Cartilha EP Bayeux - impresso

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Presidente do Iphan Kátia Bogéa Chefe de Gabinete Rafael Arrelaro Diretor de Cooperação e Fomento Marcelo Brito

Superintende do Iphan na Paraíba Carla Gisele Macedo S. M. Moraes Chefe da Divisão Técnica do Iphan na Paraíba Luciano Souza e Silva Chefe da Divisão Administrativa do Iphan na Paraíba Lindaci Bandeira de Sousa

Textos Daniella Lira Moysés Siqueira Neto Umbelino Peregrino Projeto gráfico e diagramação Daniella Lira

Diretor de Patrimônio Imaterial Desenhos (Representação

Hermano Fabrício Oliveira Guanais e Queiroz

gráfica a partir de fotografias de

Diretor de Patrimônio Material e Fiscalização

Daniella Lira e Moysés Siqueira)

Andrey Rosenthal Schlee

Daniella Lira

Diretor de Planejamento e Administração

Revisão Final

Marcos José Silva Rêgo

Átila Tolentino Daniella Lira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca Aloísio Magalhães, IPHAN





No ano de 2014 foi realizada uma pesquisa acerca do patrimônio cultural do município paraibano de Bayeux, mais especificamente dos bairros Mutirão (Mário Andreazza) e Comercial Norte. Esta pesquisa, bem como a publicação que segue, foram condicionantes para anuência ao licenciamento ambiental do empreendimento Loteamento Alphaville Paraíba, em Bayeux, junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan-PB). Durante todo o trabalho de campo, os pesquisadores conheceram moradores do local e suas memórias, que foram narrando o surgimento do Mutirão, um bairro repleto de histórias de luta e esperança e, mais recentemente, do bairro Comercial Norte. Antigos moradores como Seu José Pedro, Dona Liar, Seu Chicão, Dona Adesilva, Dona Zefinha, entre outros até mais jovens, como Izaias, Alison e Liu, que apenas lembravam das histórias que ouviram dos pais, “co-memoraram” (lembraram junto), ajudando a construir a narrativa de um espaço repleto de práticas cotidianas, ofícios, pessoas e lugares, que representam as referências culturais desses bairros e, em conjunto, formam o seu patrimônio cultural.

Ao lado, Seu José Pedro, um dos primeiros moradores do bairro Mutirão.



Conhecer a área de influência direta do Loteamento Alphaville Paraíba é caminhar pela história e pelos espaços de um pedaço do município de Bayeux, hoje ocupado pelos bairros Mutirão e Comercial Norte. Espaço esse que era uma zona de sítios e Mata Atlântica, próxima ao complexo da Colônia Getúlio Vargas (o antigo “leprosário”), fundada em 1942. Também nesse espaço se implantou o engenho Marés, de produção de açúcar no século XIX. Além destes, outros lugares, edificações, ofícios e manifestações culturais se disseminaram e se evidenciaram. E essa caminhada será aqui guiada por muitas vozes que contam um pouco da história desse lugar. Algumas vozes ativas que foram entrevistadas, outras vozes apenas lembradas, todas ajudando a compor a memória narrativa dos espaços que habitam e nos quais essas pessoas exerceram ou continuam a exercer suas práticas cotidianas. É essa caminhada, conduzida pela polifonia dos moradores locais, que se pretende percorrer, a partir dos espaços de memória e de construção da história, que compõem os aspectos da cultura deste local. Seguindo o caminho que aqui se propõe, essa publicação representa um instrumento de fruição do patrimônio cultural. É o meio através do qual as referências culturais identificadas nestes dois bairros chegam ao conhecimento de quem não as conhece ou alcança as pessoas que ajudaram a construir essa história e podem, nas folhas que seguem, dialogar com este patrimônio contado pelas suas próprias falas e depoimentos.




Rua principal do bairro MutirĂŁo em dia de feira livre.


