDução

Quando Johan Herman Bavinck publicou a sua obra sobre a ciência de missões em 1954, a obra missionária e o estudo da missiologia passavam por severas críticas sobre sua razão de ser e isso fez com que teólogos buscassem defender a importância do estudo dessa ciência e justificar a sua existência a partir de uma adequada fundamentação teológica. Em sua introdução, Bavinck retrata a crise da época e afirma:

É verdade que as missões se encontram nesse momento em uma grave crise [...] De fato, provavelmente, hoje estamos mais conscientes, do que gerações passadas, que problemas teóricos relacionados a princípios que só podem ser respondidos pelas Escrituras, estão por trás de inúmeros problemas práticos que afligem a igreja. Tato, intuição e uma clara apreciação às dificuldades envolvidas são importantes, mas estes não nos apontam para soluções. A palavra final e decisiva deve ser dita pelas Escrituras (1960:xv).

Em 1958, ao abordar a situação corrente das missões cristãs no Concílio Missionário Internacional, Leslie Newbigin (1958, p. 10-12) reconhece também que o movimento missionário de então passava por uma “situação crítica” e sugere que as causas fossem tanto teológicas quanto das mudanças culturais e políticas no mundo. Ele propõe que a melhor maneira de superar a crise e buscar o “modelo para a missão da igreja” não é se deixar levar pelo espírito do momento, mas voltar-se para a própria Bíblia, e ainda enfatiza que a questão não é organizacional, mas “é uma questão do pensamento teológico fundamental, do estudo da Bíblia e do discernimento dos sinais dos tempos.

Em dois artigos sobre a crise teológica das missões publicados em 1963 pela Revista Teológica do atual Seminário Presbiteriano do Sul em Campinas, Carl J. Hahn, falecido missionário norte-americano e professor de missões e análise bíblica daquela instituição, traz uma valiosa contribuição para a reflexão sobre a crise da teologia de missões sentida na década de 1960. Assim como outros teólogos da época, Hahn também identifica uma crise na teologia de missões.

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Ele constata tal crise a partir de algumas citações de teólogos norte americanos, dentre os quais, Edmund Perry que declara:

[...] o aspecto mais grave de nosso entrave não é nossa inexperiência nem a relutância nascida do orgulho de sermos ensinados pelos nossos próprios convertidos, e sim a indecisão no que diz respeito à Missão Cristã. Essa indecisão provém da divisão de opinião sobre o que é Missão Cristã e a incerteza sobre sua autoridade ou seu motivo.

Numerosos cristãos no oeste por muito tempo não têm tido a convicção absoluta de que as pessoas devem ser convertidas de outra fé à fé Cristã e confessam abertamente que não desejam ser assim persuadidos, pois tal atitude torna a fé cristã arrogante e intolerante e, portanto, inaceitável para eles.1

Com essa citação e posterior discussão da crise, Hahn (1963, p. 74) traz uma contribuição às causas que geraram a crise na teologia de missões e propõe que o movimento missionário tem que resolver três questões,

1) Se temos autoridade para executar um programa verdadeiramente missionário para todos os povos não cristãos;

2) Qual é a mensagem missionária que temos de proclamar;

3) Se temos autoridade para uma verdadeira campanha missionária entre os não cristãos; quais os melhores métodos que a Igreja possui para isto?

Ele argumenta, então, que o maior problema das missões daquela época era uma questão teológica e atribui a causa da crise a alguns fatores relacionados às nações e religiões não cristãs, mas Hahn vê essa crise de maneira positiva, pois entende que é um meio usado por Deus para fazer a igreja consciente dos problemas e diz:

As grandes mudanças no mundo não cristão, não criaram estas crises, mas tornaram o fato mais evidente. A ascendência do nacionalismo em países aparentemente ocupados por Missões, a revitalização das mais antigas religiões orientais e africanas, o desafio provocador e militante do materialismo dialético, ateístico, representado não só pelo Marxismo mas também pelo

1 O grifo é do autor do artigo. A citação tem nota de rodapé, mas a edição consultada não traz as referências bibliográficas.

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materialismo e secularismo do oeste, tudo isso tem sido usado pela providência de Deus para fazer o Cristianismo cônscio de sua crise teológica inerente. Tudo isso tem servido para o impelir a buscar seus próprios recursos e postulados teológicos, resultando numa volta à teologia bíblica (1963, p. 75. Grifo meu).

Percebemos também que Hahn aponta para um retorno à teologia bíblica e mais, defende que “o movimento missionário, ao examinar suas próprias raízes, descobre que tem a sua fonte no Deus Trino” (1963, p. 75). Assim, faz coro com outros teólogos que defenderam que a motivação e justificativa para a obra missionária não pode ser outra a não ser o próprio Deus. Outro autor que constatou essa crise no movimento missionário das décadas de 1950 e 1960 foi Johannes Blauw (1966, p. 9): 2

O caráter problemático do movimento missionário, iniciado há cerca de dois séculos e meio, tem levado a uma pergunta sempre mais insistente sobre o porquê das missões. O que está em questão não é só o método das missões, mas o seu próprio direito de existir. Aqueles que veem o movimento missionário dos últimos poucos séculos apenas como fenômeno historicamente distinto, não encontram dificuldade alguma em colocar as missões entre as grandes instituições que, como qualquer outro complexo histórico específico, já tiveram o seu tempo, uma vez que irão desaparecer natural e gradualmente por si. Pois o que é velho e obsoleto está desaparecendo.

