O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as Políticas Públicas de Preservação

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DANILO CELSO PEREIRA

O PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE SÃO LUIZ DO PARAITINGA E AS

Desenho a bico de pena de Lygia Fong (2008)

POLÍTICAS PÚBLICAS DE PRESERVAÇÃO

SÃO PAULO 2012


Foto: Anita Hirschbruch

O PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE SÃO LUIZ DO PARAITINGA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PRESERVAÇÃO

e-mail: daniloslp@usp.br


DANILO CELSO PEREIRA

O PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE SÃO LUIZ DO PARAITINGA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PRESERVAÇÃO

Trabalho de Graduação Individual apresentado ao Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo como requisito à obtenção do título de Bacharel em Geografia. Orientadora: Profª Drª Simone Scifoni

SÃO PAULO 2012



PEREIRA, D. C. O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as políticas públicas de preservação. Trabalho de Graduação Individual apresentado ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Bacharel em Geografia, aprovado pela seguinte Banca Examinadora:

__________________________________ Profª Drª Simone Scifoni DG/FFLCH/USP Orientadora

__________________________________ Profª Drª Isabel Aparecida Pinto Alvarez DG/FFLCH/USP

__________________________________ Profª Drª Flávia Brito do Nascimento IPHAN/SP

São Paulo, _____ de __________________ de 2012


Dedico este trabalho a todos os luizenses, em especial aos que tiveram suas casas invadidas pelas ĂĄguas do Rio Paraitinga no primeiro dia de janeiro de 2010, sobretudo aos familiares de JoĂŁo Roberto dos Santos, vĂ­tima do desastre.


AGRADECIMENTOS

Hoje eu vou pedir desculpas pelo que eu não disse eu até desculpo o que você falou eu quero ver meu coração no seu sorriso e no olho da tarde a primeira luz.

Oswaldo Montenegro

A primeira pessoa a quem devo agradecer pela concretização dessa etapa é, sem dúvida, a minha mãe Fátima, tanto pelo apoio irrestrito quanto pelas palavras de incentivo, sobretudo pelo que parece mais simples, mas que é o mais importante: por ter sido minha Mãe e ter desempenhado com maestria todas as funções que essa palavra carrega. Mãe, te amo muito! Ao meu pai Pedro, agradeço por me ensinar a valorizar as coisas simples da vida e pelas noites em claro que passou ao meu lado em alguns momentos difíceis. E, sem dúvida, um agradecimento muito especial aos meus segundos pais, os meus avós Brás e Vicentina por me apoiarem no início dessa caminhada. Amo muito vocês.


Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais é só a fazer outras maiores perguntas.

Guimarães Rosa

Agradeço à minha orientadora, professora Simone Scifoni, por nortear a minha pesquisa. Nunca poderia imaginar que ao entrar naquela sala, onde ela ministrava sua primeira disciplina no Departamento de Geografia da USP, comentar onde eu havia nascido e ter ouvido “Há... aquele lugar lindo!”, eu estaria começando a redefinir o meu percurso acadêmico, coisas da vida. Obrigado Simone, pessoa admirável pela trajetória profissional dedicada ao patrimônio cultural e por desempenhar com amor a função de professora, além de ser uma pessoa que encanta pela simplicidade.

Obrigado Sueli Herculiani, do Instituto Florestal do Estado de São Paulo, por todo incentivo, pelas orientações, por me mostrar a riqueza do patrimônio cultural imaterial das comunidades tradicionais paulistas. Fui colocado como estagiário de uma pessoa sensível às questões culturais em um instituto voltado, sobretudo, a preservação da natureza, agradeço ao destino por isso.


Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo.

Vinícius de Morais

Agradeço profundamente a todos meus amigos da turma de 2006, em especial à Carolina, Anaclara, Hilda, Cintia e ao Luan, pessoas que fizeram dessa caminhada algo muito mais gostoso e divertido. Agradeço às duas primeiras pessoas que eu conheci no Departamento de Geografia e que, assim como eu, estavam perdidas pelos corredores da FFLCH e se tornaram importantes e constantes companhias nesses seis anos de São Paulo, Deborah e Renata. Um agradecimento especial também a um sujeito que, como eu, se orgulha de suas origens, de quem tenho lembranças desde a época da FUVEST, como poderia imaginar que aquele concorrente na minha sala da ETEP em São José dos Campos viria a se tornar um dos meus melhores amigos, obrigado Douglas.

Gostaria de agradecer à pessoas especiais que, apesar de não serem da minha turma, estiveram presentes em importantes momentos desses últimos anos, Claudia, Tais, Janaina, Andressa, Talita e Glayce.


Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminhos, se não fora A mágica presença das estrelas!

Mario Quintana

Agradeço:

Aos funcionários de Seção de Documentação do CONDEPHAAT, por me auxiliarem nas pesquisas documentais.

Aos técnicos da Superintendência do IPHAN em São Paulo, em especial a arquiteta Liliane Vieira, pelo trabalho desenvolvido em São Luiz e pela colaboração nessa pesquisa.

À Natália Moradei, Diretora de Obras da PMSLP, pelas conversas e informações que tanto enriqueceram este trabalho.

Aos meus professores do curso de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a quem devo a minha formação acadêmica, responsáveis pelos pensamentos que irão nortear a minha atuação profissional daqui para frente.

À todos os meus professores do ensino fundamental e médio de São Luiz do Paraitinga, profissionais que me ensinaram a valorizar os estudos e começaram a estimular o meu espírito crítico, em especial à Profª Fátima Prado Santos, então Diretora da E. E. Monsenhor Ignácio Gióia, por todo o incentivo.


O sorriso esconde a lágrima O coração apertado Mas o luizense tem força Traz a raça do passado Acompanhando o tempo devagar Mas não parado

Queremos agradecer Um a um quem ajudou Venham nos dar as mãos Que muita coisa restou A cultura está viva Essa a água não levou

Tocar um dedinho de prosa O jeito de ser caipira Saborear comida caseira Um feijão com cambuquira A simpatia de um povo Essa a enchente não tira

Isso que aconteceu É a força da natureza Tudo vai pegar seu rumo Você pode ter certeza Nossa cidade encantada Ainda tem muita beleza.

Ditão Virgílio


O Patrimônio Ambiental Urbano de São Luiz do Paraitinga e as políticas públicas de preservação

The Urban Ambient Heritage of São Luiz do Paraitinga and the public politics of preservation

Resumo: Este trabalho trata das políticas de preservação do patrimônio histórico no Brasil, com enfoque no caso paulista. Temos a finalidade de abordar as contradições da gestão patrimonial nas duas esferas (federal e estadual) e suas consequentes ações divergentes em relação à produção do espaço. Através da análise da expansão urbana de São Luiz do Paraitinga, destacamos as características do urbanismo ilustrado que fizeram desse conjunto um exemplar paradigmático no sul e no sudeste do Brasil, o que justificou o seu reconhecimento como Patrimônio Cultural Nacional pelo IPHAN em 2010, ressaltando que o mesmo é acautelado pelo CONDEPHAAT desde 1982, sendo o seu maior conjunto urbano tombado. Procuramos entender de que maneira o reconhecimento desse sítio como patrimônio reflete um processo de evolução das políticas de cultura em São Paulo e no Brasil, e de que maneiras esses órgãos se comportam em um momento de crise como o atual, quando esse patrimônio é vítima do pior desastre em área protegida por seu valor cultural da história do Brasil. Palavras-chave: Patrimônio ambiental urbano, políticas públicas de preservação, gestão patrimonial, São Luiz do Paraitinga.

Abstract: This work deals with the policies of heritage historic preservation in Brazil, focusing on the case of São Paulo. We have the purpose of addressing the contradictions of wealth management in the two spheres (federal and state) and its consequent actions divergent in relation to production of space. Through the analysis of the urban sprawl of Sao Luiz do Paraitinga, we highlight the characteristics of the urbanism illustrated that made this a single example in southern and southeastern Brazil, which justified its recognition as a National Cultural Heritage by IPHAN in 2010, noting that the same is safeguarded by CONDEPHAAT since 1982, its greater urban center tumbled. We seek to understand how the recognition of this heritage reflects a process of evolution of political culture in São Paulo and Brazil, and the ways in which these agencies government behave in a time of crisis like the present, when this historic center is victim of worst disaster in an area protected for its cultural value of Brazil's history. Key-words: Urban ambient heritage, politics of preservation, heritage management, São Luiz do Paraitinga.


LISTA DE MAPAS

Mapa 1: Bens acautelados pelo Estado em São Luiz do Paraitinga.......................................

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Mapa 2: Antigos Caminhos de São Paulo..............................................................................

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Mapa 3: Evolução urbana do núcleo bicentenário de São Luiz do Paraitinga – SP..............

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Mapa 4: Imóveis atingidos pela inundação de 2010..............................................................

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Mapa 5: Conjuntos Urbanos tombados pelo IPHAN por Unidade da Federação até 2009...

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Mapa 6: Bens tombados pelo IPHAN por Unidade da Federação até 2009..........................

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Mapa 7: Evolução da representatividade do patrimônio entre 1967 e 2009 por Unidade da Federação...............................................................................................................................

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Mapa 8: Bens tombados pelo CONDEPHAAT em São Luiz do Paraitinga..........................

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Mapa 9: Perímetro tombado pelo IPHAN em São Luiz do Paraitinga..................................

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Mapa 10: Recuperação dos imóveis do Centro Histórico (2010/2011).................................

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Divisão Geral do Patrimônio Cultural.................................................................... Figura 2: Plantas prévias........................................................................................................ Figura 3: Imagem aérea do centro histórico de São Luiz do Paraitinga, em 2009................. Figura 4: Igreja do Rosário dos Homens Pretos e a Rua do Carvalho, em 2009................... Figura 5: Praça Dr. Oswaldo Cruz, em 2009......................................................................... Figura 6: Praça Dr. Oswaldo Cruz em, 2009......................................................................... Figura 7: Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, em 1884....................................................... Figura 8: Igreja do Rosário dos Homens Pretos, em 1906, ainda em feições coloniais........ Figura 9: Capela das Mercês, em 1981.................................................................................. Figura 10: Vista do centro histórico, em 1886 e em 2011..................................................... Figura 11: Desabamento da Igreja Matriz de São Luiz de Tolosa, em 2010......................... Figura 12: Centro histórico, em 1978..................................................................................... Figura 13: Centro histórico, em 2007..................................................................................... Figura 14: Falso histórico na Praça Dr. Oswaldo Cruz, em 2011.......................................... Figura 15: Nossa Senhora das Mercês, após restauração....................................................... Figura 16: Nossa Senhora das Mercês, antes da restauração................................................. Figura 17: Igreja Matriz, após as obras de salvamento.......................................................... Figura 18: Igreja Matriz, antes das obras de salvamento....................................................... Figura 19: Asilo de São Vicente, após reforma..................................................................... Figura 20: Asilo de São Vicente, antes da reforma................................................................ Figura 21: Capela das Mercês, depois da recomposição........................................................ Figura 22: Altar da Capela das Mercês, depois da recomposição.......................................... Figura 23: Capela das Mercês, com destaque para o púlpito remanescente.......................... Figura 24: Capela das Mercês, com destaque para a taipa remanescente.............................. Gráfico 1: Produção cafeeira nos municípios do Vale do Paraíba......................................... Gráfico 2: Evolução da população de São Luiz do Paraitinga............................................... Gráfico 3: Responsáveis pelos projetos arquitetônicos......................................................... Gráfico 4: Origem dos recursos empregados na recuperação dos imóveis privados............. Quadro 1: Bens tombados em 2009 e em 1967...................................................................... Quadro 2: Grau de Proteção dos imóveis tombados pelo CONDEPHAAT ......................... Quadro 3: Obras do IPHAN na recuperação de São Luiz do Paraitinga................................

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AMI São Luiz

Associação dos Amigos para a Reconstrução e Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de São Luiz do Paraitinga

BNDS

Banco Nacional para o Desenvolvimento Social

CNRC

Centro Nacional de Referências Culturais

CONDEPHAAT

Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico

FNPM

Fundação Nacional Pró-Memória

FUPAM

Fundação para a Pesquisa Ambiental

IES

Instituto Elpídio dos Santos

INRC

Inventário Nacional de Referências Culturais

IPHAN

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

IPT

Instituto de Pesquisas Tecnológicas

MinC

Ministério da Cultura

PMSLP

Prefeitura Municipal de São Luiz do Paraitinga

PNPI

Plano Nacional de Patrimônio Imaterial

PPSH

Plano de Preservação de Sítios Históricos

SEC

Secretaria de Estado da Cultura

SPHAN

Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

TGR

Termo Geral de Referências

UPPH

Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................

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1. GEOGRAFIA E PATRIMÔNIO: QUESTÕES TEÓRICAS...................................

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2. O URBANISMO PORTUGUÊS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO ..................................................................................................................

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2.1. São Luiz do Paraitinga, um patrimônio do café?............................................

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3. SÃO LUIZ DO PARAITINGA: UM ESPAÇO CONCEBIDO/APROPRIADO COMO LUGAR DA VIDA..............................................................................................

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3.1. Da várzea do Rio Paraitinga à Imperial Cidade..............................................

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3.2. De Imperial Cidade a último reduto caipira paulista....................................

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3.3. São Luiz do Paraitinga, um patrimônio cultural brasileiro em risco .............

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4. UMA GEOGRAFIA DESIGUAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO ..................................................................................................................

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5. O CONDEPHAAT E A PRODUÇÃO DE UM ESPAÇO URBANO ESQUIZOFRÊNICO .......................................................................................................

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6. O IPHAN E O SALVAMENTO DE UM PATRIMÔNIO CULTURAL NACIONAL ......................................................................................................................

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6.1. O IPHAN como protagonista de um processo de recuperação ......................

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CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................

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BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................

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ANEXOS ...........................................................................................................................

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INTRODUÇÃO Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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“Sim, lê-se a cidade porque ela se escreve, porque ela foi escrita. Entretanto, não basta examinar esse texto sem recorrer ao contexto. Escrever sobre essa linguagem, elaborar a metalinguagem da cidade não é conhecer a cidade e o urbano. O contexto, aquilo que está sobre o texto a ser decifrado (a vida quotidiana, as relações imediatas, o inconsciente do „urbano‟, aquilo que não se diz mais e que se escreve menos ainda, aquilo que se esconde nos espaços habitados – a vida sexual e familiar – e que não se manifesta mais nos tetê-a-tête), aquilo que está acima do texto urbano (as instituições, as ideologias), isso não pode ser esquecido na decifração. Um livro não basta. Que seja lido e relido, muito bem. Que se chegue à sua leitura crítica, melhor ainda.” (LEFEBVRE, 1969: 56)

Com a globalização as grandes cidades passaram a desempenhar um papel de protagonismo nos processos sociais, econômicos e políticos de fato, além do cultural no imaginário das pessoas. Acredita-se que são apenas esses aglomerados urbanos, sobretudo as metrópoles, que nos possibilitam uma vida culturalmente intensa, pois são nesses espaços que se tem acesso aos grandes espetáculos que circulam as grandes cidades do mundo todo, é onde se pode contemplar edifícios projetados pelos mais renomados arquitetos internacionais, porém, são esses bens culturais que nos representam? É essa cultura massificada que nos confere identidade? Essa identidade é construída por pequenas coisas do cotidiano, por expressões culturais que, apesar de não serem hegemônicas, deixaram registradas na paisagem elementos de diferentes temporalidades, e através de uma analise mais apurada sobre esses elementos podemos entender como o espaço geográfico foi produzido. Esses elementos também estão presentes nas grandes cidades, mas são nas pequenas cidades de assentamento mais antigo e que permanecem mais ligadas às práticas tradicionais, em especial os costumes religiosos, que notamos uma maior valorização dos elementos que na atualidade denominamos de patrimônio cultural. Isso se deve, segundo Francisco (2008), não apenas pela sobrevivência dos bairros rurais e sua interação com as cidades no interior, mas é resultado da permanência de uma cultura citadina eminentemente caipira 1, onde a identidade tradicional é mais forte. Esses elementos que nos conferem identidade são tutelados pelo Estado, ficando a cargo deste garantir a sua salvaguarda através dos seus órgãos de preservação do patrimônio cultural, na esfera federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e na do estado de São Paulo pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico (CONDEPHAAT). É justamente a relação entre estes 1

Do mesmo modo que em Antonio Candido (1987), caipira aqui é entendido como o homem que surgir da miscigenação do índio e do europeu, com estilo de vida simples e forte ligação com a terra. Nesse sentido, incluímos os caiçaras a esse grupo, admitindo que a sua relação com o mar lhe traz especificidades.


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órgãos e a população que se configura como o principal tema do presente trabalho, o que denominamos de relação entre a “ordem distante” e a “ordem próxima” respectivamente, categorias de análise do espaço do filósofo Henri Lefebvre (1994). Porém, esses órgãos em muitos momentos buscaram forjar uma identidade que representassem toda a população, seja uma identidade nacional, no caso do IPHAN, ou paulista, no caso do CONDEPHAAT. Contudo, segundo Carlos (1996), a identidade só se estabelece com o lugar, são nesses espaços que a vida cotidiana acontece, na escala do espaço vivido como aquela onde se dão a reprodução da vida e as relações sociais que fundam um vínculo entre os lugares e os objetos materiais. Dentre esses objetos materiais temos as edificações que foram o principal foco das políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil. A busca em forjar uma suposta identidade nacional fez com que se buscassem nos estados de Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiros os bens que identificavam a cultura nacional, em detrimento de outros estados como São Paulo, que possui em seu território cidades antigas, fundadas no auge do açúcar e do café, ou ainda mais antigas que se remetem ao tropeirismo e que guardam testemunhos tão significativos quanto os estados privilegiados. Essa distribuição desigual de bens tombados por unidade da federação também é um dos temas abordados neste trabalho, denominamos aqui de geografia desigual do patrimônio nacional. Dentre esses municípios antigos fundados durante o tropeirismo destaca-se São Luiz do Paraitinga. Para Marins (apud Bocchini, 2010), esse município somente encontra paralelos em localidades como Pirenópolis (GO) ou Olinda (PE) no que diz respeito à clara convergência entre o patrimônio material e imaterial, configurando-se este como uma verdadeira relíquia paulista. Além disso, o autor ainda destaca que a maioria das cidades paulistas antigas possue grandes sobrados neoclássicos, porém, nenhuma no Estado com um conjunto do século XIX tão significativo como em São Luiz do Paraitinga, o que torna esse lugar privilegiado para o estudo patrimonial em São Paulo. Esses fatos fizeram com que esse centro histórico fosse escolhido como estudo de caso da presente pesquisa. Sendo assim, este trabalho pretende abordar as políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil, com enfoque no caso paulista. Temos a finalidade de abordar as contradições da gestão patrimonial nas duas esferas, federal e estadual, e suas consequentes ações divergentes em relação à produção do espaço através da análise da expansão urbana de São Luiz do Paraitinga, reconhecida como patrimônio paulista em 1982 pelo CONDEPHAAT e como patrimônio nacional pelo IPHAN em 2010, configurando-se como o maior conjunto


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urbano tombado em São Paulo. Procuramos entender de que maneira o reconhecimento desse centro histórico como patrimônio reflete um processo de evolução das políticas de cultura em São Paulo e no Brasil, e de que maneira esses órgãos se comportam em um momento de crise como o atual, quando esse patrimônio é vítima do pior desastre em área protegida pelo seu valor cultural da história do Brasil, destacando sempre o papel da população local como um dos protagonistas desse processo. Para que esse objetivo seja contemplado, a presente pesquisa foi estruturada em três grandes eixos: o primeiro conta com o capítulo 1, intitulado “Geografia e Patrimônio: questões teóricas”, onde pretendemos conceituar espaço geográfico, cidade, centro histórico e lugar num primeiro momento, para depois nos debruçarmos sobre as questões do patrimônio, em especial ao patrimônio ambiental urbano do historiador Ulpiano Bezerra de Meneses. Em seguida, no segundo eixo temos os capítulos “O urbanismo português como patrimônio cultual brasileiro” e “São Luiz do Paraitinga, um espaço concebido/apropriado como lugar da vida”, onde analisaremos as características do patrimônio ambiental urbano de São Luiz do Paraitinga, “um legado único, em termos de processo de povoamento „pombalino‟” (IPHAN, 2011: 34), enfocando que este, mesmo caracterizando-se como um espaço concebido, é hoje um espaço vivido por excelência. Para isso, buscamos analisar as características do urbanismo português, normativas essas impostas a esse espaço já antes de sua fundação, e de que maneira esse espaço ordenado é apropriado como suporte de memória da população local. Para tal, foi necessário buscar na história, desde o período colonial, quando se tinha uma política de ocupação da capitania de São Paulo, as fases econômicas que possibilitaram a consolidação desse conjunto urbano, seja o apogeu, seja a decadência econômica. Foi necessário também um olhar especial à inundação de 2010 que impôs de maneira drástica a esse espaço e a essa comunidade novas dinâmicas. Por fim, no último eixo temos os capítulos “Uma Geografia desigual do patrimônio cultural brasileiro”, “O CONDEPHAAT e a produção de um espaço urbano esquizofrênico” e “O IPHAN e o salvamento de um patrimônio cultural brasileiro”, onde destacaremos o processo de evolução das políticas de preservação no Brasil, a distribuição desigual de bens tombados entre os estados da federação e a atuação dos órgãos de patrimônio sobre o espaço urbano acautelado em São Luiz do Paraitinga, atuação que muitas vezes ocorre de maneira contraditória, o que fica registrado na paisagem urbana em questão. Daremos também, nesses capítulos, especial ênfase aos desafios impostos a esses órgãos na recuperação desse patrimônio nacional após a grande inundação em 2010, que resultou no arruinamento total de alguns dos seus principais sustentáculos materiais de identidade coletiva local. Isso exigiu que um novo protagonista assumisse a


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gestão desse patrimônio, o IPHAN, que entendeu ser a recuperação desses bens elemento de coesão dessa população, passando a compartilhar com esse as responsabilidades da reconstituição desse patrimônio, garantindo assim a sua salvaguarda. Na atualidade a discussão desse tema torna-se relevante socialmente, uma vez que as políticas de proteção do patrimônio no Brasil estão cada vez mais ligadas as práticas sociais e as memórias coletivas. Para Scifoni (2006), a identificação dos valores do bem a ser preservado leva em conta as relações dos grupos com o lugar, as práticas socioespaciais. Essa autora salienta ainda que é na escala do local que os conflitos da esfera do patrimônio se afloram, na medida que eles expõem a luta entre a busca da apropriação social do espaço geográfico, a intervenção ordenadora do Estado e os interesses do capital, configurando-se assim o universo da cultura como um campo de lutas, conflitos e tensões políticas. No contexto da ciência geográfica questões referentes ao patrimônio se justificam, pois, segundo Milton Santos (1997), os testemunhos do passado, resultantes da acumulação desigual dos tempos ficam marcados na paisagem, revelando um dinamismo evolutivo através dos tempos (diacrônico), resultante do processo espacial. Os objetos são expressos pelas formas, embora fixas, se reportam aos diferentes extratos sociais. A forma é o aspecto visível, refere-se a uma maneira ordenada de organização do presente e, mesmo tentando ignorar seu passado, este continua descrito em suas formas.