O antigo Engenho Marés foi um complexo de produção de açúcar construído nas proximidades do rio Marés e da Mata do Xém-Xém, no município de Bayeux. Possui a casa-grande do senhor de engenho, a capela de Nossa Senhora do Pilar e a fábrica (ou moita), onde se fabricava o açúcar. Além dos edifícios do engenho, no local também se encontram edificações mais recentes, como um curral e uma cocheira.

Engenho Marés, Bayeux/PB.



A Capela de Nossa Senhora do Pilar, construída em 1868, encontra-se no alto do terreno, em localização privilegiada. Seu estilo é neoclássico e a construção é feita de tijolos cerâmicos e pedra calcária, uma pedra muito comum na região e usada na construção de igrejas por todo o litoral paraibano. A fábrica do engenho está situada em situação topográfica inferior e se encontra atualmente modificada por acréscimos posteriores, nos quais funcionam um curral e uma cocheira, além de modificações internas para adaptação ao uso residencial. No entanto, apesar das alterações, ainda é possível identificar características preservadas da edificação tradicional da fábrica, como a cobertura em quatro águas, com uma das águas prolongada (do tipo “asa caída”) e os pilares tradicionais de seção quadrada, feitos de tijolos prensados.


A casa-grande do engenho é bastante austera. É construída em tijolos e com cobertura em quatro águas com telhas cerâmicas e alpendre. Possui poucos elementos decorativos, pois se trata de construção posterior ao engenho Marés original, possivelmente construída já no século XX.



Capela de Nossa Senhora das Graças, Colônia Getúlio Vargas, Bayeux/PB. Ao lado, Seu José Ferreira dos Santos, paciente e morador da colônia.



Muro que dividia as duas áreas da colônia: o lado dos pacientes e o lado dos funcionários.


A Colônia funciona até hoje com 14 pacientes internos e antigos funcionários (ou familiares de antigos funcionários) morando no local, ocupando cerca de 304 hectares. O local de implantação do antigo leprosário é caracterizado por um grande areal (terreno de tabuleiro), com relevo predominantemente plano, muitas árvores frutíferas e edificações distribuídas conforme seus usos e finalidades. As edificações foram locadas em blocos isolados que se relacionavam entre si, obedecendo a rígidos critérios sanitários com espaços destinados para a assistência médica de saúde (ambulatórios), internamento compulsório em enfermarias (pavilhões dos homens e das mulheres), conjuntos de residências para abrigar os enfermos casados, refeitório, centro de vivência (pavilhão esperança, contendo sala de cinema, barbearia, alfaiataria, biblioteca, sala de jogos), lavanderia, capela, cadeia e o parlatório, equipamento de transição entre a área restrita de isolamento e a área administrativa, composta pelos prédios da administração, almoxarifado e conjunto de residências para funcionários. Alguns espaços e edificações referenciais estão, atualmente, arruinados ou desaparecidos, embora tenham sido lembrados em depoimentos. Sua localização foi possível a partir de informações dos funcionários e pacientes da Colônia, que apontaram ruínas e vestígios nos locais onde existiram no passado. É o caso da praça, do pavilhão esperança e da lavandeira.

Área da Colônia Getúlio Vargas, com vista para a Capela de Nossa Senhora das Graças e residências dos pacientes casados.



Seu Izaias da Silva Nascimento segurando a foto de seu pai, antigo funcionário da Colônia Getúlio Vargas. Ao lado, Dona Izabel Bezerra da Silva, interna e moradora até hoje da Colônia; e edifício onde funcionou a cadeia do antigo leprosário.








Outra referência muito forte na memória de alguns filhos de pacientes da colônia é a lembrança do Educandário Eunice Weaver. Apesar de não fazer parte do conjunto arquitetônico do antigo leprosário, estando um pouco distante geograficamente, a relação deste prédio é direta e ajuda a compor o panorama histórico do complexo hospitalar. Localizado entre os bairros Mutirão e Rio do Meio, o Educandário, que foi recentemente demolido, era uma grande edificação construída na década de 1930, com dois pavimentos, onde funcionou um abrigo, para a qual eram encaminhados os filhos dos pacientes em tratamento na Colônia, além de outras crianças abandonadas da redondeza.