Posteriormente, o missiólogo reformado Johannes Verkuyl, em sua obra sobre teologia contemporânea de missões, também se reporta ao sentimento do início da década de 1960 e, citando um discurso de W. A. Visser’t Hooft em conferência missionária na Cidade do México em 1963, argumenta que toda a fundamentação de missões sonhada pelos teólogos naqueles tempos estava se desmoronando e, por isso, defende que “apenas uma [fundamentação] baseada no Deus vivo, no Senhor ressurreto e na Bíblia poderá sobreviver” (1978, p. 89).

Assim ele propõe:

Nesse ‘tempo de provação’ nós estamos tendo que aprender a retornar à Bíblia e prestar atenção novamente ao Deus, que

2 A obra de Blauw foi originalmente publicada em 1962.

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no Antigo Testamento é descrito como o ‘Deus que envia’ e que ‘está em movimento,’ e a Jesus, a respeito de quem o Novo Testamento diz que é o ‘enviado do Pai’. Esse Deus fala a nós através da Bíblia.

Diante da crise do movimento missionário da primeira metade do século passado, não apenas Bavinck, Hahn, Blauw e Verkuyl, mas também outros teólogos apontam para o mesmo caminho: a missão é um mandato divino atestado nas Escrituras. Blauw afirma (1966, p. 9): “Todavia, quando as missões não são consideradas como fenômeno histórico, mas como comissão divina, a questão de uma base bíblica e teológica da missão passa a ser importante.”

Essa crise, consequentemente, levou à busca de uma fundamentação bíblica e teológica da missão. Por isso, seria possível afirmar que no estudo da teologia da missão a preocupação com a base bíblica da missão ou das missões é uma tarefa recente e que é fruto de uma luta para defender as missões em uma época em que a igreja estava se voltando a outras questões e o movimento missionário dos séculos 19 a 20 estava se enfraquecendo e, consequentemente, sendo visto como um movimento superado historicamente.

Isso pode ser também confirmado na observação de Bavinck à obra de Gisbertus Voetius (1588-1676), um teólogo reformado do século 17. Bavinck (1960, p. 6) se surpreende com a ausência de uma fundamentação bíblica da missão. Ele diz: “É impressionante que Voetius não está preocupado com a fundamentação bíblica de missões. Esta questão não era tão importante em sua época.”

Isso não significa que a questão não fosse tratada teologicamente. Bosch é da opinião que Voetius “foi o primeiro protestante a desenvolver uma ampla ‘teologia de missão’” e que ele defendia que “a base da missão era primordialmente teológica – emanando do próprio âmago divino.” Bosch (2002, p. 313-314) diz ainda que Voetius é provavelmente “um dos primeiros expoentes daquilo que hoje se conhece como missio Dei.”

Portanto, fica evidente que o campo de estudo da teologia bíblica da missão como se denomina hoje é fruto de uma preocupação recente para sustentar que a missão da igreja e sua obra missioná-

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ria no mundo não são resultados de empreendimentos eclesiásticos colonialistas, mas vêm da própria vontade de Deus. Mais de meio século se passou desde a primeira publicação da obra de Bavinck e várias outras obras sobre a base bíblica da missão têm surgido. Além disso, a igreja de modo geral tem se engajado na tarefa da evangelização e da missão. Também se faz notório a expansão do campo de estudo da teologia bíblica da missão nas escolas teológicas, conferências e publicações. Mas ainda nos anos 1990 em sua obra Missão Transformadora, David Bosch (1996, p. 4) se reporta à “crise contemporânea” e declara que ela se “manifesta em três áreas: na fundamentação, no motivo e alvo, e na natureza das missões.” Entretanto, Bosch vê isso como uma mudança de paradigma e uma oportunidade para uma discussão mais aprofundada no estudo e obra missionários. Contudo, essa crise das missões na segunda metade do século 20 foi proveitosa não só para a obra missionária da igreja como também para os estudos bíblicos, teológicos e práticos da missiologia. Apesar de a missiologia se desdobrar em diversos campos de estudo como os métodos, estratégias, antropologia cultural, contextualização, diversos estudos e publicações se concentraram nos aspectos bíblicos e teológicos da missão ou missões. No final da segunda década do século 21, a missiologia não só é um campo de estudo solidamente estabelecido como também é um campo que está constantemente buscando caminhos para que a igreja seja bíblica, social e culturalmente relevante em uma sociedade em constante mudança. Há uma necessidade contínua de encontrar respostas tanto para a complexidade da vida humana quanto para as questões metodológicas da missiologia. Diversas décadas de estudos em missiologia e da fundamentação bíblica da missão forneceram significativas respostas. Entretanto, não só os tempos mudam como também novas perguntas surgem de modo que as respostas comumente aceitas algumas décadas atrás precisam ser continuamente reavaliadas à luz das Escrituras diante das novas situações e desafios. Uma das áreas em que isso é uma realidade é o relacionamento entre Bíblia e a missão. Diante de inúmeras e significativas obras