1. GEOGRAFIA E PATRIMÔNIO QUESTÕES TEÓRICAS

Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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A materialização do processo histórico de produção do espaço geográfico é dada pela concretização das relações sociais produtora dos lugares, tornando-se possível de ser visto, percebido, sentido e vivido (LEFEBVRE, 1974:37).

Como essa pesquisa pretende tratar das políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil, com enfoque no caso paulista, através do estudo de caso de São Luiz do Paraitinga, ou seja, políticas e normativas que atuam sobre o espaço geográfico, é justo que iniciemos com este capítulo que pretende explicitar as bases teóricas que sustentam essa pesquisa por esse conceito. Qualquer experiência social não se faz fora do espaço, uma vez que o homem, ao ocupar e agir sobre a natureza, produz o espaço onde deixa registrado a sua história. Esse espaço socialmente construído, no decorrer do tempo, se constitui no espaço geográfico. Porém, espaço geográfico não é algo assim tão fácil de conceitualizar devido às discordâncias teóricas a esse respeito. Dessa maneira, já iniciamos este capítulo com um grande desafio: escolher uma linha teórica metodológica de espaço geográfico que norteará toda essa pesquisa. Em Carlos (1996), o espaço geográfico é social, produto do processo de trabalho geral da sociedade em cada momento histórico. Assim, as parcelas do espaço socialmente e historicamente produzidas se apresentam enquanto trabalho materializado e acumulado a partir de sucessivas gerações e, nesse caso específico, o espaço como um todo tem valor e se reproduz a partir de seus usos sempre diferenciados, condizentes com as singularidades de cada lugar. A autora ressalta que o processo de produzir/reproduzir é também um ato de apropriação, nesse contexto o sentido do espaço produzido é aquele marcado por modos de produção e, consequentemente, de apropriação. Também em Lefebvre (1976), o espaço é empreendido como produção da sociedade, fruto da reprodução das relações em sua totalidade. Para esse autor, o espaço é socialmente produzido, apropriado e transformado. Dentro dessa análise de espaço social, Lefebvre (1974) propõe uma dupla perspectiva de apreciação do espaço: o espaço concebido e o espaço vivido. O espaço concebido corresponde aos discursos e as práticas de como conceber e representar o espaço, ou seja, toda a normativa que interfere no processo de produção do espaço urbano. Para Lefebvre (1974), são os fatores ideológicos que orientam as ações humanas, estão ligados aos modos de produção, à ordem para lá dos conhecimentos, dos signos, dos códigos.


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O espaço concebido em São Luiz do Paraitinga corresponde às normativas rígidas estabelecidas pelo urbanismo ilustrado quando da sua fundação, assim como às impostas pelos órgãos de preservação do patrimônio cultural na atualidade. O espaço vivido corresponde às imagens, sensações, opiniões, aos símbolos e signos criados com a vivência do lugar. Para Lefebvre (1974), o espaço vivido apresenta os símbolos complexos, ligando-se ao lado clandestino e subterrâneo da vida, mas também a arte, que se corrompe eventualmente e é definida não como um código espacial, mas como um código dos espaços de representação. O espaço vivido possui importante relevância neste estudo de caso, pois nos permite analisar uma das principais peculiaridades do espaço em São Luiz do Paraitinga: um espaço intensamente vivido pela população local, lugar das mais diversas manifestações culturais, espaço de ver e ser visto. O espaço é constantemente concebido e vivido pelos homens em virtude dos seus sistemas de pensamento e de suas necessidades. Dessa maneira, essas categorias se mostram extremamente relevantes para se analisar o espaço geográfico, um contínuo resultado das relações socioespaciais, relações estas que são econômicas, políticas e simbólico-culturais. Como ressalta Lefebvre (1991), a força motriz destas relações são sempre as ações humanas e suas práticas espaciais. Contudo, como nossa análise não se dará sobre todo o espaço geográfico, nem sobre todo o município de São Luiz do Paraitinga, e sim ao seu espaço urbano, não desconsiderando as relações desse lugar com o global, cabe aqui conceituar cidade. Esta surgiu antes do capitalismo, para Lefebvre (1991) houve a cidade oriental ligada ao modo de vida asiática, a cidade arcaica ligada à posse de escravos e a cidade medieval baseada nas relações feudais. Porém, esse autor ressalta que foi na Idade Média, na transição do feudalismo para o capitalismo na Europa, que o processo de integração do mercado e da mercadoria é efetivado à cidade. Para esse autor, a cidade não é apenas um conjunto denso de edificações onde as pessoas habitam e trabalham, é muito mais. Trata-se de um assentamento humano, onde o modo de vida urbano que corresponde ao conjunto de práticas espaciais que promovem o predomínio da cidade sobre o campo, onde predomina o consumo e a circulação de fluxo de pessoas, mercadorias, capital e informações, configurando a cidade como o local do consumo. Para Lefebvre (1991), enquanto uma construção humana, a cidade é produto social, uma materialização das práticas sociais que se acumulam no decorrer da história a partir da relação sociedade natureza. A cidade configura-se também como o local da gestão do território, como


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sede do poder econômico, político e religioso, onde a cultura desempenha o papel crucial na produção do espaço urbano. Lefebvre (1991), ao discutir os fenômenos do urbano, lança mão de uma dialética que é muito cara a esta pesquisa: a relação entre a “ordem próxima” e a “ordem distante”. Aqui, o autor irá afirmar que a cidade passará a mudar quando a sociedade mudar, ressaltando que não se trata de uma mudança apenas em escala global, mas ressaltando a escala do local, onde a ordem próxima corresponderia aos habitantes dessa cidade, os responsáveis por constituí-la em espaço vivido, e pela ordem distante representada pelas instituições, como o Estado e a Igreja, ou seja, os responsáveis pelo espaço concebido. O autor destaca que esta ordem distante se institui num nível superior, dotada de poderes, e se impõe ao nível próximo, ela impõe sua lógica, sua racionalidade sobre as práticas sociais no espaço vivido. Para esse autor a cidade tem uma história, ou melhor, o grupo que compõe essa cidade tem uma história. Os habitantes agem sobre a cidade com o fim de promover e generalizar o valor de troca, porém, em muitos casos a cidade é, para seus habitantes, muito mais que valor de troca, é valor de uso. Contudo, como essa pesquisa não pretende debruçar-se sobre toda a cidade, mas sim sobre uma parcela desta, o denominado centro histórico, este precisa ser conceituado. Antes disto, porém, é necessário entender como esta parte da cidade é eleita pelo Estado, sendo que essa eleição se dá por meio de um instrumento jurídico denominado tombamento. Apesar de não ser o único instrumento de preservação e acautelamento pelos órgãos de preservação, tanto no âmbito federal, quanto no estadual e municipal, o tombamento é o mais utilizado, constituindo-se na prática mais significativa da política de preservação no Brasil. Segundo Fonseca (1997), possibilita ao Estado delimitar um universo simbólico específico, além de intervir no estatuto da propriedade e no uso do espaço físico. Essa autora salienta ainda que essa prática causa interferências na vida social, mesmo o tombamento não se constituindo na desapropriação do imóvel, implica na restrição do seu uso. A palavra tombar significa inventariar, arrolar ou inscrever um bem no “Livro de Tombo”, recaindo sobre o Estado a tutela dos bens considerados de interesse público, “quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (Decreto-lei n° 25, de 30 nov. 1937). Fonseca (1997) salienta que sobre esse bem tombado incidem duas modalidades de propriedade: a propriedade do bem, alienável, determinado pelo seu valor econômico, portanto da pessoa jurídica, e a propriedade dos valores culturais nela identificados que,


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através do tombamento, passa a ser alheio ao proprietário do bem, passa a ser de propriedade pública, ou seja, da sociedade sob tutela do Estado. Entendido qual o instrumento jurídico que elege parte da cidade como de relevância cultural, o chamado centro histórico, vamos agora defini-lo. Para Fonseca (1997), a concepção de centro histórico, como é entendido pelos órgãos de preservação, traz como principal ideia a de conjunto, ou seja, da relação entre o meio geográfico, natural, e os grupos humanos que ocupam aquele espaço e nele deixaram registrados sua história. A autora salienta ainda que, nessa perspectiva, a história das cidades não se resume mais a história de sua arquitetura, mas abrange todas as adaptações feitas pelo trabalho humano sobre o espaço. Talvez aqui também seja interessante discutir no que se constitui o centro da cidade. Para Castells (2000), o centro urbano designa-se tanto como um local geográfico quanto um conteúdo social, ou seja, assim como a cidade, são produtos que exprimem as forças sociais em ação e a estrutura da sua dinâmica interna. Para esse autor, o centro da cidade pode ser dividido em três categorias: o centro simbólico e integrador, onde temos o resultado da organização da sociedade em relação aos valores expressos no espaço, permitindo a coordenação das atividades urbanas e a identificação simbólicas dessas atividades; o centro de trocas, que engloba atividades econômicas, políticas e administrativas; e o centro lúdico, que valoriza o consumo, em especial os vinculados à atividades de lazer. O autor enfatiza que nenhuma dessas três categorias existe por si, mas sim enquanto resultado de um processo social de organização do espaço social. É importante destacar que o centro é aquilo que se encontra no “meio”, mas não necessariamente está no centro geográfico ou ocupa o sítio histórico onde a cidade se originou. Em suma, a distinção espacial e funcional entre os dois tipos de centralidade, a urbana e a histórica, varia conforme se alteram as práticas espaciais e a funcionalidade da cidade. Para Spósito (1991), o centro é o oposto de convergência/divergência, o local para onde todos se deslocam para alguma atividade. Em São Luiz do Paraitinga, o que se os órgãos de preservação denominam hoje como centro histórico corresponde ao que antigamente era a própria cidade, o espaço concebido rigorosamente pelas normativas do urbanismo ilustrado e que hoje se constitui também como espaço vivido, tanto por poder ser definido como centro simbólico, de trocas e lúdico, a partir das categorias de Castells (2000), como por se constituir em um lugar das mais diversas manifestações culturais imateriais e por ser o lugar da vida, apropriado pela população local, o


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que se constitui, para Fonseca (1997), como o conjunto, ou seja, da relação entre o meio geográfico, natural, e os grupos humanos. Aqui cabe ressaltar que, ao definirmos o centro histórico como objeto de estudo, não estamos delimitando os espaços não históricos da cidade, pois entendemos que toda a cidade é histórica por si só. Corroboramos com a ideia de que qualquer tentativa de se criar um recorte e denominá-lo de centro histórico é arbitrária, pois implica em uma escolha com critérios vigentes em um determinado momento da história. O juízo para delimitar a área de estudo é a de definir o espaço geográfico que está sob jurisdição dos órgãos de patrimônio, considerado por estes como o que concentra edifícios relevantes culturalmente na cidade. Por fim, contemplados os conceitos de espaço geográfico, cidade e centro histórico, ressaltando o papel premente da sociedade em seu engendramento, mostra-se mais que oportuno discutir o conceito de lugar, conceito este que expressa de maneira clara e objetiva a posição adotada para se interpretar o empírico nesta pesquisa. Para Carlos (1996), é no lugar que se desenvolve a vida em todas as suas dimensões, a prática do cotidiano, o espaço vivido e a dialética da “ordem distante” e a “ordem próxima” de Lefebvre (1991). É o conceito do lugar que permite analisar o espaço como resultante de uma história particular que se realiza, segundo Carlos (1996), em função da cultura/tradição/língua/hábitos que lhes são próprios. Na cidade produz-se e reproduz-se o plano da vida e do indivíduo, e a relação que este mantém com os espaços habitados se exprime diariamente como se usa, sente, pensa, apropria e vive o lugar através do corpo. Para Carlos (1996), o lugar é a porção do espaço apropriado para a vida através dos passos de seus moradores pelas ruas e praças e, nesse sentido, ressalta a autora, não seria nunca na metrópole que essa relação se daria, mas sim nas pequenas vilas ou cidades vividas/conhecidas/reconhecidas em todos os cantos. Sendo assim, podemos concluir que a produção do espaço se dá no plano do cotidiano e aparece nas formas de apropriação de um determinado lugar, num momento específico, revelando-se pelo uso como produto da divisão social e técnica do trabalho que produz uma morfologia espacial fragmentada e hierarquizada (CARLOS, 1996). O lugar nos traz ainda questões como identidade, é no lugar que se guarda o significado e as dimensões do movimento da história, passível de ser apreendida pela memória decorrente da acumulação dos tempos, marcados, remarcados e nomeados. Natureza transformada pela pratica social, acumulando cultura que se insere em um espaço e tempo (CARLOS, 1996).


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Porém, ao discorrer sobre o lugar, não podemos ignorar a relação deste com o mundial. Carlos (1996) salienta que o lugar se produz na articulação contraditória entre o mundial que se anuncia e as especificidades do lugar, então este se apresenta como o ponto de articulação entre a mundialidade em constituição e o local enquanto especificidade concreta. É nessa articulação que a ordem próxima não deveria se anular com a enunciação do mundial, pois, nesse caso, o lugar abre perspectiva para pensar o viver e o habitar, o uso e o consumo, a apropriação do espaço. Sendo assim, entendendo o espaço vivido de São Luiz do Paraitinga enquanto lugar com o qual a população local, a ordem próxima, estabelece identidade e, ao mesmo tempo, este é reconhecido como centro histórico pelos órgãos de preservação, a ordem distante, podemos concluir que a identidade se estabelece com os bens reconhecidos pelo Estado como patrimônio cultural. Nesse sentido, mostra-se necessário discorrer a respeito dos conceitos referentes a esta temática. Para Choay (2000), o patrimônio tem sua origem ligada às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo, requalificada por diversos adjetivos como genético, natural ou histórico que fizeram dele um conceito "nômade". Essa autora entende o patrimônio histórico como expressão de um bem destinado ao usufruto de uma comunidade, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum. A Constituição Federal do Brasil de 1988 define o patrimônio cultural brasileiro nos seguintes termos:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referencias à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico; (Brasil, 1988: art. 216)

Portanto, o conceito de patrimônio cultural na atualidade corresponde ao conjunto de bens culturais de valor reconhecido por um determinado grupo. Os bens culturais são todos os artefatos, construções, obras de arte produzida artesanal ou industrialmente pela humanidade,


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ou que mesmo não sendo produzida por esta, estejam ligados às práticas sociais e à memória coletiva como a natureza.

Figura 1: Divisão Geral do Patrimônio Cultural. Adaptação: Danilo Pereira (2012)

O patrimônio pode ser classificado como um bem tangível, bem intangível ou bem natural, o primeiro correspondendo ao patrimônio material, podendo ser móveis, como objetos arqueológicos, artes plásticas, artesanato, mobiliário, ferramentas e documentos, ou imóveis, como arquitetura civil, militar, religiosa ou funerária, sítios históricos. Já os bens intangíveis correspondem ao patrimônio imaterial, mesmo estes também tendo uma sustentação material, tem seu valor reconhecido pela tradição, como o conhecimento técnico, o saber fazer envolvido nas comidas típicas, danças populares, costumes, mitos, lendas, entre outros. Para muitos pode soar estranho a inclusão do termo “natureza” à categoria de patrimônio cultural, porém, o patrimônio natural surge de uma derivação do patrimônio cultural e, para Scifoni (2006), o patrimônio natural esta ligado às práticas sociais e a memória coletiva, um patrimônio que faz parte da vida humana e não se opõe a ela, legitimando-se a partir da discussão de valor afetivo e social determinado pelos grupos e não no discurso técnico advindo da ciência ecológica. Nessa categoria se incluem os parques, praças e sítios arqueológicos. Em São Luiz do Paraitinga, o patrimônio cultural preservado abrange todas essas categorias, ou seja, tanto os bens tangíveis móveis e imóveis, quanto os bens intangíveis e


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naturais. Apesar de toda essa riqueza, o presente trabalho pretende debruçar-se sobre a questão do patrimônio ambiental urbano. Adotaremos o conceito de patrimônio ambiental urbano de Ulpiano Bezerra de Meneses (1979), que o entende como “um sistema de objetos socialmente apropriados, percebidos como capazes de alimentar representações do ambiente urbano”. Portanto, são materialidades, socialmente produzidas, que não possuem significação por si, mas na medida em que se integram a certa formação espacial e se baseiam em representações urbanas. Para esse autor o significado de patrimônio cultural não se resume a apenas uma listagem de objetos eleitos por técnicos, mas se define como contexto social. Em São Luiz do Paraitinga esta noção se refere aos bens culturais tangíveis e imóveis tombados nesse centro histórico, que são as edificações, o traçado urbano, o rio e as montanhas da sua área envoltória. Entretanto, reconhecemos ser impossível fazer essa análise sem, em alguns momentos, resgatar questões da cultura caipira, visto que consideramos esse espaço geográfico também como espaço vivido (LEFEBVRE, 1974), e essa cultura caipira é a responsável pela constituição desse patrimônio. Podemos considerar que a análise do patrimônio cultural torna se muito mais complexa quando tratamos de um conjunto urbano em comparação à um bem isolado. Conforme Meneses (1996), é bom ter presente que a cidade deve ser entendida segundo três dimensões solidariamente imbricadas, cada uma dependendo profundamente das demais, em relação simbiótica: a cidade é artefato, é campo de forças e é imagem. Enquanto artefato, a cidade é “coisa complexa”, produto da prática social e historicamente produzida. Os artefatos são, invariavelmente, produto e vetor de “campo de forças nas suas configurações dominantes e nas práticas que ela pressupõe”. Assim, podemos considerar que os “artefatos” correspondem, através das “imagens”, aos elementos característicos da época da sua criação, porém, o autor salienta que a “imagem” não pode ser tomada como uma “mera carcaça”, mas como produto social de uma época. As imagens presentes hoje no conjunto histórico tombado em São Luiz do Paraitinga foram sendo construídas ao longo do tempo e incidem diretamente sobre a identidade cultural e espacial do lugar, constituindo-se como um suporte de memória: “A memória é seletiva e também pode ser induzida e forjada. O culto ao passado social formalizado é instituído como modelo de valores que representam o oposto da história, pois tentam abolir ou exorcizar o tempo, que tudo muda. As tradições não se constituem por obra da natureza, mas por ação humana, e como tais podem ser manipuladas.” (MENESES, 1984: 20)


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Todas as ações humanas ocorrem no espaço geográfico, historicamente determinado pela produção social, onde cada transformação ocorrida ao longo do tempo implica em concepções diferenciadas, vividas de maneiras diversas. Nesse sentido, o patrimônio ambiental urbano é apenas parte desse espaço geográfico, podendo ser considerado como a expressão concreta de cada momento histórico do desenvolvimento de uma sociedade. A materialidade de um tempo que passa por constantes reelaborações até a atualidade, não podendo ser aprisionada em uma cápsula atemporal, ela é o resultado da dinâmica entre espaço, história, sociedade e modo de produção. Para Meneses (1979), o patrimônio ambiental urbano é um produto da cultura que somente pode ser entendido no seu contexto de produção, isto é, na medida em que são produtos de cultura, que vem a ser aqueles procedimentos por intermédio dos quais o homem organiza a sua prática social, nisso incluída a manipulação de uma linguagem simbólica. Consideramos aqui o patrimônio ambiental urbano como parte integrante do espaço geográfico, é o passado em constante transformação no presente, constituído pelo espaço concebido, além da dimensão social que a compõe, o espaço vivido. A discussão de patrimônio leva hoje à discussão de valor e, nesse sentido, Meneses (1999) aborda o valor cultural segundo quatro variantes: valor cognitivo, como o associado ao conhecimento; o valor formal, que permite a construção do universo do sentido; o valor afetivo, que corresponde as suas cargas simbólicas; e, por fim, o seu valor pragmático, que corresponde ao seu valor de uso. As discussões acerca do valor de uso nos levam também às questões de valor de troca discutidas por Karl Marx, David Harvey e Henri Lefebvre. Pra Marx (2008), o valor de uso serve diretamente a sobrevivência, visto que este se corresponde ao processo de consumo do mesmo. Para ele, a criação do valor de troca reside no processo social de aplicação de trabalho socialmente necessário aos objetos da natureza para criar mercadorias apropriadas para o consumo do homem. Para Harvey (1980), essa relação dialética entre o valor de uso e o valor de troca redefine constantemente a dinâmica da utilização do solo, sendo este, portanto, fundamental para se entender a construção de novas abordagens espaciais e econômicas acerca desta problemática. Nesse sentido, Lefebvre (1991) utiliza a expressão valor de uso e valor de troca para abordar a questão do uso do solo no urbano. Para esse autor, “cidade e realidade urbana dependem do valor de uso”. A cidade, como produto desse processo, torna-se mercadoria. O uso do solo urbano não se dará sem conflitos, na medida em que os interesses do capital e da sociedade são contraditórios.


