Construir Sítios

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ISCTE-IUL. Mestrado Integrado em Arquitectura. 2010/2011 Laboratório de História e Teoria da Arquitectura Orientadora: Prof.ª Arq.ª Ana Vaz Milheiro À PROCURA DO INQUÉRITO – 50 anos sobre a publicação da Arquitectura Popular em Portugal. NOME: Celine dos Reis Vicente TÍTULO: CONSTRUIR SÍTIOS: a Casa da Cultura da Juventude de Beja de Raúl Hestnes Ferreira e as técnicas tradicionais descritas em Arquitectura Popular em Portugal. RESUMO: Ao longo dos anos, as técnicas construtivas e as soluções arquitectónicas foram-se desenvolvendo e aperfeiçoando por meio de processos de tentativa e erro, com os recursos naturais que o meio permitia e transmitidos de geração em geração. Deste modo as soluções tentavam responder ao meio e ao clima onde se inseriam quando não existiam ainda, sistemas mecânicos de climatização e iluminação. Em Arquitectura Popular em Portugal encontramos uma imensa variedade de soluções e técnicas construtivas, na maioria dos casos em desuso. Neste trabalho, começa-se por efectuar um levantamento dos materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional descritos no inquérito à Arquitectura Popular em Portugal e esclarecer quais destes ainda são utilizados nos dias de hoje. É Escolhida a zona 5, referente à zona do Alentejo, para desenvolver mais aprofundadamente, uma vez que retém, ainda bastante do saber tradicional quando comparado com as outras Zonas. Pretende-se finalmente, através de leituras bibliográficas e entrevistas, compreender qual o sentido de introduzir estas técnicas em projectos contemporâneos sem comprometer a sua autenticidade, utilizando como caso de estudo A Casa da Cultura da Juventude de Beja do arquitecto Raúl Hestnes Ferreira e explorando a sua ligação com o arquitecto Louis Kahn. PALAVRAS-CHAVE: Arquitectura Popular, Arquitectura do Alentejo, Arquitecto Hestnes Ferreira.

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Se com o inquérito morreu a casa portuguesa, com ele nasceu também a Arquitectura Portuguesa. COSTA, Alexandre Alves [1995] In: João Leal, Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudo sobre Arquitectura Popular no Século XX Português. Conferência Arquitecto Marques da Silva. 2008. P.50

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ÍNDICE 1. Introdução...................................................................................................................................... 9 2. Descrição sumária dos materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional referenciados no Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal. ............................................................................. 12 2.1. Zona 1 – Minho, Douro Litoral e Beira Litoral .......................................................................... 12 2.2. Zona 2 – Trás-os-Montes e Alto Douro ................................................................................... 14 2.3. Zona 3 – Beiras ...................................................................................................................... 16 2.4. Zona 4 – Estremadura, Ribatejo e Beira Litoral ....................................................................... 17 2.5. Zona 5 – Alentejo ................................................................................................................... 19 2.6. Zona 6 – Algarve, Baixo Alentejo e Alentejo Litoral ................................................................. 21 2.7. Quadro síntese dos materiais, técnicas e sistemas construtivos referidos no Arquitectura Popular em Portugal por zona ....................................................................................................... 24 3. Alentejo ....................................................................................................................................... 28 3.1. “O monte alentejano” .............................................................................................................. 29 3.2. Materiais, sistemas e técnicas de construção tradicionais no Alentejo .................................... 31 3.2.1. A pedra ........................................................................................................................... 32 3.2.2. A terra ............................................................................................................................. 33 3.2.3. Os ligantes .................................................................................................................... 34 3.2.4. A madeira ....................................................................................................................... 36 3.2.5. Os elementos vegetais................................................................................................... 37 3.2.6. Os elementos cerâmicos ................................................................................................ 37 3.2.7. Os sistemas construtivos ................................................................................................ 38 3.2.8. Revestimentos ................................................................................................................ 45 4. Construir Sítios ............................................................................................................................ 80 4.1 O Arquitecto Hestnes Ferreira e a Casa da Cultura da Juventude de Beja............................... 83

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5. Conclus達o.................................................................................................................................... 93 6. Bibliografia ................................................................................................................................... 95 7. Anexos ........................................................................................................................................ 99 7.1. Entrevista ao arquitecto Victor Mestre .................................................................................... 99 7.2. Entrevista ao arquitecto Nuno Malato ................................................................................... 107 7.3. Entrevista ao arquitecto Hestnes Ferreira ............................................................................. 109

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1. INTRODUÇÃO Esta dissertação tem como objectivo avaliar a motivação em introduzir técnicas de construção tradicionais nos projectos contemporâneos de arquitectura. Pretende-se justificar que é possível ampliar as possibilidades construtivas criando um diálogo mais enriquecedor dentro da cultura arquitectónica portuguesa e sem comprometer a sua autenticidade. O texto estabelece uma relação entre as técnicas tradicionais descritas no livro Arquitectura Popular em Portugal, as técnicas tradicionais actualmente utilizadas no Alentejo e a forma como as mesmas são aplicadas na arquitectura contemporânea. Para atingir o objectivo a que se propõe, esta dissertação está estruturada em três níveis de leitura. O primeiro nível de leitura consiste na descrição das várias técnicas, materiais e sistemas tradicionais de construção detalhados no livro Arquitectura Popular em Portugal, que terá sido elaborado na sequência do Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa. No âmbito do trabalho de grupo e para melhor entendimento deste livro foram ainda efectuadas entrevistas entre as quais o arquitecto Francisco da Silva Dias1 comprova a diversidade construtiva encontrada na sequência do Inquérito. Com base nesta informação será perceptível a vasta extensão de soluções construtivas desenvolvidas e aperfeiçoadas ao longo dos tempos pelos habitantes locais. Estas soluções diferem em cada localidade consoante os materiais e as imposições do meio. Com o decorrer do tempo os sistemas e técnicas tradicionais de construção foram sendo gradualmente abandonadas. No segundo nível de leitura é efectuado um levantamento dos sistemas e técnicas tradicionais da Zona 5 – Alentejo, com o objectivo de verificar a sua utilização actual. Para tal, foram efectuadas visitas a localidades, estabelecidos contactos com artesãos e construtores locais e um levantamento fotográfico O terceiro nível de leitura consiste na análise do edifício da Casa da Cultura da Juventude de Beja, inserida na Zona 5 – Alentejo, do arquitecto Hestnes Ferreira. Este edifício, construído entre 1975 e1985, em Beja, concilia uma estrutura construída com materiais e técnicas contemporâneas com coberturas de abóbadas e arcos construídos por artesãos alentejanos. Através da análise do edifício e do percurso do arquitecto Hestnes Ferreira pretende-se avaliar o benefício da conciliação das várias técnicas construtivas tradicionais e contemporâneas nos edifícios contemporâneos. Para apoio na análise foram efectuadas entrevistas aos arquitectos Victor Mestre, Nuno Malato e Hestnes Ferreira.

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Entrevista efectuada no âmbito do trabalho de grupo do Laboratório de História e Teoria da Arquitectura ao arquitecto Francis co da Silva Dias por Celine Vicente, João Cardim, Tatiana Cheong e Vanessa Ribeiro. Realizada em Fev.11, Atelier Silva Dias-Arquitectos Lda, Lisboa.

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A paisagem é cenário duma luta continuada e sem heróis vistosos. (…)

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Imagem parcial da capa do 1º e 2º Vol. do Arquitectura Popular em Portugal [AA. VV. (2004)]


O campo aparece-nos hoje como o resultado de uma transformação procurada. É o homem que o faz, mas não como desejaria – cultiva aquilo que o solo, a chuva, os ventos ou a geada consentem, vive em casas que são assim ou estão ali, mais por via dos materiais de ao pé da porta e das exigências da lavoura ou dos animais, que por sua vontade ou necessidade dos seus. (…) A herança comum vem de longe. Séculos de vida moldada pelas muitas adversidades e pelos poucos favores que a natureza coloca ao seu dispor, são o substracto da feição do habitat do povo português. AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P 131

Cândido Portinari. O Operário. 1947 http://www.portinari.org.br

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2. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS MATERIAIS, SISTEMAS E TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO TRADICIONAL REFERENCIADOS NO INQUÉRITO À ARQUITECTURA POPULAR EM PORTUGAL. O que o governo queria, ou pelo menos o ministro das obras públicas, era que nós lhe disséssemos o que era a arquitectura Nacional, à semelhança do que houvera em Espanha, Alemanha, Itália, União Soviética…saber o que era o estilo Nacionalista e nós dissemos-lhe precisamente o contrário. Não há um estilo nacionalista! As construções variam por vezes em 100 metros. Se aqui é granito é de uma maneira, se ali é xisto é outra. Se são assalariados ou pequenos proprietários...2 Francisco Silva Dias, entrevista, Fevereiro 2011

No levantamento efectuado pelas seis equipas que trabalharam no Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa(IARP), observa-se uma enorme diversidade de materiais, resultante sobretudo de rica geomorfologia que caracteriza o solo português e que difere do norte ao sul do país. Esta diversidade de materiais tem como consequência uma grande variedade de soluções, como comprovado pelo arquitecto Silva Dias. Que reforça a relação entre o Sul de Portugal e a cultura do Mediterrâneo em detrimento da relação do Sul com o Norte de Portugal: “há mais relações entre uma casa do sul de Portugal e da Grécia do que do sul de Portugal para o Minho e do Minho para a Galiza.”3 Segundo os arquitectos participantes no IARP, os construtores tradicionais utilizavam os materiais disponíveis nas suas localidades. A manipulação desses materiais era efectuada frequentemente no seio familiar e o conhecimento transmitido entre gerações. Também foi verificado um conhecimento alargado no manuseamento e aplicação dos materiais restringidos às características do meio envolvente e às necessidades específicas a que o edifício se destina. A construção tradicional responde a estas necessidades e atinge muitas vezes a originalidade e valor estético pretendidos na arquitectura.

2.1. ZONA 1 – MINHO, DOURO LITORAL E BEIRA LITORAL Pela análise rápida da carta que nos mostra a constituição geológica da zona [Minho, Douro Litoral e Beira Litoral], verifica-se a predominância do granito na maior parte do seu solo, mas intercaladas afloram estreitas manchas quase contínuas de duas espécies de rochas xistosas. AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P.84 2

Citação do Arq. Francisco da Silva Dias em entrevista efectuada no âmbito do trabalho de grupo do Laboratório de História e Teoria da Arquitectura ao arquitecto Francisco da Silva Dias por Celine Vicente, João Cardim, Tatiana Cheong e V anessa Ribeiro. Realizada em Fev.2011, Atelier Silva Dias-Arquitectos Lda, Lisboa. 3 Ibidem. O Arq. Francisco da Silva Dias refere-se nesta citação a uma ideia transmitida pelo Arq. Francisco Keil do Amaral.

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Nesta zona os materiais utilizados eram a pedra de granito, xisto e rochas sedimentares, a madeira de pinho e castanho, o colmo, e a telha de canudo. Os arquitectos do IARP privilegiaram a descrição das estruturas produtivas como os sequeiros e espigueiros (também referidos como canastros) em detrimento da habitação. À casa tradicional era, muitas vezes, adicionada o sequeiro levantado sobre pilares ou em alternativa era aproveitada a varanda para esse mesmo efeito. A cobertura dos sequeiros era de telha e assentava numa armação de madeira. De madeira eram também, o travejamento interno, soalhos, tabiques, portadas e prumos. Os muros, pilares e lintéis eram construídos em pedra. Os espigueiros ou canastros eram erguidos sobre colunas e construídos em granito ou em madeira aparelhada em delgadas secções. Eram leves, permeáveis ao vento e sustentados transversalmente com travamentos cruzados. Outra forma descrita como mais sólida e durável de os construir, era a execução dos dois topos do espigueiro em granito, tornando-os mais rígidos e com espessas traves na base a que se iam juntar os prumos e a armação do telhado. As coberturas dos espigueiros ou canastros eram de duas águas, em telha ou lousa, e nas paredes, era usual o emprego de grandes pedras aparelhadas, com as juntas quadradas. Nas habitações, os arquitectos distinguem algumas localidades. No Lindoso é predominante a tipologia da cabana, construída em pedra solta e colmo. Excepcionalmente, podia encontrar-se uma habitação mais cuidada, chamada a “moradia do emigrante”4 onde são destacados alguns detalhes construtivos como o uso de alvenaria seca, em blocos esquadrados. 4

1. Ferreiros. Póvoa de Varezim.Sequeiro. [APP]

2. Lindoso. Espigueiros. [APP]

3. Soajo. Casa num Largo. [AAP]

AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P.77

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Na altura do Inquérito, a cobertura em colmo estava a ser gradualmente substituído por telha (tornando o beirado retraído), conservando as duas abas entre empenas, apoiadas por cornijas de pedra. Em Odela, os arquitectos encontraram um sistema de emprego misto de granito e xisto na construção de paredes que é descrito como “deveras notável, criando um efeito exótico e a primorosa construção do pedreiro de 5 alvenaria”. É também registado o emprego misto de adobo e xisto no aparelho de muros. Nos arredores de Monção, Amares, Braga, Póvoa de Lanhoso, Guimarães e Fafe e nas terras de Basto estava bastante difundido o uso da madeira. Construíamse habitações totalmente neste material, geralmente, em pinho e castanho. Por serem madeiras pouco resistentes, foram construídas apoiadas em pilares, afastando-as do solo, com beirados salientes e sempre que possível eram pintadas ou revestidas com argamassa. As habitações continham varandas de dimensões superiores às outras construções analisadas.

4. Olela. Stª. Senhorinha de Basto. Habitação. [AAP]

5. Celourico de Basto. Habitações. [AAP]

2.2. ZONA 2 – TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO Textura e nobreza dos materiais... A pedra que, penosamente, foi cortada sob o Sol escaldante; a madeira, contando toda a sua história centenária, no emaranhado dos seus veios; a telha humilde que formas toscas e mãos calejadas ofereceram em holocausto ao Sol, nos terreiros da cozedura... Portanto, nobreza na humildade e majestade, na presença que cada um de tais elementos acusa fortemente para si. E sabedoria, na maneira como os homens souberam deixálos falar por si mesmos, e os sujeitaram às vicissitudes das necessidades e às contingências da sua utilização. AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P.167.

Segundo o levantamento dos arquitectos do IARP, os materiais utilizados na zona 2 eram: a pedra de granito e xisto (vulgar e lousa), a madeira, a palha, a telha e a cal.

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Idem. P.87

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Os arquitectos indicaram aldeias onde muros, socalcos e paredes de casas eram compostos por 6 “amontoados de xisto de arestas cortantes”. A lousa era usada como revestimento de paredes e colocada num sistema de justaposição de pedaços irregulares em cascata, ou numa progressiva ordenação de tamanhos e formas em cujas juntas eram realçadas com a aplicação de cal. Nesta zona destaca-se um sistema de construção considerado como “um sintoma de progresso apesar da 7 utilização de materiais e princípios rudimentares” que consistia nos tabiques de entrançados de palha ou de varas, construídos à semelhança da técnica usada em cestos ou carros de bois. As coberturas das habitações eram executadas com placas de lousa. As chaminés eram diferenciadas da cobertura e o remate dos cumes era feito como dedos entrecruzados. Na montanha de granito, as paredes das habitações eram feitas com este material e as coberturas em colmo. Em algumas destas construções, os arquitectos, encontraram varandas de madeira.

6. Montes. O «Lugar». [AAP]

7. Rioo de Onor. Entrançado de palha. [AAP]

8. Duas Igrejas. O granito. [AAP]

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Idem, P.136. Idem. P.151

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2.3. ZONA 3 – BEIRAS As casas, irregulares, são de granito, onde há granito, ou de xisto, onde o solo é xistoso, ou ainda de xisto e granito, nas zonas de transição; e com o tempo, tomam a cor geral da região em que assentam. Os materiais mais usados nas coberturas – telha de canudo, lajes de xisto e colmo – também adquirem uma «patine» terrosa. AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume II. P.15

Na zona 3, segundo os arquitectos do IARP, os materiais correntes eram: a pedra de granito, xisto, a madeira de pinho e castanho, o barro e o colmo. Os arquitectos do IARP referem o granito como o material mais abundante e por consequência mais utilizado nesta zona. Nas habitações, era utilizado nas paredes, nas escadas exteriores, nas escadas interiores de solares e casas abastadas, pavimentação de ruas, pátios e dependências de muitas habitações humildes, e até nos muros que delimitavam as propriedades. Quanto ao emprego de xisto, os arquitectos, constataram que era utilizado, exclusivamente, nas suas formas naturais de extracção, em paredes de alvenaria; coberturas simples dos edifícios humildes – “dispostas as lascas maiores sobre um varedo tosco de madeira”8 – em pavimentos de lareiras e de casas e finalmente nas prateleiras embutidas nas paredes. As vergas dos varões de portas e janelas eram geralmente construídas em madeira de castanho à excepção das zonas de transição de terrenos xistosos e graníticos onde eram construídas em granito. Também os cunhais eram de granito endentados na alvenaria corrente. Outro material referido é o calhau rolado caracterizado pela sua forma esférica ou ovóide e de grande dureza. Era utilizado em paredes, com os espaços preenchidos com lascas de xisto e por sua vez este conjunto era consolidado com terra barrenta vermelha. 8

Idem. P.65

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9. Bigorne. [AAP]

10. Outeiro da Vinha. [AAP]


Nestas construções, eram utilizadas lajes de xisto ou granito, para formar os panos de peito das janelas. Em paredes, muros, coberturas de anexos e pavimentos, os arquitectos do Inquérito encontraram, ainda, um outro tipo de granito chamado granito “de duas micas” caracterizado por lajes pouco espessas e de grandes dimensões que eram aplicadas sem serem partidas. A madeira era utilizada em pavimentos das habitações, no revestimento de tectos de casas abastadas, nas varandas, e em portas e janelas. As coberturas das construções eram em telha de canudo e de «Marselha», ou ainda em colmo.

11. Paúl. [AAP]

12. Nave de Haver. [AAP]

2.4. ZONA 4 – ESTREMADURA, RIBATEJO E BEIRA LITORAL 9 A nenhuns condicionamentos a Arquitectura regional está mais vincadamente sujeita que à penúria do 10 povo e aos materiais de construção. Arquitectura Popular em Portugal. 1961

Nesta zona, os arquitectos verificaram a utilização de pedra calcária, granito, xisto, basalto, a taipa, o adobe, a madeira e o colmo.

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Este resumo aproveita parte do trabalho desenvolvido em grupo que sintetiza parte do meu contributo para a análise realizada em equipa da zona 4. 10 AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume II. P.171

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Em Pernes, Rio maior, Torres novas os arquitectos encontraram um tipo de calcário brando e compacto. As paredes construídas com este material designavam-se por paredes de “tufo” e consistiam na disposição de fiadas de blocos de pedra assentes com argamassa e em que os espaços dos blocos eram preenchidos com pequenas pedras. No Ribatejo e na Estremadura, era bastante usual a utilização do tijolo. Nas construções onde era utilizado este material, os arquitectos do IARP destacaram as composições onde a sua disposição era efectuada de forma criativa através de um jogo de “cheios e vazios”. Em Rio Maior, apesar de haver uma comercialização e distribuição eficaz do adobe, este continuava a ser produzido no seio familiar. Outro exemplo de um material produzido sem recurso à compra era a taipa. Os edifícios construídos com estes dois materiais obrigavam ao fortalecimento das paredes por «gigantes»11. Os arquitectos constataram que estas construções de terra começavam, já na época do inquérito, a ser substituídas por paredes de cimento. Na parte setentrional da Estremadura, ao longo da costa baixa, as construções eram parcial ou totalmente construídas em madeira e apresentavam-se levantadas do solo, sobre estacas deste material, pilares de adobe ou blocos de betão com objectivo final de evitar a acumulação das areias. Na zona do Pedrógão, os arquitectos verificaram que pelo facto de o solo estar consolidado, a necessidade de elevar a habitação não era necessária permitindo a construção de habitações com dois andares. Neste caso, o rés-do-chão destas construções era construído em alvenaria (sem recurso às estacas), continuando a existir o primeiro andar em madeira. 11

Gigantes são contrafortes utilizados para reforço das paredes de taipa.