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sobre a fundamentação bíblica e a teologia da missão, supõe-se que haja uma aceitação geral da sólida fundamentação da missão nas Escrituras. Contudo, hoje a dúvida não é mais se a missão é bíblica, mas como ela é bíblica ou como podemos ler a Bíblia numa perspectiva missional. Levanta-se, então, a questão da hermenêutica missiológica e de como o leitor contemporâneo lê a Bíblia na perspectiva da missão.

O objetivo deste livro é contribuir para a discussão e propor uma abordagem de leitura da Bíblia que leve em conta toda a Bíblia – não apenas passagens isoladas – e a adote como paradigma teológico-bíblico para a missão. A pressuposição básica desse debate é que o estudo atual da teologia bíblica da missão é o resultado da busca por fundamentação bíblica da missão e é, portanto, a herdeira do campo de estudo da teologia da missão que se preocupou com a base bíblica. Entretanto, apesar de a fundamentação bíblica da missão ter provido importante retorno às Escrituras, é preciso que se prossiga para uma compreensão mais abrangente da mensagem bíblica para a teologia da missão para que a missão não seja fundamentada apenas em alguns textos preferidos.

Em relação à teologia bíblica da missão, o pressuposto básico é que a Escritura Sagrada é o referencial absoluto da teologia da missão e, portanto, deve moldar a proclamação da mensagem bíblica. A implicação disto é que a motivação, ações, estratégias e propósitos da atividade missionária devem ser moldadas pela compreensão teológica da Bíblia na perspectiva da missão.

Embora essa discussão pareça essencialmente teórica, a intenção é que ela forneça subsídios para a articulação e referencial de uma missiologia integral em que a mediação da presença de Deus na vida humana e na sociedade por meio de Cristo seja um testemunho para a redenção e transformação de indivíduos e, consequentemente, da sociedade.

Este primeiro volume está dividido em duas Partes principais. Na primeira exponho a problemática da relação da Bíblia e da Missão e como isso tem sido abordado ao longo das últimas décadas.

Proponho também um molde literário e canônico para uma leitura

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teológica e missiológica da Bíblia. A segunda Parte aplica esse referencial hermenêutico para a leitura do Antigo Testamento. Desejo identificar os diversos temas ao longo das Escrituras e como eles se relacionam para o entendimento da Missão de Deus, consequentemente, para o nosso entendimento da missão da igreja no mundo contemporâneo.

O segundo volume adota o mesmo molde de leitura aplicado ao Novo Testamento e, novamente, desejo examinar os temas e mensagens particulares de cada livro bíblico e entender como eles se relacionam com a missão de Deus.

Essa obra é o resultado de um longo processo de estudo, reflexão, análise e articulação das ideias. Muitos anos atrás iniciei meus estudos em missiologia no Centro Evangélico de Missões (CEM), em Viçosa, MG. Depois de completado os créditos dos módulos presenciais para o Mestrado Livre em Missiologia, fui aos Estados Unidos onde fiz meu Mestrado em Teologia com ênfase no Antigo Testamento (Calvin Theological Seminary, 1996). Desde então me interessei muito pelo diálogo entre a teologia bíblica e a missiologia. Foi assim que para a minha dissertação no CEM (2006) defendi a necessidade de se ir além da fundamentação bíblica da missão para examinar o propósito bíblico da missão. Passei a dar aulas no CEM como professor visitante da disciplina de Teologia Bíblica da Missão em que pude expor muitas das ideias aqui apresentadas. Em 2011 obtive o Doutorado em Teologia com concentração em Antigo Testamento (EST, S. Leopoldo) em que procurei explorar o conceito da missão integral do movimento de Lausanne a partir de uma exegese bíblica de Isaías 65.17-25. Em 2018, recebi uma bolsa do Global Research Institute (GRI) para passar seis meses em uma pesquisa pós-doutoral no Center for Missiological Research (CMR) do Seminário Teológico de Fuller, em Pasadena, CA, nos EUA. Nessa ocasião tive acesso a uma vasta biblioteca e recursos de pesquisa, além de participação em alguns fóruns e colóquios que possibilitaram ampliar minha pesquisa e preparar o trabalho final. Finalmente, depois de algumas edições e revisões, apresento o resultado de minha pesquisa.

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Desejo com isso poder contribuir para o debate da relação da Bíblia e a Missão e poder despertar o seu interesse na investigação bíblica da missão.

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