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Sendo assim, o patrimônio é o resultado das ações que foram realizadas no passado e que estão marcadas nas formas espaciais do presente, estudar o patrimônio é entender o hoje, é refletir sobre o uso, a apropriação social desse espaço geográfico. O patrimônio ambiental urbano somente terá seu conteúdo revelado a partir das suas funções sociais atribuídas pelo desenvolvimento do processo histórico, dos modos de produção e pela sua representação simbólica. Dessa maneira, para entender o que constitui o patrimônio ambiental urbano de São Luiz do Paraitinga em todas as suas dimensões, recorremos à análise do processo de produção do espaço geográfico, à dupla conceitual de Lefebvre (1971), o concebido e o vivido, para analisarmos como ocorreu a estruturação espacial luizense, averiguando os fatores e as normativas que conferiram mudanças ou reforçaram as especificidades desse espaço, que hoje se sobressai como espaço vivido, espaço da vida, de ver e ser visto.


2. O URBANISMO PORTUGUÊS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO

Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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É possível visualizar na cartografia atual de várias cidades brasileiras, de Norte a Sul, a quadrícula caracterizando a área antiga, central, expressão do plano prévio com que foram implantadas no século XVIII, seja, por exemplo, em Itapetininga, Atibaia e Piracicaba, em São Paulo, seja em Mazagão – AP ou Bragança – PA. Mas é raro, no país, que o plano “iluminista”, “racional”, setecentista, seja dominante no conjunto urbano atual, como em São Luiz do Paraitinga. Nesse sentido, São Luiz do Paraitinga é um legado único, em termos de processo de povoamento “pombalino” como um todo. (IPHAN, 2011: 34)

Este capítulo tem como objetivo discutir as relações entre o espaço concebido e o vivido (Lefebvre, 1974), ou seja, as normativas impostas a São Luiz do Paraitinga e as formas de apropriação dessas pela população local, levando-se em conta a ordem distante e a ordem próxima (Lefebvre, 1991) na organização do espaço geográfico dessa cidade, ou seja, o papel do Estado na concepção desse espaço e como a população de apropria deste como lugar (Carlos, 1996) da vida. Cidade iluminista ou urbanismo ilustrado são maneiras de se referir aos núcleos urbanos fundados em todo o Brasil e em Portugal durante o governo do Marques de Pombal, núcleos submetidos a um plano previamente desenhado. Nesse sentido, uma fundação só pode ser vinculada ao urbanismo ilustrado se estiver situada no contexto do urbanismo pombalino, assim como ao tradicional urbanismo português. O conceito de “cidade iluminista” é utilizado desde 1982 pelo historiador português José Eduardo Horta Correia em relação à Vila Real de Santo Antônio, planejada e construída por ordem do Marques de Pombal, contemporânea à São Luiz do Paraitinga (IPHAN, 2010). Desde a Grécia que a ideia física de cidade comporta dois aspectos de que, até hoje, somos herdeiros: cidade como o lugar da ordem social e política, é o espaço vivido, além de se constituir como lugar da representação e do exercício do poder. Já o outro aspecto se reporta a cidade como polo hierárquico da organização do território, centro a partir de onde se estabelece o controle do território. As cidades de origem portuguesa têm características morfológicas específicas, para Teixeira (1999), essas características a diferenciam das cidades de outras culturas. Dentre esses aspectos, destaca-se o seu desenvolvimento através de sucessivos processos de adaptação e de síntese, ressaltando a escolha da localidade, das formas, das lógicas de localização dos principais edifícios, no traçado das vias estruturantes, na localização das praças e o seu papel na organização do espaço urbano. Portugal, ao entrar no Século das Luzes, se beneficia de uma vasta tradição urbanística, o que ficou explícito durante a profunda reforma urbana da cidade de Lisboa, após o terremoto de 1755, que previa a articulação entre duas praças remanescentes e a praça


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que passaria a abrigar o Paço e o Rossio, além de atribuir à arquitetura uma função de normatização urbana (CORREIA, 1985). A arquitetura e o urbanismo pombalino foram marcados por valores como a uniformidade, a ordem, a sobriedade e padronização, totalmente inserida numa conjuntura ideológica filiada ao iluminismo reformador, que procurava o fortalecimento do poder do rei através da intervenção em vários setores da vida, entre eles da vida urbana (CORREIA, 1985). Vila Real de Santo Antonio é um expoente representante de espaço concebido pelo urbanismo ilustrado em Portugal. A vila surge às margens do Rio Guadiana, que marca a fronteira com a Espanha. Correia (1985) salienta que esta foi fundada sobre um rígido plano geométrico que utiliza os mesmos parâmetros formais na totalidade da vila, onde os conhecimentos gerados na experiência de Lisboa são aplicados de forma racional, com o objetivo de reafirmar o poder do Estado português face ao Estado espanhol. Por isso, este se constitui um exemplo de cidade perfeita do Iluminismo, pois a sua construção é fundamentada pela necessidade de reafirmação do poder real que se pretende “iluminista” e “perfeito”. Nesse contexto, no que se refere ao Brasil, tivemos a fundação de núcleos organizados que passavam a consolidar a presença do Estado e o povoamento de regiões no norte e o nordeste, em particular no Grão-Pará e no Maranhão entre 1751 e 1759, quando os administradores coloniais passam a governar sob um prisma da razão política, impondo sua autoridade em nome de um “bem-estar da sociedade” a ser alcançado pela instrução e civilização (IPHAN, 2010). Os responsáveis pela administração das vastas províncias da América portuguesa, onde se instalavam grandes tensões com a Espanha relativas ao estabelecimento das fronteiras, fez com que, no sul do Brasil, se elegesse São Paulo como a única capitania com capacidade efetiva de apoiar as ações da Coroa portuguesa. Nesse sentido, o Governador e Capitão-General da Capitania de São Paulo, D. Luís Antônio Mourão, o Morgado de Mateus, passa a criar novos núcleos de povoação para consolidar e incrementar a trama de caminhos que garantia a circulação mercantil e de tropas militares, além de possibilitar a ocupação do território.


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Em São Paulo, diferentemente do ocorrido em outras partes do Brasil, as fundações surgiram articuladas a um plano territorial cujas orientações possuíam um claro víeis fisiocrático, visando o controle da população e o domínio do território (IPHAN, 2010).

Figura 2: Plantas prévias: 1 - Bragança no Pará (1753); 2 - Porto Covo em Portugal (1794); 3 - São Luiz do Paraitinga em São Paulo (1759). Fonte: IPHAN (2010), organizado por Danilo Pereira.

São Luiz do Paraitinga, criado nesse contexto histórico, acabou florescendo. A ligação da região entre São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e o litoral, concentrado no porto de Paraty o principal destino nas manufaturas, portanto sob jurisdição do Rio de Janeiro, foi aos poucos derivando para o porto de Ubatuba, tornando a passagem por São Luiz praticamente obrigatória. A construção de núcleos urbanos “regulares” resulta de uma estratégia política e territorial de afirmação do poder do Estado, ou seja, uma imposição da ordem distante sobre a ordem próxima (Lefebvre, 1991). O local escolhido, uma várzea do Rio Paraitinga entre os morros da Serra do Mar (Anexo I), reunia as condições ideais para a fundação do povoamento, porém, com o crescimento desse aglomerado, a várzea se torna pequena e o


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traçado urbano regular é obrigado a se adaptar ao relevo acidentado do entorno da várzea do rio. Os elementos estruturantes da malha urbana de São Luiz do Paraitinga tiveram o Rio Paraitinga como principal eixo de organização e remontam da fundação do núcleo, 1773. Estes compõem um plano traçado em forma de tabuleiro, com regularidade geométrica, porém, é importante ressaltar que essa concepção de espaço não se restringiu apenas aos planos, mas também aos imóveis, que deveriam seguir os princípios da uniformidade e regularidade para se obter a harmonia do conjunto. Como ressalta o IPHAN (2010), se buscava a “formosura” da vila.

Figura 3: Imagem área do centro histórico de São Luiz do Paraitinga, em 2009. Fonte: PMSLP.

Nessa conjuntura de normatização urbana, destaca-se a Praça da Matriz como grande eixo viário principal, um retângulo que se estende desde as margens do rio até o sopé do morro, dando origem a outras quadras paralelas a ela (Figura 3). É importante ressaltar que essas quadras foram demarcadas com mourões mesmo antes de sua ocupação, o que reforça o caráter planejado do presente núcleo urbano. Nesse traçado geométrico e antigo restam numerosos exemplares da arquitetura tradicional, construídos em taipa de pilão e pau a pique2. Dentre estes, se destacam dois 2

Talvez nesse momento seja relevante descrever sucintamente as duas principais técnicas que dominaram as construções paulistas até o século XIX, a taipa de pilão e o pau a pique. A primeira constituía em socar terra com pilão de madeira em grandes formas retangulares chamadas taipais, e, após a secagem da primeira camada se sobrepunha a ela a mesma forma para a execução da próxima camada colada a primeira e assim sucessivamente até se completar a parede. Essa técnica construtiva, uma marca registrada dos paulistas, também pode ser verificada em outras localidades como em Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Paraná, e isso se deve a dispersão decorrente do bandeirismo e do tropeirismo. Já o pau a pique se constitui em um entrecruzamento de paus amarrados ou presos a uma estrutura mais firme que servia de alicerce, e este era preenchido com barro que, posteriormente era alisado com a mão. Essa técnica, mais frágil em comparação a taipa de pilão, foi a mais usada nas construções populares.


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conjuntos pela homogeneidade arquitetônica e por serem os principais remanescentes dos princípios da regularidade, simetria e uniformidade que se impuseram pela ordem distante desde a fundação desse núcleo. O primeiro é a Rua do Carvalho, com suas pequenas casas de “meia” e “morada inteira” destinadas à população mais pobre. É importante ressaltar que esse conjunto de casas se alinha a lateral da Igreja do Rosário dos Homens Pretos (Figura 4), santa cultuada pelos escravos. O segundo é a Praça da Matriz (Praça Dr. Oswaldo Cruz), com suas construções em sobrados, com fachadas corridas, onde se instalou a elite local (Figuras 5 e 6).

Figura 4: Igreja do Rosário dos Homens Pretos e a Rua do Carvalho, em 2009. Fonte: PMSLP.

Datadas de 1830 e 1840, as pequenas moradias da Rua do Carvalho são notáveis pela sua extensão, homogeneidade e antiguidade. É o mais extenso conjunto de casas térreas de feição tradicional existentes no estado de São Paulo (IPHAN, 2010). Assim como na praça central, houve nessa rua a preocupação em se manter as cumeeiras no mesmo nível, buscando regularidade e simetria, com fachadas térreas corridas, predominando ora as moradias de um lanço, de porta e janela, ora as de dois lanços, com três vãos na fachada, porta e duas janelas (IPHAN, 2010). Mesmo com o intuito de privar essa população mais pobre de residir na área mais valorizada da cidade (a praça), não foi possível privá-la de vivenciar esse espaço, devido às dimensões desse núcleo urbano, Sendo assim, a Praça da Matriz, desde a época de sua fundação, até os dias de hoje, se constitui com um espaço da vida por excelência.


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Figura 5: Praรงa Dr. Oswaldo Cruz, em 2009. Fonte: PMSLP.

Figura 6: Praรงa Dr. Oswaldo Cruz, em 2009: Fonte: PMSLP.


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Quanto a essa praça em São Luiz do Paraitinga, vale destacar que as cidades tradicionais de origem portuguesa apresentam grande diversidade de espaços públicos abertos que podem ser designados como praças. Estas podem ter diferentes funções e origem, distintas localidades na malha urbana, estarem associadas a diferentes edifícios com dimensões diversas, sua forma pode ser regular ou irregular. Seja qual for a sua origem, as praças desempenham sempre um papel importante na estruturação da cidade. A partir do século XV as praças passam a desempenhar um papel fundamental, estas ganharam destaque na estrutura funcional da cidade. As praças se tornaram os locais mais nobres desses núcleos, passando a se localizar ali as funções e as edificações mais importantes, sendo o espaço para o exercício da vida urbana, lugar de ver e ser visto, o espaço do vivido. A praça vai tornando-se cada vez mais regular, mais inserida na lógica formal dos planos geométricos, e vai assumir um papel cada vez mais importante na estruturação da cidade, atingindo seu apogeu no Iluminismo setecentista, quando essa passa a assumir a função de geradora da malha urbana. Segundo Teixeira (2006), ao longo da história urbana brasileira, a praça vai adquirindo uma importância cada vez maior e isso se dá pela crescente busca pela regularização dos traçados, expressão da proeminência da racionalidade da cultura urbana europeia e brasileira. Em São Luiz do Paraitinga a praça exerce um papel importante na estruturação do espaço urbano devido a sua importância funcional e simbólica. É o lugar de encontro, da troca, de convivência e da sociabilidade da comunidade, condensando ali funções políticas, econômicas e sociais, funções essas que historicamente desempenhou e que conduziu a estruturação da cidade, o lugar por excelência onde o espaço concebido foi apropriado como espaço vivido. Teixeira (2006) salienta que, em muitos casos, a exploração das relações entre o traçado urbano e a arquitetura deu origem a abertura de praças associadas a edificações singulares, como é o caso em São Luiz do Paraitinga. Para o IPHAN (2010), em nenhuma das praças das antigas cidades paulistas restou um conjunto tão significativo de sobrados, ressaltando a homogeneidade e a importância desse conjunto geminado composto por sobrados em arquitetura neoclássica que nos reportam a um período entre 1858 e 1870. No século XVIII, praças como essa, quadradas ou retangulares, centradas na malha urbanas e tendo um claro papel de elemento gerador do traçado tornam-se o modelo dominante, sendo pensadas como o centro da cidade, em termos simbólicos, funcionais e formais.


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Nesta praça, deveriam estar localizados o pelourinho, a Igreja e a Casa de Câmara e Cadeia. Todas as casas deveriam ter suas fachadas construídas de acordo com a mesma tipologia, associando à praça o caráter de “formosura” (TEIXEIRA, 2006). Sendo assim, a Praça da Matriz em São Luiz mostra-se como um verdadeiro remanescente da tradição setecentista de organização desse elemento urbano, visto que todos os elementos citados pelo autor são observáveis nessa localidade. Nesse sentido, o traçado urbano regular e seu elemento gerador, as praças, constituem-se um patrimônio fundamental das cidades, sendo que em São Luiz do Paraitinga essa relação ocorre de maneira clara e segura, o que pode ser comprovado pela função articuladora que desempenha em relação ao traçado urbano como um todo. As suas dimensões em relação ao núcleo urbano bicentenário, além da magnitude das edificações que a emolduram, com destaque para a Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, ruída na inundação de 2010, ressaltam a importância da normatização, por parte do Estado, a ordem distante, que concebeu esse espaço, a tipologia arquitetônica e volumétrica das edificações, inclusive na dimensão dos vãos, regras estas que remontam a um período anterior ao da fundação desse povoamento.

2.1. SÃO LUIZ DO PARAITINGA, UM PATRIMÔNIO DO CAFÉ?

Ainda no campo dos espaços concebido e vivido, porém, não mais relacionado à ordem distante que se impõem à ordem próxima, temos a construção de São Luiz do Paraitinga como cidade do café. Esse espaço teve na própria ordem próxima a sua concepção como patrimônio do café e esse discurso foi apropriado pela ordem distante, fortalecendo a premência do lugar como sustentáculo de identidade. No decorrer do século XIX a região do Vale do Paraíba começou a sofrer profundas transformações, onde antes dominava o cultivo do açúcar passou, cada vez mais, a ter no cultivo do café a sua sustentação econômica. Porém, mesmo São Luiz do Paraitinga fazendo parte desse contexto por estar localizada as margens do principal corredor de produção cafeeira do país à época, como nunca apresentou uma produção de açúcar relevante, não passou por esse processo de substituição de cultivo. Mesmo assim, é decorrente a associação entre São Luiz do Paraitinga e o ciclo do café, no sentido de associar o patrimônio cultural remanescente nos dias de hoje como fruto desse período econômico, a população local exalta a suposta riqueza do município proporcionada


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pelo café. Não queremos aqui tirar a importância desse período para a produção desse espaço urbano, visto que é desse período a construção dos principais edifícios de maior importância artística, como a grande Igreja Matriz e os sobrados neoclássicos que emolduram a praça principal da cidade. Porém, não se pode esquecer que a cidade foi fundada em decorrência da atividade tropeira e é essa a atividade que, mesmo no período áureo do café no Vale do Paraíba, proporcionou que São Luiz do Paraitinga vivesse seu período de maior prosperidade. Segundo o IPHAN (2010), mesmo nesse período de maior riqueza da região, o município era sustentado principalmente pelo tripé milho/feijão/café. Documentos da época informavam que a riqueza da localidade se dava principalmente pela lavoura comercial de culturas tidas como tradicionais, marca da expressão da cultural caipira que confere a São Luiz do Paraitinga um legado cultural singular no território paulista, abrangendo os saberes e fazeres, as manifestações religiosas e profanas, as músicas e as danças. Prova desse fato é a ocorrência, ainda hoje na cidade, de festas como a do Divino, o momento em que o lavrador agradece a Deus as boas colheitas, as Festas Juninas em comemoração a Santo Antônio, São João e São Pedro, a Festa dos Santos Reis que comemora a visita dos Reis Magos ao Menino Jesus, dentre outras. Durante essas festas são realizadas danças como a Dança de Fitas e a Catira, além da realização dos folguedos, onde se destacam a Cavalhada, a Congada, o Jongo e o Moçambique. Todas essas manifestações, segundo Pellegrine Filho (2008), têm origens remotas, são formas vivas e dinâmicas que se apresentam e se renovam em suas funções, formas e significados, são eventos que marcam as comunidades de seus praticantes, são instrumentos valiosos de salvaguardar a memória desses grupos. Sem falar de um dos principais sustentáculos de identidade coletiva, as ligadas ao paladar, pois em poucos lugares em São Paulo é possível saborear um afogado, um arroz com pato ou suã de porco, um bolinho de farinha, uma canjiquinha com entrecosto, um pastel de angu ou uma paçoca de carne-seca, sendo que todas essas comidas típicas podem ser saboreadas em um dos edifícios mais simbólicos da cidade, o Mercado Municipal. É a presença dessas manifestações culturais que confere ao patrimônio ambiental urbano de São Luiz do Paraitinga uma genuína alma caipira, a relação entre o patrimônio material e o imaterial, e, segundo Francisco (2008), isso de dá não apenas pela sobrevivência dos bairros rurais e sua interação com a cidade, mas é o resultado da permanência de uma cultura citadina eminentemente caipira. A associação de São Luiz do Paraitinga como cidade do café no imaginário das pessoas encontra suporte também no título de “Cidade Imperial”, concedido por D. Pedro II em 1873, quando a cidade alcança o momento auge de sua importância econômica e política.