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13. Arneiro. Santarém. [AAP]

14. Costa de Lavos. [AAP]

15. Palheiros da Tocha. [AAP]


Segundo os arquitectos do Inquérito, a utilização de madeira para as construções, ou mesmo para os reparos, terá sido proibida em algumas povoações envolventes ao pinhal de Leiria. Esta indisponibilidade, terá levado os habitantes a substituir a aplicação da madeira por blocos de adobe ou cimento, embora em muitos casos as construções primitivas se mantivessem por trás das novas fachadas. Na Lezíria Ribatejana e na península de Setúbal, segundo os levantamentos do IARP, alguma construção esporádica de paredes e coberturas inclui a palha. Em alguns dos edifícios onde as coberturas se faziam neste material, os arquitectos verificaram paredes

16. Praia de Pedrogão. [AAP]

onde se empregava o ”tijolo travado“ que consistia na ”sobreposição de molhos de plantas calcados entre paus 12 postos ao alto” Por toda a Estremadura e Ribatejo se poderia encontrar o emprego da cal nas construções. Os arquitectos encontraram, a utilização do betão, de forma a substituir os antigos métodos de vencer vãos. No entanto, constataram que este material - por ser recente estava ainda num período experimental, não se verificando a sua correcta aplicação.

17. Ar. Torres Vedras.

2.5. ZONA 5 – ALENTEJO A importância da cal, na construção alentejana, é intensa, como revestimento e como elemento activo na construção das argamassas. O «pote da cal» e o «pencel», que mais parece uma vassoura, são objectos que fazem parte integrante da casa alentejana, no seu reduzido apetrechamento, e por mais modesta que seja. O tijolo, material tradicional, tem o seu papel, não menos importante na região, o seu fabrico em regime artesanal varia bastante de qualidade, sendo de modo geral bastante poroso. A taipa é material comum em todo o Alentejo, predominando, porém, na sua zona meridional. AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.33

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AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume II. P.188

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Segundo os arquitectos do IARP, os materiais dominantes nesta zona eram: a cal, o tijolo e a taipa. Outros materiais menos relevantes eram o adobe, a pedra de calcário, granito, xisto, mármore e a madeira com menor evidência. No que caracteriza a habitação tradicional alentejana, os arquitectos, elegem a taipa como o material dominante nesta região. As habitações construídas com este material requeriam a construção de uma fundação em pedra de xisto, argamassa de cal e areia, barro e pedra seca. Estes evitavam a humidade ascendente. Devido à insuficiente resistência da taipa aos impulsos laterais, os construtores tradicionais, adoçavam, às paredes deste material, massas de alvenaria, a que chamavam gigantes. Na construção com paredes de tijolo designadas por «lambaz», destaca-se uma solução, em que os construtores tradicionais colocavam o tijolo, alternando a sua posição, para que, por vezes, ficassem visíveis os furos deste material. Este tipo de construção não era rebocada e a caiação aplicada directamente, passando a repetição dos furos do tijolo a funcionar como ornamento nas superfícies. Os arquitectos constataram que a pedra foi pouco utilizada na construção de habitações no entanto, quando aplicada realçaram a utilização do xisto e do granito. Foi destacado no IARP, as coberturas feitas por abóbadas e abobadilhas, construídas com tijolo maciço e levantadas sem o auxílio de cimbres. A abobadilha consiste em abóbadas de muito pequena flecha, onde o tijolo era colocado deitado. Os arquitectos destacaram um tipo de abobadilhas, denominadas de «caixotões», onde se aplicava um sistema misto de tijolo e ferro. Este sistema era colocado aproximadamente por metro e vencia o vão principal e os pequenos vãos entre eles eram preenchidos por abóbadas de tijolo. Nas coberturas em abóbada, os arquitectos verificaram que as mais comuns eram a abobada de berço e

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18. Elevação de paredes com taipal. [AAP]

19. Paramentos de tijolo nao rebocados. [AAP]

20. Fecho de abobadilha. [AAP]


a abobada de engra. Destacaram as intersecções das abóbadas cruzadas denominadas de “Aranhas”, que eram construídas não só por motivos estéticos, mas sobretudo como resposta técnica. Os pavimentos eram feitos geralmente de «ladrilho» ou tijoleiro e por vezes de pedra. Para o guarnecimento de vãos, os construtores tradicionais, usavam ocasionalmente pedra, valorizada pela proximidade do reboco caiado. No travejamentos de telhados, guarnições de vãos, guarnições de pavimentos, e em sítios de maior humidade, era utilizada a madeira. Por vezes este material também utilizado em vergas de vãos, substituindo o arco de ressalva em tijolo e na construção de varandas. Nas cabanas rústicas, instalações de apoio a pastores e gados, os arquitectos observaram a aplicação de piorno e outros matos para a resolução das coberturas. A cal foi o símbolo eleito para esta zona. As suas aplicações sucessivas nas superfícies criavam texturas inesperadas, definindo volumes e acentuando o recorte dos vãos.

21. Oriola. [AAP]

2.6. ZONA 6 – ALGARVE, BAIXO ALENTEJO E ALENTEJO LITORAL Do ponto de vista geológico, factor importante para a análise dos materiais de construção, o conjunto da zona apresenta alguma variedade na sua constituição geológica, variedade que parece mais rica na própria província algarvia. AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.173

Na zona 6, segundo os arquitectos do Inquérito, os materiais correntes eram: a taipa, os materiais cerâmicos, a cal, o adobe, a pedra calcária, xisto, «Grés de Silves», Calhaus Rolados e «Foiaíte», os materiais cerâmicos, e a cana. Foi constatado que o material mais vezes empregue em paredes das edificações era a taipa. Na execução eram colocados padieiras de madeira que seriam posteriormente retiradas para criarem vãos

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característicos da zona do Algarve eram os elementos cerâmicos, usuais em pavimentos interiores ou exteriores das habitações, paredes e coberturas, fossem estas de águas, em abóbadas ou «dormentes». Nas zonas onde o solo era arenoso, os construtores tradicionais utilizavam o adobe para a construção das paredes das suas habitações. Na zona de Silves podia-se encontrar uma rocha formada de grânulos de quartzo aglutinados por um cimento ferruginoso, com o nome de «grés de Silves». Esta rocha, de cor avermelhada escura, poderia ser trabalhada com relativa facilidade e era usada em alvenarias irregulares, muros de vedações e soleiras. No Alto Algarve, as habitações eram construídas com paredes de alvenaria de xistos argilosos. Estas construções eram por vezes rebocadas, sendo vulgar o emprego directo de cal sobre a pedra. A pedra era também encontrada no calcetamento dos caminhos que se prolongavam até junto das entradas das habitações e eram aplicados de forma a criar motivos geométricos Na zona do Algarve calcário, as habitações eram construídas com esta pedra. Para estas alvenarias, os construtores, utilizavam as pedras mais pequenas, guardando as maiores para o travamento dos cunhais. Ainda na zona do Algarve calcário, junto dos vales planos da rede de ribeiras que a atravessam, os arquitectos encontraram habitações construídas com alvenaria de calhau rolado. Esta quando não rebocada, os arquitectos consideraram que tomava “um certo relevo e textura”13 Em Monchique, era utilizada uma pedra local que se denominava de «Foiaíte». Este material era utilizado em vergas e obreiras (com a peça inteira) e em paredes (feitas com as pedras pequenas e de forma irregular).

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AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.180

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22. Carrego da Casa. Odemira. [AAP]

23. Corte Velha. Mértola. [AAP]

24. Estoi. Faro. [AAP]


Para a resolução das coberturas, encontraram o telhado de águas, a abóbada e os dormentes. As coberturas mais frequentes eras as de telha - argamassada ou não, com uma ou duas águas. No apoio das coberturas os construtores aplicavam o encaniçado de cana, em substituição do vulgar ripado de madeira. Este encaniçado era também aplicado para resolver o apoio de tectos falsos. Quando construídas em dormentes, as coberturas consistiam na aplicação do ladrilho sobre estrutura de madeira, que resultavam em terraços, mirantes ou pavimentos elevados. As abóbadas, mais frequentes, na

25. Morgado do Reguengo. Portimão. [AAP]

região do Algarve, eram executadas com ladrilho ou tijolo maciço. A sua particularidade consistia na colocação do material “sempre a cutelo e a topo, na parte central da abóbada, e nos arranques são já colocados ao baixo em fiadas horizontais”.14 O IARP destaca as abóbodas de canhão, com um fecho central sempre executado de forma distinta. As coberturas eram revestidas a ladrilho no exterior e, muitas vezes caiadas, dando origem a açoteias utilizáveis.

25. Olhão. [AAP]

14

AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.184

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2.7. QUADRO SÍNTESE DOS MATERIAIS, TÉCNICAS E SISTEMAS CONSTRUTIVOS REFERIDOS NO ARQUITECTURA POPULAR EM PORTUGAL POR ZONA. MATERIAIS, SISTEMAS E TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO TRADICIONAL

ZONA 1

ZONA 2

ZONA 3

ZONA 4

ZONA 5

ZONA 6

X

X

X

X

X

PAREDES E MUROS Alvenaria de pedra solta de granito

X

X

X

Alvenaria seca de xisto

X

X

X

Alvenaria seca de granito em blocos esquadrados Sistema de emprego misto de granito e xisto na construção de paredes Emprego misto de adobe e xisto no aparelho de muros

X

X

X

Construções totalmente em madeira, apoiadas em pilares, pintadas ou revestidas

X

a argamassa Tabique de madeira Tabique de entrançado de palha ou de varas

X X

Emprego de vergas e de cunhais de

X

granito, endentados na alvenaria corrente Calhaus rolados, de forma esférica ou

X

ovóide, partidos na superfície Lajes de granito de duas micas, de grandes

X

dimensões, aplicadas em muros e paredes Alvenaria ordinária de pedra calcária

X

Paredes de adobe

X

Tijolo aplicado em cheios e vazios

X

X

Tufo

X

Taipa

X

Paredes de palha/colmo

X

Construções em madeira sobre

X

estacas/palafitas

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MATERIAIS, SISTEMAS E TÉCNICAS DE

ZONA 4

ZONA 5

ZONA 6

Paredes de tijolo cozido

X

X

X

Paredes de taipa

X

X

X

CONSTRUÇÃO TRADICIONAL

ZONA 1

ZONA 2

ZONA 3

Paredes de tijolo cozido alternando a sua

X

posição Alvenaria ordinária de xisto

X

X

Alvenaria de pedra «grés de Silves»

X

Alvenaria ordinária de xisto argiloso

X

Alvenaria de calhau rolado

X

X

Alvenaria de pedra Foiaíte

X COBERTURAS

Colmo

X

X

X

X

X

X

Telha de canudo

X

X

X

X

X

X

X

X

X

Granito

X

Telha de Marselha

X

X

Placas de lousa

X

X

Laje de granito de duas micas

X

Abobadilhas de tijolo

X

Abobadas de tijolo

X

X

Encaniçado de cana

X

X

Dormentes

X PAVIMENTOS

Madeira

X

X

Granito

X

Xisto

X

Laje de granito de duas micas

X

X

Ladrilho ou Tijoleiro

X

X

X

X

X

X

REVESTIMENTOS Lousa em cascata Lousa numa progressiva ordenação de tamanhos e formas

X X

Cal

X

25

X


26

C.V. 2011 Vista de Monsaraz


Da Portela de Alpedrinha, no dorso da Gardunha, o contraste é impressionante entre as serranias que, pelo norte, barram o horizonte próximo e o planalto a que se não vê o fim: sobre ele, as manchas de verdura vão-se tornando cada vez mais desbotadas, indecisas e distantes. Na verdade, é o Alentejo que se anuncia. RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (7’ edição). Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1998, p. 151

António Guimarães. Alentejo. 2009 http://davincigallery.net

27


3. ALENTEJO

A vermelho est찾o assinaladas as regi천es visitadas no 창mbito deste trabalho

28


Segundo a equipa de arquitectos responsável pela zona do Alentejo, pode-se dividir a habitação típica do Alentejo em dois grupos/categorias: a que se implanta no aglomerado e a que se apresenta isolada na paisagem. A este último dá-se o nome de “monte alentejano”, o primeiro domina a instalação habitacional, 15 no segundo prepondera a função agrícola.

3.1. “O MONTE ALENTEJANO”16 (…) a quase totalidade das mais evidentes e arrojadas inovações arquitectónicas introduzidas nos edifícios civis ou religiosos do Ocidente mediterrânico, nas artes decorativas, nas técnicas construtivas, mergulham as suas raízes nos saberes ancestrais criados e veiculados pelas velhas civilizações mediterrânicas.17 TORRES, Cláudio. Técnicas e formas de construção no sul Islâmico. in: As idades da construção: técnicas de construção tradicional e sua aplicação à arquitectura contemporânea. Pág.87

Como anteriormente referido, o monte alentejano está associado à prática agrícola. É constituído por uma edificação ou conjunto de edificações associadas à mesma exploração agrícola. O monte alentejano é resultado de uma sucessão de intervenções que marcaram a ocupação do mesmo Lugar ao longo de várias gerações. 18 O processo de humanização da paisagem alentejana está marcado por milénios de ocupação e consecutiva transformação deste território. Este processo é visível nas marcas pré-históricas que se vieram a encontrar, como pode ser comprovado no campo arqueológico de Mértola. Dirigido pelo Dr.Claúdio Torres, as actividades desenvolvidas neste campo arqueológico, são pioneiras na área de investigação da “Arquitectura de Terra” e também, no estudo e divulgação das tecnologias da construção tradicional.19 Apesar de existirem povoamentos anteriores, a romanização terá sido implacável impondo uma nova organização social. Durante este período, formam-se pequenas e grandes urbes, com grandes unidades

15

AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.58 A partir do texto: O monte Alentejano, uma identidade de raízes ancestrais. Contributo para o seu conhecimento e permanência. Tendo sido objecto de um artigo monográfico realizado pelo arquitecto Victor Mestre, disponível virtualmente em: http://www.vmsaarquitectos.com MESTRE, Victor. O monte Alentejano, uma identidade de raízes ancestrais. Contributo para o seu conhecimento e permanência. In: Olhar o Monte Alentejano a pretexto de Alqueva. P.85 a 101. Disponível virtualmente em: http://www.vmsa-arquitectos.com 17 TORRES, Cláudio. Técnicas e formas de construção no sul Islâmico. in: As idades da construção: técnicas de construção tradicional e sua aplicação à arquitectura contemporânea. Pág.87 18 CCDRAlg; Materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional: Contributo para o estudo da arquitectura vernácula da região oriental da serra do Caldeirão, CCDRAlg e edições afrontamento, 2010 19 MESTRE, Victor. Campo Arqueológico de Mértola - A Investigação Arqueológica como sustentáculo do conhecimento e preservação da Arquitectura de Terra. Texto de apresentação de comunicação. 2001. Disponível virtualmente em: http://www.vmsaarquitectos.com 16

29


produtivas - um pouco por todo o país e em particular no Alentejo - que mantêm vestígios até aos dias de hoje. Após séculos, o império romano desfez-se, perdendo as suas matrizes físicas e dando lugar a uma nova era de ocupação deste território misturando conhecimentos e reaproveitando estruturas. Com a chegada dos muçulmanos as cidades e as 1. Arredores de Évora. [CV, 2011] habitações ganham novos requisitos e especificidades na sua funcionalidade, tecnologia e expressão. É introduzida a cobertura plana conjugada com as águas inclinadas, o recurso à telha cerâmica sobre esteira de cana, apoiada em espessas paredes de taipa. Contudo, nesta época muçulmana, as alterações estruturais são pouco expressivas. A reocupação cristã, no entanto, terá sido muito profunda, pois introduz uma diferente organização político-social e económica, baseada nas explorações agrícolas em extensão. A grande "revolução" terá sido desencadeada a partir da 2. Arredores de Reguengos de Monsaraz. [CV, 2011] inovação das abóbadas e abobadilhas. Apesar de serem técnicas de origem longínqua, a sua reafirmação enquanto estrutura deveu-se aos grandes estaleiros que se formaram com D. João II, D. Manuel l e posteriormente com D. João III, que introduz uma renovada linguagem arquitectónica. A formação de novas linhagens de artesãos-construtores como os mestres canteiros, taipeiros, abobadeiros e carpinteiros surgiu a partir iniciativas criadas pela Casa Real no âmbito de programas de renovações ou edificações de 3. Arredores de Beja. [CV, 2011] estruturas Exemplos são os paços, prisões, celeiros reais, alfândegas, ou por via das ordens religiosas que edificaram capelas, igrejas e conventos. Devido à grande quantidade de obras a decorrer, as povoações de grandes e médias dimensões tinham muitas vezes estaleiros que trabalhavam em permanência, o que seria importante na massificação do conhecimento destas técnicas e dos materiais utilizados. Assim, com o decorrer do tempo esta informação foi vulgarizada reaproveitando-se estruturas e entrando definitivamente numa nova cadeia de conhecimentos da arquitectura vernacular, sempre adaptada às realidades regionais.

30


Aliada à popularização dos conhecimentos adquiridos, a inexistência de madeiras apropriadas para construção na paisagem Alentejana, e a elevada existência de Barreiros e mato arbustivo para a queima em fornos, contribuíram em conjunto para a proliferação das abóbadas de tijoleira. Estas situações tiveram uma especial incidência nos programas habitacionais, de que a construção de diversos Paços constituiu um referencial incontornável na área da arquitectura doméstica. Depois das invasões francesas, o país atravessa novamente uma profunda crise devido ao confronto entre os liberais e os absolutistas. Com a vitória do liberalismo e consequente extinção das ordens religiosas dá-se uma significativa mudança no campo político e económico. Até à implantação da Republica, “reorganiza-se” em parte a propriedade que subsiste até hoje. Assiste-se a grandes transformações tais como a mecanização dos sistemas produtivos e o surgimento de novos equipamentos, novas técnicas e novas culturas. Na década de 30 do século XX inicia-se o Estado Novo e as politicas implementadas marcam significativamente a vida rural alentejana. A desflorestação do Alentejo, associada à construção do caminhode-ferro, consumo de lenha e as campanhas do trigo, trazem arquitectos e engenheiros agrónomos que traçam grande parte dos novos montes. Uma nova crise económica instala-se nos anos 60 e 70. Com o 25 de Abril existe um sentimento de mudança e esperança que reabre feridas nunca saradas e culmina com o clima de confronto de ocupações das herdades e a formação das Unidades Colectivas de Produção(UCP’s) que com algumas excepções, torna-se irreversível. No entanto, é também nestes tempos difíceis que nasce uma nova consciência pública nacional pela preservação do património. Este movimento é impulsionado pelas primeiras abordagens ao património rural, por associações de defesa do património, investigadores académicos, pessoas em nome individual que debatem a preservação da identidade histórica regional com o propósito de alertar as autarquias e os organismos do governo central.

3.2. MATERIAIS, SISTEMAS E TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO TRADICIONAIS NO ALENTEJO20 (…) «civilização do barro», que encontra no Sul do país as formas mais correntes e mais características. A única área extensa e contínua que ela cobre é o Alentejo (…). O Alentejo mostra outra riqueza e variedade, que podem chegar à expressão artística superior (…). RIBEIRO, Orlando. Geografia e Civilização. 3ª Edição. Lisboa. Livros Horizonte. 1992. Pág.32

20

A elaboração deste capítulo tem por base o artigo da arquitecta Maria Fernandes, Materiais e técnicas construtivas no Alentejo sendo complementado por outros artigos e livros, bem como pela observação directa feita na região do Alentejo. FERNANDES, Maria. Materiais e técnicas construtivas no Alentejo. P.73-85. In: IEFP; CRAT. As idades da construção: técnicas de construção tradicional e sua aplicação à arquitectura contemporânea. Lisboa: IEFP, 2010.

31


Como indica a frase em epígrafe, Orlando Ribeiro distingue o Norte de Portugal do Sul pelo contraste dos materiais dominantes na construção e na paisagem, designando o Norte de «civilização do granito» e o Sul de «civilização do barro». O Norte é caracterizado pela cultura construtiva em pedra, predominando os blocos regulares de granito em alvenaria aparelhada seca. O Sul pela cultura de terra, onde predomina a taipa, a alvenaria ordinária de pedra irregular e a alvenaria seca de xisto. Esta caracterização é fundamental para o presente trabalho, pois a região do Alentejo é entendida por um território onde predominam as técnicas construtivas características da zona Sul. 21 Das 23 unidades de paisagem que Orlando Ribeiro definiu , o Alentejo abrange quatro, nomeadamente Alto Alentejo, Alentejo de Planície (com raras elevações isoladas), Alentejo Litoral (com elevações) e Depressão do Sado. As condições físicas, geográficas e os contextos histórico-culturais diversos, que caracterizaram a sua humanização, ditam a riqueza de tradição construtiva em pedra e terra que distinguem estas unidades de paisagem. Nestas paisagens, encontramos como materiais disponíveis para a construção a pedra de xisto, mármore e granito; e a terra, com forte predominância de solos argilosos. Outros materiais disponíveis em menor quantidade são o calcário, elementos vegetais e a madeira 3.2.1. A PEDRA Com tradição construtiva de influência mediterrânica, a construção em pedra, no Alentejo, caracteriza-se pelo recurso à alvenaria ordinária, alvenaria seca e mais raramente, à alvenaria aparelhada. Na pedreira ou jazida, depois de extraída a pedra cortava-se, desbastava-se e talhava-se, ficando apenas o acabamento, ou o talhe fino para se realizar em estaleiro. Podemos encontrar: a pedra de xisto em Nisa (Portalegre), Mourão (Évora), Barrancos (Beja; a pedra de mármore em Estremoz (Évora), Vila Viçosa (Évora), Borba (Évora), Trigaches (Beja), Ficalho (Serpa);a pedra de granito em Évora, Arronches (Portalegre), Monforte (Portalegre), Santa Euiália (Portalegre), Reguengos (Évora) e Torrão (Setúbal).

