Professora Ana Tettamanzy – Foto: Ramon Moser / DEDS – UFRGS
Das histórias às estrelas4 As duas mulheres e o céu está no livro do contador de histórias Ilan Brenman (2016), que reconta textos tradicionais que fazem parte de seu repertório pessoal. Trata-se de um conto curto, simples e de caráter etiológico (ou seja, como os mitos, explica o surgimento de algo que existe, no caso, a origem das estrelas). O enredo apresenta duas mulheres de uma aldeia do Quênia moendo grãos num pilão e conversando tão animadamente que acabam por furar o céu – assim surgem as estrelas. O uso que faço do pilão, além de mostrar a continuidade desse costume no Brasil, permite construir corporalmente o diálogo das duas: simulo entonações e gestos de cada uma de um lado a outro do instrumento de trabalho, usando a expressão patati para a fala de uma e patatá para a fala da outra. Aumento ritmo corporal e volume da voz até resultar nos gritos de dor do céu sendo furado pelas mulheres conversadeiras. A cena provoca riso e é muito plástica na atribuição fabulosa de atitudes humanas ao céu. Na sessão da Semana da África, para começar, cantei trechos de duas composições5, uma em língua Xhosa,
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da África do Sul, que fala de um pássaro avisando uma mãe sobre o paradeiro de seu filho, a outra em versos da intérprete brasileira Clementina de Jesus, que anunciam o fim da escravidão. O tom dramático da primeira contrasta com a alegria da segunda, que convida os ouvintes a cantar junto o refrão que anuncia a liberdade, uma associação aparentemente estranha, que poeticamente faz o espectador deixar-se levar pela língua desconhecida até encontrar ritmo, língua e ideias mais familiares. No evento, quando entoei a primeira canção, vários dos presentes acharam engraçada minha execução – e na hora, pega de surpresa, eu reagi exagerando o tom dramático, tentando dialogar com a atitude que não reconheceu a dramaticidade que eu projetei no tema e no tom da composição sul-africana. Além das canções, acrescentei elementos espaciais e culturais que não estavam na escrita. Por exemplo, comentei que depois de pilar todos sentaram ao redor do fogo ou das árvores para ouvir histórias, ou ainda ressaltei o papel das mulheres nessas sociedades rurais. Com as crianças e jovens da Semana, senti-me à vontade para inclusive rir de mim mesma, imaginando uma performance
Relato de Ana Lúcia Liberato Tettamanzy.
Retiradas do CD Astrolábio Sucupira, do Grupo Mawaca, que se destaca pela pesquisa e recriação de sonoridades e canções de diferentes povos e etnias.
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REVISTA SEMANA DA
ÁFRICA NA UFRGS – Volume 4
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