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Porém, os dados históricos não corroboram com essa preponderância das elites locais no cenário regional. Para Santos (2008), em um momento de alijamento de municípios pequenos como São Luiz do Paraitinga do atual processo da economia globalizada, torna-se importante para essas populações poderem associar a sua história com a de localidades que, pelo menos em um determinado momento histórico, exerceram certa importância e protagonismo, permitindo a esses cidadãos fazer parte do que o autor chama de uma “história de sucesso”. Sendo assim, a ordem próxima concebe um espaço fictício e passa a vivê-lo no seu imaginário. São Luiz vai se aproveitar desse período de expansão da cafeicultura no Vale do Paraíba, porém, desempenhando a função que lhe deu origem, a de entreposto comercial, visto que toda produção de café do Vale do Paraíba e do sul de Minas tinham que passar por São Luiz do Paraitinga nos lombos dos burros para acessar o porto de Ubatuba. Para corroborar com esse fato, temos o Gráfico 1 que mostra a produção cafeeira dos principais municípios do Vale do Paraíba, salientando que, no que se refere a São Luiz do Paraitinga, há imprecisão quanto à totalidade da produção. Nesse sentido, fica claro a modéstia da produção cafeeira em território luizense se comparada à produção de seus vizinhos.

Produção cafeeira em 1836 (arrobas) 120.000 100.000 80.000 60.000 40.000 20.000

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Gráfico 1: Produção cafeeira nos municípios do Vale do Paraíba. Fonte: SANTOS, 2008. * em 1836 houve um levantamento parcial da produção luizense, sendo assim, para efeito de comparação utilizamos os dados de 1852 para esse município.

Santos (2008) reforça a importância de São Luiz do Paraitinga como entreposto comercial, qualificando a rota que passava por esse município como sendo a segunda mais


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movimentada à época, com um fluxo de aproximadamente 78 mil animais transportando centenas de milhões de arrobas de café 3. Nesse sentido, é importante salientar que em São Luiz do Paraitinga a riqueza gerada pelo café não se concentrou de maneira tão intensa, como ocorreu em outros municípios da região, não apenas nas mãos dos “barões do café”, mesmo que esses possuam no imaginário da população local grande importância, mas também nas mãos dos comerciantes e dos pequenos produtores de gêneros alimentícios que abasteciam a região e os tropeiros que passavam pelo município. Assim, não se pode diminuir a importância do café como responsável pela produção do espaço urbano tradicional de São Luiz do Paraitinga, mas isso se deu de maneira indireta, foi a sua vocação de entreposto comercial, hora de tropas que transportavam ouro, hora de tropas que transportavam café, e de abastecimento de gêneros alimentícios que estimulou a fundação e expansão desse núcleo.

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SCHMIDT, Carlos. A vida rural no Brasil – A área de Paraitinga, uma amostra representativa. Pág. 34-35.


3. SÃO LUIZ DO PARAITINGA: UM ESPAÇO CONCEBIDO/APROPRIADO COMO LUGAR DA VIDA

Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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O lugar é produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais que se realizam no plano do vivido o que garante a construção de uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela história e cultura civilizadora produzindo a identidade, posto que é aí que o homem se reconhece porque é o lugar da vida. (Carlos, 1996: 22)

Temos o intuito aqui de entender como se deu a produção do espaço da cidade de São Luiz do Paraitinga, desde a sua fundação como parte de uma política de ocupação da capitania de São Paulo até os dias atuais, enfocando os ciclos econômicos que acarretaram a expansão dessa malha urbana, com destaque para a inundação de 2010 que impôs grandes alterações na dinâmica da cidade. Entre São Paulo e Rio de Janeiro, nos municípios de Taubaté e Guaratinguetá, tivemos um dos principais focos de atividades bandeiristas em direção ao estado de Minas Gerais, o que culminou com a descoberta de ouro nesse último. Esses municípios passam então a desempenhar um papel importante de entroncamento de caminhos de tropas para o escoamento dessas riquezas em direção ao porto marítimo de ligação imediata, o porto de Ubatuba. Essas cidades estavam separadas por um “mar de morros”4 que ocupava todo o planalto, desde a Serra da Bocaina até a Serra de Guararema. Nesse sentido, Saia (1977) salienta que esse planalto entre Taubaté e Ubatuba passa então a ser cortado por diversas trilhas pelo crescente fluxo de tropas, criando uma demanda nessa região por produtos de primeira necessidade no período da mineração, do final do século XVII ao início do século XIX. Para Silva (2008), o tropeirismo tem origem a partir de uma conjuntura social, geográfica e política, o que o torna não apenas uma atividade econômica, mas sim socioeconômica pelo viver específico que proporciona e pelo impacto sobre o território, estimulando a fundação de arraiais e vilas. A forma do traçado urbano de São Luiz do Paraitinga, situado em um dos meandros do Rio Paraitinga, decorre da época do estabelecimento dessas rotas de escoamento do ouro explorado na capitania de Minas Gerais. Sendo assim, a criação e desenvolvimento de São Luiz estão diretamente relacionados à sua localização (Mapa 2).

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Segundo Ab‟Saber.


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3.1. Da várzea do Rio Paraitinga à Imperial Cidade

A fundação da vila foi estimulada em 1769 pelo Morgado de Mateus como parte de uma ampla política de organização territorial e dinamização da economia implantada pelo Marques de Pombal em 1765, com o fim de impor ao território um maior controle por parte do governo português. Para Santos (2008), era fundamental para a crescente economia de um país em formação a organização do espaço e das relações sociais, tendo em vista um maior controle do Estado, e esse autor lembra ainda que São Luiz estava situada em uma região estratégica no escoamento de grande parte da produção paulista rumo ao litoral nos séculos XVIII e XIX. Com o advento da atividade aurífera na região das Gerais, a necessidade de caminhos mais organizados e seguros para o escoamento dessas riquezas se intensifica. Assim, a fundação de novos núcleos urbanos ao longo desses caminhos cresce, pois estes permitiam, por parte da coroa, um maior controle, além é claro de melhorar a qualidade do transporte. Santos (2008) lembra ainda que, com a aproximação do fim do século XVIII, a região do Vale do Paraíba passa a ser considerada a mais importante da capitania, por esta ter sido um dos principais caminhos dos bandeirantes na exploração do território, por exercer função fundamental para o escoamento do ouro, sobretudo sob o esquema de tropas, chegando ao século XIX como a região mais povoada da capitania. Nesse sentido, mesmo antes de sua fundação, São Luiz do Paraitinga tem como principal vocação econômica servir de apoio para as tropas responsáveis pelo escoamento de todo tipo de produção rumo ao litoral, em especial ao porto de Ubatuba. Nessa época temos a elaboração de um plano urbanístico “ilustrado” para São Luiz do Paraitinga, com a adaptação de um traçado urbano regular ao relevo acidentado da região, além de normas que garantiam a simetria das fachadas e da volumetria dos edifícios, o que garantem a esse patrimônio ambiental urbano características paradigmáticas do planejamento urbanístico que pontuou a segunda metade do século XVIII no Brasil (IPHAN, 2010). O patrimônio ambiental urbano de São Luiz do Paraitinga é considerado um exemplo único, visto que das fundações planejadas por Morgado de Mateus, São Luiz preencheu e consolidou o plano regular a que foi sujeito já na década de 1830, constituindo-se hoje como a principal referência, nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, dessa política “ilustrada” da segunda metade do século XVIII. Esse traçado, elaborado em 1769, é dominante até os dias de hoje na configuração urbana em questão e, em nenhuma das numerosas fundações do período no Brasil, o plano e o programa urbano-arquitetônico estão presentes como nessa cidade paulista.


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O município teve seu primeiro período de expansão urbana (Mapa 3), segundo Saia & Trindade (1977), entre 1770 e 1800, quando a economia local começou a ganhar consistência devido à transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, fato que levou a uma dinamização de toda a economia da região Sudeste, consolidando a tradição de policultura de São Luiz, em especial as culturas do feijão, milho, fumo, café e da criação de suínos para o abastecimento da região do médio Vale do Paraíba, além do sul da capitania de Minas Gerais e da corte no Rio de Janeiro, configurando-se como um município voltado aos gêneros para o mercado interno. É deste período a configuração da malha urbana da praça central, a Igreja da Matriz, as Capelas de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e das Mercês (Figuras 7, 8 e 9), além das ruas Barão do Paraitinga e Cel. Domingues de Castro que faziam a ligação entre esses templos católicos que se constituíram como marcos estruturais do plano urbanístico ilustrado. É importante salientar que hoje apenas os locais marcam os assentamentos desses edifícios primitivos, visto que a capela de Nossa Senhora do Rosário fora substituída, já na primeira metade do século XX, por uma nova edificação de feições neogóticas e a Capela de Nossa Senhora das Mercês, juntamente com a Igreja da Matriz, ruíram em decorrência da grande inundação de 2010.

Figura 7: Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, em 1884. Fonte: CONDEPHAAT.


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Figura 8: Igreja do Rosário dos Homens Pretos, em 1906, ainda em feições coloniais. Fonte: IES

Figura 9: Capela das Mercês, em 1981. Fonte: IPHAN.


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Entre 1800 e 1850 temos um segundo período de crescimento urbano da cidade (Mapa 3). Este se dá principalmente entre a capela de Nossa Senhora do Rosário e o Rio Paraitinga, com a abertura da Rua do Carvalho e a construção de casas de “meia morada” pela população mais pobre, assim como a abertura da rua Cel. Domingues de Castro e da estrada para Ubatuba, no Morro da Vila, por detrás da Praça onde mais tarde foi edificada a casa em que nasceria Dr. Oswaldo Cruz. Nesse período, a população total do município girava em torno dos 10 mil habitantes, como mostra o Gráfico 2.

Gráfico 2: Evolução da população de São Luiz do Paraitinga. Fonte: PETRONE, 1959/ IBGE, 2005/ SEADE, 2005. Organizado por Danilo Pereira.

Apresentando um crescimento urbano lento, porém contínuo, em 1830 a trama urbana de São Luiz do Paraitinga já se encontrava saturada, obrigando a abertura de novas ruas e a concessão de novos lotes. O projeto de “cidade iluminista” se consolida por volta dessa década (SAIA & TRINDADE, 1977). A documentação da época indica que tanto em relação


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à praça central, como em relação aos alinhamentos das edificações, tem-se o empenho em manter a uniformidade das fachadas e da volumetria, térrea ou assobradada, questões relativas à “formosura”, simetria e regularidade, posto desde o início do povoamento na configuração do cenário urbano local. Em 1857, a então vila é elevada à categoria de Cidade Imperial de São Luiz do Paraitinga, título concedido por D. Pedro II a alguns aglomerados urbanos importantes na época como Ouro Preto, Recife e Salvador, o que ressalta a importância do município para a época, colocado ao lado de localidades paulistas como São Paulo, Itu, e Taubaté. É este período, 1850 a 1890, o de maior riqueza do município, quando temos a ocupação completa dos terrenos na várzea do Rio Paraitinga até a atual Praça Teodoro Coelho (praça da Santa Casa de Misericórdia), com a abertura da rua Cel. Manoel Bento e o prolongamento da rua Cel. Domingues de Castro (Mapa 3). Em 1884 os lotes dessas novas ruas já estavam densamente ocupados. É desse período também o início da ocupação em direção ao Morro do Cruzeiro (Figura10). Em 1872 a cidade já contava com 355 casas no perímetro urbano, em 1844 eram apenas 180, sendo destas 36 sobrados (SAIA & TRINDADE, 1977). Num segundo momento, a cidade passa por um grande adensamento e por obras que melhoraram a vida citadina como calçamento e pavimentação de ruas, além de obras de contenção e drenagem, iluminação e abastecimento de água, e em 1897 a obra da nova ponte de acesso à cidade diretamente na Praça da Matriz. A partir de 1890, a expansão urbana resultou na edificação de prédios públicos deslocados para fora da área mais antiga, como a criação da Santa Casa em 1900 e do Mercado Municipal em 1902, ambas ao longo da rua Cel. Manuel Bento. No entanto, em 1877, é completada a ligação ferroviária entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, o que modifica os fluxos de mercadoria produzidos do sul de Minas Gerais e no médio Vale do Paraíba. Com essas mercadorias seguindo para o porto do Rio de Janeiro os portos de Ubatuba e Paraty entram em declínio, e com ele a vocação de entreposto comercial de São Luiz do Paraitinga, o que fortalece a cafeicultura que passa a seguir para a capital através da estação ferroviária de Taubaté.


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Elaboração: Danilo Pereira


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Figura 10: Vista do centro hist贸rico, em 1886 e em 2011. Fonte: IES e Danilo Pereira.


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Esse crescimento da atividade cafeicultora conferiu maiores lucros aos poucos fazendeiros do município, o que possibilitou a construção de novos edifícios, em especial de alguns dos grandes sobrados que emolduram a praça central, expressão dessa elite ciosas da sua situação financeira, social e política. Esses sobrados são um dos poucos remanescentes de moradias urbanas erguidas nesse período em São Paulo. Para Marins (2008a), o processo de urbanização em território paulista ocasionou a valorização excessiva das terras urbanas, acarretando a demolição em massa das antigas moradias erguidas durante o Império. Porém, como o clima da região não era muito propício para a cafeicultura, uma grande geada em 1917 liquidou os pés de café do município e este entra em um forte período de estagnação econômica. A partir de então, a população local, que chegou a quase 30 mil habitantes em 1900, passa a declinar (Gráfico 2). 3.2. De Imperial Cidade a último reduto caipira paulista5

Sem atrair imigrantes após a abolição da escravatura, a população de São Luiz do Paraitinga praticamente desapareceu, em 1940 eram pouco mais de 10 mil habitantes (Gráfico 2). Esse fato, associado a uma agricultura tradicional ainda muito forte, conferiu a esse município certa “originalidade dentro do Estado” (PETRONE, 1959), o que justificou a sua inclusão na área de cultura caipira de São Paulo. A crise econômica, ocasionada pela mudança dos fluxos de mercadoria no Vale do Paraíba, impossibilitou significativas intervenções no patrimônio ambiental urbano de São Luiz do Paraitinga. Sendo assim, a cidade permaneceu “congelada” no tempo, sem ser significativamente alterada. Porém, vale ressaltar que a falta de recursos impediu a alteração no núcleo antigo, mas não a expansão urbana à revelia da lei no seu entorno, fortemente influenciado pelo fluxo migratório campo-cidade decorrente dessa estagnação econômica no campo. Contudo, ainda predomina na cidade a malha tradicional integrada à paisagem natural (IPHAN, 2010). Nessa época, partes significativas das áreas rurais do Vale do Paraíba são convertidas em pastagem para a criação de gado voltado a atividade leiteira, o que não é diferente em São Luiz do Paraitinga, que passa também a receber um forte contingente de migrantes do sul de Minas Gerais, atraídos pelos baixos preços das terras nesse município.

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LUZ, 2004.


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A produção leiteira de São Luiz do Paraitinga foi estimulada pela instalação da indústria de laticínios Vigor em 1953, nesse período a população do município volta a crescer e atinge os 15 mil habitantes. Porém, a imposição econômica que passou a exigir cada vez mais investimentos financeiros na modernização dessa atividade, incompatível à realidade dos pequenos produtores, fez com que essa fase da pecuária leiteira passasse então a declinar nos anos de 1980 e consequentemente os preços das terras passam por um processo de desvalorização. Esse processo passou a estimular a expansão do plantio extensivo de eucalipto por empresas de papel e celulose instaladas fora do município a partir daí. Durante a década de 1980, com o declínio econômico do campo, tem-se a intensificação do êxodo rural e o conjunto urbano tradicional torna-se pequeno, essa malha urbana que contava com 1.395 habitantes em 1950 passou a contar com 6.145 habitantes em 2000. Tem-se então a ocupação quase que por completa do Morro do Cruzeiro (Figura 10) e, devido às limitações físicas que oferece o sítio onde se desenvolveu a cidade, a ocupação, de forma descontínua, dos vales entre os morros em relação à malha urbana de origem bicentenária. Em 1982, a cidade de São Luiz do Paraitinga foi reconhecida como Patrimônio Cultural do Estado de São Paulo pelo CODEPHAAT, passando a ser considerado o maior conjunto arquitetônico tombado no estado de São Paulo. São Luiz começou então a buscar na atividade do turismo a revitalização de sua economia, valendo ressaltar que, após o tombamento, a população do município volta a crescer, mesmo que de forma modesta. Vale destacar que, na atualidade, o conjunto tradicional em questão mantém quase as mesmas funções de outrora, são constituídas principalmente por moradias e por pequenas e médias casas comerciais (Anexo II), o que lhe confere um grande diferencial em relação aos outros centros históricos tombados como Paraty, onde a população local foi expulsa para dar lugar às atividades comerciais voltadas ao turismo. Porém, inspirado em locais como Ouro Preto, Olinda e Recife, São Luiz do Paraitinga passa a dar ênfase às suas manifestações populares como o carnaval de rua e os festejos religiosos num cenário urbano tradicional tombado, imerso numa paisagem natural pouco alterada (IPHAN, 2010) como atrativo.

3.3. São Luiz do Paraitinga, um patrimônio cultural brasileiro em risco

Palco do maior desastre em área protegida por seu valor cultural na história do Brasil, São Luiz do Paraitinga tem seu centro histórico arrasado pela maior cheia já registrada do Rio Paraitinga, no início de 2010. Segundo um relatório preliminar divulgado pelo


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CONDEPHAAT, logo após o evento, dos 426 bens tombados, 65 foram seriamente danificados e 16 totalmente arruinados (Mapa 4). Dentre os destruídos estão os principais símbolos do município: a Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, do século XIX; a singela Capela de Nossa Senhora das Mercês, do início do século XVIII; o sobrado do “Grupo Escolar”, do século XIX; e um sobrado datado de 1858, que fazia parte de um dos mais importantes conjuntos de fachadas remanescentes do planejamento ilustrado. Nesse momento de crise, o centro histórico de São Luiz do Paraitinga, que já se encontrava em processo de estudo para a sua proteção federal desde 2007, é tombado em caráter de emergência pelo IPHAN e obras de recuperação e salvamento são iniciados por esse instituto. Cabe ressaltar que estudos acerca da relevância paisagística e urbana de São Luiz do Paraitinga por esse órgão remontam aos anos de 1950, o que resultou no tombamento federal da casa onde nasceu o sanitarista Dr. Oswaldo Cruz em 1956 e no próprio centro histórico pelo CONDEPHAAT em 1982, este último levado ao conselho em conjunto com os técnicos do IPHAN à época. É importante lembrar que enchentes ocorrem periodicamente em São Luiz do Paraitinga, visto que esse conjunto urbano localiza-se em uma área de várzea, documentação antiga aponta outras duas grandes enchentes no município em 1864 e em 1882. Segundo Pereira (2011), as perdas decorrentes dessa última inundação não podem ser encaradas apenas como perdas materiais, mas também como perdas da memória de uma comunidade, visto que, entre os bens arruinados estão os principais sustentáculos da identidade luizense. A Igreja Matriz foi o palco dos acontecimentos mais marcantes na vida daquelas pessoas, além de ser o principal local de reunião nas missas de domingo dessa comunidade fortemente católica, é o local onde essas pessoas foram batizadas, onde se casaram e batizaram seus filhos. Além disso, era onde se realizavam as cerimônias de entrega dos diplomas de conclusão do ensino médio e fundamental, ou seja, os principais acontecimentos da vida pessoal de cada luizense ocorreram dentro daquele edifício. Podemos dizer então que o seu desabamento acarretou a perda do principal sustentáculo de memória coletiva dessa comunidade. Se até o momento do desmoronamento da matriz a inundação promovia perdas individuais, após a sua queda passamos a ter uma grande perda coletiva. E esse fato torna-se ainda mais claro quando observamos como essa comunidade agiu quando as águas começaram a baixar, em vez de irem socorrer seus pertences pessoais, passam a recolher nos escombros das igrejas todos os objetos que para eles poderiam ser salvos, mesmo antes da chegada dos técnicos especializados dos órgãos de patrimônio.


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Figura 11: Desabamento da Igreja Matriz de São Luiz de Tolosa, em 2010. Fonte: Folha de São Paulo.

Além dessas perdas coletivas, temos que contar as perdas pessoais, de cada objeto, fotografia ou documento que carregava a história de cada um, além da história de toda a sua família, o que para Bosi (2003) são os objetos biográficos, que além de uma sensação estética ou de utilidade, são responsáveis por dar um “assentimento posição” das pessoas no mundo, à sua identidade. Ademais, os objetos que sempre estiveram presentes falam à alma em uma língua natal, são objetos que envelhecem com o seu proprietário e se incorporam à sua vida, representando uma experiência vivida, uma aventura efetiva do proprietário. Para Marins (2008b), o patrimônio cultural torna-se relevante na medida em que é interpretado como vetor da formação do indivíduo e das relações sociais, que dele se apropriam, reelaborando-os a si próprios. O patrimônio ambiental urbano de São Luiz do Paraitinga, indiscutivelmente, repercute sobre a formação dos indivíduos locais e das relações sociais, ou seja, sobre o peculiar patrimônio imaterial dos luizenses, visto que, como já discutimos anteriormente, esse lugar se configura como espaço vivido por excelência. Nesse sentido, torna-se imprescindível para a salvaguarda desse patrimônio intangível a recomposição desse patrimônio urbano brasileiro.