21

1-Entre Douro e Minho; 2-Montanha do Minho; 3- Montanhas do Norte da Beira e do Douro; 4-Terras de média altitude da Beira litoral; 5-Planaltos da Beira Alta; 6-Beira litoral; 7-Cordilheira Central; 8-Planaltos e montanhas de Trás-os-Montes; 9-Planaltos e montanhas da Beira transmontana; 10-Alto Douro e depressões anexas; 11-Baixo Alentejo; 12-Estremadura setentrional, geralmente baixa; 13-Maciços calcários da Estremadura e Arrábida; 14-Depressões e colinas entre 7 e 13; 15-Estremadura meridional, geralmente acidentada; 16-Beira Baixa; 17- Ribatejo; 18-Alentejo de planície com raras elevações isoladas; 19-Alto Alentejo; 20-Alentejo litoral com elevações; 21-Depressão do Sado; 22-Serra Algarvia; 23-Algarve litoral ou Baixo Algarve.

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3.2.1.1. O XISTO

O xisto foi a pedra mais utilizada na construção tradicional alentejana. A composição laminar desta rocha permite destacar placas e blocos irregulares de reduzida espessura. A sua extracção é não só efectuada em pedreiras ou jazidas como também pode ser facilmente extraído à superfície, sendo utilizado mesmo onde não existem estes locais específicos para a exploração extractiva. Exemplos da utilização deste material são os concelhos de Mértola, Serpa e Odemira (Beja). Actualmente a (reduzida) utilização do xisto consiste em peças mais ou menos normalizadas para pavimentação, em muros, na recuperação de alguns edifícios antigos e em arranjos urbanísticos de zonas tradicionais como podemos observar em Monsaraz.

4. Arredores de Monsaraz [CV, 2011]

3.2.1.2. O MÁRMORE E O GRANITO

O mármore e o granito foram utilizados onde era possível a sua extracção em pedreiras. São pedras de resistência e dureza assinaláveis que permitem peças normalizadas. Estas características levaram a que fosse um material de eleição para edifícios de carácter excepcional, mesmo em zonas onde o material não existia. A exploração do mármore e do granito nos dias de hoje destina-se principalmente à indústria de rochas ornamentais.

5. Arredores de Borba [CV, 2011]

3.2.2. A TERRA A terra é o único material que tem sido estudado na sua antiguidade e contemporaneidade, quer na investigação quer no ensino, sobre o lema: se soubermos construir com terra, conseguimos mais facilmente conservar em terra. (…) A continuidade construtiva em terra, quer em moldes tradicionais quer em moldes tecnológicos contemporâneos e industriais, é o contributo e o enorme valor que a «terra» simultaneamente material e

33


sistema construtivo, tem legado à construção mundial. FERNANDES, Maria. Apresentação do livro de CORREIA, Mariana. Taipa no Alentejo. 1ª Edição. Lisboa. ARGUMENTUM. 2007

A terra foi no Alentejo o elemento construtivo predominante. Na construção, a qualidade da terra tem influência na durabilidade do edifício. Os solos utilizados devem ser: isentos ou pobres em matéria orgânica; retirados de camada específica do subsolo; quando a sua extracção é feita à superfície são removidas as pedras, as raízes e outros materiais orgânicos. Depois de extraída, a terra tem que ser preparada, seca e crivada. É então misturada com água e por fim seca ou transformada por temperatura. Estes dois processos originam respectivamente os materiais em terra e os cerâmicos. A partir da terra são extraídos elementos que serão aplicados como pigmentos ou seja as terras corantes.

6. São Pedro do corval [CV, 2011]

3.2.3. OS LIGANTES Encontramos no Alentejo a utilização de cal aérea, terra e excepcionalmente gesso para assentamento e rebocagem. 3.2.3.1. A CAL

Tendo sido aperfeiçoada e usada intensivamente pelos Romanos, a cal foi o ligante por excelência. A sua produção envolve um conjunto de tarefas, nomeadamente, escolha da pedra; cozedura; desmontar cuidadosamente as pedras cozidas; após arrefecimento guardar devidamente a cal viva para que não hidrate antes do tempo; apagar ou “abrir” a cal de obra. A cal branca, também designada por cal aérea cálcica, é efectuada a partir de pedras calcárias e mármores mais puros. Esta cal dá origem a uma argamassa clara e

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7. Barro Branco [CV, 2011]


plástica, que pode ser guardada húmida e que devido à cor e facilidade de moldagem é usada principalmente nas camadas finais dos revestimentos. A sua extinção é lenta, aconselhando-se o mais rapidamente possível após a produção. Os processos utilizados para a extinção da cal branca consistem em regar a cal ou imergi-la em água. Após a finalização dos processos enunciados a cal viva passa a “cal morta” também denominada como “cal apagada”. No primeiro caso, e após a rega, a cal transforma-se em pó alterando-se rapidamente. Carbonata quando em contacto com o ar, sendo posteriormente misturada com areia e água. Este processo é desaconselhado. Quando imersa em água, a cal transforma-se numa pasta e mantém-se sem alterações ganhando qualidade. Quando preparada para aplicação, a cal é simplesmente misturada com areia tendo previamente a quantidade necessária de água. A argamassa resultante destes dois casos nomeia-se de massa fina e é ainda hoje aplicada em rebocos de regularização, acabamento, superfícies decorativas e caiações, esta última com juntando maior quantidade de água. A cal parda ou cal de obra é efectuada a partir de calcários dolomíticos, menos puros, que se apresentam como rochas mais escuras – esta cal dá origem a cais fracamente hidráulicas que não podem ser guardadas húmidas e têm que ser aplicadas pouco depois da extinção. Estas argamassas são mais escuras e menos plásticas, mas em geral mais resistentes, usadas nas camadas de enchimento dos revestimentos e no assentamento da alvenaria. O processo de extinção desta cal é feito no momento em que é retirada do forno, misturando-a com cal e areia, sendo o próprio processo de extinção a produção de argamassa para a construção.

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8. Barro Branco [CV, 2011]

9. Forno tradicional de cal de montes claros. [GM, Livro As Idades da Construção]

10. Fase final de cozedura da cal num forno tradicional. [GM, Livro As Idades da Construção]


Conforme confirmado pelo Mestre Caleiro Festas22 - proprietário de forno tradicional em barro branco, que pertence à família à várias gerações – o processo de cozedura é feita dentro de fornos locais, onde se arma uma construção de forma engenhosa. De planta tradicional abobadada as pedras são colocadas de forma a permanecerem estáveis durante a cozedura com as próprias pedras a serem cozidas. As pedras escolhidas são – conforme indicado pelo Mestre Festas – as consideradas desperdício pelos vendedores locais. Nos bordos interiores do forno, onde a temperatura é mais baixa forma-se a cal parda, enquanto a cal branca é formada onde as temperaturas são mais elevadas. 3.2.3.2. A TERRA (COMO LIGANTE)

Nas zonas onde a cal era escassa, encontrava-se rebocos feitos a partir de argilas. A sua preparação consistia em crivar a terra e posteriormente misturava-se com água e areia. Com a crescente produção de cal e consequente facildade de compra, estes ligantes em terra foram sucessivamente abandonados em todas as regiões do Alentejo. 3.2.4. A MADEIRA Não se encontram na paisagem alentejana madeiras adequadas para a construção Encontramos frequentemente: o sobro e o azinho, madeiras com grandes retracções e dimensões limitadas; castanheiros e carvalhos na serra de S.Mamede (Portalegre). Infelizmente, estas madeiras não existem em quantidade suficiente para impulsionar a utilização deste material em sistemas construtivos de grande impacto como aconteceu noutras zonas, principalmente arenosas, como se verificou por exemplo com o denso pinhal de Leiria. Para colmatar esta situação verificou-se a importação do pinho e mais recentemente a do eucalipto. Entre os vários tipos de madeira disponível o azinho é utilizado nos caixilhos; os caibros para estrutura das coberturas são em pinho, eucalipto e excepcionalmente em freixo ou choupo.

22

11. Serpa [CV, 2011]

12. Mercado Público da Comenda. arquitectos Maximina Almeira e Telmo Cruz. Comeada. [CV, 2011]

Conversa com o Mestre Caleiro Festas no seu local de trabalho. Barro Branco, Borba. Junho de 2010.

36


A utilização do ripado e do caniço para apoiar o assentamento de coberturas em telha ainda hoje se verifica.23 A facilidade de aquisição de madeira nos dias de hoje possibilita o surgimento de edifícios neste material. 3.2.5. OS ELEMENTOS VEGETAIS O emprego destes materiais era apenas pontualmente verificado em coberturas agrícolas no interior do Alentejo ou em paredes e coberturas de abrigos de pescadores no litoral. 3.2.6. OS ELEMENTOS CERÂMICOS Os telheiros, de trabalho sazonal, encontravamse um pouco por todo o Alentejo. Neles se adquiriam peças essenciais nos sistemas construtivos tradicionais: tijolo "lambaz", tijoleira "baldoza" e telhas de diferentes formatos e dimensões. Estabeleciam-se junto de barreiras, que forneciam a matéria-prima e localizavam-se perto de fontes ou poços. O processo consiste em trabalhar previamente a terra à enxada misturando-a com água. Seguidamente, é amassado o barro e a moldagem é efectuada da forma desejada. Por fim é feita a secagem, as peças de barro são empilhadas de forma desencontrada e colocados no forno em camadas. Actualmente poucos fornos de produção artesanal resistem – somente alguns dos de S. Pedro do Corval (Évora), Galveias (Portalegre), Montemor-o-Novo e Évora. Destes poucos é raro encontrar os que ainda produzem "baldozas" e tijolo "lambaz" de espessura reduzida. Todavia ainda existem casos onde todo o tipo de elementos cerâmicos cozidos são efectuados tal como 23

13. São Pedro do corval [CV, 2011]

14. São Pedro do corval [CV, 2011]

Informação verificada pelo autor nas visitas efectuadas no âmbito da pesquisa de material necessário para a construção deste documento.

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pode ser verificado pelo proprietário de dois fornos – o Sr. Luís Fernando Ramalho Dias - que efectua peças personalizadas e que afirma que as peças que mais fabrica são as de o tijolo maciço.24

15. São Pedro do corval [CV, 2011]

3.2.7. OS SISTEMAS CONSTRUTIVOS

25

Apesar de caracterizada como “a mais vasta e monótona unidade natural do território” A fraca diversidade de materiais disponíveis como a madeira e pedra - adequada à construção de alvenarias aparelhadas e regulares -, estimulou a aplicação criativa de materiais cerâmicos e terras promovendo a criação de sistemas singulares. Exemplos de aplicações são os sistemas em arco, técnicas para execução de pisos e coberturas e aplicações da terra em alvenarias. 3.2.7.1. ALVENARIAS

É verificada a utilização da terra, pedra e materiais cerâmicos na construção de paredes e muros tradicionais. A terra é predominantemente utilizada nas paredes monolíticas em taipa e alvenarias de adobe.Com a pedra constroem-se paredes em alvenaria ordinária de granito, xisto e mármore e em alvenaria seca de xisto apenas travado. O tijolo maciço ou «lambaz» é também utilizado nas alvenarias tradicionais. Actualmente estas técnicas são conhecidas e pontualmente aplicadas em habitações e muros recentes. 3.2.7.1.1. ALVENARIA DE TAIPA O processo consiste em bater a malho, dentro de uma espécie de caixa de madeira, sem fundo (taipal), uma mistura de barro com pedriça, apanhada muita vez ao lado dos muros que se estão levantando. Deslocando lateralmente o taipal, obtém-se uma faixa a todo o comprimento do muro que se deseja; levantada ela, deixa-se endurecer a ponto de servir de apoio ao taipal e vai-se assim erguendo sucessivamente o muro, desencontrando-se as juntas verticais, para obter travação. Às vês usam-se alicerces 24

Conversa com o Sr. Luís Fernando Ramalho Dias. No seu local de trabalho. São Pedro do Corval. Junho de 2010. O Sr. Luís Fernando Ramalho Dias, proprietário de dois fornos deste tipo – um para pequenas quantidades e outro para as grandes, Constatou que a procura tem vindo a diminuir e como tal a utilização do forno maior é diminuída. Alguns dos seus c lientes mais ilustres são os arquitectos Álvaro Siza e Eduardo Souto Moura. 25 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (7’ edição). Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1998, Pág.151

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de pedra, no geral salientes, e fiadas de pedra ou de tijolo entre as diferentes faixas de taipa. RIBEIRO, Orlando. Geografia e Civilização. 3ª Edição. Lisboa. Livros Horizonte. 1992. Pág.32

Esta foi a técnica de construção mais utilizada na habitação tradicional alentejana até aproximadamente os anos 50 do século XX. As paredes deste material podem variar entre os 0,45m a 0,60m nos edifícios de um piso e atingindo os 0,90m no piso térreo nas construções de dois pisos. Como descrito pela investigação efectuada pela 26 arquitecta Mariana Correia , a taipa utilizada na construção tradicional alentejana apresenta bastantes variações, dependendo do tipo de terra utilizado e sujeitando-se ainda à 16. Mértola. [CV. 2011] tradição de construção da região ou do taipeiro. Onde o é solo xistoso (Outeiro, Reguengos de Monsaraz e Vales Mortos, Serpa) encontra-se uma taipa forte, de tipologia simples e com juntas difíceis de distinguir. Pode encontrar-se, entre as fiadas horizontais da taipa, uma argamassa fina de barro. Nas Aldeias de Montoito, a terra apresenta grãos mais finos. A presença de quartzo dificulta a boa agregação na consistência da taipa. Por conseguinte é normal encontrar uma fiada de tijolo maciço, envolvida por argamassa de cal, a consolidar cada camada de taipa. É adicionado à composição da taipa, pedaços de tijolo ou telha, pedra irregular e "escumalha de ferro" (pequenas pedras castanhas naturais da zona) de forma a compensar a falta de esqueleto do solo local. Nas zonas onde aterra se apresenta mais argilosa, era por vezes utilizada uma fiada de adobes ou de xisto, entre cada camada de taipa. Em Saraiva e Colos encontra-se uma terra fina que permite uma boa compactação. A tipologia é simples com argamassa nas juntas verticais e horizontais. Contudo, existem problemas de ordem estrutural devido à existência de grande quantidade de lodo. É por este motivo, frequente encontrar no topo de muitas das juntas, de modo a evitar possíveis fissuras verticais, pedras deitadas, por vezes de dimensão elevada. Na costa alentejana, onde a terra tem características arenosas, existem construções de duas camadas de taipa por taipal. A travar as estreitas camadas desta taipa arenosa, foi construído uma fiada de pedra de elevadas dimensões.

26

Dentro do seu vasto trabalho de investigação sobre arquitectura de terra serviram de base para o presente trabalho: o livro Taipa no Alentejo; o seu contributo no livro Arquitectura de Terra em Portugal; e o artigo A taipa alentejana: sistemas tradicionais de protecção, escrito com a colaboração de Jacob Merten.

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Em Alcácer do Sal, quando se produzia a taipa com uma terra com forte presença de húmus, chamada de “taipa negra” e devido è grande retracção do solo, era usual realizarem-se duas camadas por taipal e, entre as fiadas de taipa, utilizava-se tijolo maciço e argamassa de cal. Nos casos descritos existem outras variantes, que dependem de elementos que se encontrassem na terra e de 27 quem as produzia. Em 2007, a arquitecta Mariana Correia, indicava o ressurgimento desta técnica construtiva no Alentejo, apesar de 28 a sua difusão ainda ser limitada. Actualmente, o interesse e divulgação desta técnica está em crescimento com várias iniciativas de investigação e actividades a serem desenvolvidas 29 na sociedade. A Associação Centro da Terra tem sido de extrema importância na sua divulgação e na promoção da discussão de ideias e de actividades como workshops. A aplicação desta técnica associada a materiais e linguagem contemporânea pode ser observada num projecto do arquitecto Bartolomeu da Costa Cabral, a “Casa de Taipa”. Esta moradia, implantada na paisagem alentejana (arredores de Beja), é constituída por paredes de taipa - com terra das próprias escavações -, com a sua espessura e densidade próprias, acabadas com um reboco de cal com pigmentos ocreterra, com coberturas ora de Betão, ora de estrutura de madeira aparente.30

17. Casa de Taipa. Arquitecto Bartolomeu da Costa Cabral. Arredores de Beja. [JG. http://jgarq.blogs.sapo.pt]

18. Casa de Taipa. Arquitecto Bartolomeu da Costa Cabral. Arredores de Beja. [CCC. http://jgarq.blogs.sapo.pt]

27

CORREIA, Mariana; MERTEN, Jacob. A taipa alentejana: sistemas tradicionais de protecção. 2003. CICRA, ESG. CORREIA, Mariana. Taipa no Alentejo. 1ª Edição. Lisboa. ARGUMENTUM. 2007. P.29 29 Fundada em 2003, a Associação Centro da Terra constitui-se como um espaço de contacto entre interessados na temática da arquitectura e construção com terra crua e disponibiliza o site virtual em www.centrodaterra.org. 30 PEREIRA, Alexandre Marques. Uma casa algures no Alentejo. Entre Viana, a Califórnia e o México. P.26 In: Arquitectura e Vida.Nº94. Jun, 2008 28

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3.2.7.1.2. ALVENARIA DE ADOBE

O adobe é o barro amassado juntamente com areia ou palha cortada, moldado em forma de tijolo e seco ao sol. Usa-se na construção (de muros e paredes) sobreposto em fiadas com as juntas verticais desencontradas. RIBEIRO, Orlando. Geografia e Civilização. 3ª Edição. Lisboa. Livros Horizonte. 1992. Pág.33

Em zonas onde a água é um recurso abundante encontram-se as alvenarias de adobe nas paredes exteriores e interiores. Exemplos são encontrados no Sorraia, vale do Guadiana e na margem Sul do rio Tejo. Devido à ocorrência recente de movimentos migratórios de populações, oriundas de zonas onde predominava o adobe e também devido às alterações na agricultura associadas a construção de barragens e subdivisão de propriedades agrícolas, é visível a substituição da alvenaria de taipa pela de adobe. Por vezes, são encontradas paredes de taipa e adobe na mesma construção, sendo as de taipa as portantes exteriores e de adobe as interiores. Isto acontece com frequência nas zonas de transição para o Algarve. Entre 1960 e 1970, a técnica do adobe foi desaparecendo, ressurgindo recentemente, tal como indicado em 2007 pela arquitecta Mariana Coreia, na construção de algumas habitações na Costa Alentejana.31 A divulgação e interesse sobre este material são semelhantes aos aplicados à taipa. E também aqui a contribuição da Associação Centro da Terra32 é relevante e significativa.