Educandário Eunice Weaver antes da demolição, em 2014.


Dona Cristiana Silva, filha de uma paciente da Colônia Getúlio Vargas e interna do Educandário Eunice Weaver.



Três gerações de uma família moradora do bairro Mutirão: Seu José Pedro dos Santos, a filha Liar e o neto Alisson.





Seu Chicão do Mutirão, líder comunitário do bairro Mutirão.


Por estes depoimentos, reflexos da história de luta do bairro e do sentimento de pertencimento destes moradores, entende-se que o Mutirão pode ser considerado como um lugar especial para aqueles que, mesmo não nascendo no bairro, nele construíram sua história. Com o crescimento do Mutirão, muitos moradores foram atraídos pelo bairro vizinho, Comercial Norte, que foi loteado e vendido, apresentando ruas de traçado regular e com maior largura que o Mutirão. Alguns traços que definem a história destes dois bairros são o diálogo de antigos e de novos moradores; a forte convivência de aspectos rurais e urbanos, com a aproximação dos conjuntos habitacionais antigos e novos e os sítios mais antigos presentes nas proximidades; as organizações e movimentos sociais que conquistaram infraestrutura; a força de práticas religiosas, com grande número de templos, representantes das mais diferentes crenças; o contínuo recebimento de emigrantes, suas ocupações e falta de suporte social que causam aflição para milhares de novos personagens dessa história.


Feira livre do bairro MutirĂŁo.



Este comércio de rua, embora localizado e de pequenas dimensões, assume um papel relevante no cotidiano dos moradores do bairro. Existe há seis anos e apresenta grande variedade de produtos, desde hortifrutigranjeiros, até utensílios plásticos, artigos de artesanato, temperos e ervas, carnes e peixes. Atualmente, conta com grande número de barracas de produtos de natureza diversa, feitas de madeira, algumas com cobertura em lona e outras com cobertura em telha ondulada de fibrocimento. Além das barracas da feira, também observamos a venda de frutas na calçada, expostas em cima de caixotes ou no chão. É possível identificar a permanência de práticas características da feira livre como, por exemplo, os carrinhos de mão utilizados para expor produtos à venda e também para levar as compras dos clientes, bem como as barracas de venda de alimentos, como tapioca e cabeça de galo. Devido à importância e apropriação pelos moradores locais, a feira livre do Mutirão se configura numa importante referência cultural da área.

Barraca que vende produtos diversos, feira livre do bairro Mutirão.




Caminhando pelas ruas dos bairros Mutirão e Comercial Norte, muitas são as referências culturais identificadas. Referências que, por si só, talvez não tenham significados, mas ao serem valoradas e apropriadas pela comunidade passam a representar a cultura desse lugar, as pessoas que aí vivem, seu verdadeiro patrimônio cultural. Durante as conversas com moradores desses dois bairros, foram mencionados ofícios, modos de fazer, lugares, formas de expressão e edificações que por algum motivo têm importância para eles. Dessa forma, além da feira livre do Mutirão, veremos a seguir que muitas outras referências culturais foram identificadas nessa caminhada.




Parteira Dona Adesilva.




Seu Batista do Jarro produzindo os detalhes em um jarro de cimento.


Instumentos usados na capoeira pelo Mestre Liu.








Para os católicos, a principal referência é a Igreja de São João Batista, localizada na rua Antônio Gomes, no centro do bairro Mutirão. Seu Chicão contou que, depois de ajudar na construção de muitas casas, descobriu, juntamente a outros moradores, que, em frente ao Colégio Antônio Gomes, havia um terreno reservado para a construção de uma igreja. Com ajuda da comunidade, os próprios moradores ergueram um galpão naquela localização. A escolha do santo padroeiro também foi feita por eles, por se identificarem com a história de vida e de luta do santo. Ainda de acordo com Seu Chicão, as dificuldades foram muitas para erguer a Igreja e os moradores tiveram participação fundamental, não apenas como mão de obra, mas também na administração dos recursos que eram angariados na época. Com o passar do tempo, a comunidade foi crescendo e, junto com ela, também cresceu a Igreja, que agora é considerada um local de vitória e muito orgulho, como afirma Dona Liar ao falar do local.