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4. UMA GEOGRAFIA DESIGUAL DO PATRIMテ年IO CULTURAL BRASILEIRO

Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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O uso da palavra cultura para objetivar o patrimônio significa exatamente o que se pretendia trabalhar a partir de um conceito específico sobre a qual se compusesse um universo de bens, objetos e paisagens, selecionados por critérios culturais cujo sentido não seria apenas testemunhar o passado ou servir de documento para essa ou aquela disciplina, mas que atendesse o presente, não apenas por sua materialidade, mas também pelo esclarecimento do universo de representações simbólicas implícito nas relações entre os homens, da qual faz parte a memória. A ação preservacionista deveria resultar do conhecimento científico e, por meio dele, contemplar os múltiplos fios que tecem a diferenciação cultural própria das sociedades contemporâneas. (RODRIGUES, 1999:135)

Questões referentes ao patrimônio cultural vêm articulando alguns saberes acadêmicos, tateando entre a Arquitetura, o Urbanismo, a História e a Antropologia, estas já consagradas. Porém, é importante salientar a importante contribuição que a Geografia pode conferir a esse tema, sendo esta a ciência detentora de conceitos e metodologias que propiciam a investigação do espaço geográfico, visto que as experiências sociais não se fazem fora do espaço, o homem ao ocupar e agir sobre a natureza produz o espaço e deixa registrado nele a sua história. Na atualidade as discussões acerca do patrimônio cultural estão cada vez mais centradas nas questões da identidade e é na escala do lugar que ela se estabelece, sendo esta outra categoria de análise da geografia. Segundo Carlos (1996), é no lugar que se guarda o significado e as dimensões do movimento da história, passível de ser apreendida pela memória decorrente da acumulação dos tempos, marcados, remarcados e nomeados, natureza transformada pela prática social, acumulando cultura que se insere em um espaço e tempo. No que tange as ações do Estado pela salvaguarda desses acúmulos de cultura no espaço, Choay (2000) salienta que estas nasceram somente com a Revolução Industrial e Francesa, embaladas pelos valores do Romantismo. As políticas públicas de preservação da cultura no Brasil optaram pela arquitetura como foco de suas ações e essa opção foi fortemente influenciada por esse modelo patrimonial estabelecido nesse contexto francês, principalmente no que se refere às políticas centralizadoras, ao sistema de organização dos órgãos públicos e pelas discussões centradas nas questões da identidade nacional. Essa autora salienta ainda a importância da passagem da noção de monumentoartefato, entendendo este como o idealizado e construído com o fim de perpetuar a memória, possuindo assim uma origem espaçotemporal, para a de monumento-histórico, este possibilitando atribuir características que vão muito além das atribuídas pelo seu idealizador, permitindo que um sítio urbano como o de São Luiz do Paraitinga se integre a um conjunto de bens denominados de “patrimônio nacional”, mesmo este não tendo sido concebido para tal,


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mas sim com o intuito de servir como uma localidade de apoio à atividade tropeira. Assim, para Choay (2000), todo o objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico sem ter tido na sua origem um destino memorial. As primeiras ações voltadas à salvaguarda do patrimônio ocorreram na Inglaterra, quando um grupo de eruditos passou a se dedicar a colecionar objetos antigos, desenhando-se assim um processo de valorização do passado através de artefatos que testemunharam a história nacional. Mas é com a Revolução Francesa que o Estado passa a assumir em caráter oficial a função de salvaguardar os elementos que testemunharam o passado, em especial os bens expropriados do clero e da monarquia, e que passaram a ser tutelados pelo Estado francês. Segundo Choay (2000), o objetivo que se pretendia alcançar através dos valores atribuídos ao patrimônio nacional recém-inventado seria: o valor nacional, onde é evocada uma suposta identidade nacional; o valor cognitivo, que evoca a cidadania; e o valor econômico vinculado ao turismo, mesmo este só tendo se concretizado na França um século depois. Entretanto, já se enxergava no patrimônio nascente um potencial atrativo turístico inspirado no modelo italiano, em particular o de Roma. Sendo assim, cabe salientar que a Revolução Francesa rompeu com o passado e suas ações contraditórias não permitiram que, na França, fossem estabelecidas políticas de preservação mais eficazes e duradouras, sendo que apenas no século XIX as primeiras medidas consistentes foram implantadas, simultaneamente ao estabelecimento de uma teoria e uma metodologia de restauro dos monumentos, o que, consequentemente, acarretou reverberações no campo do patrimônio. No Brasil, a primeira proposta de lei no sentido de garantir a salvaguarda do patrimônio cultural se deu através do anteprojeto de lei criado por Mário de Andrade em 1936, em que este se esforçava em abranger uma noção de patrimônio no sentido amplo e global, onde lugares, objetos, fazeres, saberes, manifestações eruditas e populares se colocavam como sustentáculos de uma memória nacional. Contudo, oficialmente, a preservação do patrimônio cultural brasileiro começou a ser abarcada pela esfera pública um ano antes. Em 1935 temos a elevação da cidade mineira de Ouro Preto à categoria de Monumento Nacional, seguida pela criação do IPHAN em 1937, então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Rodrigues (1999) salienta que a escolha de Ouro Preto como primeiro Monumento Nacional conferia ao século XVIII a responsabilidade pelo estabelecimento da consciência


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emancipatória e a maturidade da arte e da arquitetura colonial no Brasil, o que para essa autora guiaria a atuação do IPHAN nos seus tombamentos seguintes. Marins (2008b) vai além, para esse autor a eleição de Ouro Preto significou a escolha de uma arquitetura rica e faustosa, associando a memória nacional às cidades coloniais mineiras, nesse sentido, depreciando o lugar de São Paulo no mosaico que passaria a constituir a memória e a identidade nacional, visto que as cidades paulistas nunca apresentaram a mesma exuberância que as mineiras. Cabe salientar aqui que estas escolhas não se dão apenas no campo técnico, mas também no campo ideológico, visto que as elites políticas e intelectuais buscavam moldar a sociedade para o advento da modernidade. Portanto, opta-se por adotar como representante da identidade nacional os sustentáculos das memórias das camadas populares urbanas, em especial as vinculadas às classes sociais mais abastadas. Assim, a cultura negra, a indígena ou as vinculadas ao mundo rural, como a cultura caipira, são esquecidas. A adoção desses critérios privilegiou os estados de Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro, os mais ricos do Brasil no período colonial, em detrimento do estado de São Paulo, herdeiro de alguns dos mais antigos núcleos urbanos brasileiros. Marins (2008b) salienta que as soluções arquitetônicas paulistas foram referências para as edificações ricas e faustosas que sobreviveram nesses estados privilegiados. Nem mesmos os intelectuais paulistas foram capazes de valorar o seu patrimônio nesse momento. Mario de Andrade considerava a arquitetura tradicional das cidades mineiras, baianas e pernambucanas como “maravilhosas e espantosas”, e que em São Paulo se deveria tombar o pouco que restava do período seiscentista e setecentista com referência à arquitetura neocolonial com elementos do barroco, negligenciando todo um patrimônio em arquitetura neoclássica e eclética que são os grandes representantes da cultura paulista no que se refere aos bens tangíveis imóveis. O fato que mais corrobora com o total descaso relacionado ao patrimônio cultural paulista frente às políticas federais de preservação foi à ausência de “centros históricos” tombados até 2009, quando parte do perímetro urbano de Iguape é elevada à categoria de Patrimônio Cultural Nacional.


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Segundo o “Guia de Bens Tombados” pelo IPHAN, até 2009 haviam 52 municípios brasileiros com pelo menos um conjunto urbano tombado 6, sendo que desses, 10 encontravam-se na Bahia e 10 em Minas Gerais, ou seja, apenas dois estados da federação concentravam quase 40% do total de conjuntos urbanos tombados e nessa época São Paulo não possuía nenhum (Mapa 5). Aqui cabe ressaltar que já em 2009 o estado paulista contava com 10 conjuntos urbanos reconhecidos como patrimônio cultural pelo CONDEPHAAT. Ao que se refere à totalidade dos bens tombados, é notória a desigualdade que esse modelo de seleção, adotado pelo IPHAN para eleger os bens que, segundo seus técnicos, deveriam representar a identidade nacional, impôs à geografia do patrimônio no Brasil, configurando-se em uma verdadeira geografia desigual do patrimônio nacional. Rubino (1996) salienta que, em um país de grandes dimensões como o Brasil, o IPHAN desenvolveu suas atividades de modo marcadamente desigual, onde o conjunto de bens tombados desenha um mapa de densidades discrepantes nas diversas regiões, períodos e tipos de bens, formando conjuntos fechados e finitos.

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Por problemas conceituais, é difícil precisar o número de conjuntos urbanos tombados pelo IPHAN, sendo que o presente número foi levantado através de uma interpretação do autor dos dados disponibilizados pelo arquivo do órgão federal.


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Quadro 1: Bens Tombados em 2009 e em 1967 Estados Acre Alagoas Amapá Amazonas Bahia Ceará DF Espírito Santo Goiás Maranhão Mato Grosso Mato Grosso do Sul Minas Gerais Para Paraíba Paraná Pernambuco Piauí Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Rio Grande do Sul Rondônia Roraima Santa Catarina São Paulo Sergipe Tocantins Total

Bens 2009 0 11 1 4 184 21 4 14 23 20 5 3 204 25 23 15 80 7 224 14 38 2 0 22 77 25 1 1047

% em 2009

Bens 1967

0 1,05 0,10 0,38 17,57 2,01 0,38 1,34 2,20 1,91 0,48 0,29 19,48 2,39 2,20 1,43 7,64 0,67 21,39 1,34 3,63 0,19 0 2,10 7,35 2,39 0,10 100

0 5 1 1 131 3 1 11 17 8 1 0 165 16 15 8 57 6 140 10 13 1 0 8 41 0 0 659

% em 1967 0 0,76 0,15 0,15 19,88 0,46 0,15 1,67 2,58 1,21 0,15 0 25,04 2,43 2,28 1,21 8,65 0,91 21,24 1,52 1,97 0,15 0,00 1,21 6,22 0 0 100

Fonte: Rubino(1996) e IPHAN (2009)

Como pode ser observado no Quadro 1 e no Mapa 6, dos 1.047 bens tidos como significativos à memória nacional até 2009, apenas 77 estão em território paulista, ou seja, pouco mais de 7%, número muito pequeno se comparado aos 224 do Rio de Janeiro, aos 204 de Minas Gerais ou aos 184 da Bahia, que somam cerca de 60% do total de bens tombados.


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Quando o IPHAN iniciou sua atuação no estado, a própria capital paulista ainda resguardava significativos exemplares de edificações em taipa, além de vários municípios do interior que, sem o respaldo das políticas de preservação, viram seus bens culturais tangíveis serem desmantelados na segunda metade do século XX (MARINS, 2008b). O patrimônio de São Luiz do Paraitinga só sobreviveu porque foi, posteriormente, submetido à tutela do órgão de proteção estadual e por se constituir como um forte elemento de identidade para a população local, como espaço vivido. Somente a partir dos anos de 1970 que as questões referentes ao belo passam a ser problematizadas e isso se dá, segundo Toji (2009), quando a atuação de historiadores ganha fôlego dentro do IPHAN. Estes passam a incorporar uma visão de patrimônio enquanto “documento” ou “testemunho” que pudessem representar momentos da história nacional no interior do instituto. Ainda nessa década, temos a criação do Centro de Referências Culturais (CNRC) para o campo do patrimônio imaterial, incorporado pelo IPHAN em 1979, revigorando as práticas de patrimônio pela noção de referência cultural7, ampliando a ideia de patrimônio e se aproximando da proposta original de Mário de Andrade, sendo incorporados saberes do campo da sociologia, da antropologia e da educação ao campo do patrimônio. Contudo, como pode ser observado no Quadro 1 e no Mapa 7, de 1967 até 2009 houve uma pequena tentativa de melhorar a representatividade do patrimônio brasileiro, visto que, com exceção do Rio de Janeiro, que teve sua representatividade acrescida em 0,15%, os estados de Minas Gerais e Bahia tiveram quedas de 5,5% e 2,3% respectivamente, contra o crescimento de 2,3% de Sergipe, 1,6% do Rio Grande do Sul, 1,5% do Ceará e 1,1% de São Paulo. Apesar desta tentativa, é importante ressaltar que os resultados têm sido modestos e que o mapa do patrimônio nacional continua extremamente desigual, ressaltando a ausência de Roraima e do Acre. Os primeiros bens registrados no livro do tombo do IPHAN referentes ao patrimônio paulista foram as coleções arqueológicas, etnográficas, artísticas e históricas do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e a Capela de São Miguel Paulista, em 1938. De lá para cá se deram sucessíveis tombamentos de bens isolados, porém, os primeiros conjuntos urbanos só vieram em 2009 e 2010, respectivamente Iguape e São Luiz do Paraitinga. Para tratar a questão da gestão do patrimônio em São Luiz do Paraitinga, é importante abordar as ações do Estado sobre o espaço que repercutem direta, ou indiretamente, sobre a 7

Conceito que busca a atribuição de valor cultural a partir de diferentes sujeitos sociais (TOJI, 2009).


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preservação do patrimônio na atualidade, a relação da ordem distante sobre a ordem próxima, os conflitos e alianças estabelecidas entre as diversas escalas de poder, principalmente em um momento de crise como o atual, quando o maior conjunto arquitetônico tombado de São Paulo sofre com as cheias do Rio Paraitinga. É o que será feito nos capítulos a seguir.


5. O CONDEPHAAT E A PRODUÇÃO DE UM ESPAÇO URBANO ESQUIZOFRÊNICO

Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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Inseridos numa década de grandes transformações de parâmetros comportamentais e de imensas mutações demográficas e espaciais que atingiram as principais cidades brasileiras, os primeiros órgãos estaduais de preservação atuaram parcialmente na contracorrente dos cânones estabelecidos pelo IPHAN. (MARINS, 2006b:154)

Aqui iremos analisar como se estabeleceram as políticas paulistas de preservação do patrimônio cultural, destacando em que contexto da evolução destas se reconheceu a relevância do patrimônio luizense para São Paulo e os resultados dessas políticas na produção do espaço geográfico local. Qualificamos este como esquizofrênico, porque se de um lado os planos da ordem distante estabeleciam os padrões, modelos e diretrizes de uma cidade racionalmente produzida, de outro o destino da cidade foi sendo submetido ao contexto econômico e a dinâmico social local, ou seja, a ordem próxima, resultando em um espaço, hora planejado e hora produzido à revelia da lei. Os Compromissos de Brasília (1970) e Salvador (1971), que reuniram os governadores da maioria dos estados da federação, consolidaram o compartilhamento das tarefas de proteção do patrimônio cultural entre a esfera federal e os estados. Os primeiros órgãos estaduais de salvaguarda tiveram sua atuação marcada por ações que contrastavam com os cânones estabelecidos pelo IPHAN, passando a proteger edificação e núcleos urbanos não contemplados pelos critérios estabelecidos há décadas pelo órgão federal. Criado em 1968, o órgão de preservação do patrimônio do estado de São Paulo, o CONDEPHAAT, teve em seus primeiros anos de atuação que lidar com a tensão de se posicionar entre os antigos parâmetros herdados pelo IPHAN e uma demanda social que via suas referências culturais desaparecerem pela crescente especulação imobiliária, tanto na capital como no interior (RODRIGUES, 1999). Para essa autora, a criação desse conselho só foi possível quando a burguesia paulista passa a buscar um símbolo identitário, encontrado na figura do bandeirante. Assim, como elementos edificados desse período são extremamente escassos no território paulista, os conselheiros optaram pela proteção de construções filiadas ao neoclassicismo do auge da cafeicultura. Então, se o IPHAN privilegiava a arquitetura barroca do período colonial, o CONDEPHAAT optou pela arquitetura neoclássica do período do império, mas novamente a arquitetura era privilegiada. É importante ressaltar que antecedeu a criação do CONDEPHAAT uma reforma administrativa iniciada em 1967 no governo de Roberto Costa de Abreu, quando se tem a criação da Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo do Estado de São Paulo. Nesse momento


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são criadas diversas instituições voltadas ao incentivo da cultura, porém ainda não no sentido da salvaguarda de bens patrimoniais. É deste período a criação da Fundação Padre Anchieta, do Museu de Arte Sacra, do Museu da Imagem e do Som, da Casa Brasileira e do Paço das Artes, demonstrando por parte do Estado uma preocupação com o espetáculo e as artes plásticas. O projeto de criação de um órgão de proteção do patrimônio paulista tornou-se lei em 22 de outubro de 1968 com o n° 10.247, no contexto político de plena ditadura militar. No início, o conselho era composto por oito membros, tendo um representante da Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo, um da Universidade de São Paulo (Departamento de História), um do Instituto de Pré-história, um do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e outro do Guarujá-Bertioga, um do Instituto de Arquitetos do Brasil, um da Cúria Metropolitana de São Paulo e um do IPHAN. Em 1975 foram acrescentados ao conselho mais dois representantes da Universidade de São Paulo (Departamento de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), um da Comissão de Artes Plásticas do Conselho Estadual de Cultura e um da Conferência Nacional de Bispos do Brasil. Nesse ano tivemos também a extinção da representação do Instituto Histórico e Geográfico de Guarujá-Bertioga. Em 1983 tivemos novamente a ampliação do conselho, que passou a contar com 25 conselheiros, com a incorporação de representantes dos Departamentos de Ciências Sociais e Antropologia de todas as universidades públicas do Estado, ampliação de representantes dos Departamentos de Geografia, História e História da Arquitetura da Universidade de Campinas e da Universidade Estadual Paulista, da Secretária da Agricultura e Abastecimento e da Secretária de Esporte e Turismo 8 (RODRIGUES, 1999). A presença de especialistas das universidades no conselho se justificava pela tentativa desta em estabelecer trocas entre as práticas preservacionistas e os centros de produção de conhecimento onde a noção de preservação poderia se ampliar, mas essas trocas foram tênues, e as ações do CONDEPHAAT se deram de maneira segmentada, exemplo disso foi o tombamento do Conjunto da Serra do Mar e Paranapiacaba (1985), onde a normativa abarca apenas as questões do patrimônio natural, sendo incapaz que garantir a salvaguarda de um importante patrimônio cultural edificado como as ruínas do Presídio da Ilha Anchieta, não tombado até os dias hoje.

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A Secretária da Cultura, Esporte e Turismo foi substituída pela Secretária da Cultura e Turismo e a Cultura foi incorporada em 1979 à Secretária da Cultura, Ciência e Tecnologia.