19. Serpa. [CV 2011]

3.2.7.1.3. ALVENARIA DE PEDRA

Dentro das alvenarias de pedra, a alvenaria ordinária 31 32

CORREIA, Mariana. Taipa no Alentejo. 1ª Edição. Lisboa. ARGUMENTUM. 2007. P29 Ver nota 37

41

20. Monsaraz. [CV 2011]


ou argamassada em aparelho irregular predomina na construção alentejana. Estas alvenarias eram normalmente rebocadas, acontecendo porém, nas zonas urbanas, as fachadas públicas serem muito decoradas enquanto as restantes eram frequentemente deixadas em tosco, ou por rebocar. As regras para a execução da alvenaria ordinária são semelhantes às utilizadas na construção de alvenarias secas, observando-se porém, que nestas o trabalho não exige o 33 mesmo rigor de execução, tornando-se mais fácil e rápido. Esta alvenaria é constituída por pedras irregulares escolhidas com tamanhos e formas adequadas. Eram posteriormente molhadas evitando a retracção quando assentes em 34 argamassa. Eram colocadas em perpianho e assentavam de forma a ficarem estáveis evitando os espaços vazios. A argamassa deve ser suficiente para ligar entre si as peças, embora a solidez da parede esteja na pedra e não na argamassa. Os pontos críticos da parede eram tratados com maior cuidado. Para o topo eram utilizadas pedras mais regulares. Os cunhais, muitas vezes eram construídos em blocos regulares colocados em sentidos diferentes, de forma a consolidar a construção naquela zona. Para a execução destes pontos críticos eram frequentemente utilizados blocos em granito ou mármore, ainda que a parede fosse construída por outra pedra. Isto acontece também nos vãos em ombreiras, vergas, soleiras e peitoris. Na ausência de pedras regulares, construíam-se arcos em tijolo maciço em vergas e alvenarias no mesmo material em cunhais, vãos e no topo da construção. O recurso a alvenarias de pedra para as fundações era frequente em todas as paredes, e também utilizada para o capeamento do topo das paredes, nas ligações entre o beirado e a alvenaria, e nos reforços de paredes em terra, 33 34

21. Monsaraz. [CV, 2011]

22. Museu da Luz. arquitectos Pedro Pacheco e Marie Clément. Aldeia da Luz. [CV 2011]

Biblioteca de Instrução Profissional. Alvenaria, cantaria e betão. Livraria BERTRAND. Lisboa. Ocupando a largura da parede

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como os "gigantes” 35. A pedra mais utilizada na construção alentejana foi o xisto. Hoje, ainda são construídas casas e principalmente muros com estas pedras. O Mestre abobadeiro José Mendes Massano, residente em Reguengos de Monsaraz, e que trabalha como pedreiro, indicou que ainda realiza trabalhos com esta pedra referindo trabalhos de habitação e trabalhos de restauro e construção de algumas paredes com alvenaria de xisto na zona histórica de Monsaraz. 36 3.2.7.2. PISOS E COBERTURAS

A já referenciada ausência de madeiras adequadas à construção limitou a utilização dos sistemas de execução de pisos, pavimentos e coberturas. As peças de madeira que consistiam em vigas para vencer os vãos dos pisos e das coberturas, eram trabalhados artesanalmente e secos. A peça finalizada tinha secção circular e eram designados de “toros” ou “barrotes”. O uso do tijolo ficou principalmente limitado à execução de arcos e nas soluções de pisos e coberturas, com sistemas de grande interesse. Destacam-se os tectos e pisos resolvidos em arco, construídos em abóbadas e abobadilhas. 3.2.7.2.1. ABOBADAS E ABOBADILHAS O Alentejo será sem dúvida uma das zonas mais significativas da arte de construir abóbadas em tijolo como as de canhão de berço nervuradas de aresta, cúpulas e as características abobadilhas alentejanas, algumas quase planas de tão abatidas. MESTRE, Victor e ALEIXO, Sofia. A arquitectura Popular Alentejana: “A civilização do Barro”. In: Arquitectura e construção, nº14, 2001. Disponível virtualmente em: http://www.vmsa-arquitectos.com

A construção de abóbadas e abobadilhas era frequente no Alentejo. Estas eram executadas sem recurso a cofragens ou qualquer apoio auxiliar. A diferença entre elas tem a ver com a posição como se assenta o tijolo. Se o tijolo é colocado ao cutelo e na vertical denomina-se abóbada, mas no caso de ser colocado deitado denominamos como abobadilha. Antes de se começar a construir, o mestre abobadeiro traça o arco com cordel e ponteiro, nas paredes que apoiarão a futura abóbada ou abobadilha com dimensão adequada ao vão que se quer vencer. 35

Contrafortes encontrados nas paredes de taipa e que se designam de “moirões” na fronteira para o Algarve. A colocação destes indica a ausência de fundações nas construções de taipa. 36 Conversa com o Mestre Abobadeiro José Mendes Massano. Na sua habitação. Reguengos de Monsaraz. Junho de 2010

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Quando são traçados dois arcos estes darão origem à abobada/abobadilha de “berço” ou “canhão”, enquanto sendo traçados quatro arcos, serão executadas as de “engra” ou “barrete de clérigo”. A dimensão da flecha no caso da abobadilha é geralmente reduzida, ficando algumas quase planas de tão abatidas. A construção da abóbada ou da abobadilha começase sempre dos cantos para o centro. Pode encontrar-se diversas soluções para o fecho dependendo do mestre abobadeiro. Existem ainda outras variantes além das descritas como as abobadilhas de “caixotão”. Trata-se de um sistema misto em vigas paralelas de madeira ou ferro, entre as quais são construídas abobadilhas de berço em vão reduzido. Este sistema, associado aos primórdios da arquitectura industrial, que permite vencer vãos de dimensões consideráveis, é destacado no Inquérito à Arquitectura Regional em Portugal 37. Os ligantes utilizados na execução de abóbadas/abobadilhas eram a cal ou o gesso. O gesso permitia uma solidificação mais rápida e consequentemente uma execução mais rápida. Finalmente as superfícies eram rebocadas e caiadas, por vezes estucadas, protegendo assim o sistema construtivo. O mestre abobadeiro João Mendes Massano confirma esta técnica construtiva como dispendiosa e só em casos muito particulares é executada actualmente. Este mestre abobadeiro, residente na aldeia da Barrada (Reguengos de Mossaraz), aprendeu esta técnica baseado na observação e explicação de outro mestre abobadeiro. O seu percurso profissional reflecte a passagem de conhecimento popular, a (tentativa de) transmissão de conhecimento e o desinteresse colectivo na aplicação das técnicas tradicionais, comprovado pelo insucesso da procura dos seus serviços.38 37 38

23. Igreja de Santiago. Monsaraz. [CV 2011]

24. Igreja de Santiago. Monsaraz. [CV 2011]

25. Casa da Cultura da Juventude de Beja. Beja. [CV 2011]

AAP. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume III. P.45 A última vez que construiu uma abobada já fez dois anos e os últimos cursos que deu 15. Actualmente trabalha como um vulgar

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3.2.7.2.2. COBERTURAS DE ÁGUAS

As restantes coberturas de uma ou duas águas, na maioria são construídas com os já referidos “toros” ou “barrotes”, sobre os quais se dispunham pregadas as ripas ou o caniço, onde iriam assentar as telhas de canudo, geralmente argamassadas. Raramente se encontram coberturas em terraço e asnas para o assentamento das telhas.

26. Mértola. [CV 2011]

3.2.8. REVESTIMENTOS A cal aérea era o acabamento mais frequentemente utilizado no Alentejo. A superfície da parede tinha que estar totalmente limpa e seca para que se pudesse efectuar o acabamento de cal de forma eficaz. Era executado em três camadas, sendo a última afagada ou lisa. O acabamento final desta superfície era feito com leite de cal branca39. Por vezes a caiação era aplicada em detalhes arquitectónicos, ou nas duas camadas a aplicar, colorida, misturando a cal com pigmentos minerais. Assim se personalizavam as habitações e se diminuía o reflexo agressivo da luz, em superfícies totalmente brancas. Poucas variações se encontravam nos acabamentos alentejanos. Por vezes recorriam a trabalhos mais elaborados e decorativos, de esgrafitos (em baixo relevo e esgrafitado) e stucos (em alto relevo), sempre coloridos, com influência de edifícios eruditos.

27. Mértola. [CV 2011]

28. Montemor-o-Novo. [CV 2011]

pedreiro, mas tem grande sabedoria nas técnicas tradicionais alentejanas. Foi responsável pela construção de várias abóbadas não só no Alentejo, mas por todo o país, como: Coimbra, Sintra, Cabo Espichel, Palmela, entre outras localidades. Dos últimos trabalhos que realizou nomeou a reconstrução das abóbadas da igreja de Santiago em Monsaraz, as imensas abóbadas do Hotel Província em reguengos de Monsaraz e as abóbadas de algumas moradias de proprietários abastados. 39 Leite de cal branca é definido por cal em pasta diluída numa porção de um para quatro em volume de água

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A apresentação final da construção feita com os rebocos de cal contribuía para a coesão das alvenarias e escondiam as imperfeições e irregularidades das alvenarias, criando superfícies uniformes. Em visitas efectuadas ao Alentejo, é possível verificar o uso da cal nos edifícios sendo notória a crescente aderência aos rebocos contemporâneos. 29. Montemor-o-Novo. [CV 2011]

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MONSARAZ [C.V. 2011]

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MONTEMOR-O-NOVO [C.V. 2011]

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MONTEMOR-O-NOVO [C.V. 2011]

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ALDEIA DA BARRADA (MONSARAZ) [C.V. 2011]

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SÉRPA [C.V. 2011]

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MÉRTOLA [C.V. 2011]

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SÉRPA [C.V. 2011]

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REGUENGOS DE MONSARAZ Hotel Província [C.V. 2011]

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ALDEIA DA LUZ Museu da Luz Arquitectos: Pedro Pacheco e Marie ClĂŠment [C.V. 2011]

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ARREDORES DE BEJA Moradia em Taipa Arquitecto: Bartolomeu da Costa Cabral [JG; CCC. http://jgarq.blogs.sapo.pt]

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COMENDA Mercado PĂşblico da Comenda Arquitectos: Maximina Almeira e Telmo Cruz [C.V. 2011]

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PORTALEGRE Intervenção no Castelo da Cidade Arquitecto: Cândido Chuva Gomes [C.V. 2011]

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ELEMENTOS CERÂMICOS Sr. Luís Fernando Ramalho Dias – Proprietário de fornos de produção tradicional São Pedro do Corval [C.V. 2011]

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73 S. Pedro do Corval. [CV 2011]


ABÓBADAS, ABOBADILHAS E ALVENARIAS DE XISTO Mestre abobadeiro João Mendes Massano Aldeia da Barrada (Reguengos de Monsaraz) [C.V. 2011]

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75 Monsaraz. [CV 2011]


CAL LIGANTE Mestre Caleiro Festas – Proprietário de forno tradicional activo de produção de cal Barro Branco (Borba) [C.V. 2011]

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78 Beja. [CV 2011]


Não basta ao indivíduo da cidade vestir umas calças de surrobeco, calçar tamancos e ajeitar uma enxada ao ombro para se integrar num meio rural; envergar pelico e safões para pertencer ao Alentejo; ou vestir camisa vistosa de lã aos quadrados e descalçar-se para não destoar entre pescadores da Nazaré. Integrar-se, pertencer, são coisas mais sérias e profundas. De modo algum são apenas maneiras de vestir, tanto pessoas como edifícios. AAP. Introdução. Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª Edição. Lisboa. 1988. Volume I. P.12

Salvador Dalí. O rosto de Mae West. 1935. http://www.dali-gallery.com

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4. CONSTRUIR SÍTIOS A leitura consciente do inquérito foi (…), ao contrário do que se temia, não uma aceitação das formas, mas a compreensão da arquitectura regional e um subsequente aproveitamento «erudito» das suas constantes; mas essa consciência só se cristaliza uns anos após a sua finalização. ESTEVES, José; MESTRE, Victor. A partir de uma conversa com o arquitecto Silva Dias a propósito do inquérito à arquitectura regional portuguesa. 1987. P. 97. In: AA. VV. Antologia 1981 – 2004. Jornal de Arquitectos. Lisboa. 2004.

O IARP foi fundamental para impulsionar a humanização da arquitectura. As gerações seguintes têm beneficiado deste documento numa perspectiva histórica, e podem encontrar aqui descritas as raízes da nossa arquitectura portuguesa. A compreensão do passado é imprescindível para a construção de um futuro melhor. A sua importância nos dias de hoje é confirmada pelo arquitecto Victor Mestre: “Quanto mais o tempo passa, mais o admiro [o inquérito] e mais capacidade crítica tenho de o avaliar, como todos os documentos 40 que passam a ter um desempenho histórico.” A realização do IARP foi especialmente relevante pela forma como os arquitectos verificaram que existia um conhecimento tradicional alargado que fora adquirido ao longo de gerações. Este conhecimento foi aperfeiçoado através da experimentação e restringido aos materiais disponíveis na paisagem ou seja, a arquitectura está directamente dependente do meio envolvente. Esta informação provocou uma nova abordagem crítica sobre a arquitectura que entretanto se distanciara do Lugar em prol das tendências da época. Com isto surgem vários “arquitectos que tiraram proveito desse conhecimento e o introduziram numa vertente contemporânea da altura, numa alternativa ao modernismo, numa revisitação, digamos, ao regionalismo português, mas numa perspectiva erudita, evoluída, elegante e séria.”41 Por outro lado, após a investigação realizada no âmbito deste trabalho, é de considerar a revisão de dois aspectos importantes pelos arquitectos, críticos e historiadores de arquitectura: por um lado o surgimento de tipologias tradicionalistas assentes em ideias alegóricas erradas do que terá sido a Arquitectura Tradicional Portuguesa e por outro lado os projectos de arquitectos que reclamam uma identidade própria ignorando as preocupações sobre a implantação e a sua função como resposta à vivencia de pessoas e das suas necessidades. No primeiro caso, a falta de uma cultura arquitectónica por parte dos clientes, revela vontade de querer adquirir modelos pseudo tradicionalistas. “A classe média Portuguesa que nunca viveu na ruralidade, que nunca soube o que era tradição, que sempre viveu ou dentro das cidades ou no subúrbio da cidade, vive

40 41

Entrevista ao arquitecto Victor Mestre por Celine Vicente. Atelier VMSA, arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011 Idem.

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o mito da casa rústica”42. Surgem então, modelos desenquadrados na paisagem, baseados em conceitos de “casa portuguesa” inadequados e sem conhecimento das técnicas construtivas ou materiais tradicionais. O segundo aspecto trata-se da ambição criativa e de afirmação que alguns arquitectos contemporâneos reclamam. “No saco da arquitectura contemporânea cabe um pouco de tudo… mas em geral penso que está algo sufocada em si própria, num exercício (quantas vezes de virtuosa concepção intelectual) de mera construção duma imagem, dum estatuto, da afirmação gratuita do autor como fim e não do viver aberto ás pessoas (colectivo e individual) na sua naturalidade e consequente identidade.”43 Concebendo, edifícios isolados, sem relação com o envolvente, clima e as preexistências, na tentativa forçada de criar modelos diferentes que se sobrepõem ao conceito essencial da arquitectura e consequentemente, “ para além do grande desastre delas próprias, porque daqui a um, dois, dez anos estarão gastas e completamente descontextualizadas no olhar de toda a gente, mesmo no dos que a 44 admiraram, por outro lado criaram modelos repetitivos e cada vez menores, cada vez de menor qualidade”. Numa época em que a arquitectura teve um percurso complexo, ao longo do século passado, até se impor em Portugal pela qualidade e diversidade expressiva (às vezes, infelizmente, como ilhas num mar de vulgaridade...) diversos caminhos têm sido seguidos, em função de escolas ou de preferências individuais dos arquitectos, havendo também quem se preocupe em associar a forma arquitectónica à construtiva, considerando esse diálogo como extremamente rico e apto a valorizar a concepção da arquitectura. Ferreira, Hestnes. Conhecer o tijolo para construir a arquitectura. Seminário sobre Paredes de Alvenaria. Porto. 2002

A preocupação em associar a forma arquitectónica à construtiva é visível no trabalho do arquitecto Hestnes Ferreira descrito por Victor Mestre como “um grande arquitecto, um grande erudito. Um arquitecto 45 que tem uma formação sólida e que tem uma dimensão da arquitectura de um tempo antigo”. O arquitecto Hestnes Ferreira procurou na sua arquitectura responder ao desafio de associar a forma arquitectónica à construtiva com autenticidade proporcionando esse diálogo entre a forma e a sua resposta construtiva e fundamentando-se numa busca constante de apreensão do conhecimento das várias técnicas construtivas desde a ancestralidade até às mais contemporâneas. Podemos observar no seu trabalho a conjunção, por vezes, de técnicas tradicionais e contemporâneas justificadas pelo entendimento das condicionantes do local e da sua cultura, culminando em edifícios de carácter contemporâneo capazes de responder às necessidades impostas por uma sociedade em constante mutação e que ao mesmo tempo detém a identidade do Lugar. Expressando uma vontade e gosto por uma arquitectura assente nas raízes da sua cultura, Hestnes Ferreira afirma aos arquitectos Alexandre Alves Costa e Adelino: “Eu acho que o nosso meio devia ter outra 42

Idem. Entrevista ao arquitecto Nuno Malato por Celine Vicente. Por via de correio electrónico. Agosto 2011 Entrevista ao arquitecto Victor Mestre por Celine Vicente. Atelier VMSA, arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011 45 Idem. 43 44

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arquitectura. Para além de ter pessoas fantásticas como o Siza e outros, devia ter uma arquitectura mais profunda, com uma preocupação de se fundar nas raízes, nas suas raízes. Embora pudesse ser 46 contemporânea, e seria com certeza, que se relacionasse, de alguma forma, com o que fizemos antes” . Confrontado com a questão: E como é que tu achas que se pode ler, na tua obra, essa procura?”, responde: “Eu acho que nalgumas obras se pode ler. Não direi em todas. Por exemplo, nas coisas que fiz em Beja, pode-se sentir essa procura.”47 Como caso de estudo para esta dissertação a Casa da Cultura da Juventude de Beja incorpora técnicas contemporâneas e técnicas tradicionais mencionadas no IARP e desenvolvidas por artesão Alentejanos. Sendo um projecto de 1975/85, ainda dentro do tempo considerado contemporâneo, mas tendo d tempo suficiente para a sua avaliação, é um exemplo que se pode considerar hoje como um edifício que se mantém actual e contextualizado, continuando a responder às necessidades desta nova sociedade.

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Costa, Alexandre Alves; Gonçalves, Adelino; Correia, Nuno. Conversa com Raúl Hestnes Ferreira. In: NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P.275 47 Idem

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4.1. O ARQUITECTO HESTNES FERREIRA E A CASA DA CULTURA DA JUVENTUDE DE BEJA Na altura da realização do IARP, o arquitecto Hestnes Ferreira era estudante de arquitectura no Porto. O arquitecto Keil do Amaral, amigo da família, já tinha expressado várias vezes a sua vontade em concretizar o Inquérito, e no Porto já assistira a várias reuniões de arquitectos que vieram mais tarde a participar neste. Estas situações foram relevantes para que desde cedo tivesse conhecimento da vontade que existia na sua elaboração e no acompanhamento do seu desenvolvimento. O IARP teve grande influência na sua ambição de fazer prevalecer uma arquitectura assente nas precedências e com a implantação dos edifícios. “Não ter a ideia de haver um único modo de fazer arquitectura ao longo de todo o país acabou por ser muito importante para a minha geração”.48 Sobre Fernando Távora, arquitecto responsável pela zona 1 do IARP49 e que considera como seu inspirador, Hestnes Ferreira afirma: “era um homem extremamente culto e sempre pensou que, para além das teorias que vinham do exterior, havia uma realidade nossa”.50 Acrescenta, “Eu conheci vários arquitectos que tiveram no inquérito e que um deles foi o Távora que era meu professor e outros foram meus amigos. Quase todos os arquitectos jovens que tiveram nessas equipas conhecia-os bastante bem, de maneira que segui de alguma forma o inquérito, a produção do inquérito e as conclusões do inquérito”.51 Outro arquitecto que influenciou Hestnes Ferreira foi Alvar Aalto que conhece na Finlândia - onde trabalhou e estudou. “O melhor, talvez, foi olhar as obras do Alvar Aalto, não só as mais antigas, Paimio, Vila Mairea, etc., mas as 48

1. Serpa. [CV 2011]

2. CCJB. Hestnes Ferreira. Beja. [CV 2011]

Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011 Minho, Douro Litoral e Beira Litoral Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011 51 Idem. 49 50

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recentes, revestidas em tijolo no exterior, como Saynatso ou a 52 casa da Cultura de Helsínquia, ainda pouco conhecidas fora.” Após a sua estadia na Finlândia Hestnes Ferreira decide ir para os Estados Unidos, onde veio a estudar e a trabalhar com o arquitecto Louis Kahn que marcou profundamente a sua forma de pensar e fazer arquitectura. “não me sentia minimamente finlandês. (…) Depois meteu-seme na cabeça ir para os Estados Unidos. (…) Foi por acaso que me aconteceu, que me aconteceu aquele encontro. Estive em Yale. Iam fazer uma visita ao atelier do Kahn. Foi um feliz acaso. Os acasos… muitas vezes, os acasos não são acasos”.53 “uma pessoa só procura aquilo que deseja. Eu tinha a possibilidade de trabalhar com outros arquitectos, mas de facto, o facto de eu trabalhar com ele é porque eu já tinha qualquer afinidade. Aprendi muito com ele, deu-me novas perspectivas, mas de qualquer maneira teve uma certa ressonância no meu modo de ser e na minha arquitectura, porque, efectivamente, eu já estava predisposto para ela”.54 Numa altura em que o modernismo se encontrava em crise e a arquitectura necessitava de uma profunda reflexão sobre si própria, Louis Kahn, “foi um arquitecto que de alguma forma tentou reestruturar a visão da arquitectura, quer dizer, passado um período em que sobretudo se inovou muito do ponto de vista da arquitectura, com novos espaços, novos materiais, novas formar de construir, ele tentou apesar de tudo, reintegrar a arquitectura num ciclo de uma maior profundidade no tempo, quer dizer, não só na época do século XX, (…) mas também fazendo-o numa perspectiva histórica”.55 Louis Kahn defendia uma a ideia de uma arquitectura universal, baseada nos conhecimentos adquiridos pela experimentação humana. Defendia que esse conhecimento e reflexão eram necessários para existir uma lógica de 52

3. Ermida de Santo André. Beja. [AVM 2007]

4. Unidade Residencial na Estrada de Lisboa. Hestnes Ferreira. Beja. [AVM 2007]

Costa, Alexandre Alves; Gonçalves, Adelino; Correia, Nuno. Conversa com Raúl Hestnes Ferreira. In: NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P. 266 53 Idem. P.273 54 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011 55 Idem.