Igreja de São João Batista, bairro Muirão, Bayeux/PB.




Casa de taipa de pau a pique.




Chegamos ao final da nossa caminhada. Conhecemos como se deu a ocupação desta região do município de Bayeux. Primeiro, pelo engenho Marés, depois com a implantação da Colônia Getúlio Vargas e, por fim, com a urbanização e instalação dos bairros Mutirão (Mário Andreazza) e Comercial Norte. Pelas falas dos nossos personagens reais, que vivenciaram essa história, e pelo caminhar de nossa equipe pelas ruas do bairro, pudemos identificar igrejas católicas, igrejas evangélicas, núcleo espírita, religiões de matriz africana e seitas representativas do sincretismo religioso, como o Vale do Amanhecer. Conhecemos vários ofícios tradicionais, como do torneador de jarros, do artesão, da rezadeira, da parteira e do mestre de Capoeira (patrimônio cultural imaterial do Brasil). Conhecemos a técnica construtiva tradicional da taipa de pau a pique e verificamos a sobrevivência de práticas cotidianas, como a venda de produtos diversos na feira livre do Mutirão. Também nos deparamos com histórias de exclusão e estigma, como o tratamento e isolamento dos enfermos da Colônia Getúlio Vargas, e histórias de luta e resistência, como a dos moradores do bairro Mutirão, protagonistas ativos na construção de sua própria história.

Piso de ladrilho hidráulico encontrado em um dos prédios da Colônia Getúlio Vargas.


Fomos conduzidos por falas e depoimentos de quem vive e habita estes espaços. Neste caminhar, pudemos aprender que o patrimônio cultural se exerce no cotidiano, nas pequenas conquistas diárias, na transmissão de saberes e práticas e na preservação da história dos grupos, seja por fotografias, seja por relatos, seja pelos testemunhos construídos que chegaram aos nossos dias. Contudo, é importante ressaltar que algumas referências culturais desses bairros podem ter aqui passado despercebidas, pois a pesquisa que embasou esta publicação foi guiada por narrativas de algumas pessoas que contribuíram para que os pesquisadores construíssem esse universo. É o retrato do bairro a partir de um recorte narrativo. De forma que essa construção não deve ser considerada como algo finalizado, pois sempre é possível identificar novas referências em um determinado lugar. Esperamos que esta caminhada possa ser um instrumento de divulgação do patrimônio cultural de Bayeux, mais especificamente dos bairros Mutirão e Comercial Norte, e desperte, nos moradores e visitantes, o desejo de preservar este patrimônio cultural tão rico e diverso. Desejamos também que os professores percorram, juntamente com seus alunos, os caminhos aqui propostos e conheçam as pessoas e os espaços apresentados, podendo experimentar, na prática, o que vivenciaram nesta publicação. E, por fim, que a caminhada aqui descrita inspire outras e desvende novas e diferentes faces do patrimônio ainda não conhecido do município de Bayeux, que precisa ser sempre contado e recontado.

Moradores dos bairros Mutirão e Comercial Norte, que inspiraram essa caminhada. De cima para baixo, da esquerda para a direita: Seu José Pedro, Seu José Ferreira, Dona Liar, Dona Adesilva, Seu Chicão, Dona Izabel, Seu Izaias, Dona Cristiane, Dona Zefinha e, por fim, novamente Seu José Pedro, a filha Liar e o neto Alisson. Fotos: Moysés Siqueira Neto.



Esta publicação foi impressa em fevereiro de 2018, com uma tiragem de 3.000 exemplares, pela Gráfica Santa Marta.




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