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A criação do órgão de preservação do patrimônio cultural paulista foi fortemente ligada a um processo de valorização do passado e da possibilidade do seu consumo pela atividade do turismo, fato influenciado pelas Normas de Quito de 1967 que buscava relacionar de maneira direta a preservação do “patrimônio monumental” como possibilidade de desenvolvimento através da atividade do turismo, o que de certo modo contrastava com as orientações do IPHAN, visto que este atuava no sentido de valorar o passado enquanto referência para a constituição de uma suposta nacionalidade, além de fonte de conhecimento arquitetônico, e não como um bem potencial a ser explorado economicamente. Nos seus primeiros anos de atuação (1969 a 1975), o CONDEPHAAT volta-se ao modelo de preservação estabelecido pelo IPHAN (RODRIGUES, 1999), com uma visão nostálgica do passado, não considerando a vida urbana contemporânea como expressão cultural, contemplando através de tombamento, bens em arquitetura tradicional, caracterizando-se em um órgão distante da sociedade, isso devido às condições políticas do momento, um território nacional sob regime militar, o que dava o tom da relação Estadosociedade. É desse período a abertura do processo de tombamento de São Luiz do Paraitinga, este fortemente influenciado por estudos realizado nos anos de 1950 pelo IPHAN-SP, quando o arquiteto Luis Saia esteve à frente da superintendência estadual. À época realizou-se um sistemático levantamento métrico e fotográfico das edificações antigas do núcleo em questão, resultando no tombamento, em 1956, da casa onde nasceu o sanitarista Dr. Oswaldo Cruz pelo órgão federal. Porém, com o falecimento de Saia, esses estudos não foram finalizados pelos que o sucederam, tendo como justificativa a falta de antiguidade, o pouco valor artístico, a falta de originalidade desse núcleo e pela política de delegar aos órgãos estaduais os novos tombamentos a partir de 1970, significando na exoneração por parte do IPHAN de uma das suas principais obrigações, a da gestão do patrimônio, se dedicando apenas à pesquisa, ou seja, ao trabalho menos conflituoso. Nesse sentido, podemos dizer que a abertura do estudo de tombamento de São Luiz do Paraitinga é o resultado de uma grande influência do IPHAN sobre o conselho paulista, marcando o caráter conservador do mesmo e o seu distanciamento da população, visto que mesmo o CONDEPHAAT tendo

sido pioneiro na adoção do que Marins (2008b)

denomina de “tombamento de balcão”, política que se inicia em 1983, o processo de acautelamento de São Luiz foi solicitado pelo conselheiro e arquiteto Eduardo Corona. Ou seja, esse tombamento não resultou de uma demanda popular, mas sim de uma sinalização


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política, esse acautelamento de cima para baixo sem dialogar com a população gerou dúvidas, visto que a estes não foi explicando as responsabilidades. Em 1975 inicia-se uma nova fase do conselho paulista, esta se daria até 1982, ano da homologação do tombamento do centro histórico aqui estudado. Esse período, denominado por Rodrigues (1999) como “Considerando o Presente”, consiste no estabelecimento de políticas revolucionárias da preservação do patrimônio, políticas estas que influenciaram profundamente o estudo de tombamento de São Luiz do Paraitinga. Nesse período temos a adoção de uma nova postura de proteção, onde não se abarcava mais apenas o objeto a ser tombado, mas o ambiente em que este se inseria, considerando as ações humanas que agiam sobre ele. Nesse sentido, a cultura passava a ser entendida como “coisa viva”. É nesse período que o CONDEPHAAT incorpora aos seus estudos o conceito de “Patrimônio Ambiental Urbano”, onde elementos como as ruas e a paisagem são somadas as edificações como parte de um meio ambiente que seriam suporte de memória e, como tal, suscetíveis ao acautelamento público. É nesse sentido que a arquitetura eclética, tida como “menor”, passa a ser objeto de tombamento, visto que esta passa a ser considerada um importante elemento de ambientes urbanos antigos, cuja eleição considera valores como o afetivo dos grupos sociais. Assim, ao contrário das políticas federais, o tombamento de um bem apenas pelo seu valor artístico mostra-se desprovido de sentido, já que é o seu uso que lhe confere atribuição de valor cultural, ou seja, os espaços vividos passam a ser valorados. Foi esse tipo de postura do conselho estadual que possibilitou, em 1982, que fossem listados os 426 bens do centro histórico de São Luiz do Paraitinga, visto que se tivessem mantido os cânones da primeira fase o número de bens seria bem menor, já que nem todos possuem influência da arquitetura neoclássica, a mais valorada na fase anterior. É deste período também que temos o estabelecimento de outras iniciativas também consideradas revolucionários das políticas de preservação do patrimônio de São Paulo, dentre elas é possível apontar a grande atenção com as áreas naturais, onde se destaca o tombamento de todo o conjunto da Serra do Mar e de Paranapiacaba, um dos últimos redutos de Mata Atlântica preservada no país, além de se listar bairros com vegetação expressiva como o bairro dos Jardins em São Paulo (1986). Tivemos também, como já mencionado, pouca ênfase aos tombamentos baseados em inventários sistemáticos, com a prevalência da chamada “política de balcão”, onde o próprio cidadão poderia indicar um bem que julgasse relevante para a identidade cultural de um grupo para ser tombado, o que possibilitou o reconhecimento de bens filiados aos imigrantes, sobretudo japoneses, e da arquitetura industrial e ferroviária.


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Sendo assim, incluído no Programa Cidade Históricas do CONDEPHAAT em 1980, São Luiz do Paraitinga teve o seu estudo de tombamento iniciado em uma fase mais conservadora do CONDEPHAAT, quando este ainda estava fortemente vinculado às políticas federais de preservação. Porém, o estudo em questão absorveu os aspectos progressistas da fase seguinte pelo qual passou o conselho paulista, o que resultou num tombamento de conjunto e da elaboração de uma normativa que pretendia guiar o planejamento urbano futuro. A normativa elaborada prevê, além da proteção do chamado centro histórico em si, da paisagem que o cerca, mas a ausência de uma fiscalização mais intensa acerca das diretrizes elaboradas pelo CONDEPHAAT levou a uma intensa ocupação à revelia da lei no entorno no núcleo urbano bicentenário (Figuras 12 e 13). É importante ressaltar também que, mesmo após a abertura dos estudos referentes à proteção desse núcleo histórico, em 1969, quando todos esses imóveis passam a ser tutelados pelo Estado e qualquer intervenção necessitaria de autorização do mesmo, muitos casarões de taipa passaram por forte descaracterização e até mesmo foram demolidos, fato justificado pela dificuldade da população local em se enquadrar a esse novo momento de normatização decorrente da ausência da atuação do órgão e da dificuldade em se manter financeiramente esses imóveis de manutenção onerosa, ou seja, tivemos uma dissonância entre a ordem distante e a ordem próxima. Esse fato pode ser facilmente percebido pela chamada “preservação de fachada”, pois em São Luiz do Paraitinga grande parte dos painéis pintados nas paredes internas e nos forros se perdeu devido às intervenções sem as orientações técnicas devidas, a preservação se restringiu basicamente as fachadas e a volumetria das edificações. Essa obsessão pelas fachadas levou também a uma reprodução dos padrões arquitetônicos dos períodos colonial e imperial nas novas construções, os chamados “falsos históricos” (Figuras 14), mesmo o CONDEPHAAT repudiando esse tipo de obra em seu estudo de tombamento, exemplares desse tipo estão espalhados por todo centro histórico, dificultando aos olhos de um leigo a percepção do que é verdadeiro do que é falso.


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Figura 12: Centro hist贸rico, em 1978. Fonte: IBGE, 1978.

Figura 13: Centro hist贸rico, em 2007. Fonte: Danilo Pereira.


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Figura 14: Falso histórico na Praça Dr. Oswaldo Cruz, em 2011. Fonte: Danilo Pereira.

A Resolução de Tombamento (SC-55 de 1982) estabeleceu uma normativa que, além de regrar a situação presente, pretendia estabelecer como deveria se dar o desenvolvimento desse núcleo urbano. Em um primeiro momento o presente processo realiza uma descrição das características desse sítio, como o histórico, zona envoltória, traçado urbano, tipologia e cronologia das edificações, usos das edificações, estado de conservação e regime de posse do imóvel. A resolução solicitava ainda que o presente núcleo fosse prioridade dos órgãos de proteção municipal, estadual e federal em seus programas devido à sua importância como patrimônio representante do período cafeicultor na região, ou seja, como foi discutido no capítulo anterior, a ordem distante incorpora o discurso da ordem próxima. Após essa análise, é definida a proposta de atuação, como os graus de proteção de cada edificação e as diretrizes para as novas construções no centro histórico ou na área envoltória. Nesse momento o conjunto em questão é dividido em Centro Histórico I e Centro Histórico II, onde o primeiro corresponderia à área com as melhores habitações, com a presença de grandes sobrados do século XIX, construídos pelas famílias mais abastadas, onde a resolução ressaltava que estas possuíam influência da arquitetura urbana observada em Minas Gerais e que, pela homogeneidade e peculiaridade, esse conjunto se tornava único no estado de São Paulo.


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Esta área deveria ser considerada de proteção proeminente, todas as intervenções ficariam sob controle da PMSLP e do CONDEPHAAT, sendo que o estudo em questão ainda apontava a necessidade da adoção de ruas de pedestre e reestruturação do tráfego nessa zona, o controle de publicidade, iluminação e sinalização, fixação de gabarito máximo de dois pavimentos e a utilização do rio para compor a ambiência do conjunto. O Centro Histórico II se caracteriza por edificações de menor porte e alguns sobrados isolados, ressaltando que essas foram as que sofreram maior descaracterização. Essas zonas deveriam receber tratamento diferencial quanto ao rigor das intervenções físicas propostas, sendo assim, essa zona têm sua preservação necessária para se manter a harmonia do Centro Histórico I, onde se limita a altura e a volumetria das edificações. Sendo assim, o que se objetivava era garantir à preservação dos bens ligados à elite local, não dos bens como um todo. Além do estabelecimento dessas duas zonas de proteção definidas em função dos correspondentes valores artísticos, estabeleceu-se graus de proteção para cada imóvel individualmente, levando-se em conta o seu grau de conservação, usos, manutenção dos espaços internos e o período da construção, assim se estabeleceram os seguintes graus de proteção:

GP1

Construções anteriores ao século XX, que desempenham as mesmas funções ou funções análogas às originais e que possuem os espaços internos preservados. Essas deveriam ser conservadas integralmente.

GP1a

Construções anteriores ao século XX, que desempenham as mesmas funções ou funções análogas às originais e que possuem os espaços internos preservados. Essas passaram por algum tipo de descaracterização, contudo passíveis de restauração. Elas deveriam ser conservadas integralmente, além de passar por um processo de restauração. Construções anteriores ao século XX, que desempenham as mesmas funções ou funções análogas às originais, estas passaram por algumas descaracterizações impossíveis de serem restauradas devido à indisponibilidade dos elementos primitivos. Assim, essas edificações deveriam ter a fachada, cobertura e volumetria preservadas. Imóveis construídos no século XX. Essas deveriam ser preservadas para se manter o visual do conjunto, podendo ser reformadas, desde que mantido o equilíbrio urbano. Novas edificações. Aqui a resolução de tombamento salienta que deveriam ser evitadas soluções que conduzissem a imitação do antigo, porém, respeitando a homogeneidade do núcleo urbano, seja em sua volumetria, utilização de cores ou na relação com a paisagem.

GP2

GP3 GP4

Quadro 2: Grau de Proteção dos imóveis tombados pelo CODEPHAAT: Fonte: SC-55 de 1982.


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Quanto à Zona Envoltória, definia que se deveriam determinar as áreas passíveis de ocupação urbana para que estas fossem incorporadas de maneira organizada ao centro tombado, e que se mantivesse a paisagem do seu entorno para que esta servisse de cenário ao núcleo bicentenário. A presente resolução apontava ainda o estabelecimento de ruas para pedestre, enfatizando que as mesmas não foram dimensionadas para a circulação de veículos e proporcionando ao citadino a utilização plena de certos espaços urbanos, ou seja, uma preocupação com o espaço vivido, além de se evitar que a circulação de veículos danificasse a estrutura das edificações. Em consequência do estabelecimento dessas ruas de pedestres seria necessária a implantação de áreas de estacionamento para os moradores dessas ruas restritas, a implantação de uma nova ponte na Rua Benfica para desviar o tráfego do centro histórico, a necessidade de ampliação da rede hoteleira, visto que para o CONDEPHAAT a vocação turística de São Luiz do Paraitinga era clara, e o remanejamento do Terminal Rodoviário para fora do centro histórico. É importante salientar que a presente Resolução de Tombamento já previa uma intensa ocupação das margens do Rio Paraitinga, porém a única preocupação desta era em se manter a ambiência e não com as questões ambientais. Apesar de Rodrigues (2000) afirmar que a próxima fase do conselho paulista, que ela denominou de “Tempos de abertura”, referente ao período de 1982 a 1987, buscava uma aproximação entre o CONDEPHAAT e a sociedade, com o fim do regime de exceção, tornando-se um órgão de pesquisa da memória com forte interação com as populações locais, no caso de São Luiz do Paraitinga essa atuação não se realizou, esse sempre foi tido pelos luizenses como um órgão distante, burocrático, frágil e ineficiente, visto que não conseguiu implantar as normativas que estabeleceu na Resolução de Tombamento, com exceção da realocação do Terminal Rodoviário. Porém, é importante ressaltar que não se pode colocar nos conselheiros e técnicos a responsabilidade pela falta de eficácia do mesmo, mas sim no fato deste, como um órgão de Estado, estar submetido a um governo que sempre privilegia os interesses econômicos em detrimento dos interesses sociais. Para este governo não interessa um órgão de patrimônio forte e atuante, visto que isso impossibilitaria a manutenção da atual política econômica, totalmente submetida aos interesses da especulação imobiliária. Mais recentemente, em 2006, a Secretária de Estado da Cultura passou por um processo de reestruturação e, nesse processo, o CONDEPHAAT também sofreu mudanças. A mais significativa foi a criação da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico (UPPH), unidade submetida diretamente ao gabinete do secretário e que passou a ter como atribuição inventariar o patrimônio cultural e natural, coordenar o Grupo de Conservação e Restauro de


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Bens Tombados, além de servir de núcleo de apoio administrativo ao CONDEPHAAT, cabendo ao conselho apenas a deliberação de estudos e projetos elaborados pela UPPH. Essas mudanças podem ser encaradas como uma tentativa de atrelar cada vez mais as decisões ao controle da Secretaria da Cultura. Em 2006 também tivemos uma reorganização da estrutura do conselho paulista, com um fortalecimento dos representantes do governo em detrimento dos representantes das universidades e da sociedade. Passaram a ser dez conselheiros indicados diretamente pelo governo (quatro da Secretária da Cultura, um da UPPH, um da Secretária do Meio Ambiente, um da Secretária de Esporte, Lazer e Turismo, um da Secretária da Justiça e Defesa da Cidadania, um da Secretária da Economia e Planejamento e um da Procuradoria Geral do Estado), treze representantes das universidades públicas paulistas (Departamentos de História, Geografia, História da Arquitetura, Antropologia ou Sociologia e do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo), dois representantes de diversos seguimentos da sociedade (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil e Instituto de Arquitetos do Brasil) e um do IPHAN. Nesse sentido, esse processo de fragmentação da estrutura administrativa com a criação do UPPH e a maior presença do governo na composição do conselho têm uma clara intenção de enfraquecer o CONDEPHAAT, tornando-o ainda mais suscetível aos interesses do capital imobiliário, mesmo que estas reformas possuam o discurso de modernizar, agilizar os estudos de tombamento e de se aproximar da sociedade.


6. O IPHAN E O SALVAMENTO DE UM PATRIMテ年IO CULTURAL NACIONAL

Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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Mesmo críticos renitentes aceitariam que a experiência de preservação do assim chamado “patrimônio histórico e artístico nacional” constitui a política cultural mais bem-sucedida na área pública deste país. E tal concordância poderia ocorrer a despeito do fato de cada um deles manifestar reservas de bom calibre quer quanto ao conteúdo doutrinário cristalizados pela expressão entre aspas quer no tocante à substância factual a que cada um dos termos remete (MICELI, 1987)

Nesse momento iremos discorrer sobre como se estabeleceram as políticas federais de preservação do patrimônio cultural, ou seja, sobre a trajetória do IPHAN nos seus 74 anos de existência, claro que de maneira sucinta. Destacaremos os fatos políticos, visto que os relacionados às suas ações e os resultados que estes produziram sobre o mapa desigual do patrimônio cultural brasileiro já foram contemplados anteriormente. A partir da análise desse contexto político, procuraremos entender em que momento e circunstância, levando-se em conta a relação da ordem distante e a ordem próxima (Lefebvre, 1991), se deu o tombamento do conjunto urbano de São Luiz do Paraitinga. O IPHAN foi criado em 1937 pelo decreto-lei n° 25, que regulamentava a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional por meio do tombamento. Porém, foi na constituição de 1934 que tivemos a primeira referência à proteção de bens culturais pela esfera estatal no Brasil, quando se dispôs que “cabe à União e aos Estados proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico e artístico...” (BRASIL, 1934), ou seja, temos a consagração do patrimônio histórico e artístico como um princípio constitucional. O decreto-lei n° 25 organizou a proteção dos bens culturais brasileiros através do tombamento, efetivando-se quando o presente bem é inscrito em um ou mais dos quatro livros do tombo criado pelo mesmo decreto-lei, o Livro do Tombo Arqueológico, Etnológico e Paisagístico; o Livro do Tombo Histórico; o Livro do Tombo das Belas Artes e o Livro do Tombo de Artes Aplicadas. Esses livros possuem status diferentes dentro da instituição, sendo o Livro do Tombo das Belas Artes o de maior prestígio. Nos seus primeiros trinta anos de atuação, de 1937 até 1967, denominado “Fase Heroica” por Fonseca (1997), sob a direção de Rodrigo de Mello Franco de Andrade, foram responsáveis por instituir uma política federal de preservação, marcando uma posição oficial do Estado na questão da salvaguarda da memória. Porém, é importante marcar que esse período também foi marcado pelo atendimento de interesses específicos e não coletivos, principalmente aos interesses do Estado e dos intelectuais modernistas. Temos nesse momento uma busca incansável por uma cultura e uma identidade “autenticamente brasileira”, encontrada nos bens do período colonial, em especial as


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signatárias do barroco mineiro. Fonseca (1997) salienta que nesse momento a eleição dos bens a serem listados não era embasada por estudos e pesquisas, mas sim pelas escolhas feitas pelos técnicos, não sendo necessário formular justificativas, prevalecendo as características estéticas, onde o caráter histórico era secundário. O decreto-lei n° 3.534 de 1946 criou quatro distritos sedes do IPHAN, em Belo Horizonte, São Paulo, Salvador e Recife. É nesse momento que temos por parte da sede paulista o início dos estudos referentes à relevância do patrimônio cultural de São Luiz do Paraitinga, sob a coordenação do arquiteto Luis Saia. À época realizou-se um profundo estudo dessas edificações, porém, como elas não se enquadravam nos cânones da instituição no presente momento, o seu tombamento foi negado e esses estudos foram encaminhados na década seguinte ao CONDEPHAAT, para que este realizasse o tombamento. A segunda fase, que Fonseca (1996) denomina de “Fase Modernista”, se inicia em 1967 e vai até o fim dos anos 1980, quanto esta autora termina a sua análise. Sob a direção de Renato Soeiro, esta fase foi marcada por uma nova política de tombamento, voltada mais para a salvaguarda de conjuntos urbanos, este como uma resposta à crescente especulação imobiliária e à atividade turística. Assim, a ideia de ambiência foi criada para possibilitar a inclusão de outros estilos arquitetônicos que anteriormente não eram aceitos, tentando manter a volumetria dos imóveis do entorno, dificultando a ação dos especuladores. Promovido pelo Ministério da Educação em 1970 e 1971, os encontros dos governadores tiveram como objetivo promover a discussões acerca das medidas necessárias à defesa do patrimônio cultural brasileiro. Como resultado desses encontros tivemos, respectivamente, o Compromisso de Brasília e o Compromisso de Salvador, estes estabeleciam o compartilhamento da preservação do patrimônio com os municípios e os estados, buscando estabelecer políticas locais de salvaguarda dos bens culturais. Aqui cabe salientar que é nesta conjuntura que tivemos a criação do CONDEPHAAT, mesmo esta se dando anos antes, em 1968. Com a criação do órgão de proteção paulista, o IPHAN de São Paulo delega a este os novos tombamentos, se exonerando em tombar e gerir o patrimônio cultural, suas principais funções. Assim, o tombamento federal do núcleo urbano estudado aqui se torna cada vez mais distante. Até então de caráter estritamente cultural, o IPHAN foi fortemente influenciado nos anos de 1950 e 1960 pela ideologia do desenvolvimentismo, atrelando o nacionalismo aos valores modernistas. Nesse período temos a eleição de um novo estilo arquitetônico como subsídio da identidade nacional, a arquitetura modernista no estilo Oscar Niemayer.