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continuidade e que a arquitectura deveria olhar para este conhecimento adquirido podendo recorrer-se dele quando surgisse a altura apropriada. “Amo os inícios. Os inícios enchem-me de maravilha. Creio que o início é o que garante a prossecução. Se esta não tem lugar, nada poderia nem quereria existir”.56 Foram estes valores que atraíram Hestnes Ferreira. Além disso, fascinava-o a coerência com que aplicava as suas ideias e as transmitia “não se limitando a procurar uma prática da arquitectura, mas também reflectindo sobre o seu 57 significado”. Na sua arquitectura sempre única e pessoal, reconhecemos a herança “kahniana” em determinadas características, tais como o recurso a valores universais da arquitectura na base da criação de novos espaços e arquitecturas que respondem a novos programas, o uso de 58 materiais tradicionais e o prazer artesanal do seu tratamento . Também verificamos a lógica de concordância entre o espaço e a técnica construtiva e essa influência não se traduz numa cópia, mas numa forma de utilizar esses ensinamentos, conciliando-os com as suas próprias ideias “Obviamente teve uma enorme influência e eu aceito muita dessa influência, mas a minha maneira de pensar será diferente da dele e por isso tinha que ser diferente”.59 Além do mais, Hestnes Ferreira compara os pensamentos dos arquitectos responsáveis pelo inquérito, às ideias do arquitecto Louis Kahn que defendia “que não se podiam fazer barreiras na arquitectura, que não podíamos esquecer o que é que tinha sido feito antes da arquitectura moderna, do mesmo modo eles [arquitectos responsáveis pelo inquérito] também

56

5. Monsaraz. [CV 2011]

6. Unidade Residêncial João Barbeiro. Hestnes Ferreira. Beja. [CV 2011]

KAHN, Louis. Amo os inícios in: J.A.A Condição Pós - Moderna. Lisboa. 2002. P.100 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011 DUARTE, Carlos Santos. Raul Hestnes Ferreira. In: NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P.12 59 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011 57 58

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procuravam, inspiraram-se de alguma maneira na realidade que eles conheceram”.60 Na Casa da Cultura da Juventude de Beja (CCJB) é visível a influência do IARP e do arquitecto Louis Kahn guardando no entanto a sua singularidade enquanto obra arquitectónica. Se os arquitectos alimentam alguma esperança quanto ao domínio da sua arte, o factor mais significativo é o de construir sítios, de lhes reconhecer a natureza, de lhes discernir as condições e as pertinências. Sem traçar o processo dessa pesquisa, notar a existência de tais sítios, "momentos" marcados por uma presença do espaço, é uma alegria que as obras de Raul Hestnes Ferreira me proporcionaram. A obra dos mestres, como Louis l. Kahn, reputado, ou de alguns outros, famosos ou confidenciais, testemunha a natureza poética da arquitectura e inspira essa realidade do "sítio", que, além disso, figura nas tradições. Essa realidade emerge de novo aqui. SERNEELS, Willy. Convite a uma descoberta. In: NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P.26

O projecto da CCJB surge no seguimento do 25 da Abril do século XX, quando o arquitecto Hestnes Ferreira é convidado a projectar três edifícios com o mesmo programa, em Braga, Beja e Viseu. O de Beja seria o único construído. O de Viseu terá ficado num estado mais embrionário, no entanto dos outros Hestnes Ferreira expressa: “é o mesmo programa e eu acho muito interessante confrontar os dois edifícios, não tem nada a haver um com o outro e simplesmente o programa é o mesmo, o mesmo tipo de espaços e eu acho piada por ver o mesmo arquitecto que está a gerir em dois sítios diferentes e com o mesmo programa, faz propostas completamente diferentes uma da outra”.61 Assim se pode constatar a forma sensível com que o arquitecto aborda o lugar e as suas premissas.

7. CCJBraga. Hestnes Ferreira. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002.

8. CCJBeja. Hestnes Ferreira. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002.

Essa vontade na relação com o local e as suas tradições, surge desde o inicio do projecto, “quando comecei a estudar o edifício de Beja, saltou logo esse conhecimento que eu então já começava a ter do Alentejo. O ter um carácter mais associado à Arquitectura que eu interpretava como sendo a arquitectura do Alentejo”.62 9. CCJViseu. Hestnes Ferreira. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002. 60

Idem. Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011. 62 Idem 61

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Transparecendo essa relação com a arquitectura alentejana, surgem umas abóbadas «barrete de clérigo» 63 executadas por pedreiros de Serpa , de acordo com os conhecimentos ancestrais, que estão descritas no inquérito e muito surpreenderam Hestnes Ferreira. A implantação privilegiada, num dos principais espaços urbanos envolventes do centro da cidade, foi também determinante no carácter do edifício, “isto poderia ser uma coisa interessante para este edifício, está aqui um bocado 64 centrado neste espaço, ter um ar festivo.” A norte do edifício localizar-se-ia uma área destinada a um monumento, que acabou por não ser edificado. A sul prolonga-se por um auditório ao ar livre, que está virado para 65 um palco exterior e que comunica com o interior do edifício. O edifício é constituído por um sistema modular de planta central em cruz, onde cobrindo uma série de secções quadradas, correspondem as abóbadas tradicionais. “A planta central foi muito inspiradora da arquitectura do Kahn, (…) pela centralidade do edifício, (...). A localização central que teve convidava, a própria organização interna (...). Tudo isso convidava muito a essa racionalidade e a essa modelação. (…) obviamente que eu também tive a ver livros, com o conhecimento de igrejas, igrejas ortodoxas (...). Tive a ver que as abóbadas foram muito usadas em determinados contextos, sobretudos religiosos”.66 Na zona central, ao invés de uma grande abóbada única, quatro abóbadas cobrem a zona principal do edifício. Esta área contém um átrio, o sistema de circulação e uma sala polivalente, de pé direito duplo. Nos quatro cantos deste corpo

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10. CCJB. Beja. [CV 2011]

11. CCJB. Beja. [CV 2011]

12. CCJB. Beja. [CV 2011]

Localidade Alentejana, onde persistiu um conhecimento pela técnica construtiva de abóbadas e abobadilhas, mas que se encontra ameaçado pelo desuso desta técnica nos dias de hoje. 64 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011. 65 NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P.87 66 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011.

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central, corpos também cobertos por quatro abóbadas de menor dimensão criam os outros espaços necessários ao 67 programa . Se a planta em "cruz" remete-nos para o Cardus e o Decomanus, e a utilização das abóbadas podia reforçar essa ligação, um desdobramento dos elementos construtivos dá-lhe um carácter actual que aspira a uma intemporalidade espacial e oferece uma possibilidade generosa da utilização das células. A estrutura contemporânea do edifício em betão armado concilia-se com a construção das abóbadas baseadas nas técnicas construtivas tradicionais e arcos em tijolo que aludem à tradição monumental da arquitectura romana, no entanto, o desenho dos vãos é uma invenção geométrica criada pelo arquitecto. Ou seja, concilia uma naturalidade construtiva com um desenho geométrico que percorre todos os elementos do edifício, acrescentando o "novo" à aspirada ancestralidade.68 O sistema construtivo apresenta-se como uma elaboração pormenorizada e coerente, baseado num profundo conhecimentos das várias técnicas construtivas, “Todos os

13. Planta de localização. CCJB. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002 .

14. Planta corpo central. CCJB. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002

15. Cortes. CCJB. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002

espaços, as abóbadas, tudo isso tinha que ter certa regra, de maneira, que essa modelação nasce muito disso. Por outro lado é uma coexistência entre uma estrutura de Betão armado, as abóbadas poderiam ter assentado sobre paredes, elas assentavam sobre paredes, mas simplesmente as paredes também eram formadas por uma estrutura em betão armado, em certos pontos tinham que fechar sobre essa estrutura em betão armado”.69 Sobre a inserção dos elementos tradicionais na CCJB, 67

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17. Cortes. CCJB. Raúl Hestnes Ferreira projectos 1959-2002

NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002. P.88 FERREIRA, Jorge Manuel Fernandes Figueira. A Periferia Perfeita. Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa, Anos 60Anos 80.Dicertação de Doutoramento em Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Março, 2009. P. 334-335 69 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011. 68

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o arquitecto Victor Mestre confirmou: “Acho que o que ali se impôs foi a tecnologia tradicional, muito bem executada e muito bem projectada obviamente. Aquilo não é uma escala de arquitectura tradicional e mesmo da arquitectura vernacular… Por isso é que eu acho que aquilo é uma arquitectura muito própria, muito Hestnes Ferreira”.70 Um conhecimento imenso e a assimilação dos ensinamentos do arquitecto Louis Kahn e das informações do IARP reflectem-se num domínio sobre todas as premissas do projecto. A sensibilidade ao local onde é implantado, a visão do que devia ser a forma que levasse a uma sociabilidade e que se pudesse prolongar no tempo com uma certa monumentalidade baseada numa arquitectura universal; para além do tratamento sério que é dado a toda a estrutura, englobando técnicas tradicionais e contemporâneas, resultando num edifício que na altura em que foi construído era actual. Não são simplesmente os materiais ou as técnicas construtivas recentes que fazem um edifício contemporâneo, o caso da CCJB mostra a possibilidade de ser possível a criação de construções actuais, que perduram no tempo recorrendo ao conhecimento assimilado de outras técnicas ancestrais e conciliando-as de forma autêntica. Sobre isto Hestnes Ferreira afirma: ”É uma questão que acho que nunca se vai esgotar, porque às vezes voltamos atrás e reflectimos. Continua a haver um acerto conhecimento e pessoas que defendem e que continuam a fazer de uma determinada maneira, vejo isso com a construção de tijolo, por exemplo. A certa altura é assim, uma pessoa tem que diversificar as técnicas”.71

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18. CCJB. Beja. [CV 2011]

19. CCJB. Beja. [CV 2011]

Entrevista ao arquitecto Victor Mestre por Celine Vicente. Atelier VMSA, arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011.

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5. CONCLUSÃO A casa da Cultura da Juventude de Beja concilia uma estrutura de betão armado, com abóbadas construídas de forma tradicional, arcos em tijolo que aludem à tradição monumental romana e um desenho muito próprio do arquitecto Hestnes Ferreira. Passados aproximadamente 30 anos da sua construção, podemos constatar que se mantém contextualizado e actual. Assim, é verificado nesta obra a pertinência de um vasto conhecimento das técnicas de construção tradicionais e contemporâneas permitindo a possibilidade de adequar a forma arquitectónica à construtiva de forma enriquecedora do projecto, recriando obras contemporâneas, criativas com um carácter individual sem recorrer somente à inovação, por vezes forçada, onde as soluções se tornam muito mais limitadas. É visível na zona do Alentejo a persistência de alguma cultura local, que permitiu a transferência do conhecimento das técnicas tradicionais e consequentemente o seu uso actual. Com o passar do tempo estas técnicas ainda perduram, resultado de um interesse em faze-las prevalecer e utiliza-las de forma a garantir que a perda cultural não seja concretizada. Para tal, entidades e arquitectos têm vindo a promover o seu uso, disseminando informação ou inserindo-as nas suas obras, respectivamente. Embora ainda diminuído, existe um crescente interesse por parte de gerações recentes que resulta numa reutilização visível. Neste âmbito o Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa é particularmente importante devido ao descrito detalhe das diferentes técnicas, permitindo constatar historicamente a arquitectura vernacular e a forma autêntica do diálogo entre as suas construções e o Lugar. Ou seja, permitiu uma ideia de continuidade na arquitectura portuguesa, tornando-se de extrema importância para a fixação destas formas e sistemas em várias gerações de arquitectos. A sua reminiscência inicia-se com os intervenientes directos, como o arquitecto Keil do Amaral, até aos arquitectos que beneficiaram da sua informação. O arquitecto Bartolomeu da Costa Cabral que projectou a Casa de Taipa e procurou esta articulação resultando numa forma assumidamente de carácter contemporâneo. Outros exemplos e arquitectos foram inspirados pelo Inquérito, como Raúl Hestnes Ferreira, que consagrado pela experiência internacional e a sua ligação particular a Louis Kahn estimularam a sua vontade de concretizar projectos em sintonia com a articulação pretendida. Da vontade de Raúl Hestnes Ferreira e apesar da distância temporal entre os dias de hoje, o trabalho do arquitecto na Casa da Cultura da Juventude de Beja, nomeadamente o modo como se apropria das técnicas tradicionais e as contemporiza é tema recorrente no século XXI. Citando o arquitecto Nuno Malato, sobre a Casa da Cultura da Juventude de Beja: “reconheço-lhe o mérito duma pesquisa com raízes locais, também em elementos simbólicos, numa concepção espacial assumidamente moderna, coerente e surpreendentemente livre como a arquitectura vernacular e a Natureza”72

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Entrevista ao arquitecto Nuno Malato por Celine Vicente. Por via de correio electrónico. Agosto 2011

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6. BIBLIOGRAFIA Livros: AAP, 'Arquitectura Popular em Portugal'. 3.ª Edição. Lisboa. 1988 FATHY, Hassan. ARQUITECTURA PARA OS POBRES. Uma experiência no Egipto rural.1ª Edição. Lisboa. ARGUMENTUM. 2009 INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL; Centro Regional de Artes Tradicionais (coord.) As idades da construção: técnicas de construção tradicional e sua aplicação à arquitectura contemporânea. Lisboa: IEFP, 2010 CCDRAlg; Materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional: Contributo para o estudo da arquitectura vernácula da região oriental da serra do Caldeirão, CCDRAlg e edições afrontamento, 2010 NEVES, José Manuel; Raúl Hestnes Ferreira – Projectos 1959-2002; edições ASA; 2002 CORREIA, Mariana. Taipa no Alentejo. 1ª Edição. Lisboa. ARGUMENTUM. 2007 FERNANDES, Maria; CORREIA, Mariana (Coord.Cient.). Arquitectura de Terra em Portugal / Earth Architecture in Portugal. 1ª Edição. Lisboa. Editora ARGUMENTUM. 2005 RIBEIRO, Orlando – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (7’ edição). Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1998 RIBEIRO, Orlando. Geografia e Civilização. 3ª Edição. Lisboa. Livros Horizonte. 1992 Biblioteca de Instrução Profissional. Alvenaria, cantaria e betão. Livraria BERTRAND. Lisboa. Artigos: FERREIRA, Raúl Hestnes; conhecer o tijolo para construir a arquitectura; seminário sobre paredes de alvenaria, P.B. Lourenço & h. Sousa (eds.), porto, 2002 MESTRE, Victor; ALEIXO, Sofia; A arquitectura Popular Alentejana: “A Civilização do Barro”; Arquitectura e construção, nº14, Jun 2001, pp. 80-86. Disponível virtualmente em: http://www.vmsa-arquitectos.com MESTRE, Victor; ALEIXO, Sofia; O Monte Alentejano, uma identidade de raízes ancestrais – Contributos para o seu conhecimento e permanência; Olhar o monte Alentejano a pretexto de Alqueva, Colecçao museu da Luz, Nº 3, Maio 2007, pp. 85-101. Disponível virtualmente em: http://www.vmsa-arquitectos.com LEAL, João; Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre Arquitectura Popular no século XX Português; Conferencia Arquitecto Marques da Silva 2008; Fundação Instituto Arquitecto José Marques da Silva; 1ª edição 2009 CORREIA, Mariana; MERTEN, Jacob. A taipa alentejana: sistemas tradicionais de protecção. 2003. CICRA, ESG. Revistas: AA.VV. A condição Pós-Moderna. Jornal de Arquitectos. Lisboa. Nº 208 (Nov.-Dez. 2002)

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AA. VV. Antologia 1981 – 2004. Jornal de Arquitectos. Lisboa. 2004. Arquitectura e Vida.Nº94. Jun, 2008 Dissertações: SOBRAL, Luís Pedro Pires; Arquitectura com algum pedigree – O vernacular na arquitectura contemporânea; Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura; Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra; Departamento de Arquitectura; Agosto de 2009 FERREIRA, Jorge Manuel Fernandes Figueira. A Periferia Perfeita. Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa, Anos 60-Anos 80.Dicertação de Doutoramento em Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Março, 2009.

Entrevistas: Entrevista ao arquitecto Victor Mestre por Celine Vicente. Atelier VMSA, arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011 Entrevista ao arquitecto Raúl Hestnes Ferreira por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Lisboa. Agosto 2011. Entrevista ao arquitecto Nuno Malato por Celine Vicente. Por via de correio electrónico. Agosto 2011 Artesão/Construtores/Proprietários: Mestre Caleiro Festas. No seu local de trabalho. Barro Branco, Borba. Junho de 2010. Sr. Luís Fernando Ramalho Dias, proprietário de dois fornos de produção artesanal de elementos cerâmicos. No seu local de trabalho. São Pedro do Corval. Junho de 2010. Mestre Abobadeiro José Mendes Massano. Na sua habitação. Reguengos de Monsaraz. Junho de 2010

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7. ANEXOS 7.1. ENTREVISTA AO ARQUITECTO VICTOR MESTRE por Celine Vicente. Atelier VMSA, arquitectos Lda. Lisboa. Junho 2011 1. O seu vasto trabalho de investigação mostra um interesse particular na área das técnicas tradicionais, de onde surgiu esse interesse? Isso é sempre difícil descobrir o princípio das coisas, mas tem muito a ver com o facto, ainda como estudante de arquitectura, me ter interessado pelas teorias tradicionais, com uma especial atenção a algumas pessoas que influenciaram muito a minha vida profissional: dois portugueses e uma estrangeira. O arquitecto Fernando Távora, com o qual eu vim a fazer o mestrado e, a seguir, o doutoramento. O arquitecto Nuno Teotónio Pereira com quem tive a felicidade de trabalhar, tive com ele momentos muito importantes e que influenciaram determinados aspectos das minhas opções. E enquanto estudante de arquitectura, o Hassan Fathy foi a grande descoberta, por uma razão muito forte, que se prende com, para além da própria arquitectura em si, o que está por de trás daquela atitude, da arquitectura, aquela escolha e que me interessa porque me interessa profundamente a antropologia. Eu sou arquitecto de formação, mas sempre associei a arquitectura à antropologia. Mesmo quando parti para os levantamentos de arquitecturas populares, antes de ir para os açores, que foi digamos o grande início de tudo isto, já no Alentejo – porque parte da minha família é Alentejana – me interessei pelas técnicas tradicionais alentejanas e estudei em particular a taipa. Quando acabei o curso fiz um grande esforço para aprender a ser pedreiro, antes de ir começar a exercer, e fui ver como é que se fazia. Vivi um ano no Alentejo e nesse em que vivi no Alentejo aprendi a Taipa, os rudimentos do adobe, o barro e a pedra. Depois tive a felicidade de participar no primeiro e único curso de mestre de construtores em Noudar em 1984, com o Cláudio Torres, uma pessoa que eu conheci nos anos 80, logo no princípio que Mértola estava a começar e como eu estava no lugar Castro Verde no gabinete técnico local, dava assistência desde Odemira a Mértola, Barrancos e portanto vivi intensamente esse período, um bocadinho também naquelas euforias de revolução, aquelas ideias muito generosas e pouco consequentes, mas muito genuínas pelo menos. E nessa altura interessei-me muito pelos levantamentos, em particular pelos engenhos. Depois há uma quarta pessoa fundamental que é o antropólogo Benjamim Pereira, com quem vim a conviver e ainda hoje convivo, que atendeu sempre muito bem às minhas preocupações e eu sempre fui assíduo às coisas que ele escreveu e transmitiu oralmente e inclusivamente temos um trabalho em comum neste momento que é o Museu sem espaço físico, o Museu dos Cotos de Alcobaça, constituído por várias pessoas, mais outra antropóloga que é a Doutora Maria Olímpia Campanholo e o Doutor Alberto Carreiro,

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enfim...E esse museu é um pouco o coroário disto tudo, porque é um trabalho de grande generosidade de todos nós, que vamos ter com as pessoas que são proprietárias de fornos, de moinhos, de azenhas, de arquitectura popular interessante e propomos oferecer um projecto, encontrar formas de financiamento, acompanhar a obra, desenvolver o projecto e depois as pessoas têm a simpatia de abrir ao público permanentemente os seus objectos. Mas com a descoberta de Hassan Fathy principalmente, percebi que a Arquitectura popular era talvez a arquitectura que procurasse, de uma forma mais eficaz, mais próxima das pessoas que realmente com grandes necessidades encontraram ali um ponto em que os arquitectos poderiam ser os continuadores naturais dos artesãos, uma vez que o artesanato estava a colapsar e em muitos casos já tinha colapsado. Mas nos anos 80 finais dos anos 70, claro que ainda havia muitos mestres abobadeiros e até mestres taipeiros, embora não exercessem praticamente já nada, mas eram pessoas que tinham 50, 60 anos e portanto plenas na sua sabedoria e nas suas capacidades físicas e que se transformaram, ou a maior parte deles, em pedreiros banais e correntes, porque as técnicas tradicionais foram sendo abandonadas. Em 1985, depois de vir dos Açores, (que foi uma experiência que posso dizer que foi também muito interessante). Também vivi um ano na Madeira, para fazer o levantamento da Arquitectura Popular da Madeira. Ainda fiz com o arquitecto Filipe Dorge o levantamento das chaminés do Algarve, que foi um concurso que ganhámos, e a pretexto de desenhar as chaminés desenhávamos as casas, eu subia aos telhados, desenhava as chaminés, desenhava as casas e praticamente do Barlavento ao Sotavento desenhámos a arquitectura popular do Algarve e ele é um grande fotógrafo, fez brilhantes fotografias. Na Madeira já vinha com a experiência dos Açores e foi um trabalho que teve a particularidade de poder fazer uma coisa que eu sempre achei que só assim se fazem levantamentos, que é viver no sítio. O mundo rural era um mundo muito intenso, só se compreende a arquitectura através de actividades e eu tinha que participar nas actividades para conseguir interpretar a arquitectura. E daí quando eu lhe digo a minha vertente mais antropóloga do que arquitectónica, de vez em quando perde-se muito com isso, eu não posso estudar engenhos sem compreender como eles funcionam. A arquitectura popular, o interesse, a paixão que se tem por isso, é uma coisa que muitas vezes nos divide, porque sendo nós de formação erudita e tendencialmente numa perspectiva muito académica, a academia esteve quase sempre de costas voltadas para essas áreas, mesmo havendo o Inquérito à Arquitectura Popular. E eu julgo que nunca se fez uma verdadeira abordagem ao Inquérito, na sua verdadeira potencialidade. Houve ali um momento importante político de dizer ao Salazar que não havia uma “Casa Portuguesa”, haviam muitas tipologias, muita diversidade. E houve muitos arquitectos que tiraram proveito desse conhecimento e o introduziram numa vertente contemporânea da altura, numa alternativa ao modernismo, numa revisitação, digamos, ao regionalismo português, mas numa perspectiva erudita, evoluída, elegante e séria, com arquitectos como o Távora, o Keil do Amaral e muitos outros até mais anónimos e que até não deixaram de fazer peças notáveis de arquitectura. Eu acho que esse trabalho está por fazer. Eu quando andei agora no inquérito da arquitectura contemporânea, calhou-me o Alentejo e o Algarve – com

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outros colegas naturalmente – e foi um trabalho muito interessante porque me permitiu ver a arquitectura contemporânea de 1 de Janeiro de 1900 a 31 de Dezembro de 2000, 100 anos de arquitectura contemporânea, mas também com os olhos de quem há 30 anos faz levantamentos e investigação á arquitectura popular, e é curioso, porque, e esse é também um trabalho que está por fazer e um texto que está por escrever: onde é que estão esses pontos de contacto dessa arquitectura anónima, de arquitectos anónimos e de não arquitectos que fazem arquitectura? E que me parece muitíssimo interessante mostrando que há uma transparência muito grande das arquitecturas e na sua área do património, essa então cada vez parece mais evidente na necessidade do domínio das técnicas, das tecnologias, dos materiais e sobretudo do conhecimento histórico das décadas que atravessam o séc. XX e que não sendo a década de 70 ou a década de 40, porque elas misturam-se também, mas há momentos em que se percebem que há aí actos históricos em que nada se passa ou estão muito imperceptíveis ou apagados e há momentos cruciais e determinantes para se perceber que alguém num determinado período antes do Inquérito e depois do Inquérito consolidou uma série de ideias. E também não nos podemos esquecer que o Inquérito para nós arquitectos tem uma visão muito egoísta, muito própria, muito corporativista, mas antes do Inquérito houve vários Inquéritos, feitos por antropólogos, arqueólogos, historiadores, etnólogos… E que tinham também uma visão do que era arquitectura popular e as suas componentes. E penso que o Inquérito bebeu muito disso, do Orlando Ribeiro, do Ernesto Vega de Oliveira, do Fernando Galhano, enfim. Essa gente toda era muito importante e muito sábia, mas a arquitectura vista pelos arquitectos tem uma outra visão, tem uma visão também muito importante e muito interessante, que é a visão do surgimento, ou da constituição, ou da formação das tipologias e que é particularmente grato aos arquitectos, é o entendimento do espaço, da articulação dos espaços e não apenas o aspecto formal ou aspectos mais exteriores que a arquitectura transmite. 2. O livro da Arquitectura Popular em Portugal foi influente no seu percurso? Considera, pertinente a sua consulta actualmente? O livro da Arquitectura Popular é para todos uma bíblia, com o perigo de ser uma “bíblia”. A bíblia lêse todos os dias, vai-se lendo versículo a versículo. O livro da Arquitectura Popular em Portugal quanto mais o tempo passa mais o admiro e mais capacidade de critica tenho de o avaliar, como todos os documentos que passam a ter um desempenho histórico. Porque passaram décadas sobre eles e experiências, e também quando conseguimos pegar nessa época e nos conceitos dessa época transversais à Europa e a outros Países – que também se preocuparam com as suas arquitecturas populares, tradicionais – percebemos que o inquérito é pioneiro, foi muito importante, por exemplo para os Espanhóis. Eu acho que tem importância. A influência é que a história retira a influência do momento, quando se está a quente. A geração que o fez, foi uma geração a quente, que tinha os motivos políticos, éticos e profissionais de combate e o inquérito pode ter sido um instrumento de combate. Numa geração como a minha, que é uma geração de transição – e, ainda por cima, aprendi a ser arquitecto com essa geração, com

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o Chorão Ramalho, com o Nuno Teotónio Pereira, com o Rafael Botelho e conheci praticamente todos os outros com quem tive o privilégio de conviver – é evidente que sou uma geração de transição, uma geração que apanha tudo isto pelo entusiasmo, pelo acreditar genuíno desses arquitectos. Nesse livro e à medida que o tempo me vai tornando mais velho e com outras experiências também me permite ter um outro distanciamento das coisas e olhar para o documento como um documento histórico e não como um documento de bíblia e de bitola e cânone a seguir e a usar. Até porque tem que haver um tempo critico de afastamento sobre essas coisas para que ganhem a sua verdadeira importância, porque há a importância imediata e a importância histórica da continuidade. Ele tem um lugar na história incontornável, é um livro incontornável aqui e em qualquer lado do mundo. Eu tenho muitos livros de arquitectura popular como este, do mundo inteiro e todos feitos depois deste. Para mim a importância que teve é afectiva. Uma importância afectiva de olhar um País, que ao longo do tempo me fui desvinculando, porque é um livro tão belo, que é traiçoeiramente belo. Uma má leitura desse livro é perigosa, porque este livro relata duas coisas: um país belo e um país miserável. E a miséria não pode ser bela. E eu conheço muito bem a realidade antes do 25 de Abril, tinha 17 anos quando veio o 25 de Abril e posso dizer que conheci o país até ao 25 de Abril, e conheci todas a intensidade e as barbaridades que se fizeram no Pós 25 da Abril no sentido da democratização apressada, e que se calhar não se conseguia fazer de outra maneira, mas foi muito apressada e prolongou-se demasiado tempo na década de 70 e de 80, porque permitiu a continuidade de erros primários que não se deviam ter continuado a fazer, deviam ter morrido ali, nos primeiros anos da revolução. No entanto ninguém resistiu a fazer os mesmos disparates e a destruir coisas extraordinárias da arquitectura vernacular, tradicional, erudita, a nossa relação com a paisagem, a nossa relação com as aldeias e com as vilas, mas sobretudo destruiu-se o território, que já vinha sendo destruído desde os anos 60. Eu penso que há uma leitura complementar a fazer ao Inquérito, que é todos os artigos que saíram na revista Arquitectura, durante os anos 60, onde algumas das pessoas que escrevem são autoras do livro do Inquérito, outras trabalham nas obras públicas, e que foram muito lúcidas no alertar dos problemas que o país estava a ter com a emigração primeiro interna e depois para fora do país, e com a construção dos subúrbios e abandono dos campos. Isso é que é a destruição da arquitectura popular. Porque é a destruição não de uma estrutura construída mas de uma estrutura humana. E a esta distância todos nós somos capazes de falar assim mas na altura, talvez os geógrafos e os sociólogos tivessem uma visão mais acertada sobre o que estava a acontecer, nós tivemos uma visão, acho eu, bastante tardia sobre o que estava a acontecer, tirando essas excepções de que acabei de falar, que eram pessoas muito lúcidas e que amavam profundamente o seu país e perceberam, anteciparam, o que ia acontecer. Isto serve para dizer que o livro é sobretudo um momento profundo na reflexão teórica do panorama nacional que era muito pobre. Que conseguiu pela primeira vez levantar problemas de ordem social que estavam a ocorrer, e que vieram a dar naquilo que já referi, todas as “Brandoas”, os subúrbio… uns piores que outros, mas que eram emergentes na altura. E que depois foi a imigração em massa para fora do país. Portanto, o Inquérito para mim, neste momento e à distância que tem hoje em dia, 50 anos, tem muito a ver com o panorama social que era proibido falar nessa

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época, e o Inquérito teve esse mérito. É a partir do Inquérito que há a capacidade reflectiva sobre o território português, onde está a arquitectura popular. Se eu tivesse que caracterizar esses arquitectos [intervenientes do IARP], caracterizava-os provavelmente como a corrente mais humanista, mais forte que existia no País. Que tiveram provavelmente o seu primeiro grande confronto da vida ao penetrar no interior do País e verem como é que os seus concidadãos viviam. Que era um País rural e Cidades onde o campo tocava a urbanidade. 3. O arquitecto Victor Mestre reflecte nos seus projectos uma preocupação muito grande com as preexistências e o Lugar. Projectos em que utiliza materiais e técnicas tradicionais… Tenho uma coisa em Goa, outra no Senegal e outra em Timor, mas também tenho cá com esses princípios. Há uma série de projectos que eu tenho e desde sempre que eu acho que as arquitecturas quando surgem em determinados lugares não podem esquecer esses Lugares. Não estão ausentes, não pode ser em posição do ícone que é uma coisa que eu sou muito crítico hoje em dia, que é a capa da revista, o arquitecto x. Durante muitos anos nós comentámos que os imigrantes destruíram a nossa paisagem, mas eu hoje sinto-me muito preocupado é com a arquitectura moderna nessas aldeias. As aldeias hoje em dia reflectem muito a prepotência dos arquitectos, acho que os arquitectos se estão a tornar insuportáveis. Estão a ocupar um espaço que nunca foi o deles. A arquitectura sempre teve uma condição social e uma condição humanista. Sempre procurou de uma forma muito democrática e de uma forma muito generosa com o sítio ou com as actividades que se propõem a fazer, ou a integrar, um equilíbrio muito grande. Hoje em dia não há nenhum arquitecto seja ele jovem, menos jovem ou da minha geração – que tem sido até a mais devastadora – que não queira construir em qualquer sítio uma capa de revista. Porque acha que o tem que fazer pelo contraste, para se perceber bem que é arquitectura contemporânea e que não está a imitar nada. E então levam-se determinados conceitos a extremos que matam o conceito essencial e naturalmente definem o projecto e, consequentemente, acho que o que está a acontecer nessas arquitecturas, para além do grande desastre delas próprias, porque daqui a um, dois, 10 anos estarão gastas e completamente descontextualizadas no olhar de toda a gente, mesmo no dos que admiraram, por outro lado criaram modelos repetitivos e cada vez menores, cada vez de menor qualidade, as pessoas imitam aquele modelo, fazem as janelas daquela maneira, põem o material X, etc. É moderno. Durante anos a fio o Siza foi copiado até á exaustão. Não é o problema do sentido da arquitectura do Siza, porque nenhum de nós é imune ao Siza, nem eu sou. O problema é a cópia directa. O problema é não sermos capaz, de uma forma inteligente, retirar o que é a essência que está ali e não a forma. O que é importante é o acto de inteligência que está por trás daquela arquitectura, que tem determinados objectivos e experiencias. Tenho um programa para resolver, a arquitectura é para mim um acto de inteligência… Ou seja, estou

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ali para resolver um conjunto de problemas, ou um conjunto de necessidades, que têm um determinado contexto cultural, geográfico, físico, material... cada vez mais sentimos que essas questões – que estão muito na moda e que também são muito traiçoeiras – que é a questão do carbono zero, a questão da ecologia – toda a gente agora só não sabe de património como toda a gente agora sabe de ecologia. Todos os bons arquitectos deste país – e é uma crítica – todos, do Souto de Moura ao Carrilho da Graça, a todos, todos são grandes experientes de arquitectura tradicional e todos sabem imenso de património, que é uma curiosidade. O mercado agora é tão condicionado, portanto, o melhor é aquilo que sempre desprezámos. É melhor ter cuidado, porque é a única coisa que existe neste momento. Acho que isso é de um cinismo absolutamente desnecessário e que não me parece que seja um caminho correcto. Como qualquer outra pessoa são arquitectos e como qualquer outra pessoa têm o direito e têm conhecimentos para mexer em tudo o que é património e em tudo o que é arquitectura popular, a forma como se propõem hoje em dia, como transmitem é que me incomoda, que é de uma falta de modéstia que é preocupante. Há um contexto cultural, há um contexto social, há uma antropologia do sítio... Que me interessa saber e tenho que a perceber e, para a perceber, tenho que conhecer toda aquela realidade, mesmo que ela esteja completamente estilhaçada, que é o que acontece na maior parte das vezes onde eu vou, já toda aquela ilusão de que houve uma arquitectura popular, que há uma arquitectura popular, que há uma tradição... Não há. Ela está desfeita, está adormecida, ou desapareceu mesmo e, muitas vezes, é preciso ir mesmo apanhar todos os fragmentos que possa ali encontrar, que há vinte, trinta, quarenta anos, era lixo e hoje é o que resta e que nos confunde muitas vezes. Por isso é que é preciso ter muita humildade nessas coisas, que às vezes estamos a olhar para uma coisa e ela não é aquilo que nós estamos a ver... porque tudo o que lhe estava subjacente desapareceu e desmontou o contexto, e sobrou aquilo. E nós olhamos aquilo como uma forma, como um objecto, e não como um contexto social. A arquitectura tem muito a ver com o contexto social, tem muito a ver com essas premissas. Eu tenho feito alguns projectos ultimamente que têm procurado incorporar algum desse saber. Nomeadamente em Moura, irei fazer uma intervenção que consiste na recuperação da taipa com cortiça integrada, para conseguir ultrapassar as dificuldades da nova regulamentação, porque toda a gente pensa que a taipa por ter 50 ou 60 cm cumpre a regulamentação, mas não cumpre. Pelo menos a que está agora em vigor, e com a ajuda da universidade de Coimbra chegámos a valores muito satisfatórios da incorporação de cortiça na taipa e se correr bem há-de ir um dia destes para construção. 4. Essa é outra parte do seu trabalho. Faz também muito desse trabalho de investigação no sentido de melhorar os materiais tradicionais para os integrar no tempo actual. Sim um bocadinho. Eu apresentei, até aqui na Universidade Nova, uma ideia que tenho para um protótipo que gostaria de ver experimentado em Moçambique, ou noutro território Africano. Mas pensei em Moçambique porque há ainda a tradição de construir em terra, porque há mão-de-obra que constrói em terra... fiz o protótipo, fiz o desenho do protótipo, estudei, apresentei... Estavam praticamente todos os

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representantes dos PALOPs, enfim. Há aqui uma dificuldade que é preciso superar e não se consegue, os locais acham que nós estamos a dizer que eles têm que continuar a ser pobres, acham que é um acto de cinismo, espero que não seja um acto de neocolonialismo ainda... Mas agora à uma componente de evolução científica, portanto não se trata de mandá-los viver em situações desumanas. Na maior parte dos sites internacionais das universidades e das ONGs que se propõem a fazer graciosamente experiências, nesses países, todos eles recorrem a tecnologias e materiais locais e fazem-no de uma forma muito séria, com pesquisa. Interessa-me profundamente fazer trabalhos com os materiais revisitados, com as tecnologias revisitadas, no sentido da sua actualização, de forma a darem credibilidade numa aplicação contemporânea. Interessa-me todas as memórias, todas as tradições como potenciais upgrades para a contemporaneidade se forem válidas, se não forem estão descontinuadas, não têm continuidade possível, não vale a pena insistir em coisas que são apenas uma nostalgia. Há muita gente a fazer trabalho sério, muito mais do que nós pensamos. Porque nós vivemos numa sociedade de tal maneira mediatizada que só existem meia dúzia de nomes, só existem meia dúzia de ícones... 5. Em Portugal, onde se praticam ainda estas técnicas construtivas? Eu acho que se faz por todo o lado um bocadinho, há mais visibilidade no Alentejo. No Alentejo há muitos bons arquitectos, numa geração um bocadinho mais velha que a minha, portanto terão mais cinco anos do que eu, entre os cinquenta e os sessenta anos, que durante muitos anos fizeram o seu caminho silencioso no Alentejo, principalmente na zona de Odemira e são quatro ou cinco, o Henrique Schreck e a arquitecta Graça Jalles por exemplo... E no Algarve outros dois arquitectos, para além do arquitecto Alegria. Esses arquitectos têm uma tecnologia, têm esses mestres, pessoas com esses conhecimentos. Eles foram realmente pioneiros nisto, essa gente quando resolveu abandonar Lisboa e ir para Odemira ou para a zona de Vila Nova de Mil fontes, por aí... Saíram de Lisboa e continuaram a ser arquitectos nessa vertente. Estudavam-na e procuraram viabilizá-la e passaram, com certeza, as passas do Algarve para credibilizar essa arquitectura. Muitas vezes ela só foi credibilizada por estrangeiros e só depois dos estrangeiros, os portugueses ganharam confiança nessas tecnologias, nessa arquitectura séria. Pode não ser uma arquitectura com uma expressão moderna extraordinária, mas é arquitectura! E é a arquitectura deles, merece o maior respeito. Numa experiência muito recente há aquela moradia do arquitecto Costa Cabral, um homem da idade do Nuno Teotónio Pereira, um bocadinho mais novo, e que num gesto de arquitectura moderna integrou a taipa e tem ali um exemplo de arquitectura muito interessante. Ou numa vertente muito tradicionalista e muito ligada à cultura islâmica o arquitecto José Alegria, no Algarve. Ele divide-se entre Marrocos e Portugal. Tem uma equipa Portuguesa e uma equipa marroquina, e através da

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equipa marroquina reintroduziu em Portugal muitas das técnicas que se tinham perdido. Pode-se gostar ou não da Arquitectura que é muito colada a uma imagem da uma arquitectura islamiza, marroquina, mas é uma coisa muito séria, porque tecnologicamente é muito bem executada. É irrepreensível. Há um domínio das técnicas, dos materiais, há um saber e é a sua arquitectura. Neste momento, estou a fazer um hotel em Arquitectura de Terra, que consiste na recuperação de um monte muito grande, e estou a ampliá-lo e a fazer uma espécie de continuidade histórica de uma aldeia, mas numa vertente contemporânea, usando todos os materiais tradicionais. Existem as pessoas que projectam, existem as pessoas que constroem, existem os materiais, portanto existe o saber. Tem que existir é o cliente. Tem que existir o cliente que é para mudar o paradigma. A classe média Portuguesa que nunca viveu na ruralidade, que nunca soube o que era tradição, que sempre viveu ou dentro das cidades ou no subúrbio da cidade, vive o mito da casa rústica. O problema é que isso é reflexo de uma classe média inculta. 6. Quais as técnicas tradicionais mais utilizadas actualmente? Sente muita dificuldade na implementação destes materiais e tecnologias tradicionais? As que se destacam mais hoje em dia e mais facilmente é o BTC, que é já uma evolução do tijolo seco ao sol, o adobe. O BTC já está a ganhar terreno porque tem a componente ecológica, tem uma componente do próprio solo local, com adição ou não de cal, com adição ou não de palha ou outros aditivos como pigmentos, por exemplo, e tem naturalmente essa possibilidade de continuar a ser manuseado com alguma facilidade, como um tijolo corrente. De todas as técnicas a que evoluiu melhor para um sentido mais prático é o BTC. O centro da terra no Alentejo tem feito muitos workshops, eu já participei em alguns. Que desponta para os interessados ter ali uma aprendizagem. É sempre um problema de continuidade, o exemplo maior é a escola de Serpa. Onde se aprendia a fazer abóbadas, taipa, adobe, e que foi extinta. E foi uma experiência única, com pessoas de uma grande competência, alguns deles saíram para fora do país, como o arquitecto Miguel Rocha que era o grande timoneiro dessa experiência e que os espanhóis o vieram buscar, obviamente. O problema dessas coisas é que nunca ganham credibilidade junto dos políticos e depois têm também como adversários os materiais correntes industriais, que ainda por cima têm essa dificuldade de se imporem economicamente. É muito difícil, tudo isto tinha que passar por algo mais forte, mais intenso com um objectivo político. Se houvesse uma dimensão política nesses projectos, mesmo que fossem pilotos, em que envolvessem instituições com credibilidade: fundações, câmaras, um organismo do governo, como exemplo o centro profissional aqui de Lisboa que também tinha cursos desses ali em Stª Apolónia, que durante anos procurou formar pessoas nessas áreas. O problema é que nós não funcionamos em rede, nós funcionamos em capela.