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Em 1979 temos a criação da Fundação Pró-Memória (FNPM), esse fato significou o estabelecimento de uma nova dinâmica do órgão federal, acarretando uma reformulação do mesmo com a manutenção dos instrumentos legais que lhe conferiam eficácia. A FNPM tinha como finalidade realizar inventários, classificação, conservação, proteção, restauração e revitalização dos bens culturais, enquanto o IPHAN coordenava e dirigia as atividades de preservação dos bens culturais. Em 1985 temos a criação do Ministério da Cultura (MinC), e tanto o IPHAN como a FNPM ficam sob tutela do mesmo. A criação deste ministério não foi resultado de uma reivindicação popular, mas sim de um arranjo político. Mesmo agora a cultura tendo pela primeira vez um ministério próprio, as questões referentes a este continuavam secundárias (FONSECA, 1996). Em 1988 tivemos a promulgação da nova Constituição, nesse momento o Estado abarca a questão cultural de maneira mais abrangente através dos artigos 215 e 216, com a ampliação da noção de patrimônio cultural e com o surgimento de um novo agente frente a esse processo, a sociedade em parceria com o Estado. Porém, mesmo assegurado pela constituição, os mecanismos públicos de preservação do patrimônio passaram por um processo de desmantelamento no governo de Fernando Collor, quando temos a extinção do MinC e do IPHAN em 1990, tornando-se respectivamente a Secretaria da Cultura e Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural, o que dá início ao que denominaremos terceira fase do IPHAN. Esse desmantelamento da área da cultura foi somado com a aprovação da Lei Rouanet, que permitia que projetos de incentivo à cultura recebessem patrocínio e doações de empresas e pessoas físicas, podendo estes virem a ter parte dos benefícios concedidos abatidos no Imposto de Renda. Esse fato efetivou a cooptação da esfera da cultura pelo mercado, de maneira que apenas os projetos de grande visibilidade, portanto, os que possuíam maior capacidade de gerar lucro tivessem agentes financiadores, uma verdadeira “privatização” da cultura e do patrimônio, cabendo ao Estado apenas a aprovação das ações. Com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da Republica, quando temos o início da quarta fase do IPHAN, o MinC é recriado e o IPHAN é efetivado como uma entidade integrada a Administração Pública Federal, revigorando assim a atuação dos órgãos oficiais de cultura. A questão mais importante referente a essa temática no presente período refere-se à institucionalização do patrimônio imaterial, redefinindo as diretrizes de preservação no Brasil. Instituído pelo Decreto n° 3.551 de 2000, juntamente com o Programa Nacional do


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Patrimônio Imaterial (PNPI), tendo como objetivo fomentar e buscar estabelecer parcerias entre as instituições federais, estaduais, municipais, universidades, organizações não governamentais, agências de desenvolvimento e fomento ligadas à cultura, pesquisa e educação. Com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva em 2003 não tivemos grandes mudanças na estrutura do MinC e do IPHAN, porém houve mudanças significativas nas políticas de ambos, principalmente no que tange o direcionamento dos recursos por meio dos Pontos de Cultura e no estabelecimento das prioridades. Contudo, as mudanças mais significativas referem-se ao início de uma política de reconstituição dos quadros administrativos e técnicos do IPHAN, caracterizando uma nova fase desse instituto, portanto, a quinta fase. Através de concursos públicos, novos quatros são incluídos ao corpo técnico e administrativo, revitalizando suas ações em relação às políticas de patrimônio, com uma maior disposição para o diálogo com a sociedade e pela busca por uma melhor representatividade do patrimônio nacional, visto que as tentativas anteriores foram insuficientes. É deste período também a aprovação do regimento interno do IPHAN, neste se estabelece que é de competência do presente instituto proteger, fiscalizar, promover, estudar e pesquisar o patrimônio cultural brasileiro. Nesse sentido, são estabelecidas as ações de rotina do órgão, como as vistorias, visitas técnicas e fiscalizações, análises de processos e aprovação de projetos, emissão de autorizações, notificações e embargos, acompanhamento da execução de intervenções e projetos e a adoção de medidas legais no caso de danos aos bens tombados. Nessa nova conjuntura política, temos em 2007, quase cinquenta anos depois, a reabertura de estudos acerca da possibilidade de realizar novos tombamentos em São Paulo, com destaque para os conjuntos urbanos de Santos, Iguape e São Luiz do Paraitinga. Dessa maneira, em dezembro de 2009 Iguape é declarada Patrimônio Cultural Nacional, constituindo-se no primeiro conjunto urbano tombado pelo poder público federal no estado de São Paulo. Tal tombamento fez parte de uma série de ações do IPHAN no Vale do Ribeira (tombamento dos bens da imigração japonesa, estudo da Paisagem Cultural, inventário de referências culturais, ações de educação patrimonial). Cabe ressaltar que o presente tombamento não se restringe apenas ao núcleo urbano, um conjunto composto por 60 imóveis, mas também pelo registro do Morro da Espia, responsável pelo abastecimento de água doce dos primeiros grupos humanos que habitavam a região e pelos vários sítios arqueológicos encontrados e cadastrados anteriormente pelo IPHAN na localidade, e pelo Setor Portuário (Canal do Valo Grande e Estuário Lagunar do Mar Pequeno) por se constituir como um importante testemunho da relação intrínseca entre o conjunto urbano e as águas.


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A definição dessa grande área a ser tombada foi estabelecida de forma participativa, onde a população foi sistematicamente ouvida em vários encontros promovidos pela superintendência do IPHAN de São Paulo e a Prefeitura Municipal de Iguape com a população, prova desse fato foi a abertura da Casa de Patrimônio do Vale do Ribeira nesse município, mesmo antes do seu tombamento. Porém, esse processo participativo não ocorreu no caso do tombamento de São Luiz do Paraitinga, talvez isso tenha ocorrido pelo fato de ter se congregado ao tombamento de Iguape justamente os novos técnicos aprovados nos últimos concursos públicos, com uma visão mais democrática de patrimônio, e no caso de São Luiz do Paraitinga seguiu-se o mesmo modelo e abordagem tradicional. Assim, se desenhava novamente um tombamento autoritário de cima para baixo, no mesmo modelo ao efetuado pelo CONDEPHAAT em 1982. Contudo, vítima de um desastre natural, São Luiz do Paraitinga tem seu centro histórico arrasado pela maior cheia já registrada do Rio Paraitinga, em janeiro de 2010. Dessa maneira, a sociedade cobra do IPHAN um posicionamento oficial na recuperação desses bens, e esse órgão tomba em caráter emergencial o presente centro histórico e a paisagem do seu entorno em março do mesmo ano, mesmo antes de ter seu dossiê concluído, uma vez que essa ação era necessária para embasar juridicamente suas ações no município. Nesse momento é deslocada para São Luiz uma equipe do IPHAN de Goiás, responsáveis pela recuperação da cidade de Goiás Velho depois de cheia do Rio Vermelho em 2000. Inúmeras obras de salvamento são iniciadas, entre elas se destacam o salvamento dos remanescentes das Igrejas Matriz e das Mercês e o escoramento de vinte edificações que possuíam risco iminente de ruir, além de obras emergenciais na Igreja do Rosário e na casa Dr. Oswaldo Cruz, estas duas últimas, mesmo não tendo sido afetadas diretamente pela enchente, encontravam-se em precário estado de conservação. Enfim, quase sessenta anos depois do início dos primeiros estudos referentes à relevância de São Luiz do Paraitinga como patrimônio cultural pelo IPHAN, temos o seu reconhecimento como Patrimônio Cultural Nacional em 10 de dezembro de 2010, em uma reunião do Conselho Consultivo do IPHAN no Palácio Gustavo Capanema, na cidade do Rio de Janeiro, com o acautelamento de mais de 450 imóveis numa área superior a 6,5 milhões de metros quadrados.


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Nesse sentido, podemos concluir que, como aponta Scifoni (2006), o processo de valorização dos bens tem, antes de qualquer coisa, um caráter político, a definição do que tem valor e do que não tem implica uma escolha, uma seleção que ocorre segundo padrões de aceitação social que tem uma historicidade, ou seja, os bens são suporte físico de valores que lhes são conferidos de acordo com as condições presentes em cada momento da história.

6.1. O IPHAN como protagonista de um processo de recuperação

A grande inundação do réveillon de 2010, quando choveu intensamente em toda a Bacia do Rio Paraitinga, resultou na elevação de cerca de 14 metros do nível do rio. Só para se ter uma ideia da magnitude dessas chuvas, o Rio Paraitinga despeja na Represa de Paraibuna, segundo a Companhia Energética de São Paulo (CESP), cerca de 80 mil litros de água por segundo, no pico da inundação chegou a despejar 2 milhões de litros por segundo. Com esse desastre e a grande cobertura que a mídia deu ao evento, a reconstrução e a restauração de imóveis tombados em São Luiz do Paraitinga passam a ser prioridade da Secretaria de Estado da Cultura (SEC) e do MinC que, através dos seus respectivos órgãos de patrimônio, passam a atuar de maneira mais sistemática através de intervenções diretas e de fiscalizações com a instalação de escritórios técnicos no município. Para guiar esse processo de reconstrução é necessário considerar as Resoluções do CONDEPHAAT, a de tombamento em 1982 e a complementar de 2010, e o Tombamento do IPHAN de 2010, sem desconsiderar as recomendações internacionais por meio das Cartas de Patrimônio da UNESCO para conferir legitimidade a esse processo. Nesse sentido, a Carta de Veneza de 1964 (IPHAN, 2004) é o principal documento orientador das intervenções em imóveis de interesse cultural. O seu artigo 3° sugere que “a conservação e a restauração de monumentos visam à salvaguarda tanto da obra de arte quanto do testemunho histórico”, sendo assim, para garantir à sobrevivência do monumento a restauração é aceita. No artigo 9°, a mesma carta sugere que a restauração é “uma operação que deve ter caráter excepcional. Tem por objetivo conservar e revelar os valores estéticos e históricos do monumento e fundamenta-se no respeito ao material original e aos documentos autênticos. Termina onde começa a hipótese; no plano das reconstituições conjecturais, todo trabalho complementar reconhecido como indispensável por razões estéticas ou técnicas destacar-se-á da composição arquitetônica e devera ostentar a marca do nosso tempo. A restauração será sempre precedida e acompanhada por um estudo arqueológico e histórico do monumento”.


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Nesse sentido, a carta indica que se devem respeitar os remanescentes das edificações, visto que estes são os documentos autênticos. Como em São Luiz do Paraitinga o pau a pique e a taipa mostraram ser totalmente vulneráveis a eventos extremos de inundação, onde “as técnicas tradicionais se revelaram inadequadas, a consolidação do monumento pode ser assegurada com o emprego de todas as técnicas modernas de conservação e construção cuja eficácia tenha sido demonstrada por dados científicos e comprovada pela experiência”, diz o artigo 10° da Carta de Veneza. Então, entendemos que os materiais remanescentes devem ser preservados, porém, para garantir à sobrevivência desses bens a eventuais inundações futuras, estes devem ser recompostos com o emprego de materiais resistentes. Já a Carta de Burra de 1980 (IPHAN, 2004) estabelece, no artigo 17°, que a “reconstrução deve ser efetivada quando constituir condição sine qua non de sobrevivência de um bem cuja integridade tenha sido comprometida”, ressaltando no artigo 19° que “a reconstrução deve limitar-se à reprodução de substâncias cujas características são conhecidas graças ao testemunho material e/ou documental”. Assim, no caso de São Luiz do Paraitinga, a reconstrução dos imóveis é aceita por haver levantamentos métricos e arquitetônicos de todos os imóveis tombados pelos órgãos de preservação. A Carta de Nairobi de 1976 (IPHAN, 2004), que dispõe sobre as recomendações relativas à salvaguarda dos conjuntos históricos e sua função na vida contemporânea, coloca como um dos seus princípios gerais que “cada conjunto histórico ou tradicional e sua ambiência deveriam ser considerados em sua globalidade, como um todo coerente, cujo equilíbrio e um caráter específico dependem da síntese dos elementos que o compõem e que compreendem tanto as atividades humanas quanto as construções, a estrutura espacial e as zonas circundantes. Desta maneira, todos os elementos válidos, incluídas as atividades humanas, desde as mais modestas, têm, em relação ao conjunto, uma significação que é preciso respeitar”. Sendo assim, as reconstruções precisam ser pensadas em conjunto, não como reconstruções de imóveis isolados, deve ser levada em consideração a relação dos luizenses com o presente conjunto urbano em sua totalidade, visto que este, como já foi discutido, configura-se como o lugar da vida, espaço vivido e suporte da identidade local. Portanto, mostra-se importante a reconstituição do mesmo para que essas relações espaciais persistam. Por fim, a Carta de Nara de 1994 (IPHAN, 2004) dispõe sobre autenticidade e afirma no artigo 13° que “dependendo da natureza do patrimônio cultural, do seu contexto cultural, e da sua evolução através do tempo, os julgamentos de autenticidade podem estar ligados ao


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valor de uma grande variedade de fontes de informação. Entre os aspectos destas fontes, podem estar incluídos a forma e o desenho, os materiais e a substância, o uso e a função, as tradições e as técnicas, a localização e o enquadramento, o espírito e o sentimento, bem como outros fatores internos e externos. O uso destas fontes permite a elaboração das específicas dimensões artística, histórica, social e científica do patrimônio cultural que está a ser examinado”. Nesse sentido, quando a carta evoca o uso, a função, as tradições, o espírito e o sentimento como fatores responsáveis pela conferência de autenticidade dos bens, há como contestar a legitimidade do patrimônio de São Luiz do Paraitinga? Depois de tudo o que foi discutido neste trabalho até aqui, a relação do lugar e da identidade em Carlos (1996) e de São Luiz como o espaço da vida em Lefebvre (1991), não restam dúvidas quanto a sua autenticidade. Contempladas as questões de legitimidade desse processo de recuperação do centro histórico no âmbito internacional, é necessário entender quais são as diretrizes adotadas pelos órgãos de patrimônio, ou seja, as normativas que efetivamente guiaram esse processo. Sendo assim, é necessário iniciar pelas determinações da Resolução de Tombamento do CONDEPHAAT (SC-55 de 1982), que especifica o grau de proteção de cada imóvel, se ele deve ser integralmente ou parcialmente conservado para garantir a harmonia do conjunto, o que exige, por parte de intervenções em determinados imóveis, a adoção de métodos científicos de restauração. Não entraremos com mais detalhes aqui, visto que essa resolução já foi sistematicamente descrita anteriormente. No que se refere ao tombamento do IPHAN, este ainda não possui uma normativa específica, está sendo construída em parceria com a população local, porém, trata-se de um tombamento paisagístico, cujos limites extrapolam os estabelecidos pelo CONDEPHAAT, contudo este se preocupa com a relação estabelecida entre os imóveis e as medidas das quadras, quanto ao seu aspecto exterior, principalmente em relação às elevações frontais, incluindo os panos de cobertura, a volumetria. Quanto à Resolução Complementar à de Tombamento de 2010 (SC-3 de 2010), fruto de discussões entre o Conselho, técnicos da UPPH e o IPHAN, estabeleceu-se diretrizes específicas para a reconstrução e reformas dos imóveis atingidos pela inundação, orientandose a utilização de técnicas e materiais resistentes a possíveis futuras inundações, onde as edificações com grau de proteção GP1 e GP2 e perda estrutural igual ou superior a 50% deveriam ser recompostos com alvenaria estrutural. Nas intervenções realizadas nas edificações parcialmente arruinadas, com menos de 50% de perda estrutural, a restauração


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deveria, preferencialmente, utilizar as mesmas técnicas construtivas dos remanescentes. Como vimos, estas determinações estão de acordo com as Cartas Patrimoniais da UNESCO. A resolução exige ainda que se respeitem as dimensões das paredes originais, que as fachadas sejam recompostas de acordo com seus elementos decorativos e seus materiais originais, que a volumetria e os telhados sejam respeitados. Apesar desta resolução ter sido estabelecida em parceria entre o CONDEPHAAT e o IPHAN, no que se refere às técnicas de restauração adotadas, é importante salientar que a posição deles tem sido divergentes em muitos casos, o que tem acarretado muita morosidade na aprovação e execução de algumas obras. Mostra-se justo e necessário reconhecer o importante papel que o IPHAN desempenhou no processo de salvamento dos remanescentes da Igreja Matriz e da Capela das Mercês, o que possibilitou que à população fossem devolvidos vários objetos, dentre eles importantes imagens sacras de extrema relevância para as memórias dessas pessoas, como a imagem de Nossa Senhora das Mercês do século XVIII (Figuras 15 e 16), construída em terra cota e que fora encontrada em 82 pedaços sobre os escombros da capela dedicada a ela, além dos elementos integrados das edificações, suscetíveis a serem reincorporados aos novos templos. É importante salientar o papel que a população local teve nesse processo de salvamento, visto que, mesmo antes das equipes técnicas dos órgãos competentes chegarem à cidade logo após a inundação, a população já havia retirado dos escombros inúmeros objetos que para eles serviam como sustentáculos de identidade, muitas vezes deixando seus próprios pertences pessoais em segundo plano. Essa atitude foi muito valorizada pelos órgãos de patrimônio, em especial pelo IPHAN, influenciando de maneira decisiva em suas ações, que posteriormente contratou essas pessoas para dar continuidade às obras de salvamento, assim como na reconstituição dos imóveis. Após esse primeiro momento de salvamento, mostrou-se necessário estabelecer um planejamento em conjunto entre IPHAN, CONDEPHAAT e PMSLP para o estabelecimento de uma estratégia que visasse a reconstrução, recomposição e restauração dos imóveis tombados. Porém, houve uma clara cisão entre a esfera federal e a estadual, onde a PMSLP, a esfera mais fraca, não conseguindo impor sua posição perante o governo federal e o estadual opta por se aliar, por questões partidárias, à esfera estadual. Assim, o IPHAN se viu isolado, e esse fato pode ser comprovado pelo descaso da prefeitura na Reunião do Conselho do IPHAN, que deliberou pelo tombamento definitivo de centro histórico em questão, quando nenhum representante da mesma esteve presente.


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Figura 15: Nossa Senhora das Mercês, após restauração. Fonte: Biapó (2010)

Figura 16: Nossa Senhora das Mercês, antes da restauração. Fonte: Biapó (2010).


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Figura 17: Igreja Matriz, ap贸s as obras de salvamento. Fonte: Biap贸 (2010)

Figura 18: Igreja Matriz, antes das obras de salvamento. Fonte: Biap贸 (2010)


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Esse fato forçou o IPHAN a eleger outros parceiros nesse processo de recuperação. Assim, temos a entrada de duas instituições civis locais nesse processo, o Instituto Elpídio dos Santos (IES) e a recém-criada Associação dos Amigos para a Reconstrução e Preservação do Patrimônio Histórico de São Luiz do Paraitinga (AMI São Luiz). Essa parceria só foi possível porque, nesse momento dramático, tivemos o alinhamento de um grupo de técnicos do instituto mais sensíveis às questões que envolviam esse processo, que entenderam ser o patrimônio cultural luizense um elemento de coesão entre a população e o poder público. O IES é um tradicional órgão de valorização da cultura local, que tem como fundadores os filhos do compositor Elpídio dos Santos, e que passa a desempenhar um importante papel de salvaguarda do patrimônio após o convênio firmado com o IPHAN. O presente convênio foi responsável pelo repasse de verbas para a restauração integral da Igreja do Rosário, único templo católico do centro histórico que não fora atingido pelas águas do Rio Paraitinga, mas que se encontrava em péssimo estado de conservação, sendo condenada pelo IPT em 2008. É importante salientar que, mesmo esse edifício não possuindo nenhum valor artístico por se constituir em uma edificação em estilo neogótico, totalmente destoante do conjunto, ele é de extrema importância para a salvaguarda das memórias dessa comunidade, fortemente católica e que passou pelo drama de perder seus principais templos religiosos. Sendo assim, podemos considerar que esse fato representa a vitória do espaço vivido sobre o concebido, é o reconhecimento deste espaço da vida pela ordem distante. Esse convênio prevê ainda a restauração completa de outro bem de extrema importância para o presente conjunto urbano, a Casa Dr. Oswaldo Cruz, que se converterá em um “Museu da Reconstrução”. As obras emergenciais já foram concluídas e o seu restauro completo aguarda a conclusão do projeto arquitetônico. A parceria entre o IPHAN e o IES também apoia diversas ações do AMI São Luiz, uma entidade comunitária que possui como finalidade contribuir na articulação da sociedade civil e a iniciativa privada com o poder público, em especial com os órgãos de patrimônio. Esta vem captando recursos para serem aplicados nas áreas em que o poder público não tem condições de atuar, se configurando como uma resposta da comunidade local às limitações das políticas públicas de preservação do patrimônio no Brasil. Foram essas ações da comunidade local que sensibilizaram o IPHAN quanto às questões dos imóveis particulares e, por meio dessa parceria firmada com o IES, dois imóveis privados serão reconstruídos no centro histórico com custeio público.


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Figura 19: Asilo de São Vicente, após reforma. Fonte: AMI São Luiz (2010).