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Portugal é um país de capelas. As pessoas não partilham as suas experiências e desconfiam de toda a gente e os organismos não estão para se envolver nessas guerras. Falta-nos algumas coisas que são naturais da nossa condição própria, psicológica portuguesa e depois falta-nos algo agregador, falta-nos um motivo agregador. Faltava-nos aqui um elemento, uma escola que pegasse nesse tema. Pensou-se muito tempo que a Universidade de Évora poderia ter essa componente, porque teve um mestrado de Património, mas não pegou. Pensou-se que essa escola profissional de Serpa poderia ser uma espécie de experiência "piloto" que depois progrediria para uma formação mais politécnica se quiséssemos, infelizmente… Quem teve à frente disso de certa maneira até foi a DGEM (direcção geral dos edifícios municipais), ajudou a fundar esse programa, mas foi extinta. Portanto as coisas estão sempre permanentemente a começar do zero. E isso é muito desgastante. 7. Qual a sua opinião sobre a inserção de elementos da arquitectura popular descritos no Arquitectura Popular em Portugal, num edifício com uma estrutura contemporânea, como é o caso do edifício da Casa da Cultura da Juventude de Beja, do arquitecto Hestnes Ferreira? O Hestnes Ferreira é um grande arquitecto, um grande erudito. Um arquitecto que tem uma formação sólida e que tem uma dimensão da arquitectura de um tempo antigo. Não só a realidade de ter estudado com o arquitecto Louis Kahn, que lhe deu essa visão, essa proporção e escala, aquela dimensão da arquitectura, que é um domínio muito especial e que ele ali naturalmente procurou através das técnicas tradicionais mais do que da expressão, porque a técnica é de tal maneira determinante que ganhou a expressão. Acho que o que ali se impôs foi a tecnologia tradicional, muito bem executada e muito bem projectada obviamente. Aquilo não é uma escala de arquitectura tradicional e mesmo da arquitectura vernacular, ou seja urbana… Por isso é que eu acho que aquilo é uma arquitectura muito própria, muito Hestnes Ferreira. Não o vejo como uma colagem à arquitectura popular, mas sim como uma capacidade de utilizar as tecnologias tradicionais.

7.2. ENTREVISTA AO ARQUITECTO NUNO MALATO por Celine Vicente. Por via de correio electrónico. Agosto 2011 1. O que fez o arquitecto ao nível de arquitectura tradicional no Alentejo? Iniciei um contacto mais próximo com esta arquitectura no desenvolvimento do Plano de Reabilitação da Zona Antiga de Castelo de Vide elaborado ao longo de dois anos e meio e coordenado por mim, onde, implícito à pesquisa dos sistemas construtivos tradicionais, apreendi o sentido das respectivas tipologias arquitectónicas e morfologias urbanas, evolutivas, como resposta a uma consistente ideia de habitar em estreita relação com a natureza / o lugar. A expressão de uma identidade sociocultural particular sedimentada ao longo de séculos duma era predominantemente artesanal.

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Dentro deste contexto também desenvolvemos pequenos projectos particulares e outras acções de (inter) sensibilização com a população e construtores locais. Participei em diversos projectos e reabilitações arquitectónicas com mestres e sistemas construtivos locais, como autor, co-autor e por vezes operário, onde se destacam neste âmbito: Pombal – casa / quinta rural onde vivi com a família cerca de oito anos; Rua do Lavador – antiga rua de saída da vila de Castelo de Vide para a serra composta por sete casas em banda; O castelo de Castelo de Vide – com os arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Alberto Cruz, integrados numa meritória equipa pluridisciplinar. 2. Em que zonas interveio? Dentro do Alentejo, apenas na região do Alto Alentejo. 3. Qual o interesse do livro “Arquitectura Popular em Portugal” nos dias de hoje? Considero-o um documento essencial à compreensão da vida humana portuguesa e consequente Arquitectura em harmonia com as diversas zonas geográficas de Portugal e respectiva construção de consistentes identidades próprias. Uma síntese referencial ao desenvolvimento do conhecimento (não romântico!) destas várias identidades, fundamental a qualquer intervenção arquitectónica moderna, num quadro presente de vida socioeconómica diferente – onde o alcatrão com os veículos rápidos e os diversos frutos da tecnologia que tanto nos aproximam e facilitam, também tanto nos podem afastar e dificultar. Uma lição de autenticidade, de humildade mas não subjugação, de engenho, que considero primordial à Vida e portanto à Arquitectura (intemporal). 4. Este livro teve alguma influência no seu percurso ou na sua forma de ver a arquitectura? Pelo exposto anteriormente, é óbvio. Mas não substitui o contacto directo com o universo que ele abarca – lugares geográficos, pessoas, construções. 5. Nos trabalhos que fez onde utilizou técnicas tradicionais, recorreu a mão-de-obra de artesãos, antigos mestres ou a estudiosos especializados? Sim. Procurei sempre cruzar o conhecimento tradicional e moderno, prático e teórico, desses vários especialistas, como solução para as questões levantadas no confronto com as técnicas construtivas tradicionais, não tão normalizáveis como as modernas.

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6. O que pensa da arquitectura que se pratica hoje, arquitectura contemporânea? No saco da arquitectura contemporânea cabe um pouco de tudo… mas em geral penso que está algo sufocada em si própria, num exercício (quantas vezes de virtuosa concepção intelectual) de mera construção duma imagem, dum estatuto, da afirmação gratuita do autor como fim e não do viver aberto ás pessoas (colectivo e individual) na sua naturalidade e consequente identidade. Penso que esta arquitectura reflecte os “valores” vigentes dum consumo “sem sumo” em que o próprio arquitecto se afastou da prática do viver, concebendo em grande maioria espaços esterilizados onde não cabe um “traque”… Considero no entanto que a contemporaneidade desenvolveu condições para a concepção e construção de valiosos edifícios com uma maior consciência crítica da Vida e do Homem, bem praticados por uma minoria significativa de arquitectos. 7. Faz sentido o cruzamento entre as técnicas tradicionais e contemporâneas, de forma autêntica? Claro que sim. Mas essa autenticidade implica o conhecimento do sentido maior (técnico e vivencial) associado aos diversos processos tradicionais em causa, para que a intervenção não seja construtivamente agressiva e o diálogo não resulte de surdos ou gratuito, nem transforme os elementos preexistentes em “bibelot”. 8. A sua opinião sobre a arquitectura do arquitecto Hestnes Ferreira, em particular a Casa da Cultura de Beja? Não conhecendo de forma devidamente aprofundada o seu trabalho, nem conhecendo o edifício em causa para além duma fotografia, não me sinto capaz de uma opinião satisfatoriamente consolidada. No entanto reconheço-lhe o mérito duma pesquisa com raízes locais, também em elementos simbólicos, numa concepção espacial assumidamente moderna, coerente e surpreendentemente livre como a arquitectura vernacular e a Natureza.

7.3. ENTREVISTA AO ARQUITECTO HESTNES FERREIRA por Celine Vicente. Atelier Hestnes Ferreira. Agosto 2011 1. O que representou para si estudar/trabalhar com o arquitecto Louis Kahn? É um bocadinho difícil assim de um momento para o outro, era muita coisa. Nós temos que situar-nos naquela época, uma época em que a arquitectura moderna estava um bocado em crise, e que as pessoas

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que se preocupavam com isso, queriam reflectir sobre essa crise e ver como é que se encarava a arquitectura num âmbito muito geral, tendo em conta de facto a ultrapassagem daquele período, do modernismo, digamos assim, ou da arquitectura moderna melhor dizendo e portanto, o Luis Kahn na altura foi um arquitecto que de alguma forma tentou reestruturar a visão da arquitectura, quer dizer, passado um período em que sobretudo se inovou muito do ponto de vista da arquitectura, com novos espaços, novos materiais, novas formar de construir, ele tentou apesar de tudo, reintegrar a arquitectura num ciclo de uma maior profundidade no tempo, quer dizer, não só na época do século XX, foi de facto o grande período inicial da arquitectura moderna, mas também fazendo-o numa perspectiva histórica e ele tinha muito, por formação e por suas próprias preocupações de estudo da arquitectura, inclusive o estudo da arquitectura Europeia, arquitectura de outros países, ele tinha a noção que a arquitectura, não se podia cingir só a um período, mas que havia uma sequência desde sempre, em que ele tentava integrar, portanto reflectir sobre essa perspectiva mais ampla da arquitectura, para além do século XX. Além dele admirar muito a arquitectura moderna, ter ele próprio praticado, e também os arquitectos modernos, todos eles. Ele achava que era um período em que se tinha que renovar a arquitectura, ampliando uma visão histórica da arquitectura, indo buscar uma visão histórica da arquitectura e isso foi o que mais me atraiu na sua projecção e no seu ensino. Era essa visão que ele tinha, de que a arquitectura tinha que ser universal e que a nossa arquitectura em qualquer período, tinha sempre que olhar para trás e saber aproveitar todos os impulsos que existiam desde sempre na forma de construir, na forma de criar os espaços, isso é uma coisa, por outro lado, ele praticava arquitectura coerentemente com aquilo que pensava, mas também tentava transmitir aos outros, através da palavra, o porquê das suas opções, porque é que ele fazia uma determinada arquitectura, porque é que ele propunha certos espaços, propunha uma forma de construir; tudo isso se reflectia no seu discurso, portanto o discurso dele, por vezes hermético remetia sempre para um pensamento filosófico da arquitectura. Não se limitando a procurar uma prática da arquitectura, mas também reflectindo sobre o seu significado. Portanto, isso foi, a grosso modo e em poucas palavras, o que me atraiu mais na sua prática e no seu ensino. Aliás eu comecei por estudar com ele e depois trabalhei com ele. 2. Isto influenciou a sua forma de ver e de projectar arquitectura? Acho que sim. Mas há um ponto que eu acho que é importante, que é: uma pessoa só procura aquilo que deseja. Eu tinha a possibilidade de trabalhar com outros arquitectos, mas de facto, o facto de eu trabalhar com ele é porque eu já tinha qualquer afinidade com ele. E isso é importante, porque, digamos que aprendi muito com ele, ele deu-me novas perspectivas, mas de qualquer maneira teve uma certa ressonância no meu modo de ser e na minha arquitectura, porque, efectivamente, eu já estava predisposto para ela. Conheci vários arquitectos, mesmo nos Estados Unidos e embora fossem grandes arquitectos, professores que eu considerava bastante, mas nunca tive a mesma atracção que tive por este arquitecto. Porque aquilo que ele dá às pessoas, dizia aos seus alunos, etc. tinha maior ressonância na minha formação e no meu modo de

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ser. Por um lado, tenho a minha maneira própria de ser, que é diferente da dele, ele teve uma formação muito diferente da minha, portanto, as bases culturais também são diferentes. Ele era um arquitecto Americano, embora a família dele viesse do Norte da Europa, mas no entanto ele também teve uma formação em que a Europa esteve muito presente, porque ele estudou numa escola de Beaux Arts, ainda sobre o ensino de Beaux Arts, com professores académicos, em que a escola tinha ainda uma ressonância muito grande do ensino da arquitectura académico de condição europeia. E também estagiou muito tempo na Europa, portanto, viajou pela Europa, sobretudo pelo mediterrâneo e teve muita influência dessa arquitectura. No entanto a minha maneira de ser é diferente. Eu procurei outras coisas e também por uma questão de coerência, com o pensamento dele, achava muito incorrecto ir imitar, fazer coisas que ele já tinha feito. Obviamente teve uma enorme influência e eu aceito muita dessa influência, mas a minha maneira de pensar será diferente da dele e por isso tinha que ser diferente. O que não quer dizer que por vezes eu tenha adoptado, em certos momentos, certas propostas que ele teve, por ver que sendo coerentes com as minhas propostas havia algumas que se sobrepunham, ou que iam ser muito idênticas às dele, mas isso nunca me importou, porque eu sabia que no fundo eu procurava sempre fazer obras diferentes de acordo comigo próprio. 3. O inquérito à arquitectura Popular em Portugal foi importante para si? Quando se iniciou o inquérito da Arquitectura popular eu ainda era estudante, estava a estudar no Porto, e lembro até de ver reuniões com arquitectos lá do Porto, exactamente aquelas pessoas que depois fizeram o inquérito à arquitectura, por outro lado eu conheci sempre muito bem o Francisco Keil do Amaral, que foi o grande inspirador do inquérito. Muito tempo antes de se fazer o inquérito, ele já defendia a realização desse inquérito, por várias razões, uma delas porque houve sempre uma preocupação em Portugal, nas gerações anteriores à dele, mesmo desde o século XIX praticamente, em identificar o que era a arquitectura Portuguesa e portanto criava-se um mito, muitas pessoas defendiam que a arquitectura portuguesa era sui generis que não tinha tanto a ver com outras arquitecturas de outros países e, portanto, queriam identificar o que é que distinguia a arquitectura Portuguesa, sei lá, os telhados, a natureza dos espaços, as dimensões dos espaços, os motivos decorativos e outras coisas mais, e o Keil do Amaral pensou que não existia uma arquitectura popular Portuguesa, efectivamente cada região do país tem a sua forma de construir arquitectura, tem a sua forma de compor arquitectura, e ele sempre teve essa ideia, mas por outro lado sempre achou que se investigasse muito se existia de facto essa dita forma arquitectónica de construir em Portugal, de edificar e de fazer arquitectura em Portugal e portanto, eu sempre o conheci desde miúdo e o pensamento dele também não me era desconhecido, antes pelo contrário. E eu dava-me muito bem com o filho dele, era amigo do filho dele e dele próprio também, os meus pais eram muito amigos dele, etc, e eu sempre soube, embora não conscientemente, porque eu era muito miúdo na altura e não podia articular essas ideias, mas sempre tive a noção de que ele era um homem que se procurava em ser coerente com a

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nossa tradição arquitectónica, mas, por outro lado, não ter a ideia de haver um único modo de fazer arquitectura ao longo de todo o país e isso acabou por ser muito importante para a minha geração, porque eu conheci vários arquitectos que tiveram no inquérito e que um deles foi o Távora que era meu professor e outros foram meus amigos, quase todos os arquitectos jovens que tiveram nessas equipas, conhecia-os bastante bem, de maneira que segui de alguma forma o inquérito, a produção do inquérito e as conclusões do inquérito. Acho que foi um documento essencial para desmistificar a ideia de uma arquitectura Portuguesa que algumas pessoas defendiam. E também, para ver como é que se compunha, porque muitas pessoas... por exemplo, o Távora conhecia muito bem a arquitectura da região que ele estudou posteriormente o Minho, e portanto não foi novidade, no entanto, ele era um homem extremamente culto e sempre pensou que, para além das teorias que vinham do exterior, que havia uma realidade nossa e que também era preciso atender a ela e, portanto, era de facto um inspirador da arquitectura. E na sua própria arquitectura, sempre teve presente essa ligação. Quem diz o Távora diz o Keil do Amaral e outros que sempre tiveram presente essa realidade, portanto, era um elemento enriquecedor. Tal como falei do Kahn, que achou que não se podiam fazer barreiras na arquitectura, que não podíamos esquecer o que é que tinha sido feito antes da arquitectura moderna, do mesmo modo eles também procuravam, inspiraram-se de alguma maneira na realidade que eles conheceram. Por outro lado, também, no sentido de tentar preservar muita coisa que, entretanto, algumas dessas coisas foram destruídas e, portanto, também tentar que se tivesse a noção da riqueza e do interesse arquitectónico, do ponto de vista construtivo, do ponto de vista social e humano, de toda essa arquitectura e tentar que ela de alguma forma pudesse ser preservada, o que nem sempre foi conseguido. Cada região tinha os seus valores próprios, nós falamos de arquitectura de pedra e não há dúvida nenhuma que ela tinha uma importância enorme no Norte, falamos da arquitectura já meridional do Alentejo com outros valores. Digamos que havia uma grande diversidade, foi uma realidade com que toda a gente se defrontou naquela época, tanto aqueles que fizeram o inquérito como outras pessoas. Havia divulgação que foi importantíssima para todos nós, infelizmente há muita coisa que desapareceu, como o próprio país se alterou, todos os fenómenos que ocorreram desde essa época. Eu tenho assistido, a algumas destruições, vou a determinados locais e vejo que a realidade é muito difícil, de facto as condições de vida eram muito más, as pessoas não podiam aceitar. São duas coisas que se contradizem. Por um lado, é a tentativa de manter os valores da arquitectura, de uma arquitectura tradicional, uma arquitectura com determinadas características, tentar manter esses valores. Por outro, as pessoas muitas vezes não... Eu lembro-me por exemplo na Beira Alta, umas casas magnificas em Pedra, com paredes grossíssimas, mas os espaços interiores não correspondiam àquilo que as pessoas necessitavam para viver, então, preferiam deitar as paredes a baixo e fazer paredes de tijolo sem interesse nenhum, mas ficavam com mais espaço interior, do que conservar as características dessas edificações. É uma contradição enorme, mas que também tem muito a ver com a moda que há de viver, digamos que as pessoas acham que deviam ter uma casa muito grande por exemplo e se calhar não é necessário ter uma sala tão grande. Mas é uma imagem que também começa

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a difundir-se, com a televisão e com outros meios de comunicação. São imagens que se criam e que as pessoas adquirem com o contacto com a televisão e acabam por também querer ter, ora, também não é necessário ter. Se calhar, não é necessário um casal ou um pessoa isolada ter espaços tão grandes. Tradicionalmente não haviam meios, as pessoas faziam o mínimo porque não tinham dinheiro, faziam casas pequenas... Entretanto começaram a ter noção de que aquelas casas já não respondiam aquilo que era comum, há muito esse hábito de conviver com outras pessoas e dizerem, ah afinal aquele tipo tem uma casa mínima, já não corresponde ao tempo actual, não sei quê... e na realidade também há um preconceito do outro lado, são dois preconceitos que se defrontam. Um fenómeno muito difícil de apreciar na sua globalidade, mas que tem de ser objecto de análise e de discussão, de critica, para permitir que se estabeleça uma renovação mas com respeito por certos valores, e com conhecimento de certos valores e usufruir desses mesmo valores. Verificou-se que havia um certo esgotamento dessa arquitectura moderna e era necessário repensa-la e portanto, só se podia repensar com contribuições como seja o inquérito. 4. Como nasceu o projecto de Beja para a Casa da Cultura da Juventude de Beja? O projecto de Beja, foi muito interessante porque, foi assim, eu conheci o Alentejo muito tarde. Tive muito poucas ligações, o meu pai conheceu o Alentejo e falava muito do Alentejo, mas eu por várias razões nunca tive um contacto muito directo com o Alentejo. E uma vez, quando eu regressei dos Estados unidos, em 1965 mais ou menos, trabalhei com o José Rafael Botelho, que era um Urbanista, e ele desafiou-me para fazer uma viagem ao Alentejo. E foi assim o primeiro contacto directo que tive com o Alentejo. Embora conhecesse, obviamente, através de livros e tudo isso. Culturalmente estava ao corrente mas, simplesmente, contacto directo não tinha e foi uma viagem muito engraçada, porque nós fomos a Beja e depois voltamos por aquela zona perto da fronteira de Espanha… portanto fomos a várias outras terras e depois fomos a Évora. Foi uma viagem muito curta, durou pouco tempo, mas de qualquer maneira permitiu-me conhecer melhor o Alentejo. E entretanto, veio depois, anos mais tarde, o 25 de Abril e contactavam-me para eu fazer uma, quer dizer, um organismo que era da Juventude convidou-me a fazer, a estudar, esse tipo de programa de Casas de Juventude, que era uma coisa que não existia, que de um modo geral, regional, queria incentivar muito encontros de juventude, essa coisa toda, e então encomendaram-me fazer três projectos, um dos quais era em Braga, outro em Viseu e o terceiro em Beja. A ordem não foi esta, era primeiro Braga, depois Beja e depois Viseu. E entretanto eu informei-me sobre os programas desses edifícios, tomei conhecimento também em França. Fui a França conhecer esse tipo de edifícios. É engraçado, porque, na altura já lhe chamavam “La maison pour tour”, “casa para todos”, não queriam que aquilo fosse só de um nível etário, queriam alargar para todos os outros níveis etários, tinha havido uma evolução a partir das próprias pessoas da administração e então já tinham alargado a ideia de não ser só uma coisa de jovens, etc. Eu conheci o programa, que programa é que devia ser e fiz o primeiro programa desse tipo de edifícios. Comecei pelo de Braga, tem a ver com uma ligação também do ponto de vista da arquitectura de Braga, que

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é uma cidade magnifica, tem coisas fantásticas, e tentei interpretar também do meu modo de ser, da minha visão da arquitectura, como é que seria o edifício de Braga. O edifício de Braga era numa rua, no centro praticamente, depois tinha por detrás um grande talude, extremamente elevado e, portanto, estava ali condicionado, entre a rua e esse talude. Simplesmente aconteceu uma coisa, eu fiz um projecto que eu gosto muito, não chegou a ser edificado, em que de facto uma fachada... Quando falamos em Braga, falamos muito do barroco e portanto eu tentei interpretar de um modo actual na época, já foi há uns anos, como é que era a resposta a esse impulso, a essa forma de edificar naquela cidade. E portanto, prestei uma importância muito grande à fachada, aliás ia ser uma fachada em betão, praticamente, e depois o edifício ficava entalado entre essa fachada e por trás tinha o tal talude. E depois havia uma ligação do edifício ao talude, havia ali de facto coisas que me apaixonavam muito nessa época. Simplesmente a situação... aquilo tinha uma certa conotação política, porque era um edifício do governo, na época, tinha sido depois do 25 de Abril e ficava logo em frente do Bispado, da casa do Bispo, e ao lado tinha um edifício que eu acho interessante, do Luís Cunha, que era o Diário do Minho, que era um órgão da igreja, não sei se foi por isso, o edifício nunca se veio a construir. Interpretou-se aquilo como sendo uma certa… não sei se foi interpretado assim, seria um desafio estando em frente da igreja. E portanto, esse edifício não se construiu. Ah! Porque entretanto esse organismo também central da edificação de edifícios para a juventude, aliás eu fiz mais que um estudo, era um bocado conotado com a nova situação política, derivado do 25 de Abril, e entrava um bocado em confronto com uma cidade mais tradicionalista. Da mesma forma também propus um edifício para Viseu, que até ficava num parque, mas esse já num estado mais atrasado, não foi dos primeiros a avançar e depois, então, veio o de Beja. Quer dizer, é o mesmo programa e eu acho muito interessante confrontar os dois edifícios, não tem nada a haver um com o outro e simplesmente o programa é o mesmo, o mesmo tipo de espaços e eu acho piada por ver o mesmo arquitecto que está a gerir em dois sítios diferentes e com o mesmo programa, faz propostas completamente diferentes uma da outra. A situação local também era diferente, Beja tinha aquele espaço aberto, obviamente não seria o mesmo edifício nas duas circunstâncias, mas de qualquer maneira a verdade é que eles tinham condições muito diferentes de estar. E de facto, quando comecei a estudar o edifício de Beja, saltou logo esse conhecimento que eu então já começava a ter do Alentejo. O ter um carácter mais associado à Arquitectura que eu interpretava como sendo a arquitectura do Alentejo. E procurando integrar também certas tecnologias locais, como seja as abóbadas, que foram concebidas e depois executadas com pessoal de Serpa. As pessoas que as executavam foram duas equipas diferentes, mas eram pessoas de Serpa, que ainda lá existia há pouco tempo e agora não sei, porque eu tinha uma amiga minha que era de Serpa que me dizia que ainda havia lá as equipas que faziam, mas actualmente não sei, porque já se passou bastante tempo. Eu não estava muito bem informado sobre isso, mas quando comecei a conceber o edifício, comecei a fazer uns desenhos e surgiu-me isso, não foi uma ideia préconcebida. Quando pensava no edifício, pensei, “isto poderia ser uma coisa interessante para este edifício, está aqui um bocado centrado neste espaço, ter um ar festivo.” E depois perguntei a um engenheiro, porque eu nem sabia que existiam pessoas para executar aquilo, “Ouça lá, se não houver pessoas para executarem

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as abóbadas em tijolo, posso fazer em Betão?” e ele disse que sim, “podes fazer em betão”, e então avançamos para a concepção. E depois fiquei muito satisfeito de ver que havia de facto mão-de-obra, havia pessoas que sabiam executar as abóbadas. De qualquer maneira percebi que havia ali uma certa lógica na concepção das abóbadas. É bom ter conhecimentos, não só das técnicas actuais, antigas, da cultura actual, da antiga, etc., da tradição. Isso fica incorporado nas nossas ideias, permitem fazer sínteses. Não é que a gente vá deliberadamente fazer uma coisa de um determinado modo, mas são sínteses que ficam para nós e que nós colhemos depois mais tarde, de repente aparecem sem sabermos porquê. Porque quando estamos a conceber edifícios… como lhe disse, este de Braga por exemplo, não tinha nada a haver, não ia fazer as abóbadas em braga, embora haja lá abóbadas, Tibães tem lá umas abóbadas com piada, não são “barrete de clérigo”, mas tem abóbadas, na realidade não quer dizer que não se pudesse fazer, mas simplesmente não era o sítio próprio para fazer e não surgiu sequer a ideia de fazê-las. O papel do arquitecto é muito esse de reflectir sobre as obras. Eu, não conhecendo o Alentejo praticamente, na altura este organismo central começou a reduzir a sua actividade e confiou à câmara de Beja a continuação do projecto. Foi a própria câmara que depois continuou e fez o projecto. Acho que é fundamental essa reflexão. 5. O sistema modular, é influência do arquitecto Louis Kahn? Acho… há uma coisa aí que é importante, que é a planta central. A planta central foi muito inspiradora da arquitectura do Kahn, aliás, vários edifícios reflectem isso. E de alguma forma o interesse que ele encontrou na arquitectura romana, por exemplo, na arquitectura do renascimento e depois o contacto que ele teve também com a Índia e com o Paquistão Oriental, Bangladesh hoje, também estava no espírito dele, pela sua formação académica, uma certa adesão à planta central e que tem uma lógica arquitectónica, tem uma lógica construtiva e para certo tipo de edifícios isso era muito saliente, digamos, sobretudo em Beja, pela centralidade do edifício, naquele espaço um bocado central, no meio de uma praça muito grande. A localização central que teve convidava, a própria organização interna, uma sala polivalente que podia ser um auditório, podia ser uma coisa que prestasse a várias realizações. Tudo isso convidava muito a essa racionalidade e a essa modelação. Porque a própria estrutura, a própria adopção de abóbadas de “barrete de clérigo” tudo isso convidava a fazer uma planta central e depois as abóbadas tinham que ter uma certa regra. Todos os espaços, as abóbadas, tudo isso tinha que ter certa regra, de maneira, que essa modelação nasce muito disso. Por outro lado é uma coexistência entre uma estrutura de Betão armado, as abóbadas poderiam ter assentado sobre paredes, elas assentavam sobre paredes, mas simplesmente as paredes também eram formadas por uma estrutura em betão armado, em certos pontos tinham que fechar sobre essa estrutura em betão armado. Houve uma simbiose, digamos, das ideias arquitectónicas com as ideias construtivas e estruturais para formar essa modelação e a relação entre os próprios espaços. Espaços que estavam na envolvente do edifício, que eram as abóbadas mais pequenas, com as abóbadas centrais. Também, por razão

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de visibilidade, obviamente que as centrais tinha de ser maiores. Outra coisa que eu acho que é importante, também, é os espaços de entrada. Os espaços fundamentais de entrada, terem sempre também uma divisão em dois, digamos que há sempre um pilar que fica no eixo, e portanto a entrada está sempre dividida em dois, não tem uma porta central. Isso é também uma preocupação que eu tinha, que era dizer assim: “Nós vamos fazer aqui um edifício que poderá ter afinidades, obviamente que eu também tive a ver livros, com o conhecimento de igrejas, igrejas ortodoxas, por exemplo Grécia, da própria Rússia, Ucrânia e noutros sítios do Mundo. Tive a ver que as abóbadas foram muito usadas em determinados contextos, sobretudos religiosos, mas que aí tinham um certo valor ênfase, num espaço central e numa entrada central, entrada única, e portanto eu achei que para corresponder a uma maneira mais actual nossa, uma nossa cultura, tinha que haver um desdobramento disso, todos aqueles elementos construtivos, arquitectónicos, tinha que ser desdobrados e portanto não tinha a preocupação de ter uma entrada única e ter uma abóbada em número ímpar, mas sim que ela se desfragmentasse, até para corresponder aos nossos conceitos, ao nosso ponto de vista das nossas ideias actuais, da ciência, etc. Não criar, de facto, um grande ênfase nas zonas de entrada, não lhe dar o carácter de uma igreja, que não é. 6. A influência das abóbadas advém do inquérito ou dos ensinamentos do arquitecto Louis Kanh? Eu acho que vem muito do lado do inquérito, como disse, só conheci o Alentejo muito tardiamente, conheci obviamente muito do Alentejo, a cultura Alentejana, etc., mas aquelas imagens do inquérito sobre as abóbadas, acho que foi muito importante e deu para conhecer e como inspiradoras também. Por outro lado, o Kahn, ele usou muito os arcos, mas nunca, que eu me lembre, usou abóbadas. Quando eu trabalhei com ele, um dos projectos que eu trabalhei foi a capital de Aka, no Paquistão oriental, na altura, que hoje é Bangladesh, e ele estava a fazer umas casas que era umas casas dos deputados, aquilo tem uma ordem muito rigorosa, que eles têm uns lagos triangulares e depois têm uma série de casas ao longo dos lagos e uma dessas casas que estava a trabalhar… nós que éramos colaboradores dele, tentávamos interpretar o melhor possível aquilo que ele queria, mas ele obviamente vinha sempre reflectir e depois dizer “não, afinal não é bem isso que eu quero…” e portanto, uma das coisas que ele estava a fazer eram umas aberturas, que tinham uns arcos exteriores, portanto, havia uma relação entre o betão e o tijolo e eu, a acerta altura, sugeri: “aqui podia ter uma abóbada” e ele disse “não, não! Isso sai fora desta disciplina.” Porque cada obra tem a sua disciplina e é preciso reconhecer o que é que é o tónus, a parte principal de uma obra. Isso é em qualquer caso. Uma pessoa privilegia certo tipo de questões que são essenciais no projecto e portanto arreda os outros, e diz: Não, há milhares de coisas que eu podia fazer e agora estou aqui a escolher o que pretendo fazer nesta obra e portanto vou definir aquilo que quero fazer aqui nesta obra”. E eu percebi perfeitamente. Portanto, eu tenho a impressão que é mais por essa via e também por aquilo que eu pensei na altura, pela documentação que tinha reunido, ver como é que havia de ser. Tenho a impressão que até o primeiro desenho que fiz era até uma abóbada única e depois é que resolvi desdobrar. E também tem a ver com uma

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temática, tem a ver com a geometria e a matemática, como é que vamos desdobrar isto, e como é que vamos conciliar depois o programa. 7. Como era a relação com os artesãos? O que significou trabalhar com essas pessoas? Os artesãos, uma coisa que pesou muito mal era a relação entre eles e o construtor. Porque o construtor era um individuo... não era muito simpático e ele envenenou um bocadinho a obra nesse sentido das relações pessoais. Por isso eu praticamente não tive contacto com eles. Uma coisa muito interessante que eu via no Verão, quando estava a construir as abóbadas – eu vi e tenho algumas fotografias da construção das abóbadas – eles iam sempre almoçar para baixo das abóbadas, que era o sítio mais fresco. Disso lembro-me muito bem. Os que fizeram as abóbadas pequenas foi uma equipa de Serpa, mas depois houve problemas com o empreiteiro, qualquer coisa que tinha a ver com dinheiro, e depois veio com outra equipa fazer as grandes abóbadas do meio. E eu assisti como é que eles faziam aquilo, aquilo não tem cofragem, uma coisa fantástica. Aliás, havia uma das equipas que eles diziam “ah, quando houver assim mais trabalhos de abóbadas diga”, simplesmente não se proporcionou. Eles faziam de facto trabalhos magníficos. Muito competentes. 8. Para além da casa da Juventude, também em Beja, a Unidade Residencial João Barbeiro, tem também esse trabalho de artesãos, elementos da arquitectura popular… Sim. Esse foi muito interessante. Os construtores acho que eram irmão, os irmão Dias. Resolvemos que tirando umas certas zonas que eram em betão (que era sobretudo as escadas) tentaríamos ter o máximo de tijolo que era possível. E portanto, tínhamos tijolo no exterior, tinha umas lajes que tinham umas pranchas feitas em tijolo e depois tinha uma camada de betão por cima. Mas nós tentámos pôr o máximo de tijolo, aliás o engenheiro mais tarde disse que se fosse pouco depois daquela construção já não era permitido ter feito aquelas pranchas em tijolo. E para testemunhar isso também tinha aquelas grelhas em tijolo, que são grelhas mediterrânicas, há por todo o lado, mas simplesmente nós demos-lhe aquela escala para realçar que era mais importante ter o conjunto da fachada do que propriamente ter a divisão piso por piso. E então quisemos dar aquela dimensão, daquelas grelhas. E foi engraçado, porque eu tinha pensado inicialmente tê-las todas pintadas de branco, pintá-las de branco e depois quando disse isso ao construtor ele disse “Oh, mas não faça isso que eu mandei fazer os blocos de tijolo especiais para ali”, quer dizer ele mandou moldar aqueles blocos, com a dimensão que tinha cada um deles, “tive um cuidado enorme e não sei quê e agora quer pintar isso?”. E eu achei graça, e depois o presidente da câmara também disse “Ah, isso é uma pena” e estava tudo de tal maneira desgostoso que eu achei que era melhor ficar assim. E também acho que gostei de ver. Mas eu queria aquilo mais uniforme em cor, para depois se sentir mais o vazio dos tijolos, mas pronto, também não perdeu nada. Foi um edifício que eu gostei muito e mais uma vez foi um edifício encomendado pelo presidente da câmara, o Colaço, que era uma pessoa extraordinária, gostava imenso dele e ele compreendia muito bem o que me agradou também, é que eu propunha essas coisas e havia uma grande aceitação.

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9. Voltou a ter nas suas obras o contributo de artesão? Eu tive alguns, por exemplo obras de tijolo que eu fiz, mas eu acho que a obra de Beja, de qualquer forma despontou muito esse gosto pelo trabalho do artesão. Nestas de tijolo era feito por pedreiros, mas pedreiros bons, com esse conhecimento. Aliás é engraçado, porque normalmente a construção corrente de facto toda a gente sabe fazer, mas não incita muito os trabalhadores quer os operários fazem as coisas um bocado indiferentemente, mas por outro lado cada vez que eles se encaram com um projecto difícil, geralmente eles interessam-se muito por ele, sentem-se mais realizados por fazer um projecto assim, por exemplo com o tijolo, que oferece mais dificuldades, de leitura, de execução, tudo. Eu tenho sentido uma grande adesão por parte dos operários, muito mais do que na construção corrente. Em tijolo fiz a casa de Queijas, em Avias a Caixa Geral de Depósitos, com um encarregado excelente, uma pessoa que até está a ajudar-nos aqui numa obra, que é de facto um homem muito sério, é um alentejano por acaso, de Santiago do Cacém. E portanto, uma grande adesão não só dos encarregados, mas também dos operários, tentam o melhor possível, se as coisas não estão bem desfazem e voltam a fazer. E depois a Biblioteca da moeda. São assim as três obras em tijolo. Sempre que se proporcionou, sempre que há qualquer razão, qualquer coisa que incentivava a fazer esse tipo de obras. Muitas vezes não se percebe muito bem porquê. E na realidade tenho imenso, gosto disso. Continuo a ter muito interesse nisso. Nem sempre se proporcionou. 10. Faz sentido o cruzamento entre as técnicas tradicionais e as contemporâneas, de modo autêntico, nos dias de hoje? No próprio atelier do Kahn, ele também me fazia conciliar as duas técnicas, portanto ele tinha obras quase todas em betão, mas também foi muito incentivado a ir para outro tipo de obras com as suas obras fora, no Paquistão e na Índia. Não quer dizer que também não tenha feito outras obras, mas foi muito no seu contacto. Eu felizmente estive lá no atelier dele quando se estavam a fazer essas obras, portanto, para mim foi muito bom, até por uma razão, é que eu percebi que a nossa construção, talvez por uma certa distância da Europa, ainda estava muito inspirada na arquitectura tradicional, a própria mão-de-obra, a organização dos estaleiros, das obras e tudo isso, era muito ainda inspirado por uma construção tradicional, quase diria mediterrânica. E isso para mim foi bom, porque apercebi-me que devia ir à procura de bases desse tipo, não bastar com a construção moderna da altura. É uma questão que acho que nunca se vai esgotar, porque às vezes voltamos atrás e reflectimos. Às vezes não reflectimos porque não temos conhecimento ou não pensamos nisso, mas de um modo geral contínua a haver um acerto conhecimento e pessoas que defendem e que continuam a fazer de uma determinada maneira, vejo isso com a construção de tijolo, por exemplo. A certa altura é assim, uma pessoa tem que diversificar as técnicas. Eu acho que a própria construção actual, e o actual é um bocado de acordo com o que se faz, porque há coisas que são actuais, mas não se fazem, podiam se fazer. Mas não só cada obra pede as uma forma construtiva, como também é aquilo que nós sentimos que é possível fazer, que se encontra pessoas para executar. Depois a mão-de-obra, por exemplo carpintarias, rebocos, está muito associado à capacidade de fazer. Se me disserem assim “este reboco é impossível de fazer”, eu não posso estar a pôr o reboco na obra. E depois há aqueles já pré-estudados que são muito mais fáceis de aplicar e de comprar. E como é que nós

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vamos resistir a essa facilidade? Nem sequer há uma regulamentação para a arquitectura em Pedra, que é uma coisa incrível. Em França têm por exemplo, uma pessoa vai fazer um edifício em pedra e tem uma regulamentação própria, cá temos que ter vigas em betão, travamento em betão, um absurdo…

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O projectar exige que se compreenda a ordem. Quando temos que lidar com tijolos ou projectamos com eles, devemos perguntar ao tijolo o que quer ou pode ser. E se perguntamos ao tijolo o que quer, responderá: “Bom, queria um arco.” E então diremos: “Mas os arcos são difíceis de fazer. Custam mais. Creio que o cimento ficaria igualmente bem por cima da tua abertura.” O tijolo replica: “Já sei, já sei que tens razão, mas se me perguntas o que prefiro, quero um arco.” E uma pessoa diz: “Porque és tão obstinado?” E o arco diz: “Posso fazer uma pequena observação? Não se dão conta que estão a falar de um ser e que um ser de tijolo é um arco?”. Isto significa compreender a ordem. Significa conhecer a sua natureza. Significa saber o que se pode fazer. E respeitá-lo profundamente. Se trabalharmos com tijolo, não o usemos como uma opção de segunda mão ou porque custa pouco. Não, devemos elevá-lo com toda a sua glória, e esta é a única interpretação que merece.” KAHN, Louis. Amo os inícios. 1972. In: J.A.A Condição Pós - Moderna. Lisboa. 2002. P.103

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