Figura 20: Asilo de São Vicente, antes da reforma. Fonte: AMI São Luiz (2010)


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A atuação da AMI São Luiz tem se concentrado na elaboração de projetos em parceria com o IES e na doação de recursos para a restauração de imóveis privados de famílias carentes, entendendo que não se pode falar em São Luiz do Paraitinga enquanto seus moradores não estiverem ocupando novamente o espaço urbano que lhes pertence, visto que este é fato que confere a São Luiz do Paraitinga grande particularidade dentre os conjuntos tombados no Brasil, ser ocupado pela população local. Nesse sentido, destaca-se a execução do projeto e das obras de recuperação da Vila São Vicente de Paula (Figuras 19 e 20), um asilo, permitindo o retorno de um grupo de idosos que ali moravam até o réveillon de 2010, quando foram transferidos para Taubaté. Voltando as ações do IPHAN, em parceria com o IES e a AMI São Luiz, temos o quadro abaixo onde são sistematizadas as obras executadas, em execução e a serem executadas pelo IPHAN em São Luiz do Paraitinga:

Quadro 3: Obras do IPHAN na recuperação de São Luiz do Paraitinga Obra Salvamento dos remanescentes das Igrejas Matriz e Mercês, trabalho de limpeza e escoramento de 20 imóveis públicos e privados (executado) Projeto museológico do Memorial da Reconstrução da Casa Dr. Oswaldo Cruz (executado) Obras emergenciais na Igreja do Rosário, Casa Dr. Oswaldo Cruz e Instituto Elpídio dos Santos (executado) Vídeo documentário sobre o município (executado) Festa em comemoração ao tombamento nacional (executado) Restauro da Igreja do Rosário (em execução) Reconstituição da Igreja das Mercês (executado) Projeto executivo da Casa Elpídio dos Santos (executado) Memorial da Casa Dr. Oswaldo Cruz e construção de anexo (em execução) Reconstrução de dois imóveis privados no Centro Histórico (em execução) Projeto de paisagismo no bosque da Casa Dr. Oswaldo Cruz (em execução) Obras de paisagismo no bosque da Casa Dr. Oswaldo Cruz (execução prevista para 2011) Custo administrativo do convênio com o Instituto Elpídio dos Santos (execução prevista para 2011) Restauro da Cápsula do Tempo (execução prevista para 2011) Oficinas de Educação Patrimonial (execução prevista para 2011) Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) (execução prevista para 2011) Fonte: IPHAN (2011)

Valor (R$) 2,8 milhões 190 mil 1 milhão 6,5 mil 60,5 mil 2,5 milhões 1,3 mil 14,5 mil 730 mil 533 mil 54,5 mil 250 mil 270 mil 48,3 mil 6 mil 78,9 mil


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No que compete ao governo do estado de São Paulo, através do CONDEPHAAT e da SEC, tivemos a restauração completa do Mercado Municipal, o mais antigo mercado em funcionamento do estado (IPHAN 2010), um dos símbolos da cidade, outro importante espaço vivido pela população. O imóvel ficou totalmente submerso e sua restauração já foi concluída, todas as características originais foram respeitadas, inclusive no que se refere aos materiais utilizados. Outras das duas principais obras da SEC no centro histórico de São Luiz do Paraitinga se referem à reconstrução do antigo Grupo Escolar e da restauração da sede da PMSLP. O primeiro projeto, cujo imóvel original possuía grau de proteção GP1 e fora totalmente arruinado, prevê a construção de um imóvel contemporâneo, onde a volumetria e os vãos do imóvel original serão respeitados para garantir a harmonia do conjunto urbano, esse imóvel deixará de ser uma escola para abrigar a biblioteca da cidade. Quanto à sede da PMSLP, o prédio foi parcialmente arruinado e o mesmo possui grau de proteção GP1a, ou seja, deve ser integralmente protegido. O projeto de restauração prevê o respeito às técnicas e aos materiais originais, sendo adotados elementos modernos apenas quando estes forem necessários para garantir que esse imóvel resista a possíveis novos sinistros, porém, a fachada, a volumetria e as divisões internas serão mantidas. Contudo, no que se refere à atuação do CONDEPHAAT, destaca-se o convênio firmado entre a UPPH e a Fundação para a Pesquisa Ambiental (FUPAM), este tem como objetivo suprir a demanda por projetos de restauro ou reconstrução de imóveis afetados pela inundação, sendo a FUPAM responsável pelo desenvolvimento de projetos particulares em diversos imóveis com grau de proteção GP3 e GP4, de acordo com os levantamentos técnicos realizados pela UPPH dos danos ocorridos. Como podemos observar no gráfico a seguir (Gráfico 3), dos 55 projetos elaborados entre 2010 e 2011, 66% desses foram preparadas ou pela própria UPPH ou pelo convênio firmado com a FUPAM, o que demonstra uma boa vontade do órgão estadual em viabilizar a recuperação dos imóveis privados, visto que, sendo os projetos elaborados por eles, a sua aprovação ocorre de maneira mais rápida.


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Responsáveis pelos projetos arquitetônicos Condephaat

34%

Fupam

Particular

13%

53%

Gráfico 3: Responsáveis pelos projetos arquitetônicos. Fonte: PMSLP.

Os 13% de projetos elaboras pelo CONDEPHAAT, através da UPPH, referem-se aos imóveis com grau de proteção GP1, GP1a e GP2, por estes demandarem um maior rigor técnico, onde os imóveis devem ser protegidos integralmente. Porém, a morosidade na elaboração desses projetos tem sido apontada pela população como um dos empecilhos para que a restauração desses imóveis seja realizada com maior agilidade. Até outubro de 2011 a UPPH submeteu ao Conselho apenas sete projetos de restauração, pouco se considerado que foram esses os imóveis que mais sofreram com a inundação por terem sido os que passaram por menos alteração no decorrer do tempo, onde a taipa e o pau a pique eram as técnicas construtivas predominantes, além de serem os imóveis que compõem o principal espaço vivido da cidade, a Praça da Matriz, e a população se encontra ciosa por ter esse espaço recuperado. Porém, é justo ressaltar que, ao analisar os projetos elaborados pela UPPH foi possível notar que os mesmos possuem um sólido embasamento técnico, onde todos os elementos originais são respeitados e a utilização de materiais modernos só foram sugeridos quando estes se mostravam importante para garantir que estes sobrevivam a possíveis novos desastres, seguindo recomendações de engenharia feitas pela equipe técnica do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), sempre respeitando as fachadas, volumetrias, espessura das paredes e divisões internas. Contudo, a recuperação dos imóveis privados não depende apenas dos projetos, mas também de linhas de financiamento. Para isto, o Governo do Estado disponibilizou recursos especiais para as famílias do centro histórico de São Luiz do Paraitinga com renda de até dez


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salários mínimos. Porém, poucas famílias estão conseguindo acesso a essa linha de crédito, e isso ocorre porque os proprietários receberam esses imóveis por meio de herança, sendo assim, alguns possuem várias famílias como titulares e quando as rendas dessas são somadas, estas não conseguem se enquadrar. Outra questão que tem sido apontada como empecilho refere-se à propriedade do imóvel estar regularizada, em São Luiz grande parte dos imóveis possui apenas direito de posse, sendo necessária a sua regularização.

Origem dos recursos empregados na recuperação dos imóveis privados

AMI-SLP

6% 25% 53% 11% 5%

Financiamento público aprovado Financiamento público em análise IPHAN Paticular

Gráfico 4: Origem dos recursos empregados na recuperação dos imóveis privados. Fonte: PMSLP.

Como podemos observar no gráfico 4, mais da metade dos imóveis tem sido recuperada com recursos particulares, sendo que as linhas de crédito têm auxiliado apenas 25% das famílias, ressaltando que esses 11% correspondem às famílias que tiveram algum problema ao se adequar aos requisitos, seja pela renda ou pelas questões fundiárias. Os imóveis que estão apresentando mais dificuldades para serem recuperados são os que se localizam na Praça da Matriz, pois estes não se enquadram na questão de renda, porém, a recuperação desses grandes sobrados seguindo todas as exigências dos órgãos de preservação possui custos muito elevados, visto que estes exigem até a contratação de empresas especializadas, o que tem levado o poder público local a procurar outras alternativas para recuperar o principal espaço público da cidade.


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Como em Goiás Velho, que teve seu patrimônio recuperado após as cheias do Rio Vermelho, em 2000, em grande parte pela iniciativa privada, a PMSLP está tentando viabilizar que empresas que atuam na região e no município passem a auxiliar nesse processo de recuperação, em especial as empresas de papel e celulose, como a Fibria, que possui extensas áreas de eucalipto plantadas no município. Por se tratarem dos imóveis de maior destaque, já que se encontram na praça principal da cidade, onde ocorrem as principais manifestações culturais, portanto, de certa maneira com uma maior visibilidade, a prefeitura acredita na viabilidade desse projeto, porém, este ainda encontra-se em processo de estudos. Por fim, porém não menos importante, é necessário discorrer sobre a recuperação de dois imóveis que se constituem como os principais sustentáculos de memória coletiva dessa comunidade, imóveis estes que foram os primeiros a serem socorridos pela população assim que as águas do Rio Paraitinga começaram a baixar: a Capela das Mercês e a Igreja Matriz de São Luiz de Tolosa. Estes são também os projetos mais polêmicos dentro dos órgãos de patrimônio, pois colocaram em pauta novos desafios, como proceder quando um bem tem sua arquitetura ruída, mas seus bens integrados recuperados? Essa questão é fácil de ser entendida se compararmos o caso da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Pirenópolis, em Goiás, com a da Igreja Matriz de São Luís de Tolosa. Ambas foram acometidas por grandes desastres, a primeira num incêndio em 2002 que destruiu todos os seus bens integrados, porém, preservou sua arquitetura. Em São Luiz se deu o oposto, a inundação fez com que a arquitetura ruísse, mas permitiu que os bens integrados fossem recuperados. Nesse sentido, como pode se ter a recuperação da igreja em Pirenópolis como legítima e em São Luiz não? O que fazer com esses bens integrados? Transformá-los em peças de museu mesmo estes ainda tendo significado no imaginário da comunidade? Ou reincorporá-los em novas construções onde estes não estarão em harmonia com o restante da nova edificação? Ambos os casos são legítimos, pois, assim como em Pirenópolis, em São Luiz os remanescentes serão respeitados e poderão ser contemplados pelos que adentrarem a nova edificação, e se considerarmos os fatores que conferem autenticidade, segundo a Carta de Nara de 1994 (IPHAN, 2004), esta questões já estão superadas, ficando apenas essa discussão de “falso histórico” na dimensão de alguns arquitetos que ainda acreditam que o patrimônio cultural se restringe a pedra e a cal, no caso a taipa.


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Figura 21: Capela das Mercês, depois da recomposição. Fonte: Danilo Pereira, 2011.

Figura22: Altar da Capela das Mercês, depois da recomposição. Fonte: Danilo Pereira, 2011.


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Figura23: Capela das Mercês, com destaque para o púlpito remanescente. Fonte: Danilo Pereira, 2011.

Figura 24: Capela das Mercês, com destaque para a taipa remanescente. Fonte: Danilo Pereira, 2011.


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A reconstituição da Capela das Mercês (Figuras 21, 22, 23, 24) obedeceu a essas questões descritas acima. Como a principal obra executada pelo IPHAN em São Luiz do Paraitinga até o presente momento, está foi entregue a população no dia 27 de setembro de 2011, quando se comemorou as festividades da padroeira do templo, além do aniversário de 197 anos da edificação. O projeto realizou a recomposição da capela bicentenário, com a reincorporação de seus remanescentes, dentre eles os pináculos, os capitéis, o altar e o púlpito. As antigas paredes de taipa podem ser contempladas no interior da edificação por intermédio da utilização de revestimentos de vidro. Ao observar as imagens da Capela das Mercês, principalmente em seu interior, podemos perceber a preocupação em não se falsificar a história. Essa nova edificação está impregnada pela história desse lugar (lugar enquanto categoria geográfica com o qual se estabelece identidade, como em Carlos, 1996), com a história dessa comunidade, inclusive a inundação esta ali presente e visível nos bens integrados que foram restaurados e reincorporados, mas cujas marcas não se apagaram. No que se refere à reconstrução do principal imóvel arruinado durante a inundação, a Igreja Matriz de São Luís de Tolosa, a recuperação desse bem prevê a realização de quatro etapas, o que envolve o IPHAN, o CONDEPHAAT através da SEC e a Diocese de Taubaté, proprietária do imóvel. A primeira etapa correspondeu ao processo de salvamento dos remanescentes da antiga igreja, esta realizada pelo órgão federal. Nessa fase foi possível salvar vários elementos decorativos, como capitéis, os altares de mármore, os sinos, o piso, os lustres de cristais, os pináculos, os púlpitos de mármore e grande parte do forro que possui várias pinturas de cenas bíblicas, estes são passiveis de restauração e deveram ser reincorporados à nova edificação. A segunda fase constituiu-se na elaboração do projeto, este fora realizado pela Diocese de Taubaté. A Resolução Complementar do CONDEPHAAT de 2010 apontou três possibilidades técnicas para a elaboração desse projeto. A primeira mantendo-se as características da edificação original antes das intervenções pelas quais passou durante o século XX, portanto, uma igreja mais harmônica ao conjunto, porém que não possui sustentação nas memórias da comunidade. A segunda opção seria a reconstrução de uma igreja o mais próximo possível da igreja que ruiu, mantendo-se as principais características da arquitetura eclética da facha principal. Por fim, a terceira possibilidade previa a construção de uma igreja nova e que em nenhum momento aludisse à antiga. Apesar de essa terceira opção ter sido fortemente defendida entre os membros do conselho, que até chegaram a cogitar a possibilidade da SEC promover um concurso para escolher o projeto, a demanda da


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população pela reconstrução de um edifício o mais próximo possível do original os sensibilizou. Aqui cabe ressaltar também que essa resolução é anterior ao término das obras de salvamento realizadas pelo IPHAN, o que revelaria os elementos que deveriam ser reincorporados à nova edificação, aliás, a reincorporação destes passou a ser um pré-requisito para a aprovação do projeto pelos técnicos do IPHAN. Por fim, as duas últimas etapas referem-se ao processo de edificação e decoração do imóvel, essas sob responsabilidade da SEC. As obras tiveram início em setembro de 2011, possuem previsão de 18 meses para serem concluídas e o orçamento disponibilizado foi de 13 milhões de reais. Assim como a Capela das Mercês, a volumetria das pareces deve ser mantida, mas ao contrário da capela, que possui paredes maciças, a Matriz possuía paredes com mais de 1,5 metros de espessuras que deverão ser ocas, com todos os remanescentes reincorporados e as paredes de taipa originais preservadas e expostas. Sendo assim, fica claro o importante papel do IPHAN na recuperação do patrimônio de São Luiz do Paraitinga, visto que é ele quem dita e estabelece as diretrizes a serem seguidas. Porém, é justo ressaltar o papel da população local nesse processo, pois foi ela quem sensibilizou o poder público, a ordem próxima interferindo na ordem distante. Em poucas localidades do Brasil existe uma convergência tão clara entre o patrimônio cultural material e imaterial como em São Luiz, o que demandou a aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) em todo o município, uma metodologia desenvolvida para identificar e catalogar o patrimônio imaterial. Isso permitirá o levantamento desse patrimônio intangível e das memórias da cidade, cidade esta que é lugar por excelência, onde a natureza é transformada pela prática social, acumulando cultura em um espaço e tempo, acúmulos esses que se dão simultaneamente e com os quais se estabelecem laços de identidade (CARLOS, 1996), espaço vivido (LEFEBVRE, 1991), de ver e ser visto, portanto um patrimônio autêntico segundo as determinações da Carta de Nara de 1994 (IPHAN, 2004).


CONSIDERAÇÕES FINAIS Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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O conhecimento científico surge de uma dúvida e, consequentemente, do desejo de fornecer explicações sistemáticas que possam ser testadas e criticadas. Esse conhecimento, porém, é falível. Por se reconhecer a natureza hipotética do conhecimento científico, ele deve ser constantemente submetido a uma revisão crítica, tanto de consistência lógica das teorias, quanto da validade dos métodos e das técnicas de investigação adotados. Ou seja, não devemos dogmatizar os resultados, mas tratá-los como eternas hipóteses que necessitam de constantes investigações e revisões críticas em futuras pesquisas. Essa breve reflexão sobre o conhecimento científico se mostra necessária, porque os resultados a que chegamos neste trabalho vão de encontro a resultados obtidos por outros pesquisadores que afirmam, entre outras coisas, que a área de estudo em questão passa por um processo de refuncionalização, onde o presente centro histórico estaria passado por um processo de cenarização devido à massificação da atividade do turismo, onde a identidade das pessoas com o lugar estaria se perdendo. Contudo, os usos dos imóveis tombados continuam sendo os mesmos desde o primeiro levantamento em 1982, quando do tombamento pelo CONDEPHAAT, ou seja, as famílias não estão sendo desalojadas do centro histórico para a incorporação de novos usos voltados à atividade turística. Sendo assim, é importante ressaltar que os métodos e técnicas adotadas neste trabalho nos levaram a resultados totalmente divergentes, pois entendemos ser a identidade dos luizenses com o lugar que habitam como um dos grandes diferenciais desse espaço que, para nós, é vivido. Outra questão que gostaríamos de salientar antes de apresentar alguns resultados da pesquisa refere-se à relação do pesquisador e seu objeto de pesquisa. Muitos manuais de metodologia afirmam ser necessário manter uma distância estratégica entre o sujeito e o objeto de pesquisa, buscando um não envolvimento subjetivo com as variáveis em análise, mas isso é possível quando tratamos de memória coletiva e identidade de um grupo? Em especial de um grupo que passou pela tragédia de perder seus principais sustentáculos de identidade em uma grande tragédia que marcou, não só a história dessas pessoas, mas as formas de se estabelecer as políticas de patrimônio no país. Aqui, cabe outra importante ressalva, como o pesquisador pode manter distância do seu objeto de pesquisa quando compartilha dos mesmos sustentáculos de memórias que essa população, possui nesse lugar seus referenciais de identidade, que estava presente quando da inundação e viu parte dos seus suportes de memórias serem levadas pelas águas do Rio Paraitinga? Nesse sentido, assumimos desde o início dessa pesquisa que tal abordagem seria impossível, admitimos assim todas as dificuldades que essa forte relação entre o pesquisador e sua área de estudo


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iriam impor, o que não foram poucas, aliás, as dificuldades se mostraram maiores do que as vantagens que essa proximidade propiciou. Após o reconhecimento dessas limitações, vamos a alguns resultados que este trabalho possibilitou que chegássemos: após o tombamento, cabe aos órgãos de proteção zelar pelos bens listados, promovendo a manutenção e a valorização desses bens, além de difundir ações voltadas à educação da população no que concerne às questões que envolvem a preservação desse patrimônio. Em São Luiz do Paraitinga, nunca houve por parte do CONDEPHAAT ações de educação patrimonial e, no que se refere à manutenção e valorização, as ações se mostraram insuficientes. O tombamento realizado por esse órgão apenas produziu um espaço esquizofrênico, pois o mesmo se mostrou incapaz de implantar as diretrizes e normas que estabeleceu no processo de tombamento, mantendo um grande distanciamento com a população local, o que gerou um grande vazio institucional, vazio este que agora passa a ser ocupado pelo IPHAN, que tem se mostrado mais suscetível a dialogar com os verdadeiros agentes da preservação do patrimônio cultural, a população local. Assim, podemos afirmar que apenas dois fatores foram responsáveis pela manutenção desses bens no presente espaço geográfico, em um primeiro momento a impossibilidade econômica em substituir esses imóveis por novos, e num segundo pela relação de identidade que essa população possui com esses bens, prova disso era o grau de conservação que estes apresentavam até o advento da inundação. Segundo levantamento do IPHAN em 2009 (Anexo III), dos 450 bens que compõem o centro histórico, apenas 4,5% encontravam-se em estado de conservação ruim, 12% regular e 83,5% em bom estado de conservação, o que corrobora com o fato de que, mesmo com a ineficiência das políticas estaduais de preservação e sem uma orientação técnica devida a população zelava pelo que ela tinha como seu patrimônio. Outra questão que nos leva a tal afirmação é a presença nesse espaço de vários agentes culturais não vinculados ao estado e que passaram a desempenhar um importante papel no processo de recuperação após a inundação de 2010, como já discutimos aqui. Gostaríamos de deixar marcado então que, até o advento da grande cheia do Rio Paraitinga, a gestão pública do patrimônio cultural não se consistia em uma realidade em São Luiz do Paraitinga, portanto, somente com essa nova fase de gestão patrimonial que se inicia, tendo o IPHAN como protagonista, é que esse quadro muda e esperamos que essa nova fase seja capaz de recuperar parte do maior conjunto arquitetônico tombado pelo seu valor cultural em São Paulo. Esperamos ainda que esse órgão seja apto em criar mecanismos de valorização do patrimônio imaterial, tão significativo ou até mais que o tangível, porém, lamentamos que


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parte das memórias pessoais e coletivas nunca poderão ser recuperadas, visto que essa inundação não levou apenas edificações, algumas que se configuram como verdadeiras perdas coletivas como no caso das Igrejas e do Grupo Escolar, mas levou também um pouco da história pessoal e familiar dessa comunidade. Apesar de tudo, uma lição positiva pode ser tirada desses acontecimentos, há anos era comum ouvir da população local frases do tipo “São Luiz não existe lá fora, não está nem no mapa”, hoje podemos afirmar que São Luiz do Paraitinga está no mapa e, no que se refere ao mapa de referências culturais do Brasil, possui um lugar de destaque, seja pelo seu patrimônio material como pelo imaterial.


BIBLIOGRAFIA Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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ANEXOS Desenho a bico de pena de Tom Maia (1976)

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ANEXO I: Mapa das Formas do Relevo

Fonte: IPT, 2010


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ANEXO II: Uso dos im贸veis do Centro Hist贸rico em 2009

Fonte: IPHAN, 2010


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ANEXO III: Estado de conserva莽茫o dos im贸veis do Centro Hist贸rico em 2009

Fonte: IPHAN, 2010


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ANEXO IV: Diagnóstico do estado dos imóveis do Centro Histórico após a inundação

Fonte: IPHAN, 2010


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